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Memoria americana

versão On-line ISSN 1851-3751

Mem. am. vol.25 no.2 Ciudad Autónoma de Buenos Aires dez. 2017

 

ARTÍCULO

Sobre os “Hijos del Paraguay” e as “Personas naturales inteligentes”: uma análise dos relatos sobre saberes e práticas tradicionais indígenas no Paraguay Natural Ilustrado, de José Sánchez Labrador S. J. (1771-1776)

 

Eliane Cristina Deckmann Fleck* Mariana Alliatti Joaquim**

* Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em História - Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Brasil. E-mail: ecdfeck@terra.com.br
** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História na Universidade de Utah, Utah, Estados Unidos da América. Brasil. E-mail: mari.alliatti@gmail.com

 


Resumo

Neste artigo, analisamos o manuscrito Paraguay Natural Ilustrado, escrito pelo padre jesuíta José Sánchez Labrador entre 1771-1776, durante seu exílio em Ravenna, na Itália. Esta obra, cujos originais se encontram no Archivo Romanum Societatis Iesu, se subdivide em quatro tomos -Terra, Água e Ar; Botânica; Mamíferos, Aves, Peixes; Anfíbios, Répteis e Insetos- e não foi até hoje integralmente publicada. Nela, além das percepções sobre a natureza americana e sobre sua utilidade e propriedades terapêuticas, encontramos menções aos “Hijos del Paraguay” e às “Personas naturales inteligentes”, bem como informações relativas aos saberes e às práticas curativas adotadas pelas populações nativas da vasta região da Província Jesuítica do Paraguai. Interessanos, especialmente, destacar e analisar as descrições que o missionário Sánchez Labrador fez tanto dos indígenas, quanto de seus conhecimentos tradicionais e práticas terapêuticas nos quatro tomos da obra.

Palavras chave: Paraguay Natural Ilustrado; José Sánchez Labrador; Província Jesuítica do Paraguay; Saberes e práticas nativas

About “Hijos del Paraguay” and “Personas naturales inteligentes”: an analysis of the reports about indigenous traditional knowledge and practices in Paraguay Natural Ilustrado of José Sánchez Labrador J. F. (1771-1776)

Abstract

In this article, we analyze the manuscript Paraguay Natural Ilustrado, writen by Jesuit José Sánchez Labrador, between 1771 and 1776, during his exile in Ravenna, Italy. This work, whose original is at the Archivo Romanum Societatis Iesu, is divided in four tomes -Ground, Water and Air; Botany; Mammals, Birds and Fishes; Amphibians, Reptiles and Insects- and has not yet been published in its entirety. In it, other than perceptions about American nature and its usefulness and therapeutic properties, we find mentions to “Hijos del Paraguay” and “Personas naturales inteligentes”, as well as information regarding the knowledge and healing practices employed by native people of the vast region of the Província Jesuítica de Paraguay. It interests us, in particular, to highlight and analyze the descriptions Sánchez Labrador made about the natives as well as their traditional knowledge and therapeutic practices throughout the four tomes.

Key words: Paraguay Natural Ilustrado; José Sánchez Labrador; Província Jesuítica de Paraguay; Native knowledge and practices

Sobre los “Hijos del Paraguay” y las “Personas naturales inteligentes”: un análisis de los relatos sobre saberes y prácticas tradicionales indígenas en el Paraguay Natural Ilustrado, de José Sánchez Labrador S. J. (1771-1776)

Resumen

En este artículo analizamos el manuscrito Paraguay Natural Ilustrado, escrito por el padre jesuita José Sánchez Labrador entre 1771-1776, durante su exilio en Rávena, Italia. Esta obra, cuyos originales se encuentran en el Archivo Romanum Societatis Iesu, se subdivide en cuatro tomos -Tierra, Agua y Aire; Botánica; Mamíferos, Aves, Peces; Anfbios, Reptiles e Insectos- y hasta hoy no ha sido íntegramente publicada. En ella, más allá de las percepciones sobre la naturaleza americana y sobre su utilidad y propiedades terapéuticas, encontramos menciones a los “Hijos del Paraguay” y a las “Personas naturales inteligentes”, así como información relativa a los saberes y prácticas curativas adoptadas por las poblaciones nativas de la vasta región de la Provincia Jesuítica del Paraguay. Nos interesa especialmente destacar y analizar las descripciones que el misionero Sánchez Labrador hizo, tanto de los indígenas como de sus conocimientos tradicionales y prácticas terapéuticas, en los cuatro tomos de la obra.

Palabras clave: Paraguay Natural Ilustrado; José Sánchez Labrador; Provincia Jesuítica del Paraguay; Saberes y prácticas nativas


 

Sobre o autor e o manuscrito

José Sánchez Labrador nasceu em La Guardia, na província de Toledo, no dia 19 de setembro de 1717 [ou 1714],1 e morreu em Ravenna, em 10 de outubro de 1798. Ingressou na Companhia de Jesus em 5 de outubro de 1731, de acordo com Ruiz Moreno (1948), ou em 19 de setembro de 1732, segundo Sainz Ollero et al. (1989), tendo cursado Gramática e Humanidades. Iniciou seus estudos de Filosofia no Noviciado de San Luis de Sevilha, interrompendo-os para viajar ao Rio da Prata em 1733, acompanhando o Padre Procurador Antonio Machoni. De 1734 a 1739, estudou Filosofa e Teologia na Universidade de Córdoba, concluindo sua formação no verão de 1739.2 De acordo com seus biógrafos, entre 1741 e 1746, atuou como professor na mesma cidade, dedicando-se, concomitantemente, aos estudos de História Natural.3
Assim, como muitos outros padres e irmãos jesuítas que o precederam nas terras de missão americanas, Sánchez Labrador não se dedicou exclusivamenteà conversão dos indígenas, mas também ao estudo da fauna e da flora americana que observou nas diversas regiões da Província Jesuítica do Paraguai em que atuou como missionário. De acordo com alguns de seus biógrafos, entre 1747 e 1767, o padre jesuíta atuou junto às reduções de San Francisco Xavier, Santa Maria la Mayor, La Cruz, Santo Thomé e San José. A partir de 1757, passou a atuar em Apóstoles -Santos Apóstolos ou Apóstolos São Pedro e São Pablo-, tendo como companheiros os padres Lorenzo Ovando e Segismundo Asperger; este último, reconhecido por sua atuação como médico e boticário. Sabe-se que, dois anos depois, lecionou Teologia no Colégio de Assunção, e que no ano seguinte (1760), missionou entre índios Mbayás e Guaranis que, mais tarde, formariam a redução de Nuestra Señora de Belén, e entre os índios Guanas, com os quais criou a redução de San Juan Nepomuceno. Em 14 de agosto de 1767, logo após seu regresso de uma viagem às missões de índios Chiquitos,4 Sánchez Labrador foi informado do decreto da expulsão dos jesuítas da Espanha e de suas colônias assinado pelo rei Carlos III em 27 de fevereiro (Schwart e Lockhart, 2002). Em 1768,5 chegou à Itália se estabelecendo em Ravenna, onde foi Superior de uma das casas que a Companhia de Jesus possuía na cidade. Manteve-se neste desterro por 30 anos,6 período durante o qual se dedicou a escrever suas principais obras: o Paraguay Católico, o Paraguay Cultivado e o Paraguay Natural Ilustrado.7
A última obra já mereceu alguns estudos, realizados a partir da consulta à versão manuscrita -que não foi ainda integralmente publicada-8 que se encontra no Archivo Romanum Societatis Iesu (ARSI), Roma, dentre os quais destacamos os de G. Furlong, Naturalistas Argentinos durante la dominación Hispânica (1948); de A. Ruiz Moreno, La Medicina en “el Paraguay Natural” (1771-1776) del P. José Sánchez Labrador S. J.: Exposición comentada del texto original (1948); e o de Sainz Ollero et al. José Sánchez Labrador y los naturalistas jesuitas del Río de la Plata (1989). Estes historiadores ressaltam que o jesuíta “realizou um dos mais amplos trabalhos sobre a natureza, a geografia e as sociedades da região platina colonial”, permanecendo, no entanto, “dúvidas sobre a forma como redigiu tão vasta obra”, cogitando-se que tenha “conseguido levar muitos apontamentos feitos na América” e que “mesmo que o tivesse feito, o mais provável é que tenha sido obrigado a escrever a maior parte da obra de memória (Barcelos, 2013: 92-93).9
Dentre os inúmeros fatores que podem justificar a não publicação do manuscrito Paraguay Natural estão, sem dúvida, o número total de páginas dos seus quatro tomos, a lentidão dos trâmites burocráticos de censura editorial -civis e eclesiásticos- e os custos de impressão. A obra é composta de quatro Partes ou Tomos, sendo que a Parte Primera conta com os Livros: I. Diversidad de Tierras, y Cuerpos terrestres; II. Agua, y varias cosas a ella pertenecientes; III. Ayre, Vientos, Estaciones del Año, Clima de estos Países, y Enfermedades más ordinarías; a Parte Segunda, os Livros: I. Botanica, o de las Plantas en general; II. Selvas, Campos, y Pradarias del Paraguay; III. Los Arboles en particular; IV. Palmas, Tunas, y Cañas; V. Ycipos, y otras Plantas Sarmentosas; VI. Algunos Arbolillos, Matorrales, y Hierbas; VII. Algunos útiles, y curiosos usos, escritos em 1772; a Parte Tercera é composta pelos Livros: I. Animales Quadrupedos; II. Las Aves; III. Los Peces, elaborados em 1771, e a Parte Quarta,
os Livros: I. De los Animales Amphybios; II. De los Animales Reptiles; III. De los Insectos, que foram concluídos no ano de 1776, além das 127 ilustrações feitas pelo próprio autor.
Não se deve desconhecer, também, que em 1776, ano de sua conclusão, a Companhia de Jesus ainda não havia sido restaurada, o que irá ocorrer somente em 1814, o que, certamente, contribuiu para que a volumosa obra se mantivesse desconhecida dos pesquisadores por muitos anos. No século XX, alguns autores, como José Luis Molinari (1938), Guillermo Furlong (1948), Aníbal Ruiz Moreno (1948), Hector Sainz Ollero, Hélios Sainz Ollero; Francisco Suárez Cardona; Miguel Vázquez de Castro Ontañón (1989) e Mariano Castex (1963 a, b, c), se limitaram a fazer publicações parciais de certos tomos, livros e capítulos do Paraguay Natural Ilustrado, sendo que, na maioria das vezes, não indicaram as referências completas dos excertos selecionados.
Ao longo dos capítulos dos quatro tomos, encontramos indícios que demonstram que Sánchez Labrador concebeu as três obras interligadas e como complementares. Pode-se dizer que o procedimento de divisão e sistematização dos conhecimentos e estudos sobre a Província Jesuítica do Paraguai, empregado pelo jesuíta não era novo e, também, não estava dissociado do contexto em que as escreveu. Michel de Certeau (2011) nos fala sobre as mudanças decorrentes do advento da sociedade moderna, que teriam causado uma diferenciação epistemológica e social que implicou numa divisão no trabalho da escrita, especialmente, na escrita dos relatos de viagem que tratavam das descrições do contato do homem selvagem com a tradição religiosa cristã. O historiador francês chama também a atenção para outro recurso, a diferenciação feita entre o sujeito e o objeto etnológicos, utilizado pelos autores dos séculos XVI, XVII e XVIII quando descreviam o Novo Mundo e de suas particularidades: “No texto, ela é traçada pela diferença entre duas formas literárias: a que conta viagens; a que descreve uma paisagem natural e humana” (De Certeau, 2011: 244).
Sánchez Labrador faz uso dessa configuração ao conceber e executar a organização de suas obras. Assim, ele destinou o Paraguay Católico, publicado em dois tomos somente em 1910, para apresentar um estudo etnográfico privilegiando os relatos das viagens que empreendeu e sua relação com os grupos indígenas e com os demais habitantes do Paraguai, não se aprofundando tanto nas descrições da natureza. O jesuíta optou por destinar as descrições e apontamentos relativos à História Natural, com informações sobre botânica, zoologia, geologia e agricultura, para o Paraguay Cultivado e para o Paraguay Natural Ilustrado. Em relação ao Paraguay Cultivado, cujo manuscrito encontrase perdido,10 sabe-se que seus quatro tomos tratavam de aspectos relativosàs atividades da agricultura e da pecuária praticadas na Província Jesuítica do Paraguai, o que pode ser confirmado na Introdução do Segundo Tomo da obra Paraguay Natural Ilustrado, na qual Sánchez Labrador, ao tratar da divisão proposta por alguns estudiosos entre uma botânica prática e outra especulativa, menciona que:

algunos principios concernientes al cultivo, y labor de las Plantas, mas esto se hace como de pajo, reservando para otra obra, cuyo Primer Tomo, tengo ya escrito, el tratar de propósito de una materia tan importante, la cual se intitula, Paraguay Cultivado (Sánchez Labrador, 1772 (II), Livro I, Introdução: f. I).

Neste artigo, trataremos dos quatro tomos do Paraguay Natural Ilustrado que, como os leitores poderão constatar na continuidade, além de oferecem inúmeras possibilidades de investigação aos pesquisadores dos campos da Biologia -Botânica e Zoologia-, da Medicina e da Farmácia, oportunizam também, uma reflexão acerca das percepções de Sánchez Labrador sobre os indígenas junto aos quais atuou como missionário e sobre seus saberes e práticas tradicionais.

Entre aquellos reyna la barbaríe”: a visão de Sánchez Labrador sobre os indígenas do Paraguai

No Paraguay Natural Ilustrado, Sánchez Labrador descreve tanto as regiões que conheceu ao longo dos vinte anos em que atuou como missionário na América nos oferecendo valiosas informações sobre a flora, a fauna, a geografia, a geologia e o clima, quanto os grupos indígenas que viviam na vasta Província Jesuítica do Paraguay. Em relação a estas últimas descrições, elas nos revelam muito de seu esforço de compreensão de certas práticas indígenas, a partir de suas próprias experiências ou de relatos feitos por informantes.
No texto de Introdução do Tomo I da obra, no subtítulo “Idea extravagante, que algunos forman de los Americanos”, Sánchez Labrador afrma que muitos europeus, erroneamente, acreditavam que na América viviam “poco menos que feras en emarañadas selvas, y escabrosas montañas”, e que “La verdades que [...] logran quantos subsidios tienen otras Gentes industriosas, sino se dan al ocio, y passa tiempo” (Sánchez Labrador, 1771 (I), Livro I, Introdução: f. VII). Refere, ainda, que a maioria dos europeus desconhecia que no continente americano existiam cidades populosas que apresentavam poucas diferenças em relação às encontradas na própria Espanha. Mas, ao referir-se aos americanos “da tierra” ou “Hijos del Paraguay”, Sánchez Labrador afrma:

Por lo que mira a los Indios, estos se han de dividir en dos estados, en el de Infieles, y en el de Reducidos a la fe. Entre aquellos reyna la barbarie, y un casi total abandono a una vida holgazana en cuanto a la labor delos campos, y otras Artes útiles (Sánchez Labrador, 1771 (I), Livro I, Introdução: f. VII, grifo nosso).

Apesar de viverem de forma bárbara, sem o “labor” e o desempenho de “Artes utiles”, os índios tinham, de acordo com o jesuíta, o grande privilégio de poder contar com a natureza que não lhes deixava faltar nada. Eram abastecidos, por obra de Deus, com raízes e frutos para comer, rios e lagoas cheios de peixes e aves e outros animais:

Aun entre las Naciones Infieles hay algunas labradoras: hacen sus sementeras en rozados, y cosechan suficientemente legumbres, calabazas, batatas, mandioca, y otras cosas comestibles: ni les falta algodon, de que texen algunas cosas; ni tabaco, que tienen por su delicia (Sánchez Labrador, 1771 (I), Livro I, Introdução: f. VII).

Como se pode constatar, o jesuíta distingue os indígenas já reduzidos daqueles aos quais denomina de “infieles”. Enquanto os últimos são apresentados como bárbaros os “Indios reducidos a la fé en poco se diferencían en sus Poblaciones delas Españolas, en quanto a la labranza y oficios” (Sánchez Labrador, 1771 (I), Livro I, Introdução: f. VII). O jesuíta prossegue afirmando que, caso alguém duvidasse de suas afirmações, deveria consultar outra obra sua, o Paraguay Catholico, na qual havia detalhado seu contato ou convívio mais prolongado com alguns grupos nativos da Província Jesuítica do Paraguay. Para Sánchez Labrador, a visão equivocada que os europeus tinham sobre os americanos decorria da falta de conhecimento sobre esses povos e, principalmente, em relação aos resultados do trabalho que os missionários jesuítas realizavam junto a eles, ensinando “las Artes utiles a la sociedad, y Sociedad Polytica, y Civil” (Sánchez Labrador, 1771 (I), Livro I, Introdução: f. VII-VIII).
Se, inicialmente o jesuíta informa que a Província Jesuítica do Paraguai era ocupada por espanhóis e índios, grupos diferentes em sua essência, num formato clássico de diferenciação definido por Hartog (1999) como o distanciamento “eles” e “nós”,11 ao apresentar mais detalhadamente os índios inféis essa diferenciação se modifica. Ao serem comparados com os índios não reduzidos, tidos como bárbaros pelo jesuíta, os índios já convertidos pouco se diferenciavam das populações espanholas pois, como ressalta Hartog (1999: 365), mesmo entre os considerados “outros”, diferentes de nós, “encontramse diferenças no gênero de vida. Entretanto, ao mesmo tempo, a narrativa é secretamente trabalhada pela exclusão do terceiro”. Assim ao se deparar com um “outro mais distante”; nesse caso, os índios inféis, Sánchez Labrador acaba por considerar o que antes era o “outro” como um “quase-nós”,12 por seremíndios reduzidos que viviam quase como os espanhóis.
Ao tratar dos primeiros contatos que os missionários jesuítas tiveram com os indígenas da região platina, em especial com os guaranis, o jesuíta adverte que“Algunas Tradiciones” nativas não receberiam destaque no Paraguay Natural Ilustrado por já se encontrarem detalhadas no Paraguay Catholico. Dentre as “Tradiciones” importantes estava a de que São Tomé, um dos Santos Apóstolos, teria anunciado o Evangelho aos guaranis, que teriam guardado alguns dos ensinamentos daquele a quem viriam a chamar de “Pay Zume”. Sánchez Labrador, no entanto, não deixa de condenar a “barbárie” desses indígenas que, segundo ele, viviam afastados das luzes das “Tradiciones” que tinham sido apresentadas aos seus antepassados:

Es grande la Barbaríe de los Indios del Paraguay en sus selvas: esta no puede por menos de no parecer destituída de toda luz de Tradición de haver predicado a sus antepassados Sancto Thome, quando ellos mismos la manifestan, y con señales bastantemente perceptibles (Sánchez Labrador, 1771 (I), Livro I, Introdução: f. VI, grifo nosso).

Apesar de deixar claro que informações detalhadas sobre os indígenas com os quais havia entrado em contato e sobre o trabalho missionário desenvolvido junto a alguns deles seriam dadas no Paraguay Catholico, Sánchez Labrador nos informa que certas práticas indígenas que envolviam a natureza americana não podiam deixar de ser por ele descritas. Apesar de não serem tão frequentes, as passagens que trazem informações sobre os indígenas e suas práticas no Paraguay Natural parecem apontar para certa ambiguidade do autor. Se, em algumas descrições, ele parece desprezar os saberes e práticas desses grupos indígenas descrevendo-os como “bárbaros”, em outras ele não deixa de demonstrar certa admiração em relação à forma como viviam e como construíam seu conhecimento sobre a natureza, na qual tinham, segundo ele, o privilégio de viver.
É importante ressaltar que essa forma de apresentar os indígenas da América não era uma característica exclusiva de Sánchez Labrador. De acordo com María Silvia Di Liscia (2002) os jesuítas, ao mesmo tempo em que descreviam os conhecimentos indígenas, não descuidavam de destacar seus vínculos com a barbárie e a superstição. Sánchez Labrador, segundo ela, “empleó la información de las distintas etnias indígenas […] a la vez que introducía en
el lector el prejuicio sobre los saberes indígenas, a los que colocaba como dependientes absolutamente de la superstición” (Di Liscia, 2002: 39-40). As descrições dos indígenas e de seus conhecimentos estão, conseqüentemente, perpassadas pelo estranhamento decorrente, primeiramente do contato, e posteriormente da missionação e da experiência cotidiana nas reduções.
Anagnostou e Fechner (2011) afirmam que os jesuítas foram responsáveis pela divulgação da natureza americana e dos conhecimentos indígenas para o mundo, especialmente, para a Europa. O maior esforço realizado por esses religiosos teria sido o de adequar as práticas indígenas aos moldes conceituais europeus, buscando adaptá-las para que esse público pudesse compreendêlas e utilizá-las da melhor maneira possível. Entretanto, os historiadores não deixam de ressaltar que tal aproximação entre os dois continentes -americano e europeu- se dava “bajo el foco selectivo de los misioneros, pues se comprende lo comprensible y se omiten los resíduos de la ‘barbarie’ y de la ‘idolatría’” (Anagnostou e Fechner, 2011: 175).
Essa visão de “barbárie”, construída ao longo dos séculos anteriores, era compartilhada pelos europeus do século XVIII, e o próprio Sánchez Labrador fundamentou suas percepções e descrições em relatos de outros missionários jesuítas que atuaram na América. Vale ressaltar que, ainda que o jesuíta afirme que muitas das percepções que os europeus tinham sobre a América e os americanos se deviam ao total desconhecimento, ele mesmo por vezes alterna posições, atribuindo ou, então, destituindo a condição de “bárbaros” aos indígenas tanto no Paraguay Católico quanto no Paraguay Natural.

A percepção de Sánchez Labrador sobre certas práticas e costumes indígenas

Além das menções feitas aos índios guaranis, aos quais Sánchez Labrador se refiere com frequência ao longo do Paraguay Natural Ilustrado, outros grupos indígenas também têm suas práticas descritas pelo jesuíta, mesmo que nem sempre ele tenha especificado o grupo a que fazia referência. Sobre “los infieles Mbayás”, Sánchez Labrador (1772 (II), Livro VI: 440) comenta que eram aficionados por fumar tabaco, em especial, as mulheres “que casi continuamente le tienen en la boca, que les quita el hambre, y mitiga la sed. Algo podra haber de exageración en esto”. É importante mencionar que os índios mbayás eram conhecidos por sua resistência às iniciativas de conversão e que foi Sánchez Labrador quem se voluntariou, em 1760, a contatar esse grupo, visando a sua catequese. Exitoso em sua tentativa ele fundou, às margens do rio Ipaneguazú, a redução de Nuestra Señora de Belén, cujo núcleo inicial contou com 24 famílias de guaranis trazidas das reduções de Santa Maria la Mayor, Santa Rosa e San Ignacio (Barcelos, 2006).13 Após o êxito na conversão destes indígenas, Sánchez Labrador continuou fazendo viagens pela Província Jesuítica do Paraguai, sendo que em 1766 fundou a redução de San Juan Nepomuceno,14 desta vez com os índios guanás. Sobre este grupo, Sánchez Labrador afrma que poderiam ser chamados de chanas ou guanás:

Los Infieles chanas, conocidos vulgarmente por el nombre de Guanás, tienen en sus bosques una especie de frijoles venenosos, o Cumanda Yohá. Suben a los arboles, y se enrredan en ellos; los granos son del tamaño de Habas. Si los comen sin prepararlos primero con varias decocciones en distinctas aguas, a poco tiempo se apodera de el que los comío, una especie de pasmo, que le coge, y aprieta las Quixadas tan fuertemente, que sino acuden luego con Tabaco, o Pimenton, (Agí), muere el infeliz, hechando por la boca espumarajos (Sánchez Labrador, 1772 (II), Livro V: 352).

Também os índios payaguás são referidos pelo jesuíta, que os apresenta como “infieles” ou “traidores”. Sobre este grupo, as avaliações são sempre negativas como se pode constatar nesta passagem em que Sánchez Labrador, ao descrever o tronco da árvore Timboy afirma: “Su grosor, y corpulencia es tan disforme, que se forman embarcaciones de una pieza, o Canoas, en cada una de las quales los Infieles traidores Payaguas cargan veinte y cinco Indios robustos guerreros” (Sánchez Labrador, 1772 (II) Livro III: 178, grifo nosso). Também no Livro V do Tomo II da obra, ao mencionar a planta Aguapé o jesuíta nos traz informações sobre os índios Payaguás, os quais, segundo ele, costumavam se esconder debaixo de suas folhas: “Otro riesgo se corre con los embalsados, y es, que los Infieles traidores Payaguas se ocultan debajo de ellos” (Sánchez Labrador, 1772 (II), Livro V: 354). Nas poucas passagens que localizamos sobre este grupo indígena, evidencia-se uma visão detratora dos Payaguás que não apenas comprometeram a atividade missionária dos jesuítas na Província Jesuítica do Paraguai, como também foram responsáveis pela morte de alguns missionários.15
Os Chiquitos também são referidos pelo jesuíta no Paraguay Natural. Sánchez Labrador teve a oportunidade de conviver com o grupo durante sua viagem à região de mesmo nome, e que, na atualidade, se encontra em território boliviano, no ano de 1766. No Terceiro Livro do Tomo II, o jesuíta assim se referiu a eles: “En la orilla ocidental del río Paraguay estan las Missiones de Neophytos Chiquitos. Tienen sus bellas poblaciones en los Bosques, los quales acía el Poniente; y Norte, o entre estos dos puntos del orizonte” (Sánchez Labrador, 1772 (II), Livro III: 181).
Mais do que revelar as percepções de um religioso sobre os grupos indígenas com os quais entrou em contato, as passagens que selecionamos evidenciam também a posição de narrador da alteridade que Sánchez Labrador assumiu. De acordo com Hartog

A partir da relação fundamental que a diferença significativa instaura entre os dois conjuntos, pode-se desenvolver uma retórica da alteridade própria das narrativas que falam, sobretudo, do outro, especificamente as narrativas de viagem, em sentido amplo (Hartog, 1999: 229).

O padre jesuíta é, sob esta perspectiva, uma testemunha, um observador dos “dessemelhantes” -no caso, dos indígenas-, que se propõe a descrevê-los. É preciso lembrar que a obra de Sánchez Labrador tinha como destinatários outros membros da Companhia de Jesus ou, então, naturalistas europeus, tidos por ele como seus semelhantes, o que seguramente interferiu na escrita. Como bem observado por Hartog (1999: 229, grifo nosso), “Um narrador, pertencente ao grupo a, contará b às pessoas de a: há o mundo que se conta e o mundo em que se conta”. Nesse processo de tradução, o narrador acaba por conferir um peso maior à alteridade na narrativa, omitindo certas características e chamando a atenção para outras, em um esforço de controlar a recepção do público destinatário acerca do “mundo que se conta”: “Ele dá a impressão de transmitir ao destinatário a alteridade em ‘estado bruto’ ou ‘selvagem’. Todavia, os vestígios enunciativos que pontuam a descrição dirigem-se ao saber implícito do destinatário e orientam a maneira como este a recebe” (Hartog, 1999: 269).
Levando-se em conta estes condicionantes do processo de escrita, pode-se melhor compreender as razões que levaram Sánchez Labrador a privilegiar a descrição de certas práticas indígenas em detrimento de outras. Isto parece ficar evidente na descrição que o jesuíta fez do consumo do tabaco pelos homens e mulheres Mbayás e do uso que os grupos indígenas faziam das sementes de Curupay. De acordo com Sánchez Labrador, eles empregavam as sementes da árvore chamada Curupay para se entorpecerem, estado em que poderiam permanecer por cerca de 24 horas. Após moerem as sementes, até que se tornassem pó, aspiravam “el humo por las narices con un cañon, que tiene la figura de una ‘Y’ griega, o que termina en horqueta, metiendo en cada nariz un píe de ella” (Sánchez Labrador, 1772 (II) Livro III: 176). O jesuíta não deixa de demonstrar que desaprovava tal prática: “Dicen, que en este tiempo tienen visiones gustosas. Esta operación, seguida de una violenta aspiración, los pone en estado de ridículos” (Sánchez Labrador, 1772 (II) Livro III: 176). Ele prossegue, dizendo que os indígenas que usavam as sementes de Curupay“com furor”, agiam como se estivessem embriagados e com uma “furiosa falta de juízo”.
As passagens que transcrevemos acima apontam para o que De Certeau (2011: 236) denomina de “repartição entre o narrador e o ‘outro’”, que acaba se afirmando através da estranheza: “cada episódio modula a estranheza com um elemento particular da gama cosmológica [...] acrescentando seu efeito próprio à série na qual a diferença é, ao mesmo tempo, o princípio gerador e o objeto em que acreditar”. Isso pode ser também percebido no texto da Introdução do Tomo III do Paraguay Natural Ilustrado, no qual o jesuíta afirma que: “En algunos es delicadísimo el organo del olfato. [...] los Indios casi todos, y muchísimos otros, rastrean, y por el olor de la tierra, y otros, que ellos sienten, buscan lo que pretenden” (Sánchez Labrador, 1771 (III), Livro I, Introdução: f. LXXIV). Na continuidade, ele acrescenta a informação de que também os negros das ilhas Antilhas possuíam olfato delicado, que o empregavam para rastrear o que estavam procurando. Apesar de destacar os benefícios de um bom olfato, parece-nos que a real intenção de Sánchez Labrador foi a de, mais uma vez, destacar a singular “estranheza”, que distanciava os indígenas dos europeus, e de classifcar esses indivíduos dentro de um “universo exótico”, como ressaltado por De Certeau (2011: 239).
Para além da classificação fundamentada no exotismo de certas práticas nativas, Sánchez Labrador empreendeu também notável esforço para que seus potenciais leitores as pudessem compreender. Vale lembrar que, de acordo com Hartog (1999), o narrador da alteridade tem como função principal a tradução, processo através do qual o “mundo que se conta” se inscreve no“mundo em que se conta”. De Certeau (2011: 242), por sua vez, refiere-se a este processo como “economia de tradução”, uma operação que “faz passar a realidade selvagem para o discurso ocidental”.
É no primeiro livro do Tomo I do Paraguay Natural, no qual Sánchez Labrador expõe e discute as possíveis origens de certos costumes dos nativos americanos, que encontramos as primeiras evidências da aplicação da “economia de tradução”. Ao rechaçar as teorias que defendiam que os indígenas descenderiam dos hebreus, o jesuíta conjectura que seus costumes apontavam para uma aproximação com os dos egípcios e com os dos chineses:

Porque aquellas costumbres no son parecidas a las Hebreas, sino a las Egypcias, ya las chineses. Las costumbres de los Judíos en especial las malas, eran derivadas delos egypcios en el cautiverio […]. De aqui es, que las costumbres de los Indios dela America, no tanto eran, y son parecidas a las Hebreas, quanto eran parecidas a las egipcias, asi como lo era las Hebreas (Sánchez Labrador, 1771 (I), Livro I: 12).

Como se pode constatar, Sánchez Labrador procurou uma forma de traduzir os costumes indígenas, descrevendo-os a partir de práticas de outras civilizações.16 Ao afirmar que eles se assemelhavam em alguns aspectos aos dos hebreus, mas que, no geral, não tinham tantas características em comum, o jesuíta recorreu a uma “operação de tradução”, que Hartog (1999: 232) define como “inversão”:

A inversão, funcionando como um interruptor, dá sentido a tal prática ou a tal conduta - um sentido que pode ser explícito ou implícito. [...] a inversão revelase uma operação de tradução: trata-se de um dos procedimentos que permitem passar do mundo que se conta ao mundo em que se conta (Hartog, 1999: 232).

Além da “inversão”, Sánchez Labrador também recorreu à “comparação”, como se pode constatar na menção que faz às semelhanças existentes entre os costumes dos nativos americanos e os dos egípcios e chineses. De acordo com Hartog (1999: 254), as narrativas de alteridade são “narrativas que dizem o outro” e estão fundamentalmente ligadas ao recurso de nomeação. Sob esta perspectiva, entendemos que Sánchez Labrador recorreu à nomeação, ao dizer: eles, os índios americanos, têm um costume diferente do nosso, europeu, mas seus hábitos se assemelham aos dos egípcios e aos dos chineses, que nós conhecemos; e não possuem muitas características em comum com os dos hebreus, que nós também conhecemos. De acordo com Prat a nomeação é um processo altamente transformador, pois “extrai todas as coisas de um mundo e as reimplanta dentro de uma nova formação de conhecimento cujo valor está precisamente em suas diferenças” (Prat 1992: 33, tradução nossa).
Da Introdução do Tomo IV do Paraguay Natural Ilustrado, destacamos outro exemplo de operação de tradução por comparação. Nela, o jesuíta refere a obra “Memórias Eruditas”, divulgada na Itália, em 1778, refutando várias das afrmações feitas por seu autor, o Abade Dn. Ramon Maria de Termeyer,17 contrapondo-as as suas próprias experiências como missionário na Província Jesuítica do Paraguay. Para exemplificar, destacamos a crítica que fazà descrição na qual o Abade “asegura, que las orejas, y Pechos de las Indias son tan prolongados, que les cuelgan hasta las espaldas, y los pechos hasta los muslos” (Sánchez Labrador, 1776 (IV), Livro I, Introdução: f. III). De acordo com Termeyer, as índias tinham também o costume de colocar seus flhos pendurados nas costas e de jogar os seios por cima dos ombros para que eles pudessem mamar. Segundo Sánchez Labrador (1776 (IV), Livro I, Introdução: f. III): “Verdaderamente, que los ignorantes de la América, se tragaran semejantes falsedades”, mas é preciso esclarecer que “Las Naciones no tienen esta práctica; y las mujeres en ninguna Nación. Los Pechos de estas son regulares, algo más abultados, que los de las gentes cultas, porque las Indias no se faxan, ni ponen Ajustadores”. Para refutar as afirmações feitas por De Termeyer, Sánchez Labrador recorre à comparação entre os seios das mulheres indígenas e os daquelas denominadas “cultas”, que, presumidamente, deveriam ser européias.18 Para Hartog, a comparação é uma forma de tradução, que passa de um mundo para o outro, utilizando uma fórmula parecida com a analogia:

Tecida do mundo em que se conta, a comparação faz ver. Diretamente: a é como b; ou analogicamente: a é para b como c é para d. Operador de tradução, ela fltra o outro no mesmo. Ficção narrativa, que tem como garantia o olho do viajante ou o saber do narrador, visa a convencer o destinatário (Hartog, 1999: 245).

No trecho acima, pode-se perceber que o recurso da comparação foi utilizado para convencer o destinatário das incorreções nas descrições feitas por De Termeyer, que “dio à la prensa una Memoria, digna de eterno olvido, por llena de falsedades, y falta de reflexion, y critica” (Sánchez Labrador, 1776 (IV), Livro I, Introdução: s/p). Como se pode constatar, Sánchez Labrador recorreu a sua experiência como missionário e às observações que fez durante as viagens realizadas no território da Província para contrapor as afrmações do autor de “Memórias Eruditas”.19 Ao desacreditar as descrições feitas por Termeyer, o jesuíta acaba por creditar maior veracidade às suas, para, desta forma, fazer crer, pois, como proposto por Hartog:

mentira e mythos fazem escrever. Fazem também crer, posto que designar a narrativa do outro como ficção é, ao mesmo tempo, da parte do narrador, validar sua própria narrativa como séria: ele quer nos fazer crer que viu, mas eu sei muito bem que não viu nada, pois eu, sim, vi realmente; é, pois, em mim que vocês devem crer (Hartog, 1999: 304).

Não podemos, no entanto, desconhecer que as descrições que Sánchez faz sobre os “naturais da terra”, que, ora são elogiados por suas características físicas, capacidade de trabalho e conhecimentos, e, ora são chamados de ignorantes, bárbaros e têm suas características “exóticas” destacadas, devem ser compreendidas a partir de um processo de redefinição das categorias em curso na segunda metade do século XVIII. De acordo com Prat (1992: 45), ao final do Setecentos, os nativos americanos, mais do que pela “multitud tan diversa de costumbres, ritos, lenguas, y trages, que se hallan en los Indios de la America” (Sánchez Labrador, 1771 (I), Livro I: 7), passaram a ser avaliados, levando em consideração sua suposta ausência de governo, profssões, leis e instituições.
Ainda que estes aspectos, que diferenciavam os indígenas dos europeus, tenham sido destacados por Sánchez Labrador, em algumas passagens, o autor refiere e valoriza certas práticas e saberes que esses povos possuíam. Apesar de não serem tão frequentes ao longo dos quatro tomos da obra, há trechos em que o jesuíta chama a atenção para algumas práticas indígenas que observou, reconhecendo seus conhecimentos e apontando para a oportunidade que teve de aprender e vivenciar. Normalmente, essas observações e relatos se refierem a práticas terapêuticas adotadas pelos indígenas que recorriam à utilização de plantas, animais e pedras. Segundo Di Liscia (2002: 7). “La ‘medicina indígena’, por su parte, se supone un sistema de prácticas y remedios propios de las sociedades nativas americanas, si bien en determinados casos y por razones geográficas es posible aislar sus componentes”. O próprio Sánchez Labrador acaba por atestar a continuidade do emprego da “medicina indígena” em uma passagem do segundo livro do Tomo II, na qual informa que “los Indios, cuyas fuerzas no alcanzan a pagar las medicinas, trahidas de lexos, ni a los médicos, que sirven muy poco aun a los acaudalados del País, poseen el conocimiento de bastantes hierbas, y plantas, que usan con feliz succeso” (Sánchez Labrador, 1772 (II), Libro II: 131).
Na continuidade, o jesuíta faz referência às ervas empregadas pelos indígenas -Guaicuru, Charrua, Acangita, Plateada e Carquexa- para, logo após, afirmar que estes indivíduos “No saben dar razon de las causas, que aflixen los cuerpos, pero con instincto medico, por explicarme asi, no se les ocultan las plantas, con que se curan en breve tiempo, sin purgar con violencia, sin amargor la boca, y comover todas las entrañas” (Sánchez Labrador, 1772 (II), Libro II: 131). Nesta passagem, o jesuíta deixa claro que apesar de não terem conhecimento sobre
as doenças que os afigiam, os indígenas tinham sabedoria suficiente para detectar as virtudes de “hierbas, y plantas” para se curarem.
Isso também pode ser observado em outras partes da obra, como no Tomo III, Livro I, no qual o autor, ao tratar dos animais quadrúpedes, dedica um capítulo específico para as virtudes medicinais das pedras bezoares.20 Essas pedras, que podiam ser encontradas nos estômagos de diversos animais ruminantes da Europa e da Ásia, tais como cervos, cabras e gazelas, segundo Sánchez Labrador (1771), podiam ser encontradas também nos estômagos de alguns animais da América, como os Guanacos, Alpacas e Vicunhas. Dentre as virtudes medicinais dessas pedras estaria a de poderem ser utilizadas como contraveneno, de contribuir para a limpeza dos ácidos do corpo, de promover a transpiração do coração e matar as lombrigas. De acordo com Sánchez Labrador, as virtudes medicinais das pedras bezoares americanas, que se encontravam nos estômagos de Guanacos e Vicunhas, foram apresentadas aos espanhóis pelos indígenas: “Un indio descubrió en el Peru a los españoles las notables virtudes de tales Piedras. En recompensa de su fidelidad, le quitaron la vida otros indios sus compañeros” (Sánchez Labrador, 1771 (III), Livro I: 49). Em outro trecho, o autor deixa claro que o conhecimento das pedras bezoares orientais devia ser atribuído aos árabes, assim como o conhecimento das virtudes das pedras ocidentais se devia aos indígenas do Peru: “Alos Arabes, pues, y a los Modernos se debe el descubrimiento del Bezar oriental, y de sus virtudes; como el del Bezar ocidental de las vicuñas, [etc.] a los indios del Peru” (Sánchez Labrador, 1771 (III), Livro I: 56). De acordo com o jesuíta, estas pedras chegaram a ser enviadas para colégios e boticas da Ordem na Europa, sendo que as colhidas na América eram preferíveis às orientais, por serem genuínas e sem adulterações.

En España un Hº. Jesuita, muy inteligente en la Pharmacia, que exercía en el colegio de la insigne universidad de Salamanca, habiendo hecho todas las pruebas en orden a experimentar las virtudes delos Bezares del Paraguay, los antepuso a los orientales, y pidió con instancias, que le remiten otras de estas Piedras en cantidad, como se hizo (Sánchez Labrador, 1771 (III), Livro I: 57).

Além de demonstrar a importância que as pedras bezoares tinham para a medicina e a farmácia da época, o jesuíta refiere a sua exitosa utilização no tratamento de certas enfermidades: “en el Paraguay con grande, y casi quotidiano uso, se experimentan sus buenos efectos” (Sánchez Labrador, 1771 (III), Livro I: 57).
São bastante raras as em que Sánchez Labrador dá destaque aos saberes e às práticas indígenas, o que nos leva, na maioria das vezes, a inferir as formas de sua utilização nas terapêuticas curativas, como se pode observar em relação aos bezoares. No último capítulo do Livro III do Tomo IV, no entanto, encontramos um trecho em que o autor relata mais detalhadamente um procedimento terapêutico utilizado por indígenas. Ainda que Sánchez Labrador não especifique o grupo indígena sobre o qual está escrevendo e também não diga o nome do indígena, e nem mesmo se seria homem ou mulher, nessa passagem ele descreve o emprego de grilos no tratamento de certas enfermidades. O jesuíta inicia seu relato, dizendo que “En el Paraguay un inteligente los preparaba como ya digo”, cozinhando “levemente unos Grillos, les sacaba las tripas, molía lo demás; y estos polvos daba en licor conveniente à los que padecían dela orina: fuía esta, y quedaba aliviado el paciente” (Sánchez Labrador, 1776 (IV), Livro III: 366, grifo nosso). Na sequência, ele nos apresenta outra receita preparada por um indígena: “Otro tostaba dos Grillos en una
cazuela de barro, los molía, y en un poco de vino, o de agua bien cocida, o de chicha (Aloxa) de Maíz los daba à beber al enfermo, que padecía de la retención de la orina; obraba luego el buen efecto” (Sánchez Labrador, 1776 (IV), Livro III: 366, grifo nosso). Sánchez Labrador deixa, contudo, bastante claro que tais medicamentos eram manipulados por indígenas para serem administrados a outros indígenas, como se constata também nesta passagem:

También toma dos Grillos, ò Quiyus vivos, ensártalos en un palito, como assador; tuestabos al fuego, y ya tostados muélelos en un poco de vino caliente: este vino mezclado con los Polvos de los Quiyus, daran al indio, o india, que padeciere la retención de orina, y esta poco poco fuira con feliz suceso (Sánchez Labrador, 1776 (IV), Livro III: 366, grifo nosso).

No Livro III do Segundo Tomo da obra, encontramos uma passagem em que o jesuíta refiere o uso terapêutico que os indígenas faziam da tintura extraída de uma árvore chamada Ñandipa. De acordo com Sánchez Labrador, a “Tinta del Ñandipa alivia los cuerpos”, informação que, segundo ele, obteve com os próprios indígenas: “Preguntados los Indios, porque se tiñen con el Zumo del Ñandipa? Responden, que con esta tinctura sienten alivio, y descanso sus cuerpos. La respuesta parece barbara, pero bien considerada tiene un fondo de buena physica” (Sánchez Labrador, 1772 (II), Livro III: 262). O jesuíta chega a afirmar que o emprego da tinta para aliviar as dores do corpo seria uma prática bárbara, mas não deixa de considerar que sua aplicação e eficácia se baseavam na buena physica. Em seguida, no mesmo parágrafo, o autor explica por que a afrmação dos indígenas teria fundamento:

Cansan se los Indios en sus cazas, y en otros ejercicios de su inconstancia; los ardores del sol ponen desmanzelados sus cuerpos, por la demasiada transpiración. No será, pues, milagro, que reciben fuerzas con dicho tinte, que con su virtud adstringente aprieta los poros; detiene se la transpiración copiosa, que los desubstanciaba; y así se hallan más agiles, y expeditos (Sánchez Labrador, 1772 (II), Livro III: 262).

Os trechos em que Sánchez Labrador refiere o uso que os índios faziam da tinta da Ñandipa apontam, mais uma vez, tanto para uma atitude de estranhamento e de depreciação, quanto de admiração e crédito em relação aos conhecimentos que os nativos possuíam para o alívio de certos sintomas ou dores. Eles também revelam o que denominamos de “economia de tradução” (Hartog, 1999; De Certeau, 2011) e o papel que os jesuítas desempenharam como intermediários, ao divulgar os saberes e as práticas indígenas para a Europa, como observado por Anagnostou e Fechner (2011) e, também, por Di Liscia (2002).21
Neste trecho, que se encontra na página 262 do Livro III do Segundo Tomo da obra, Sánchez Labrador procura “traduzir” o conhecimento indígena sobre as virtudes medicinais da tinta da Ñandipa a partir de referenciais da História Natural e da Medicina europeia vigentes no século XVIII.22 Ao afirmar que a tinta possuía virtude adstringente, que agia sobre os poros e detinha a transpiração copiosa, o jesuíta, não apenas, procurava explicar cientificamente as suas propriedades, como também demonstrava sua preocupação com os potenciais leitores europeus.23
Entendemos que, mais do que preocupação com a compreensão, as adequações feitas por Sánchez Labrador têm o evidente propósito de conferir credibilidade e legitimidade aos seus relatos. Vale lembrar que “En un contexto intelectual periférico -y el Río de la Plata lo era en esta época- la situación no era extraña,
sino que formaba parte del imaginario occidental y cristiano habitual acerca de las costumbres indígenas”, dessa forma “era difícil para el observador de fuera captar los matices, las circunstancias sociales y ecológicas, aceptando así la diferencia cultural” (Di Liscia, 2002: 17). Constata-se, assim, que, apesar de descrever os saberes e as práticas indígenas ao longo dos quatro tomos do Paraguay Natural Ilustrado, em apenas algumas poucas descrições Sánchez Labrador deu crédito aos conhecimentos tradicionais dos “Hijos del Paraguay” e das “Personas naturales inteligentes”.
Sua especial condição -de religioso, com a missão de evangelizar e civilizar os indígenas- se manifestará, sem dúvida, nas apreciações que fará dos indígenas e de seus conhecimentos. Neste sentido, vale ressaltar que:

La separación que realizaba el jesuita entre indígenas “más racionales” y “menos racionales” se basaba en el uso de especies vegetales como medicamentos, porque para él la medida de la lógica se daba en relación con el acercamiento al mundo natural, utilizando y aprovechando sus ventajas, a la vez que se despreciaba lo sobrenatural (el shamanismo, la magia en suma), prueba clara de irracionalidad (Di Liscia, 2002: 40).

Ao apresentar as virtudes medicinais e indicações terapêuticas de certas plantas, animais e pedras, Sánchez Labrador procurou adequá-las à teoria humoralista hipocrático-galênica, em consonância com sua condição de europeu e de religioso. E, assim como muitos outros jesuítas, ele se ocupou da produção e divulgação do conhecimento científico e etnográfico americano, cumprindo “una importante función en la búsqueda de información [...] conviviendo con los indígenas y en un medio ambiente lleno de objetos naturales ‘novedosos’ y por lo tanto esperando su catalogación” (Del Valle, 2009: 52).

Conclusão

Apesar de ter se ocupado do processo de conversão e do cotidiano reducional no Paraguay Catholico, também nos quatro tomos que compõem o Paraguay Natural Ilustrado Sánchez Labrador nos oferece valiosas informações sobre as “personas naturales inteligentes” e os “hijos del Paraguay” junto aos quais atuou como missionário.
Se, por um lado, é correto afirmar que as descrições dos indígenas e de suas práticas levaram em conta as obras que ele consultou na biblioteca do noviciado de San Luis de Sevilha e, posteriormente, na do Colégio de Córdoba, por outro, não devemos desconhecer a relevância do diálogo que o jesuíta estabeleceu com outros homens de ciência e jesuítas expulsos durante seu exílio na cidade italiana de Ravenna, e, ainda, das observações que fez e das informações que recolheu -pessoalmente ou através de informantes- sobre os nativos da região platina.
Sob esta perspectiva, sua narrativa sobrepõe e mescla as experiências que vivenciou na América àquelas próprias de seu período de formação na Europa e, ainda, às que viveu posteriormente na Itália. Foram estas múltiplas influências que acabaram por imprimir certa oscilação nas suas percepções e descrições, que ora expressam sua incompreensão das práticas indígenas, apresentadas como bárbaras pelo jesuíta, ora a admiração em relação a determinados grupos e saberes nativos. Como evidenciado em inúmeras passagens do Paraguay Natural, sua condição de religioso, com a missão de evangelizar e civilizar os indígenas se manifestará, inequivocamente, nas apreciações que fará dos indígenas e de seus conhecimentos.
Ao descrever os saberes tradicionais, os costumes e certas tradições indígenas, Sánchez Labrador utilizou diferentes recursos de tradução, recorrendo, ainda,às suas observações e experiências para, com base na autoridade que elas lhe conferiam, contestar outros autores ou, então, confirmar teorias e procedimentos vigentes. Também a autoridade de autores renomados -da Antiguidade ou do Setecentos- foi acionada para tornar compreensíveis e aceitos -pelo público leitor que Sánchez Labrador esperava atingir- os conhecimentos e as práticas dos “Naturais da Terra” que ele havia observado. Esse processo de tradução pode ser percebido, especialmente, nas descrições que o jesuíta fez dos saberes e das práticas terapêuticas empregadas por diferentes grupos indígenas, como procuramos demonstrar neste artigo.

Notas

1. Com exceção “del catálogo jesuítico de 1742, que da esa misma fecha, pero três años antes”, José Sánchez Labrador nasceu em 19 de setembro de 1717. Sabe-se que no “Archivo de los Tribunales de Córdoba (Argentina) se guarda la Renuncia de sus bienes, fechada en 6 de abril de 1738, en la que puede verse que sus padres se llamaban Juan Sánchez Labrador y María Hernández, cristianos viejos, y que tenía varios hermanos” (Sainz Ollero et al., 1989: 101).

2. “En los años siguientes no conocemos las actividades del recién ordenado sacerdote, aunque por las referencias de sus libros debió de estar, al menos en Buenos Aires y Montevideo” (Sainz Ollero et al., 1989: 102).

3. Dentre as inúmeras ocupações que José Sánchez Labrador exerceu antes de atuar como missionário estão as de professor de Gramática no Colégio Máximo de Córdoba, professor de Filosofia na Universidade de Córdoba e professor de Teologia no Colégio Máximo de Buenos Aires. Seus trabalhos de História Natural “demuestran su aprendizaje como naturalista y el interés que le produjo desde un primer momento la naturaleza americana, pero la mayor parte de sus experiencias y hallazgos iba a realizarlos en las áreas misioneras” (Sainz Ollero et al., 1989: 102).

4. Sobre esta viagem iniciada em dezembro de 1766 e concluída em agosto de 1767, Furlong (1948) e Sainz Ollero et al. (1989) afirmam que Sánchez Labrador foi o primeiro a fazer o caminho que ligava as reduções de Guaranis às de Chiquitos. Dela, teriam resultado um diário e um mapa que foram entregues a Francisco Bucareli y Ursúa, governador de Buenos Aires à época da expulsão da Companhia de Jesus.

5. José Sánchez Labrador se encontrava entre os cerca de 2000 jesuítas expulsos da América espanhola que foram exilados na Europa. Os padres do Vice-reinado do Rio da Prata teriam sido os últimos a deixarem as reduções pelas... (continue na página 44)

6. Para alguns jesuítas, como o padre José Sánchez Labrador, “la ‘expulsión’ tuvo paradójicamente una repercusión positiva sobre su formación científica [...] esta generación de jesuitas que, obligados a abandonar su labor misionera,... (continue na página 44)

7. Como bem observado por Sainz Ollero et al., “La fecha de edición de este conjunto se sitúa aproximadamente entre 1771-1776, cuando estaba exilado en Italia... (continue na página 44)

8. A transcrição, análise e divulgação deste manuscrito ainda inédito constituem objetivos da investigação “As artes de curar em dois manuscritos jesuíticos inéditos do Setecentos”, que conta com o apoio (continue na página 44)

9. De acordo com Sainz Ollero et al. “parte de los documentos de Sánchez Labrador quedaron en América [...] Quizá no conoceremos nunca cuántos escritos pudo llevar consigo Sánchez Labrador al exilio”. (ccontinue na página 44)

10. Segundo Sainz Ollero et al. (1989), o paradeiro da obra Paraguay Cultivado é desconhecido desde 1878, ano em que o manuscrito foi leiloado pela Casa Maisonneuve.

11. Sobre este distanciamento entre o narrador, viajante, e o outro, que poderia ser o indígena “selvagem”, De Certeau (2011: 231-232) afirma que se constitui em uma relação de poder que coloca os europeus cristãos em posição superior: “Entre ‘eles’ e ‘nós’ existe a diferença dessa escrita ‘seja santa, seja profana’ que imediatamente põe em causa uma relação de poder. [...] Os ocidentais têm a‘superioridade’. Acreditam que seja um dos ‘dons singulares que os homens da parte de cá receberam de Deus’: Seu poder cultural é referendado pelo absoluto: isso não é apenas um fato, mas um direito, o efeito de uma eleição, uma herança divina”.

12. De acordo com De Certeau (2011) nesse trabalho de escrever sobre o outro, o narrador atuaria em uma operação entre dois diferentes eixos: “de cá/de lá” e “o outro/o mesmo”, que acabariam se relacionando ao longo da escrita. “Uma parte do mundo que aparecia inteiramente outro é reduzida ao mesmo pelo efeito da decalagem que desloca a estranheza para dela fazer uma exterioridade atrás da qual é possível reconhecer uma interioridade, a única definição do homem” (De Certeau, 2011: 238).

13. Sánchez Labrador, assim como outros missionários antes dele, adotaram esta estratégia na formação de novas reduções pois acreditavam que os guaranis já convertidos poderiam ser de grande valia na aproximação com indígenas ainda por converter, como no caso dos mbayás, favorecendo o processo de redução. O jesuíta destacou-se na atuação como missionário na Província Jesuítica do Paraguai justamente por sua capacidade de observação e pela boa relação que estabelecia com os grupos indígenas contatados. Como dito anteriormente, ele atuou em um número expressivo de reduções dessa província e, segundo Barcelos (2006), se voluntariou para realizar missões junto a grupos que, como os mbayás, se mostravam resistentes à evangelização.

14. A explicação para o nome dado à redução de índios guanás -San Juan Nepomuceno- é bastante interessante. Em carta de 25 de agosto de 1734, padre Adolfo Skal, que acompanhou Sánchez Labrador na viagem à América, relata que, em 13 de março de 1734, ao iniciar-se uma tormenta, foram feitas orações e lançada ao mar uma relíquia de San Juan Nepomuceno, o que teria acalmado a tempestade imediatamente: “Por todo lo sucedido, cobré gran confianza y el sucesso no se me borrada de la memoria, de suerte que el 16 del mismo mes, cuando al anochecer se levantó de repente una gran tormenta, arrojé en seguida un poco de la referida tierra al mar, y he aquí que al cuarto de hora se habían desvanecido las nubes de mal agurio y de nuevo nos soplaba un favorable viento que nosotros naturalmente atribuíamos a la protección de S. Juan Nepomuneco, que quería que sus favorecidos no fueran molestados por aquel elemento, en el que encontró él la corona del martírio” (Carta do P. Adolfo Skal, Redução de S. Javier, 25 de agosto de 1734, apud Page, 2007: 198).

15. Sainz Ollero et al. (1989) refiere algumas expedições de jesuítas enviadas à região dos índios chiquitos antes da que Sánchez Labrador realizou. Uma delas foi a realizada pelos padres José Francisco de Arce e Bartolomé Blende no ano de 1715. Arce conseguiu chegar à missão de San Rafael de Chiquitos e se encontrar com o padre Cea, que atuava junto a eles. Já Blende, que ficou aguardando por ele em uma embarcação, foi, assim como todos os tripulantes, atacado por índios payaguás e tiveram suas cabeças cortadas. Na viagem de volta ao Paraguai, o padre Arce também foi alvo do ataque dos payaguás e acabou morrendo antes de poder relatar sua chegada à região dos chiquitos.

16. Sánchez Labrador partiu, portanto, do que ou europeus conheciam para explicar o “novo”, o “diferente” ou o “outro”, procedendo “de acordo com um sistema de presença-ausência” (Hartog, 1999: 259).

17. Ramon Maria De Termeyer (1807-1810) nasceu em Cádiz, em 1740, e faleceu na Itália, em 1814. Como missionário jesuíta, atuou, principalmente, no território do atual Paraguai, tendo realizado estudos importantes de Entomologia, Sericicultura, Zoologia e Agricultura. Após o decreto de expulsão da Companhia de Jesus dos domínios coloniais espanhóis, instalou-se na Itália, onde se tornou membro da Real Sociedade de Agricultura de Turim.

18. Assim como observado na comparação que o jesuíta estabeleceu entre os costumes dos hebreus, egípcios e chineses e os indígenas, Sánchez Labrador recorre a algo que seu potencial leitor deveria conhecer, isto é, os seios das mulheres europeias, para que consiga fazê-los entender o que não conhece, no caso, os seios das índias americanas.

19. Para Hartog (1999: 274), o “eu vi” numa narrativa da alteridade sempre possui mais poder e autenticidade do que o “eu ouvi”, especialmente em casos em que o narrador cumpre uma “função testemunhal”. Dessa forma, é possível afirmar que Sánchez Labrador ainda conta com um“saber-poder” em relação ao destinatário e potencial leitor, pois cabia e ele “fazer ver e fazer saber a pessoas que não viram por si mesmas coisa alguma” (Hartog, 1999: 363).

20. Às pedras bezoares, “formadas por camadas de lâminas calcárias superpostas, creditava-se o poder de opor-se aos envenenamentos, sendo apreciadas e utilizadas em várias partes do mundo pela virtude maravilhosa de atuar como contraveneno universal” (Almeida, 2010: 112-113).

21. De acordo com Di Liscia, neste processo de divulgação, no entanto, “fue preciso reformar, recortar, eliminar y transformar a sociedades enteras, siguiendo un modelo implantado en otras áreas o creando nuevas estructuras, pasibles de aplicarse a otros contextos” (2002: 17).

22. Nesse período, as doenças e também as práticas medicinais de cura eram compreendidas com base nos pressupostos da Teoria humoralista hipocrático-galênica, ainda vigente no período em que o autor escreveu a obra. De acordo com essa teoria, o corpo humano seria formado por diferentes líquidos ou humores que eram quase sempre quatro (Sangue, Fleuma, Bílis Amarela e Bílis Negra). A saúde consistiria no equilíbrio desses humores, assim como a enfermidade consistiria no predomínio de algum deles sobre os demais (Freitas Reis, 2009). Desta forma, existia a concepção de que as enfermidades eram causadas justamente pelo excesso ou ausência de algum dos humores: “Se a saúde assentava no equilíbrio, a doença era, em primeiro lugar, desequilíbrio, devido ao excesso de um dos elementos constituintes do corpo, ou a um excesso de calor, de frio, de secura ou de humidade” (Micheau, 1985: 46).

23. Sánchez Labrador não chega a nos informar qual era a explicação dada pelos indígenas para a utilização desta prática terapêutica, mas é plausível supor que, ainda que tivessem lhe dado tal explicação, essa não satisfzesse ou se adequasse aos referenciais adotados pelos potenciais leitores da obra de Sánchez Labrador.

Fonte

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Fecha de recepción: 10 de abril de 2017.
Fecha de aceptación: 14 de agosto de 2017

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