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Memoria americana

versão On-line ISSN 1851-3751

Mem. am.  no.19-1 Ciudad Autónoma de Buenos Aires jan./jun. 2011

 

ARTÍCULOS ORIGINALES

Raízes e rotas da terra. Formação de um território negro no sul do Brasil

Roots and routs of the land. The formation of a black territory in southern Brazil.

 

Marcelo Moura Mello*

* Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: mmmello@gmail.com

 


Resumo

Amparado em fontes escritas e orais, o texto trata da trajetória histórica da comunidade negra rural de Cambará, que se localiza no Rio Grande do Sul, estado situado no extremo sul do Brasil que possuí fronteiras com a Argentina e com o Uruguai. Longe de remeter a um processo homogêneo, a formação histórica desse grupo cobre um longo período temporal, envolvendo a interação de indivíduos provenientes de distin- tos grupos étnicos. A partir deste caso, objetiva-se fazer confluir a análise das estratégias acionadas pelos antecessores dessa comunidade para garantirem o acesso à terra em distintos contextos com dois conjuntos de discussões: aqueles suscitados pela historiografia brasileira acerca da escravidão e aqueles decorrentes da emergência de novos sujeitos de direito no Brasil, os remanescentes de quilombos.

Palabras claves: Territórios negros; Remanescentes de quilombos; Escravidão.

Abstract

The text deals with the historical trajectory of the black rural community of Cambará, in Rio Grande do Sul, a state located in southern Brazil, which shares borders with Argentina and Uruguay and it is based upon written and oral sources Far from referring to a homogeneous process, the historical formation of this group covers a long period of time, involving the interaction of individuals from different ethnic groups. From this case, the objective is to conflate the analysis of strategies used by the predecessors of the community to ensure access to land in different contexts with two sets of discussions: those posed by the Brazilian historiography about slavery and those arising from the emergence of new subjects of rights in Brazil, the maroons - remanescents of quilombos.

Key words: Black territories; Maroons; Slavery.


 

INTRODUÇÃO1

O texto trata da trajetória histórica da comunidade negra rural de Cambará, situada entre os municípios de Cachoeira do Sul e Caçapava do Sul, região central do Rio Grande do Sul, estado localizado no extremo sul do Brasil e que possui fronteiras com o Uruguai e com a Argentina; a pesquisa se ampara em fontes escritas e orais Longe de remeter a um processo homogêneo e coeso, a trajetória histórica deste grupo e a formação de seu território cobrem um longo período temporal, envolvendo a interação de distintos grupos étnicos. A partir deste caso, objetiva-se fazer confluir a análise das estratégias acionadas pelos antecessores dessa comunidade para garantirem o acesso à terra com dois conjuntos de discussões: aqueles suscitados pela historiografia brasileira acerca da escravidão e aqueles decorrentes da emergência de novos sujeitos de direito no Brasil, os remanescentes de quilombos -ou quilombolas.

Os quilombos, ou mocambos, eram agrupamentos de escravos fugidos cujos equivalentes em outros países das Américas foram os maroons, os cimarrones, os cumbes e os palenques. Desde o estabelecimento efetivo dos portugueses no Brasil, a partir de 1530, até os últimos anos de vigência do regime servil, que foi abolido em 1888, a formação de quilombos foi inerente ao escravismo. Esses agrupamentos caracterizaram-se por sua heterogeneidade: eles variaram em tamanho e quantidade populacional, em padrões de mobilidade e de estacionalidade, perduraram ora por poucos meses ora por dezenas de anos e por vezes abrigaram membros de diferentes grupos étnicos.

Os quilombos sempre povoaram o imaginário da nação, despertando os mais variados sentimentos e emoções. No Brasil o mais conhecido deles foi o de Palmares, que abrangia diversos núcleos de povoamento formados a partir da segunda metade do século XVII, que resistiram às expedições punitivas por mais de um século, contando com milhares de habitantes. O principal líder de Palmares, Zumbi, tornou-se, ao longo dos anos, o principal símbolo da resistência negra do país e é na data de sua morte -20 de novembro de 1695- que se comemora o Dia da Consciência Negra.

Embora tenham despertado grande atenção durante todo o século XX sendo apropriados enquanto emblema político desde a década de 1920; foi no contexto de mobilização contra a ditadura militar (1964-1985) que os discursos sobre os quilombos constituíram um plano no qual se cruzaram análises acadêmicas, anseios e questionamentos políticos, símbolos étnicos e culturais e ideários de resistência. Findo o regime autoritário, as discussões sobre a nova Constituição, promulgada em 1988, contaram com a intensa participação de vários setores da sociedade civil organizada, assim como de intelectuais. Essa mobilização resultou na criação de direitos constitucionais voltados a segmentos historicamente marginalizados, como a população negra, por exemplo.

A promulgação da Carta Magna coincidiu com o centenário da abolição. Além da proliferação de estudos acerca das relações raciais no Brasil, o movimento negro denunciou sistematicamente a marginalização social imposta aos ex-cativos na pós-emancipação, salientando que a liberdade não havia sido dada mas sim conquistada. Concomitantemente, ganhou força a campanha para que se celebrasse o dia 20 de novembro, data de morte de Zumbi, ao invés de 13 de maio, data da abolição. Nesse período, já existiam associações de comunidades negras rurais nos estados do Pará e do Maranhão, mas pode-se dizer que a questão agrária não estava no centro das demandas dos movimentos negros.

Assim, foi sem grande repercussão que se aprovou o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), com a seguinte redação: "Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida sua propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos". Nessa época, estimava-se serem raros os agrupamentos que se adequariam à legislação e que poderiam pleitear direitos sobre suas terras -daí a aprovação desse artigo não ter encontrado grande resistência entre os constituintes (Arruti 2006). Isso se deveu, em grande medida, a um entendimento literal do termo designativo desses novos sujeitos de direitos "remanescentes". De fato, imaginava-se que as comunidades quilombolas contemporâneas seriam formas intactas dos quilombos passados.

Todavia, os efeitos do artigo 68 no mundo social foram em direção oposta. Atualmente, estimativas extra-oficiais dão conta da existência de mais de quatro mil comunidades quilombolas em todo o país, sendo que 1523 delas são oficialmente reconhecidas pelo governo2. Ao invés de ocorrer uma delimitação, na qual somente grupos que descendessem de escravos fugidos pudessem reivindicar direitos, comunidades com as mais variadas origens históricas têm postulado seu reconhecimento enquanto remanescentes de quilombos bem como os direitos que lhes são garantidos em lei. Diversos fatores concorrerem para esse quadro e não é minha intenção reconstituir em minúcias isto -algo -por si só demandante de um artigo. Por ora, chamo a atenção para o recurso a outros dispositivos constitucionais, a ação de mediadores e militantes do movimento social, a adesão a essa identificação por diversos grupos e a re-conceituação desta categoria.

No que concerne ao último ponto destacado acima o papel da antropologia foi determinante. Em um cenário no qual ainda havia pouca clareza sobre quem seriam aqueles a quem se referia o artigo 68, o grupo de trabalho Comunidades Negras Rurais da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), instigado por consultas de órgãos do Estado, enunciou uma nova definição na qual se propunha a "ressemantização" do termo quilombo (O'Dwyer 1995). Afastando uma série de definições e atributos -as comunidades referidas pela legislação não se caracterizam pela homogeneidade populacional e pelo isolamento, nem sempre se constituíram através de atos de insurreição, não derivam sua identidade da ocupação temporal ininterrupta ou de traços biológicos-, concebeu-se os remanescentes como grupos que "desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução dos seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio", cuja identidade se define pela "experiência vivida" e pelas "versões compartilhadas de sua trajetória". Nesse sentido, eles constituem "grupos étnicos", conforme a acepção de Fredrik Barth, ou seja, "um tipo organizacional que confere pertencimento por meio de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão" (O'Dwyer 1995: 1). Propôs-se, também, um abandono da noção "arqueológica" de quilombo -que se encerra na definição daquilo que foi, não do que é no presente-, respeitando, ao contrário, aos "auto-definições" dos sujeitos em face dos grupos e agências com quem interagem (Almeida 2002). Não obstante a adoção, pelos órgãos governamentais, da versão "ressemantizada" da categoria, da elaboração de novas leis sobre o assunto e da formulação de diversas políticas públicas desde então várias disputas em torno dessa identidade surgiram, em especial sobre a largueza do conceito; i.e., que grupos ele abarcará ou excluirá (Arruti 2008: 316).

As origens desta pesquisa estão justamente relacionadas às questões e debates concernentes aos remanescentes de quilombos. Desde o início desta década, a comunidade com a qual realizei pesquisas vem reivindicando a identidade quilombola e a regularização fundiária de seu território. Após participar de um projeto de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no local (em 2003) fiz parte de uma equipe, composta por antropólogos, historiadores e geógrafos, que elaborou um relatório histórico -antropológico (Anjos et al. 2006) cujo objetivo era oferecer subsídios ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), órgão governamental vinculado ao Ministério de Desenvolvimento Agrário responsável pela titulação dos territórios quilombolas no processo de regularização fundiária da comunidade3. Foi nesse contexto de produção de uma peça técnica -que visava coligir elementos para fundamentar a reivindicação e o reconhecimento de direitos- que se realizaram pesquisas mais aprofundadas sobre a história do grupo, sobretudo através das narrativas orais e dos documentos depositados em arquivos. Finda esta pesquisa prossegui com minhas investigações histórico-etnográficas.

Localizada na zona limítrofe entre os municípios de Cachoeira do Sul e Caçapava do Sul, a comunidade negra de Cambará é composta por aproximadamente quarenta famílias distribuídas em quatro núcleos territoriais (Rincão, Irapuá, Cambará e Pinheiros) que possuem estreitas relações de parentesco entre si. Cada família possui uma trajetória própria e se estabeleceu na região em distintos períodos, solidificando os laços com aqueles que já viviam no local através de relações de parentesco. Ao longo dos anos, sucessivas espoliações fragmentaram e diminuíram consideravelmente a extensão do território e várias áreas foram apropriadas ilicitamente.

Tanto as narrativas orais como os documentos depositados em arquivos históricos assinalam a presença de uma miríade de agentes em interação ao longo da história de Cambará. Os primeiros a se estabelecerem no local foram dois ex-escravos, e suas respectivas famílias, por meio da compra de pequenas glebas nos anos de 1835, 1845 e 1855. No decorrer do século XIX, essas duas famílias firmaram relações de parentesco e de compadrio com escravos, ex-escravos, libertos, indígenas e livres que viviam na região.

Os membros de Cambará dificilmente traçam uma linha genealógica superior a duas gerações ascendentes. Na ocasião na qual a busca por documentos em arquivos teve início, dispunha-se de um rol de nomes apontados como os primeiros a se estabelecerem no local. A versão comum ao grupo é de que os "antigos" fixaram residência ali em virtude de uma "sobra de campo" de uma medição judicial. Com esta informação, fez-se uma consulta na qual foi possível localizar a medição de uma sesmaria, da Palma, transcorrida entre 1886-1888, na mesma região onde hoje a comunidade se localiza4.

A leitura deste documento revelou a existência de uma faixa de terras no interior da sesmaria da Palma ocupada por indivíduos com o mesmo nome de alguns dos antecessores de Cambará. Para sanar dúvidas, informações adicionais foram compulsadas e cruzando-se os dados teve-se a certeza da ocupação daquela área pelos negros desde o século XIX. Ocorre que ao contrário da versão corrente no local, aquelas terras não foram doadas, e sim compradas por ex-escravos em 1835, 1845 e 1855. Por meio dos vínculos familiares descobertos nesta fonte foi possível ter certeza da descendência de duas famílias de Cambará, justamente as apontadas pelos atuais moradores como as "mais antigas", para com dois ex-escravos que compraram quinhões nas datas acima referidas.

Além deste documento, foram consultados inventários, cartas de liberdade, registros paroquiais de terras, autos de legitimação de posse, medições judiciais, assentos de batismo e registros de casamento e de óbito. Sempre se buscou uma interlocução com as narrativas orais, elas não só constituíram o ponto de partida das pesquisas, oferecendo valiosas pistas em muitas ocasiões, como exerceram efeitos de conhecimento na leitura e manejo das fontes escritas.

Após reconstituir, nas próximas quatro seções, a história de Cambará enfocando as estratégias de territorialização e de salvaguarda do território empregadas pelos antecessores do grupo, especialmente no período compreendido entre 1830-1930, busca-se estabelecer conexões entre o caso de Cambará com o conhecimento produzido pela recente historiografia da escravidão no Brasil. Não se objetiva reconstituir os meandros do processo de identificação quilombola no local, algo que fiz alhures (Mello 2008: 51-100), mas sim pensar a formação histórica de Cambará à luz, e para além, das discussões concernentes às chamadas "comunidades remanescentes de quilombos".

Ocupação da sesmaria da palma

A origem da sesmaria da Palma, local onde se formou o território de Cambará, remonta às disputas dos invasores europeus pela posse de territórios no sul da América. Desde 1630 os espanhóis incentivaram a catequese de indígenas e a formação de reduções; na mesma época os portugueses financiaram bandeiras pelos sertões do Brasil. Em 1680 fundaram a Colônia do Santíssimo Sacramento, entreposto luso no seio dos domínios espanhóis. Em 1737, erigiram o Presídio Jesus, Maria e José, em Rio Grande. Segundo Aurélio Porto (1926), em 1733, portanto antes mesmo da fundação do Presídio em Rio Grande, já percorriam a região onde se fundou dita sesmaria diversos indivíduos tendo alguns deles se apossado de faixas de terras.

A Colônia de Sacramento, fonte de inúmeras discórdias entre as Coroas Ibéricas, estimulou a assinatura de diversos tratados de limites. Em 1750 assinou-se o Tratado de Madrid, ficando os espanhóis com a posse da Colônia do Sacramento e os portugueses com os sete povos missioneiros. Já neste momento foram concedidas sesmarias para a povoação das terras ao norte do Rio Jacuí, quando se deu a fundação de Rio Pardo -município que teve um papel geopolítico decisivo na definição das fronteiras do Rio Grande do Sul- pois ali se deu a construção do Forte Jesus, Maria e José em 1752, e o povoamento por açorianos em 1753.

A demarcação dos limites estabelecidos no Tratado de Madrid encontrou resistência entre a maior parte dos indígenas que, após se negarem a abandonar as Missões, investiram contra Rio Pardo. Os sangrentos combates da Guerra Guaranítica (1754-1756), na qual alguns negros escravizados lutaram nas fileiras dos invasores europeus, resultaram no massacre dos indígenas e na morte de seu principal líder, Sepé Tiaraju. De volta da guerra, trouxe Gomes Freire de Andrade, general líder das campanhas militares contra os missioneiros, diversos índios que foram arranchados nas proximidades de do que viria a ser Cachoeira do Sul. Em 1769, outro aldeamento surgiu na mesma região; a constituição de aldeamentos se deu em pontos estratégicos e a 'assimilação' de indígenas, especialmente através de casamentos, foi estimulada pelos portugueses com o intuito de agregar contingentes populacionais para a salvaguarda e a conquista de territórios (Garcia 2009).

Após o Tratado de Santo Ildefonso, de 1777, foram distribuídas sesmarias ao sul de Rio Pardo. Segundo Porto (1926), dezessete oficiais e soldados vindos da campanha contra os índios missioneiros se estabeleceram no território que deu origem a Cachoeira do Sul, entre eles Manoel Gomes Porto agraciado com a sesmaria denominada Palma em 1784 -onde se estabeleceu com família, gados e escravos5. Após sua morte a propriedade foi fragmentada entre seus onze herdeiros, dando margem à instalação de outras famílias no local. É neste processo de compra e venda de terras, que caracterizou a fragmentação da antiga sesmaria, no qual as aquisições de ex-escravos, antecessores dos moradores de Cambará, estiveram inseridas bem como o estabelecimento de outras famílias escravocratas no local.

Os dados compulsados nesta pesquisa revelaram a existência de uma ampla rede de relações entre os indivíduos que compunham os plantéis das famílias escravocratas. O parentesco entre cativos, libertos e livres, conformou um espaço inscrito no seio de grandes fazendas; os laços familiares alimentados durante o período escravista foram imperativos na decisão de permanência de ex-escravos na localidade e no seu acolhimento por famílias negras que já viviam ali. Antes disso, me ocuparei da estrutura fundiária da região e da formação territorial de Cambará por meio da reconstituição do parentesco entre os ex-escravos que adquiriram seus quinhões.

Teias de parentesco

Por meio da leitura da medição da sesmaria Palma foi possível descobrir que pelo menos quatro ex-escravos adquiriram faixas de terras no interior desta propriedade. Os dados à disposição até o momento indicam a descendência genealógica dos atuais moradores de Cambará para com dois ex-escravos, João Antonio e Joaquim Antonio, que compraram quinhões nos anos de 1835 e 1845-1855 respectivamente. Acompanhemos brevemente a trajetória de cada um deles, começando com João.

O senhor de João era Manoel Antonio Ruivo, que se estabeleceu na região no final do século XVIII6. Falecido em 1827, teve por inventariante seu genro, Inácio Machado da Silva. Este dado é importante pois os sucessores de Ruivo, assim como seus ex-escravos, adotaram, durante o século XIX o sobrenome Machado7. No testamento de Ruivo, apenso ao inventário, foi disposto que a escrava Rita, 35 anos e casada com o "escravo idoso de nome João", ficasse liberta após a morte do testamentário, assim como metade do valor deste último fosse descontado. Talvez aproveitando a divida de 550.000 réis legada por Ruivo, ou talvez por algum acordo prévio, o escravo João, 50 anos, avaliado em 100.000 réis, requereu sua liberdade após pagar metade de seu valor. Obteve sucesso no seu intento e na libertação de sua filha, Libânia de dois anos de idade, após pagar 60.000 réis ao inventariante. De alguma maneira, João e sua família conseguiram acumular uma considerável quantia de dinheiro. Sete anos após pagarem 110.000 réis por duas libertações adquiriram um pedaço de campo8.

Joaquim, escravo de Antonio Gonçalves da Trindade, era africano, nas fontes é classificado ora como "benguela" ora como "da Costa", tendo contraído matrimônio com a escrava Florência, natural de Rio Pardo. Em 1835, foi alforriado por seu senhor com a condição de acompanhá-lo até a morte, não se tem certeza de quando exatamente ele gozou do estatuto de livre. Certamente antes de 1845, pois foi nesta data que comprou uma pequena gleba, no ano de 1855 adquiriu outro terreno contíguo ao que já possuía; sabe-se que Joaquim morreu em 1874, enquanto Florência em 18789.

Existem elementos que indicam a confluência dos projetos de liberdade dessas famílias não só por elas compartilharem trajetórias semelhantes, mas também por elas terem estabelecido relações de parentesco, simbolizadas pela união matrimonial entre um neto de João e Rita e uma neta de Joaquim e Florência10. Há indícios de que o apadrinhamento entre as duas famílias foi recorrente, mas dado o caráter fragmentário das informações disponíveis neste tipo de fonte é impossível ter absoluta certeza dessas ligações. Com efeito, além dos casamentos, o compadrio oferece pistas interessantes para se traçar os vínculos entre escravos, ex-escravos, livres e libertos.

Inexistem estudos aprofundados sobre a família escrava na região durante todo o século XIX, com exceção da pesquisa de Petiz (2009) que analisou sua incidência nas freguesias de Rio Pardo, Encruzilhada, Cachoeira do Sul e Caçapava do Sul entre 1755-1835. Dos 6395 escravos nascidos na região, mais de 45 % deles tiveram escravos por padrinhos, enquanto que 12,28 % foram apadrinhados por forros (Petiz 2009: 208). Não obstante o fato dessa pesquisa se deter em 1835 há indícios de que o apadrinhamento foi uma importante instância na construção de laços mais profundos entre a escravaria durante todo o século XIX. No caso de Cambará, o compadrio foi fundamental e esse tipo de relação construiu-se não só com outros escravos, mas também com livres, fossem eles de cor, indígenas ou brancos.

Localizei um batismo de 1811 no qual os padrinhos da filha de uma escrava -de propriedade do tio do senhor de Joaquim- eram indígenas. A localização, até o momento, de uma única ocorrência dessas não indica uma singularidade. Pelo contrário, na formação histórica de Cambará, as relações "afro-indígenas" foram uma constante. Suspeito que alguns dos padrinhos dos escravos que viviam no entorno da sesmaria da Palma, designados como pardos ou livres, eram descendentes de indígenas11. Não por acaso, atualmente um acampamento de índios Mybá-Guarani está localizado a menos de três quilômetros de um dos núcleos residenciais de Cambará. Os relatos dos próprios Mybá apontam sua presença na região durante os séculos XVIII e XIX, retornando ao local em meados de 1970 onde se encontram continuamente até hoje (Sá e Santos 2008: 9).

As narrativas de homens e mulheres de Cambará, sobretudo dos mais velhos, salientam a ascendência indígena de algumas pessoas do grupo fazendo referência à "mistura de bugre". A própria fundação de um dos núcleos territoriais teria se dado quando três "chinas", após a Revolução Federalista de 1893, se apossaram de partes de campo no local, sendo definitivamente acolhidas quando contraíram matrimônio com os negros. Em resumo, conquanto a maior parte das informações disponíveis careça de minúcias, pode-se depreender que as interações "afro-indígenas" foram fundamentais ao longo da história de Cambará. Disto isto, voltemos ao apadrinhamento entre os antecessores do grupo.

Nos arquivos eclesiásticos localizei os assentos de batismo de oito filhos e netos de João e Rita Maria, nascidos entre 1851-1881. Em quatro casos os padrinhos escolhidos eram libertos, em dois escravos e em outros dois não se pôde precisar exatamente o estatuto social de nenhum dos dois padrinhos. No caso da família de Joaquim e Florência foram encontrados somente quatro batismos de filhos do casal, realizados entre 1839 e 1846. Ao que tudo indica, três deles tiveram brancos por padrinhos enquanto um casal de escravos apadrinhou o outro12.

Além dos descendentes de João e Joaquim, localizei 63 batismos, que se deram entre 1818-1881, de escravos que pertenciam aos principais estancieiros da região13. Em 25 casos, ou 39,68 %, pôde-se concluir, sem margem de dúvida, que ao menos um dos padrinhos era escravo (a) e/ou liberto (a). Entretanto, creio que esse número foi significativamente maior, pois os assentos de batismo são fontes imprecisas. Não necessariamente todos os nascimentos eram registrados, além do fato de recorrentemente a mesma pessoa ter o nome grafado de distintas maneiras e/ou com supressões de sobrenomes. No caso de escravos e de seus descendentes, outras dificuldades se agregam a estas últimas; existia pouca preocupação em apresentar informações mais detalhados sobre eles, diversos homônimos e, no caso de libertos, variados sobrenomes eram-lhes atribuídos.

De qualquer maneira, o importante a reter é o fato de que os negros que já se achavam territorializados desde a primeira metade do século XIX -os filhos e netos de João e Rita e de Joaquim e Florência- alimentaram relações de parentesco com aqueles que ainda se achavam sob o jugo do cativeiro. No caso de Cambará o parentesco, efetivado seja pela união matrimonial seja pelo apadrinhamento, aproximou, em distintas épocas, escravos africanos e crioulos, negros e indígenas, livres e libertos. Não se trata de retratar algo idealizado e isento de conflitos, mas o fato é que entre 1880-1890 diversos indivíduos que recém haviam se tornado livres foram acolhidos no interior das glebas adquiridas por ex-escravos na primeira metade do século XIX, como pode se depreender dos relatos das famílias que vivem no local (Mello 2008: 188-197). E foi justamente nesse período que a estrutura fundiária da região se alterou profundamente, dificultando às camadas desfavorecidas, em especial às gerações do cativeiro, o acesso à terra.

Injunções e disjunções territoriais

A medição mencionada acima, na qual foi possível obter diversos elementos sobre a trajetória histórica de Cambará, revela também os mecanismos de expropriação que incidiram sobre os negros. O requerente da medição foi um dos principais estancieiros da região, herdeiro de um cabedal composto por um grande número de cativos. Diversos lindeiros de dito estancieiro foram intimados a apresentar os meios comprobatórios de suas posses, como inventários, escrituras de compra e venda comprovantes de permuta. O agrimensor responsável pela medição partilhou aritmeticamente todas as áreas, com exceção de uma: aquela pertencente às famílias negras. Lê-se no documento que "desconhecem-se quem são" os proprietários desta área e isto porque os "proprietários não se fizeram representar nos autos"14.

Os descendentes de João e Joaquim apresentaram os meios comprovativos de suas propriedades após todas as outras áreas serem delimitadas. As posses das duas famílias eram frágeis em termos legais, pois as compras não foram lavradas em cartório, e sim em papéis de mão. No caso dos familiares de João a situação foi ainda mais dramática, dado que a escritura que continha as divisas discriminadas foi extraviada. O meio encontrado para assegurar a posse das terras foi solicitar quatro testemunhos, todos eles de grandes proprietários de terras -dentre eles do requerente da medição- que confirmaram a posse "mansa e pacífica" desde 1835. Todas as testemunhas convocadas ressaltaram que João e seus familiares não sofreram oposição alguma por viverem no local. De fato, a "posse mansa e pacífica" dependia da anuência dos proprietários mais abastados da região; a liberdade e o usufruto de espaços autônomos estiveram diretamente condicionados à manutenção de laços de dependência para com as elites locais.

A medição da sesmaria da Palma deve ser vista enquanto extensão dos efeitos desencadeados pela Lei de Terras15. Ao interpor entre a terra e os pretendentes à sua apropriação legal toda uma série de codificações e procedimentos jurídicos, a Lei tendeu a excluir as camadas mais pobres da população. A imposição de uma linguagem burocrática privilegiou um número reduzido de indivíduos detentores do capital jurídico e econômico necessário para acessar os centros de jurisdição, fomentando o clientelismo como modalidade fundamental de acesso à terra.

Ao cabo, as áreas pertencentes aos herdeiros dos dois ex-escravos aludidos acima foram delimitadas, mas o requerente da medição cobrou judicialmente os custos processuais. Situação peculiar esta: alheios a praticamente todo o procedimento demarcatório, os negros foram intimados a arcar com as despesas do processo, o que pode estar na origem dos conflitos entre negros e brancos que se desenrolaram posteriormente (ver abaixo).

A fundação de colônias de imigrantes italianos e alemães nos distritos rurais de Cachoeira do Sul a partir da segunda metade do século XIX deu uma nova configuração ao mercado de terras. A região onde ficava localizada a sesmaria da Palma não recebeu imigrantes desde o princípio, mas sim ao longo dos anos em especial no século XX16. Com o deslocamento de italianos e alemães para a região os espaços disponíveis foram se tornando cada vez mais escassos. A aquisição de glebas por João e Joaquim se deu em um contexto mais favorável àquele enfrentado por ex-escravos a partir de 1850.

Não obstante essas barreiras, mais duas famílias de ex-escravos, os Ramos e os Lopes, adquiriram terras durante a década de 1910 com recursos próprios, dando origem a dois núcleos familiares de Cambará, Irapuá e Cambará. Parece que a escolha por fixar residência justamente em terrenos contíguos àqueles pertencentes a outras famílias negras não é fortuita. Em pouco tempo, os casamentos estreitaram os laços entre os Ramos e os Lopes com os habitantes mais antigos da região (Anjos et al. 2006).

A territorialização de ex-escravos e seus descendentes se deu a partir da primeira metade do século XIX, mas esse processo não se circunscreveu a um período específico. Ao longo dos anos, relações de parentesco solidificaram a relação entre indivíduos que vivenciaram a experiência da escravidão. O período de transição entre a escravidão e liberdade foi particularmente marcante, pois ex-escravos foram acolhidos pelas famílias negras que já viviam no local e procedimentos de medição de terra e de perseguição policial incidiram sobre o território de Cambará. A conquista e a manutenção de espaços autônomos se deram em uma arena marcada por disputas, solidariedades, favores e conflitos entre distintos agentes.

Conflitos e esbulhos

Na mesma época da medição da sesmaria da Palma, fazendeiros e criadores de Cachoeira do Sul reuniram-se no local denominado Irapuá -região próxima a Cambará- a 11 de novembro de 1897. Deliberam em casa de um subdelegado a respeito da formação de uma polícia particular, seguindo recomendação do presidente da Província. Em ata, expressaram queixas ao Poder Legislativo e anunciaram medidas que tinham o fim claro de atrair a atenção das autoridades públicas, que não estariam resguardando os interesses do povo dado os atos de "rapinagem, abusos e crimes" de uma "multidão de indivíduos desventurados sem a mais leve idéia dos deveres inerentes ao seu novo estado17" -ou seja libertos. O encontro resultou na criação de uma força policial particular sob responsabilidade dos cidadãos ali presentes que se comprometeram a subsidiá-la.

As pilhagens de libertos pareciam ser uma constante por toda província, a julgar pelo relatório do presidente da Província18. Essa conjuntura tem particular importância não só pela formação de uma milícia para-estatal para conter as rapinas na região onde hoje se localiza Cambará, mas também porque o roubo de gados foi impetrado por antecessores do grupo. Quase vinte anos depois de finda a escravidão, o abigeato foi a principal causa do assassinato de Manoel Thomé da Silva por José Martimiano Machado, antecessores diretos de dois troncos familiares de Cambará. A relação entre Thomé e Martimiano deteriorou-se em função do tipo de interação estabelecido por cada um deles com os grandes proprietários de terra da região.

Enquanto Thomé era capataz dos fazendeiros Martimiano, juntamente com alguns de seus irmãos e primos, impetrava saques às fazendas. Os relatos e o processo-crime de José Martimiano Machado19 atestam que a iminente delação de Thomé sobre o abigeato resultou no crime. Tal fato, ocorrido em 1905 resultou na condenação de Martimiano por 24 anos. Esse assassinato é um fato marcante na história do local não só pelo seu desfecho trágico, mas também por estar diretamente relacionado -segundo os narradores- à chegada de Otacílio José de Castilhos ao local.

Nascido em 1876, natural de Dom Pedrito20 (RS), não se tem certeza de como e quando Otacílio José de Castilhos chegou a Cachoeira do Sul, mas se sabe que em 1916 assumiu o posto de subdelegado do 3° distrito de Cachoeira do Sul21. Segundo os relatos, Otacílio tinha por incumbência "pôr ordem nos roubos", o que fica evidente pela localização de seu posto policial: no seio do território de Cambará, nas proximidades da residência da família Machado, responsável pelos furtos. Passados quase quinze anos da prisão de José Martimiano Machado o abigeato teve continuidade pois diversos indivíduos foram processados em 1919, sob a acusação de constituírem "uma quadrilha de ladrões de gado, sendo numerosos e repetidos os furtos que praticaram"22.

Todos os acusados foram absolvidos em razão de irregularidades contidas no auto de corpo de delito, realizado por Otacílio Castilhos. Um dado interessante é que nem todos os denunciados eram negros, dos oito denunciados três eram brancos. Como notou Weimer (2008: 167) em seu estudo sobre pós-abolição na Serra do Rio Grande do Sul, existem elementos que indicam a atuação interétnica no furto de gado. Note-se, entretanto, que no processo aludido acima somente os negros prestaram depoimento. Esse processo arrastou-se até 1921 em virtude da promotoria ter recorrido da decisão, mas os réus novamente foram absolvidos. Livres da prisão, não ficaram livres da pecha. Otacílio logrou outra maneira de conter os furtos.

A perseguição policial se tornou mais insidiosa com a criação de uma polícia rural sustentada pela municipalidade, a cargo de Otacílio Castilhos. A milícia por ele comandada certamente teve a região de Cambará como local privilegiado de atuação. Segundo os relatos de alguns membros do grupo, como Orcindo Machado e Geraldo da Silva, agindo em nome da tranqüilidade pública Otacílio invadia os espaços domésticos e espancava os negros para reprimir os furtos. De acordo com algumas narrativas23, Otacílio se ofereceu para regularizar a situação fundiária das famílias negras, mas acabou por expropriar mais de 50 hectares da família Machado, ludibriando-a por meio de procedimentos ilegais. Apesar das relações clientelísticas estabelecidas, da proteção de pessoas poderosas e até mesmo da formação de um grupo interétnico que praticava o abigeato os esbulhos tiveram um caráter marcadamente racial.

Desde então, o território de Cambará diminuiu consideravelmente em decorrência de vendas, de apropriações ilícitas e de transações desfavoráveis aos negros. Na década de 1960, uma rodovia federal foi construída repartindo o território ao meio. Apesar de alguns membros de Cambará terem trabalhado nessa construção, nenhuma família negra foi indenizada (Anjos et al. 2006). Poucos anos depois um grande posto de gasolina, que existe até hoje, foi construído no local e boa parte das terras pertence hoje à descendentes de imigrantes italianos e alemães. Neste decênio, a plantação de soja e de eucaliptos pelos vizinhos tornou-se mais intensa, causando danos ambientais em Cambará. Com a reivindicação da identidade quilombola o grupo visa recuperar suas terras, mas o processo de regularização fundiária, até agora, foi moroso.

Brechas, estratégias e territorialização negra

Mencionou-se na seção introdutória que a amplitude do conceito de remanescentes de quilombos é um dos eixos a partir do quais se questiona essa identidade, bem como a legalidade dos pleitos desses novos sujeitos de direito. Se, de um lado, a "ressemantização" do conceito de quilombo foi fruto de injunções políticas; de outro, os encontros com esses grupos têm gerado um corpo de conhecimentos sobre uma realidade praticamente ignorada até então24. No plano propriamente histórico, o material acumulado acerca da formação territorial dessas comunidades vai de encontro aos resultados obtidos pela recente historiografia sobre a escravidão, em especial aquela produzida desde a década de 1980, que propôs uma série de deslocamentos para com as perspectivas teóricas então vigentes.

Às idéias de Gilberto Freyre, que defendia o caráter "brando" do sistema escravista brasileiro e a vigência de uma "democracia racial25", seguiu-se a partir da década de 1950 uma leva de estudos que se opôs às abordagens de -e inspiradas por- Freyre. Enfocou-se a resistência escrava, sobretudo aquelas coletivas, como a formação de quilombos, acentuou-se o caráter brutal e violento da escravidão no Brasil, questionou-se o pressuposto de que a escravaria era dócil e servil, argumentou-se que a "democracia racial" nada mais era do que um mito. Embora dotadas de importância teórica, empírica e política esses estudos, como notou Gomes (2003: 15-16), romantizaram a resistência escrava, além de tratarem as ações dos cativos ou como meras reações às imposições das classes dominantes, ou como reflexos da "coisificação social" inerente ao regime.

A partir da década de 1980, sem negar a violência e a assimetria do regime escravista, uma série de estudiosos foi além das denúncias, alisando as ações dos escravos em sua forma multifacetada, sem circunscrever a resistência às insurreições. De um lado, o foco analítico deslocou-se para a agência escrava, para as formas cotidianas de resistência e como isso se refletiu na conquista de brechas de autonomia, para as "visões" (Chalhoub 1990) e os "significados" (Mattos 1998) da liberdade segundo o ponto de vista dos próprios escravos. De outro, desenvolveram-se pesquisas acerca de temas relativamente negligenciados até então, como a família, o campesinato negro e as brechas camponesas, a cultura, as tradições religiosas, a sociabilidade, as políticas de manumissões, etc.26.

As investigações acerca de comunidades de escravos fugidos igualmente propuseram novas perspectivas teóricas. Neste tocante, a obra de Flávio Gomes (2005; 2006) introduziu uma série de inovações; este autor questionou a visão dos quilombos como espaços marginais e isolados, ao destacar as complexas relações sociais, econômicas e políticas entretidas pelos quilombolas com a sociedade envolvente. Para além do eixo analítico ancorado na díade formação-destruição, sua obra perscruta as variadas formas de aquilombamento e o impacto que as comunidades de fugitivos tiveram na vida daqueles que permaneceram escravos -e também na vida dos outros setores da sociedade escravista- alcançando a pós-emancipação (Gomes 2005: 32-35). Os contatos entre diversos agentes representavam, em suas palavras, um "campo negro", ou seja:

uma complexa rede social permeada por aspectos multifacetados [...] que constituiu-se placo de lutas e solidariedade conectando comunidades de fugitivos, cativos nas plantações e nas áreas urbanas vizinhas, libertos, lavradores, fazendeiros, autoridades policiais e outros tantos sujeitos que vivenciaram os mundos da escravidão" (Gomes 2006: 45 [grifos no original]).

A rentabilidade do conceito de "campo negro" não se circunscreve às comunidades de fugitivos. Através desta noção pode-se pensar a dimensão relacional entre distintas espacialidades dos mundos da escravidão e da pós-emancipação. Dito de outra forma, indivíduos e famílias que adotaram diferentes estratégias para se territorializar, via arranchamento, doações, compra de terras, fuga, apossamento, etc., não formaram territórios isolados mas sim conectaram espaços e pessoas. Através do conceito de campo negro podem-se estabelecer aproximações para com esta recente historiografia da escravidão em pelo menos três níveis: das famílias escravas, da brecha camponesa e do caráter multifacetado das ações dos cativos.

Como notou Slenes (1999), a constituição de famílias escravas contribuiu para a transmissão e compartilhamento de memórias, afetos, valores e projetos de liberdade. Parece evidente que a constituição de um "nós" foi condição fundamental para a territorialização étnica em Cambará. Foi o parentesco, forjado durante todo o século XIX, que imprimiu sentimentos de pertencimento, influenciando no acolhimento, na pós-emancipação, de indivíduos egressos do cativeiro pelas famílias de João e Rita e Joaquim e Florência. Como notaram Rios e Mattos (2005), as opções de deslocamento ou de permanência nas décadas que se seguiram à abolição dependeram do nível de informação dos libertos sobre onde poderiam ir e como seriam acolhidos.

De igual modo, o caso de Cambará incita a pensar as formas camponesas durante a escravidão e suas conseqüências na pós-abolição, bem como aquilo que Cardoso (1978), apropriando-se das idéias de Sidney Mintz (1973), chamou de "brecha camponesa". Por este termo o autor designa as atividades agrícolas realizadas pelos escravos nas parcelas de terras concedidas para este fim no interior das grandes plantações (Cardoso 1978: 137). Não obstante os benefícios angariados pelo senhorio ao concederem pequenas parcelas de terras, no sentido de aplacar os desejos de seus plantéis e de reduzir os custos com alimentação, foi comum que essas "concessões" se transformassem em direitos podendo, até mesmo, estar na origem de alguns territórios negros. A bibliografia especializada aponta que a conquista da terra, finda a escravidão, poderia significar uma tentativa de preservar espaços conquistados enquanto se era escravo. (Gomes e Motta 2007: 160). Quer pensemos nos roçados, quer nas posses formalizadas ou nos arranchamentos, pode-se supor que a experiência "camponesa" pôde ter se dado durante a escravidão. A ocupação por anos -e até mesmo por gerações- dessas porções de terras pôde estar na origem de diversos conflitos envolvendo ex-escravos e seus antigos senhores, especialmente após 1888. Ao mesmo tempo, a perda ou o enfraquecimento das redes de proteção dos antigos senhores esteve na origem de diversas espoliações.

Rubert e Mello (2011) demonstraram que no caso das comunidades remanescentes de quilombos localizadas no Rio Grande do Sul, a territorialização negra teve um caráter multifacetado. Independentemente da forma pela qual se teve acesso à terra, deve-se tratar a territorialização étnica a partir dessa ênfase da recente da historiografia da escravidão, segundo a qual as ações dos escravos -e aquilo que se poderia chamar de "resistência"- tiveram um caráter multifacetado. Assim como diversas comunidades remanescentes de quilombos espalhadas pelo Brasil, a origem de Cambará não remonta à fuga ou à insurgência de escravos. Isso não significa, entretanto, que os antecedentes do grupo não tenham se deparado com uma série arbitrariedades. Diante de situações adversas distintas estratégias foram acionadas: como o socorro à indivíduos dotados de maior capital, o estabelecimento de relações amistosas com o senhorio, a formalização das posses e o saque aos rebanhos dos estancieiros. Assim, correr-se-ia o risco de simplificar a história de Cambará si se reduzisse as estratégias de seus integrantes a uma única forma de "resistência". A conquista de espaços autônomos não dependia, necessariamente, de oposições abertas, de fugas ou de insurreições.

Histórias quilombolas

Este texto acompanhou a formação histórica da comunidade negra de Cambará, enfatizando as distintas estratégias acionadas pelos antecessores do grupo para terem acesso -e garantirem- à posse da terra. Os quatro núcleos territoriais de Cambará e as diversas famílias que se sentem como pertencentes a uma mesma comunidade foram forjados ao longo dos anos, principalmente através do parentesco que aproximou escravos de origem diversa, escravos e livres, libertos e livres, indígenas e negros. As relações de parentesco permitiram o acolhimento de diversas famílias justamente nos anos imediatos à escravidão, marcados pela dispersão de ex-cativos (Anjos et al. 2006; Mello 2008). Foi através do entrelaçamento entre determinados espaços, como senzalas e pedaços de campo de propriedade de negros livres, que esteve na base da constituição do território de Cambará, e só através do contato entre esses espaços -bem como pela circulação de distintos agentes nesses locais- é que podemos entender a maneira pela qual se deu a formação do território e de um sentimento de comunidade.

Se a discussão acerca das chamadas comunidades remanescentes de quilombos envolveu um esforço de adequação às injunções políticas, é bem verdade também que para compreender a história de comunidades como Cambará é preciso se "adequar" aos recentes desdobramentos da historiografia acerca da escravidão no Brasil, que reviu lugares-comuns e debateu temáticas negligenciadas até então. A emergência de comunidades remanescentes de quilombos redefiniria as visões acerca dos fenômenos históricos por motivações meramente políticas ou o conhecimento produzido nos encontros com essas coletividades poderia estabelecer relações de conhecimento para com a historiografia? Não se possuem respostas absolutas, mas o atual cenário indica a última opção.

Abreviaturas

AHMCS: Arquivo Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
AHRS: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
APERS: Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
MDCS: Mitra Diocesana de Cachoeira do Sul

Notas

1. Parte do material aqui apresentado foi exposto, em comunicações publicadas nos Anais do IV Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional (Curitiba 2009) e nos Anais do 33° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Caxambu 2009).

2. Segundo dados da Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura, em setembro de 2010. http://www.palmares.gov.br/_temp/sites/000/2/download/dpa/crqs-certificadas.pdf.

3. Uma das etapas necessárias para a regularização dos territórios quilombolas é a elaboração pelo INCRA do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTDI) do território que deve conter, dentre outras peças técnicas, um relatório sócio-antropológico.

4. APERS. Medições. Cachoeira do Sul. Cartório Cível e Crime, N° 699, Maço 18, Estante 54 (1886).

5. Trecho da carta da sesmaria concedida a Manoel Gomes Porto apensa à medição da sesmaria da Palma APERS. Medições. Cachoeira do Sul. Cartório Cível e Crime, N°699, Maço 18, Estante 54, fl.125 (1886).

6. AHRS. Medições Judiciais. Medição Judicial da Fazenda de Santa Bárbara. Cachoeira N°482.

7. APERS. Inventários (Manoel Antonio Ruivo). Cartório de Órfãos e Ausentes. Cachoeira, Maço 2, Estante 52, N°34 (1827).

8. APERS. Medições. Cachoeira do Sul. Cartório Cível e Crime, N°699, Maço 18, Estante 54, fl.745 (1886).

9. APERS. Inventários (Joaquim Antonio Gonçalves e Florência Joaquina das Mercês). Cartório Cível e Crime. Cachoeira. Maço 3, Estante 54, n°105 (1886).

10. APERS. Livro de Transmissão e Notas 3° Distrito. Cachoeira. Livro 8, Fundo 11, Estante 26, fls.62v-63; 57-58.

11. Com o decorrer dos anos, as categorias "pardo" e "china" -indígena cujo pai era branco- suplantaram a categoria índio. As políticas de integração dos índios incentivadas pelos portugueses (Garcia 2009) explicam, em parte, a designação de pardo. Do mesmo modo, pode-se considerar essa classificação como uma tentativa de aproximar os indígenas "do mundo da escravidão, seja para mantê-los como cativos, seja para enquadrá-los em um lugar social específico e restritivo na hierarquia do mundo dos livres" Aládren (2009: 138-139).

12. MDCS. Batismos. Paróquia de Caçapava (Livres). Livro 3b, fls.129, 207- 207v e 268. Livro 4, fls. 55v, 145v. (1849-1861). Livro 5, fl.39v. (1861-1863). Livro 8, fls.104, 128v. (1882-1887).

13. Para mais detalhes, ver Mello (2008: 102-150).

14. APERS. Cartório Cível e Crime. Medição. Cachoeira do Sul. N°699, Maço 18, Estante 54, fl.595.

15. Promulgada em 18 de setembro de 1850, a Lei de Terras aboliu o regime de concessão de sesmarias, além de estabelecer a compra como única forma legítima de acesso à terra.

16. Oficialmente a imigração de alemães para o Rio Grande do Sul começou em 1824, enquanto a de italianos em 1875. O papel reservado aos imigrantes incluía desde a responsabilidade por produzir alimentos, passando pela segurança do território, até o branqueamento da população (Seyferth 1996).

17. AHMCS. Delegacia de Polícia de Cachoeira. Avulsos, fl.1

18. Relatório passado pelo. Dr. Rodrigo de Azambuja Vilanova à administração da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul ao Sr. Barão de Santa Tecla, 1o vice-presidente, no dia 9 de agosto de 1888. Porto Alegre, Oficinas tipográficas do Conservador (1889).

19. APERS. Processos-Crime (José Martimiano Machado). Cartório do Júri. Cachoeira do Sul; Maço 02, Estante 09, N°31 (1919-1922).

20. APERS. Registro de Nascimentos e Óbitos Cachoeira do Sul. Livro 54, p. 93.

21. AHMCS. Relatório da Intendência de Cachoeira do Sul. 1917. Fundo Intendência.

22. APERS. Processo-Crime e outras. Júri. Cachoeira. M 39. Caixa 181. N° 3694, fl. 86.

23. As narrativas completas sobre esse tema podem ser encontradas em: Mello (2008: 180-188).

24. No Brasil, a produção bibliográfica sobre relações raciais e sobre manifestações culturais afro-brasileiras é avultada, mas realizaram-se pouquíssimas pesquisas acerca das condições de vida dos negros no meio rural, onde se localizam a grande maioria dos grupos que aspiram à identidade quilombola.

25. Em seus primeiros estudos Freyre falava em "democracia social". Somente a partir da década de 1950 é que emprega o conceito de "democracia racial". Para um histórico minucioso desta noção ver Guimarães (2002).

26. Evidentemente que este é um sobrevôo que carece de maior detalhamento. Revisões sobre a historiografia da escravidão podem ser encontradas em Gomes (2005) e Schwartz (2001).

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Fecha de recepçãon: 15 de setembro de 2010.
Fecha de aceitassem: 14 de março de 2010.

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