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Estudios de filosofía práctica e historia de las ideas

versión On-line ISSN 1851-9490

Estud. filos. práct. hist. ideas vol.19 no.1 Mendoza jun. 2017

 

DOSIER

Um olhar sobre a educação popular e as epistomologias do Sul: a Universidade Popular dos Movimentos Sociais

Una mirada a la educación popular y las epistemologías del Sur: la Universidad Popular de los Movimientos Sociales

An overlook on popular education and on the epitstemologies of the South: the Social Movements Popular University

 

Erick Morris

Universidade de Coimbra

 

Recibido: 11/03/2017
Aceptado: 20/09/2017


 

Resumo

Este artigo apresenta uma reflexão sobre algumas das experiências da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS) na América Latina ao longo dos seus 14 anos, à luz da relação da educação popular e das epistemologias do Sul, proposta teórica elaborada por Boaventura de Sousa Santos enquanto crítica da epistemologia ocidental hegemônica e também como proposta para a sua superação. Com enfoque no Brasil e Argentina, no contexto de transformações políticas que a região vem passando, o texto aborda alguns dos desafios que se apresentam na articulação das resistências e da criação de alternativas emancipatórias.

Palavras-chave: UPMS; Educação Popular; América Latina; Epistemologias do Sul; Pedagogias decoloniais.

Resumen

Este trabajo es una reflexión acerca de algunas experiencias de la Universidad Popular de los Movimientos Sociales en América Latina a lo largo de sus 14 años de existencia,  basada en la relación entre la educación popular y las epistemologías del Sur, una propuesta teórica de Boaventura  de Sousa Santos como crítica a la epistmología ocidental hegemónica y también como una alternativa para su superación. Con un enfoque en Argentina y Brasil, en el contexto de las transformaciones políticas en la región, el texto aborda algunos de los desafíos que se presentan en la articulación de las resistencias y la generación de alternativas emancipartórias.

Palabras clave: UPMS; Educación Popular; Latinoamérica; Epistemologías del Sur; Pedagogías decoloniales.

Abstract

This paper presents a reflection about some of the Social Movements Popular University (UPMS) experiences in Latin America in its 14 years of existence. This is done through the lens of popular education and of the epistemologies of the South, a theoretical proposal of Boaventura de Sousa Santos, which criticizes hegemonic western epistemological paradigms and argues for its overcoming. With a focus on Argentina and Brazil in the current context of regional political transformation, the text deals with challenges present in the articulation of resistances and the creation of emancipatory alternatives.

Keywords: UPMS; Popular Education; Latin America; Epistemologies of the South; Decolonial pedagogies.


 

Introdução

Entendemos que a democratização das sociedades deve passar pela democratização do conhecimento, tanto básico como avançado. Este processo assenta-se não só na conquista de maior acesso ao saber acadêmico, o que requer a universalização do acesso à universidade, mas, sobretudo, uma revolução epistemológica, considerando como conhecimento válido os saberes leigos, populares, tradicionais, urbanos, camponeses e oriundos de culturas não ocidentais, como indígenas, de origem africana, orientais, entre outros. Assim, para nós é cada vez mais óbvio que a universidade precisa da educação popular.

Trecho da Carta de Porto Alegre1.

Partindo da proposta do presente dossiê de “debater sobre os caminhos críticos que recuperam tanto saberes populares como acadêmicos e de observar se são palavras vazias ou conformam efetivamente discursividades políticas que produzem sujetos políticos”, neste artigo apresentarei uma reflexão sobre algumas das experiências da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS) na América Latina ao longo dos seus 14 anos, à luz da relação da educação popular e das epistemologias do Sul, proposta teórica elaborada por Boaventura de Sousa Santos enquanto crítica da epistemologia ocidental hegemônica e também como proposta para a sua superação.

A UPMS aqui é apresentada criticamente enquanto tentativa de reforçar a articulação de diferentes setores, grupos e movimentos sociais para transformar modelos educacionais que insistem em se perpetuar em nossas sociedades. Configura-se, com algumas limitações importantes, como uma proposta intercultural de superação da dicotomia entre universidades e movimentos sociais no contexto atual, como consta nas suas diretrizes conceituais2:

A formação pretendida pela UPMS é dupla. Por um lado, promover a aprendizagem de ativistas e líderes comunitários, dos movimentos e organizações sociais, potencializando a discussão sobre quadros analíticos, teóricos, históricos e comparativos que lhes permitam aprofundar a compreensão reflexiva da sua prática – dos seus métodos e dos seus objetivos. Por outro lado, promover a aprendizagem de cientistas sociais, intelectuais e artistas comprometidos com os movimentos e organizações sociais, dando-lhes a oportunidade e criando-lhes a exigência de orientarem os seus estudos para os temas e problemas considerados mais relevantes ou urgentes pelos movimentos e organizações (UPMS, 2015)

Nessa perspectiva, a UPMS é parte de um movimento mais amplo de construção de pedagogias decoloniais/pós-coloniais com uma larga trajetória no continente latino-americano. Para perceber melhor este quadro, inicialmente estabelecerei uma relação histórico-teórica entre a educação popular, desde seu surgimento enquanto projeto rebelde e anti-colonial nos anos 1950-60, e a proposta das epistemologias do Sul, ambas decorrentes de um projeto mais amplo, fortemente inspirados na obra e pensamento de Frantz Fanon, dentre outros pensadorxs decoloniais (Walsh, C. E. 2013; Fernádez Moujan, I. 2012; Streck, D. R. y Adams, T. 2012; Morris, E. 2016; Benzaquen, J. F. 2012b; Padilha et al. 2011). Na sequência, apresentarei um pouco da trajetória da UPMS, desde seu surgimento no âmbito do Fórum Social Mundial, em 2003, e suas transformações até algumas das recentes oficinas na Argentina e no Brasil e os balanços realizados no Encontro de Educação Popular e Universidade, em Porto Alegre, em 2016.

Por fim, analisarei as propostas atuais de aproximação da UPMS com universidades públicas por meio de convênios e diante do cenário político em transformação no continente. Quais as perspectivas dessas iniciativas diante do ataque à universidade pública e o avanço da merco-universidade?

Educação Popular e Epistemologias do Sul

As epistemologias do Sul são uma contraposição ao processo de “epistemicídio” perpetrado pela expansão europeia iniciada no final do século XV e até hoje continuada pelo que se denomina como o Norte global, o qual não se restringe a uma caracterização geográfica, pois o Sul e o Norte simbolizam fronteiras de desigualdade e colonialidade, que, não desconsiderando a geopolítica, estão presentes nos países de ambos os hemisférios. Diante da incapacidade da epistemologia ocidental para resolver os problemas criados pela própria modernidade, compreende-se a necessidade de reconhecimento, resgate e criação de outras epistemologias, por tanto tempo subjugadas e invizibilizadas (Santos, B S.y Meneses, M. P. 2010).

A descolonização do saber tem papel importante no processo de organização das lutas contra-hegemônicas e a elaboração de uma, ou várias, epistemologia(s) alternativa(s) é parte fundamental nisto. Fulvio Gomes destaca que “as Epistemologias do Sul são uma proposta que denuncia a lógica que sustentou a soberania epistêmica da ciência moderna, uma lógica que se desenvolveu com a exclusão e o silenciamento de povos e culturas que, ao longo da História, foram dominados pelo capitalismo e colonialismo” (Gomes, F. 2012, 45).

Um aspecto do debate epistemológico apontado por Santos (2012) é que com  as epistemologias do Sul seria possível estabelecer uma ligação mais estreita entre as práticas sociais e a teoria crítica, uma vez que os movimentos mais progressistas têm atuado de maneira que os teóricos progressistas do Norte global só têm conseguido explicar a posteriori. Do ponto de vista inverso, esses movimentos utilizam uma conceituação própria e distinta dos conceitos já consagrados na teoria crítica  eurocêntrica.

Dois pontos fundamentais para as epistemologias do Sul são a tradução intercultural e a ecologia de saberes.

A tradução  intercultural  e  interpolítica: reconhece  a  existência de muitos conhecimentos  possíveis  que  precisam  ser  visibilizados  de  modo  a  contribuir  para formas híbridas de conhecimento emancipatório. A proposta do trabalho de tradução é condicionar  a  dinâmica  intercultural  e  política  para  tornar  visíveis  não  só  as  múltiplas formas  de resistências  à  opressão  e  dominação como também  as  aspirações que  as animam, contribuindo para fazê-las dialogar entre si.

A ecologia  de  saberes:  consiste  em  um  processo  de  revalorização  da diversidade  de  saberes  e  práticas  existentes  no  mundo  que  são invisibilizados ou tornados ausentes pelo conhecimento monocultural moderno ocidental. A ecologia de saberes   é   uma   atitude   que transcende a   lógica   dominante   de   produção   do conhecimento e compreende um processo pedagógico de produção do conhecimento que  vise combinação  e  enriquecimento  mútuo  de  conhecimentos  nascidos  na  luta e conhecimentos académicos solidários. (UPMS. 2015, 3-4)

A educação popular é um processo de construção coletiva do conhecimento pautado na luta e cotidiano das pessoas, com origem na resistência latinoamericana e na elaboração de alternativas para os modelos de sociedade impostos pela colonização e continuados após os processos de independência política alcançados no século XIX. Essa permanência da estrutura de dominação, tanto institucional como ideológica, é que Aníbal Quijano (2010) irá definir como a “Colonialidade do poder e do saber”. Esta colonialidade está vinculada ao eurocentrismo, que “não é exclusivamente [...] a perspectiva cognitiva dos europeus, ou apenas dos dominantes do capitalismo mundial, mas também do conjunto dos educados sob a sua hegemonia” (Quijano, A. 2010, 75). Mais adiante Quijano continua afirmando que trata-se “da perspectiva cognitiva durante o longo tempo do conjunto do mundo eurocentrado do capitalismo colonial/moderno e que naturaliza a experiência dos indivíduos neste padrão de poder. Ou seja, fá-las entender como naturais” (Quijano, A. 2010, 75).

Contrariamente ao saber colonial, ou ao saber instituído nas escolas públicas e universidades ao longo do século XX, a educação popular tem sido forjada nos processos coletivos dos movimentos de libertação dos anos 1960 que ajudaram a moldar grande parte das alternativas contra-hegemônicas no continente. Sobre esse processo de criação a partir das lutas sociais, Moacir Gadotti afirma que:

Os movimentos sociais nos ensinam que o povo, as pessoas, se educam na luta. A luta é pedagógica. Na luta há um “saber de experiência feito” (Freire). Esse saber, essa cultura, nem sempre foram valorizados pelas nossas academias, pelas nossas Universidades, que têm muito a aprender com os movimentos sociais. O saber que vem das lutas. Esse é um grande espaço de aprendizado. Aprendemos sobretudo a radicalizar a democracia, para que seja, de fato, de todos. Os Movimentos Sociais são uma verdadeira universidade emancipadora. Eles propõem, na prática, a superação da dicotomia comunidade-sociedade ou, ainda, educação não-formal e formal (Gadotti, M. 2008, 2).

Universidade Popular dos Movimentos Sociais - UPMS

A UPMS foi proposta no contexto da terceira edição do Fórum Social Mundial (FSM),  no ano de 2003, e desde então tem acompanhado a sua trajetória, mas não se limitando a este. Aquele era um momento de ascendência dos movimentos e lutas sociais e da consolidação de governos progressistas na América do Sul, que já contava com os governos de Hugo Chávez (Venezuela), Luís Inácio Lula da Silva (Brasil) e naquele mesmo ano Néstor Kirchner também seria eleito presidente na Argentina. A ideia da UPMS, lançada pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, junto com diversos grupos, desde ONGs, sindicatos, universidades, centros de pesquisa e movimentos sociais3 era a de criar uma universidade dos/com (os) movimentos sociais, disputando o conceito de universidade e articulando novos saberes a partir das próprias práticas e da troca intercultural na efetivação da experiência. Santos destaca a importância da disputa pelo termo/conceitoUniversidade conforme em entrevista a Benzaquen:

Chamamos de universidade como podíamos chamar de outra coisa; a Escola Florestan Fernandes chamou-se Escola, podia se chamar academia ou outra coisa, mas optamos por nos apropriarmos do termo universidade por pensarmos que é um termo que pode ser apropriado para fins contra-hegemônicos. Se tu quiseres, a UPMS é uma versão contra-hegemônica de um instrumento hegemônico ou de uma instituição hegemônica. Como eu tenho feito para o Direito e para outras áreas, os conceitos, os instrumentos, as instituições hegemônicas podem ser usados para objetivos e para formas contra-hegemônicas ou para fins contra-hegemônicos. A UPMS é exatamente isso, uma maneira de utilizar a universidade de forma contra-hegemônica (Benzaquen, J. F. 2012a, 920).

No seu livro A Gramática do Tempo, Santos apresenta a UPMS como uma proposta para as epistemologias do Sul. Dentro dos objetivos postos, lê-se que “Trata-se de criar no mundo do activismo progressista uma consciência internacionalista de tipo novo: intertemática, intercultural, radicalmente democrática” (Santos, B. S. 2006, 157). A UPMS surge bastante inspirada no pensamento de Paulo Freire e também como uma continuidade de uma longa tradição de universidades populares que existem e existiram desde o início do século XX, na Europa, América Latina e África. No entanto, com uma nova forma de organização, propondo um modo alternativo de comunicação entre diversos movimentos sociais, diferentes povos, entre as artes e a academia, reconectando criticamente a teoria e a prática social progressista e buscando traduções interculturais (Santos, B. S. 2006). Dentro das suas metas, a UPMS não busca a formação de uma posição única, como uma instância de formação de quadros políticos e/ou de lideranças, mas um processo que respeite a pluralidade das organizações e visões de mundo4.

Baseados na Carta de Princípios do FSM, as diversas organizações, movimentos e ativistas envolvidos na UPMS foram elaborando uma Carta de Princípios5 específica, apresentada originalmente em 2007, mas que vem sendo atualizada pelxs6 participantes nas próprias oficinas e nos fóruns metodológicos. Destaco a seguir alguns trechos definidores do caráter auto-formativo, intercultural, inter-temático, democrático e decolonial:

1 - A Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS) é uma iniciativa de auto-educação para a dignidade e a emancip ação social. Pretende ser um espaço de formação política intercultural que promove o interconhecimento e a auto-educação com o duplo objetivo de aumentar o conhecimento recíproco entre os movimentos e organizações e tornar possíveis coligações entre estes e, facilitando, desse modo, a realização de ações coletivas conjuntas.

2 - A UPMS constitui um espaço aberto para o aprofundamento da reflexão, o debate democrático de ideias, a formulação de propostas, a troca livre de experiências e a articulação para ações eficazes, de entidades e movimentos sociais locais, nacionais e globais que se opõem ao domínio do mundo pelo capitalismo, pelo colonialismo, pelo racismo e pelo patriarcado, contra o sofrimento humano causado pelas injustiças, exclusões, discriminações, dominações, opressões que deles decorrem.

[…]

5 - Sua vocação específica é inter-temática e intercultural: inter-temática, porque visa promover o encontro e o diálogo entre movimentos/organizações com agendas e lutas diferentes para facilitar alianças e articulações entre os atores (por exemplo, entre movimentos feministas, operários, indígenas, quilombolas, afroamericanos, religiosos, estudantis, ecológicos, camponeses, urbanos e outros); intercultural, porque visa criar o entendimento recíproco entre culturas e narrativas, entre princípios e conceitos mobilizadores e orientadores da transformação social de diferentes lutas.

Ainda de acordo com a Carta de Princípios, os seus objetivos principais são:

a) ultrapassar a distinção e a hierarquia entre saberes acadêmicos e saberes populares e entre teoria e prática, promovendo encontros sistemáticos entre os que mobilizam saberes populares, tradicionais e indígenas e se dedicam prioritariamente à prática da emancipação e transformação social e os que mobilizam saberes académicos e se dedicam prioritariamente  à produção teórica.

b) promover um conhecimento recíproco, solidário e cooperativo entre movimentos e organizações que atuam em áreas temáticas diferentes, ou na mesma área temática, mas a partir de contextos, de culturas de luta e de princípios e conceitos mobilizadores distintos. (UPMS. s/a)

É interessante destacar que a UPMS não tem um local físico específico, para além de um espaço de registro das suas atividades no Memorial do FSM. A UPMS se materializa na realização de oficinas nos diversos espaços dos movimentos sociais. Sendo assim, a Carta de Princípios ganha uma relevância fundamental, pois para poder se caracterizar como parte desse movimento basta participar/organizar atividades seguindo esses princípios. Existem pressupostos metodológicos que regem as oficinas7 em forma de guia orientador, variando de acordo com as condições específicas de cada encontro. Dentre eles, alguns pontos são importantes para garantir as características da oficina e também o aprofundamento das relações interpessoais para além dos espaços mais formais de debate.

Primeiro, a oficina deve ter um tema central e  entre 30 a 50 participantes. Destxs é essencial que haja um predomínio de ativistas, militantes em movimentos sociais, artistas, lideranças camponesas, indígenas e/ou quilombolas sobre intelectuais/pessoas8 vinculadas apenas à universidades, mesmo que com compromisso militante. Isto tem o intuito, sobretudo, de evitar um excesso de academicismo, o que descaracterizaria toda a proposta. Segundo, a permanência de todxs xs participantes ao longo dos 2 ou 3 dias de oficina. Isto garante uma convivialidade mais informal, onde outros saberes podem fluir mais tranquilamente numa pedagogia da informalidade. Terceiro, garantir momentos de confraternização livre, pois mesmo se propondo que todos os espaços sejam de vivências agradáveis, fortes vínculos se formam nestes momentos de socialização.

Os processos prévios de construção das oficinas devem atender aos princípios de maior envolvimento e participação possível de todxs xs sujeitxs, desde o planejamento das atividades, captação de recursos, mobilização e definição temática.

Desde a primeira oficina da UPMS, realizada em Córdoba (Argentina), em 2007, já passaram-se quase dez anos e mais de mil participantes em cerca de trinta oficinas registradas  nas mais diferentes cidades de pelo menos 13 países (Argentina, Bolívia, Brasil, Cabo Verde, Colômbia, Costa Rica, Espanha, Equador, Índia, Moçambique, Portugal, Tunísia, Uruguai), tendo ainda outras previstas para acontecerem9. As características e temáticas de cada oficina foram as mais variadas possíveis, conforme a composição dos grupos participantes, conjuntura e reivindicações/pautas específicas, tais como as recentes “Interculturalidade: diversidade, espaços e saberes” (Cuiabá, 2014), “Desafíos de la izquierda frente al nuevo escenario político: Criminalización, extractivismo y precarización de la vida” (Buenos Aires, 2016) e “Conflictos territoriales rurales y urbanos” (Córdoba, 2016)10.

Todos esses encontros foram tecendo redes amplas e diversas de resistência em várias partes do mundo, conectando lutas e fomentando solidariedade. Para a manutenção disso a UPMS também se propõe como um espaço virtual  de interação e comunicação entre movimentos, artistas e intelectuais progressistas. Seu site tem por objetivo ser mais do que um repositório dos eventos realizados, mas um fórum permanente de discussão e reflexão entre os diversos setores envolvidos. Embora esta esfera ainda seja uma iniciativa incipiente, que até o momento não conseguiu uma incorporação efetiva pelos diferentes grupos e participantes, essa “virtualidade” é uma proposta com um potencial de fortalecer a articulação entre lutas sociais e políticas complementares.

A ausência de um território fixo também apresenta limitações mais problemáticas, pois como são os movimentos sociais, povos indígenas, grupos periféricos, entre outrxs, xs que estão nos respectivos territórios, os tempos e o próprio desenvolvimento da proposta ganham um ritmo por vezes com pouco equilíbrio. Devido a isso ocorrem oscilações entre momentos de maior efervescência, com a realização de diversas oficinas, e outros momentos em que estas não estão na prioridade destes grupos, pois dependendo da conjuntura a principal preocupação é a própria sobrevivência dos movimentos, mesmo que paradoxalmente a articulação entre as lutas seja ainda mais fundamental nesses casos.

Outra dificuldade imposta pela não territorialidade é a continuidade das ações/articulações após as oficinas. Como a UPMS nasceu no contexto internacionalista do FSM, muitas pessoas e grupos apenas se encontravam anualmente ou ainda com maiores intervalos de tempo. De 2014 em diante foram realizadas oficinas com participantes de países ou estados específicos, como no caso do Mato Grosso (Brasil), com um forte enfoque nas lutas contra o agronegócio naquele estado e nas duas oficinas realizadas na Argentina em 2016. Estas últimas puderam contribuir no estreitamento de vínculos de movimentos contra a megamineria e na rearticulação das esquerdas e movimentos populares no cenário de recrudescimento da repressão estatal, que Maristella Svampa classifica como o “fim do ciclo progressista”11, embora ela também aponte para as limitações graves desse ciclo. A oficina realizada em Buenos Aires em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, nos dia 14 a 16 de abril de 2016, também contou com um ato público de encerramento, com um debate com 300 pessoas numa fábrica ocupada/recuperada, a IMPA.

A pesar de ainda acontecerem de modo localizado, esses processos têm contribuído na reflexão coletiva sobre as transformações políticas vivenciadas no continente e suas continuidades, articulando saberes mais teóricos com a sabedoria dos povos originários que lutam há séculos contra o colonialismo e dxs que colocam seus corpos na linha de frente da resistência, seja esta contra a expansão do agronegócio, da especulação imobiliária, da megamineria e/ou da repressão policial.

Articulação entre movimentos e universidades

Nas últimas décadas, sobretudo ao longo dos governos progressistas (Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Uruguai e Venezuela), houve significativas conquistas educacionais com a expansão da universidade pública e com políticas de inclusão universitária nos países da América do Sul, com variações de intensidade nessas transformações entre os diferentes países. Em muitos desses casos houve uma tentativa de criação de novos tipos de universidade pública, sejam estas interculturais, indígenas e/ou populares, com muitas ambiguidades no que significariam essas adjetivações na implementação prática. Não obstante, o sentido de democratização da universidade e ampliação da construção do conhecimento era um dos elementos centrais.

Ao longo dos últimos anos e buscando uma inserção maior nas universidades públicas e em outras redes, ativistas da UPMS têm buscado a criação/participação de fóruns mais amplos de discussão sobre educação popular e sua relação com a universidade, além de articular parcerias específicas com universidades por meio de convênios. Ao mesmo tempo em que estas iniciativas se apresentam como uma possibilidade de contribuição efetiva na superação da crise da universidade e da própria consolidação da UPMS, as transformações geopolíticas na região colocam incertezas para a viabilidade das mesmas.

Em janeiro de 2016, no contexto do Fórum Social Temático, em Porto Alegre, a UPMS participou da realização do Encontro da Educação Popular e Universidades: experiências e desafios” (EEPU) e o Fórum Social da Educação Popular (FSEP). Nesses espaços foram discutidos desafios para os movimentos sociais e de educação popular diante do retorno de governos de direita na região e o aumento da repressão política.  Diante dessas questões os grupos presentes apontaram para “a necessidade de maior unidade dos grupos, buscar mapear e sistematizar as experiências realizadas pelo continente e tornar espaços como o EEPU, o FSEP e o próprio Fórum Social Mundial em espaços propositivos e deliberativos” (Carvalho-Morris, E. 2016, 223).

Outro ponto levantado pelos grupos participantes é a dificuldade de aproximação/abertura da universidade a outros tipos de saberes, inclusive “a extensão universitária que ainda é uma maneira de levar conhecimento aos que ‘não têm conhecimento’. As próprias pesquisas realizadas por pesquisadorxs populares, mas a partir das universidades, são apontadas como muitas vezes repetindo uma prática extrativista do conhecimento” (Carvalho-Morris, E. 2016, 222-223).

Esta situação gera preocupação de que as próprias oficinas da UPMS não se transformem em campos de pesquisa extrativista, onde os acadêmicxs vão extrair informações das suas fontes. O próprio formato das oficinas e a composição das mesmas visa fortalecer um processo coletivo de pesquisa, baseado na proposta de pesquisa-ação de Orlando Fals-Borda. Mas, o risco de um colonialismo acadêmico existe e tem que haver uma permanente vigilância, senão estaríamos a repetir a experiência universitária tradicional com uma roupagem mais alternativa.

Neste sentido, os espaços de autorreflexão coletiva como os que têm acontecido em fóruns, atividades autogestionadas e nas próprias oficinas da UPMS são os que podem garantir que a proposta continue caminhando no sentido de pesquisas militantes e colaborativas, contribuindo nas lutas dos movimentos sociais e populares de acordo com o que se apresenta como necessário.

No que tange especificamente à relação da UPMS com universidades formais, a partir do EEPU/FSEP 2016 deu-se início a um convênio com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), na qual esta efetivaria por meio da sua extensão universitária novas oficinas em parceria com movimentos sociais locais. Como a UPMS não é uma instituição formal, o convênio foi firmado por meio do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, principal impulsionador das atividades nos últimos anos. A ideia é estabelecer novos convênios como esse para envolver diretamente mais universidades com esse esforço para transformar o conhecimento universitário, incluindo outros saberes.

Uma aposta de transformação da universidade a partir das próprias instituições talvez seja algo pouco provável, embora a democratização interna da ciência seja fundamental na luta por uma justiça cognitiva. Para torná-la mais possível, esta tem de vir acompanhada de uma força de transformação social mais ampla e, assim, a proposta da interculturalidade imbuída nas oficinas da UPMS é um dos caminhos possíveis. E esse tem sido um dos principais desafios, o de construir coletivamente.

Desafios perante a conjuntura atual

As mudanças na conjuntura internacional e as especificidades no contexto latino-americano apresentam inúmeras variáveis que não poderão ser tratadas aqui. No entanto, desde meados da primeira metade da década de 2010 temos visto sinais do esgotamento do ciclo progressista na América do Sul, sejam estes por um notável crescimento do conservadorismo das políticas adotadas por esses governos, como pela redução internacional do preço das commodities, que têm sido a base de sustentação do crescimento econômico da região e, em última análise, dos próprios governos. Aliado a essas mudanças, podemos observar um retorno significativo da influência imperialista dos Estados Unidos (EUA) na região, após um período de afastamento com as sucessivas guerras pelo petróleo no Oriente Médio. Esse regresso dos EUA é bastante perceptível na desestabilização dos governos e na forte pressão mediática, política e econômica contra, sobretudo, a Venezuela, Brasil e Argentina.

Em termos concretos voltaram a haver mudanças bruscas de governo, no que se tem caracterizado como golpes jurídico-parlamentares, na versão modernizada dos golpes dos anos 1960 na América Latina, tendo como exemplos Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016). O que estes casos tiveram em comum é a supressão de governos democraticamente eleitos e que, em maior ou menor medida, contrariavam interesses das elites regionais e dos EUA. Acompanhando esse movimento conservador, na Argentina também houve um giro à direita nas últimas eleições presidenciais (2015).

Os novos governos no Brasil e Argentina têm tido um alinhamento no desmonte da universidade pública. Podemos destacar os cortes orçamentais realizados nas instituições  de pesquisa como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet) e diretamente em inúmeras iniciativas de novos modelos de universidades, como a Universidade da Integração Latino Americana (Unila), no Brasil, ou a Universidad Nacional Arturo Jauretche, na Argentina, dentre tantos outros exemplos na busca de uma universidade mais popular. Estas mudanças na política universitária vêm acompanhada por medidas econômicas de ajuste fiscal regressivo, arrocho salarial, privatizações, intensificação da repressão policial e criminalização dos movimentos sociais.

Neste cenário de retrocessos políticos, educacionais, sociais e econômicos, a universidade brasileira tem mostrado uma grande incapacidade de reação, com uma apatia e desmobilização dxs professorxs, quase que generalizada. A maior expressão de oposição ao golpe tem sido as ocupações das universidades e escolas públicas realizadas por estudantes, muitas vezes contrárias aos próprios professores e modelos educacionais implementados. Assim, iniciativas articuladoras como a UPMS se fazem cada vez mais necessárias. A opção por articulação direta com universidades apresenta-se cada vez mais difícil, mas ao mesmo tempo pode ajudar a fortalecer esses pouos espaços de resistência acadêmica e social.

Em tempos de crise política e institucional a universidade conseguirá se reinventar? A UPMS é uma aposta de que sim, mas um sim firmado no compromisso com os povos subalternizados e nos seus saberes. É uma aposta que se vale, como tentei argumentar neste texto, da trajetória de luta da educação popular e das diversas pedagogias insubmissas. É um projeto em construção que visa, por meio de uma tradução intercultural, articular diferentes lutas e diferentes grupos por uma sociedade socialmente e cognitivamente mais justa.

Notas

1 Carta de Porto Alegre, aprovada em atividade autogestionada da UPMS no Fórum Social Temática de 2016.

2 http://www.universidadepopular.org/site/media/Metodologia/Orientacoes_metodologicas_UPMS_-_PT_-_30-04-15.pdf

3 Moacir Gadotti (2008, 1) aponta um processo bastante amplo e participativo nesse processo de constituição da UPMS: «A idéia de criar essa universidade já havia sido comenta da no Fórum Social Europeu, realizado em Florência (Itália), no ano anterior, em 2002, com a finalidade de recuperar e sistematizar os conhecimentos acumulados pelos movimentos sociais no FSM. A proposta da universidade popular foi sendo debatida e enriquecida com a participação de diversas organizações, entre elas, o IBASE, o ICAE (International Council of Adult Education), o Instituto Paulo Freire, a EURALAT (Observatório Eurolatinoamericano de Democracia e Desenvolvimento Social), a Corporación Viva la Ciudadania (Bogotá), o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), o CEAAL (Centro de Educação de Adultos da América Latina), a FECODE (Federação Colombiana de Educadores), o Centro de Estudios y Publicaciones ALFORJA (Costa Rica), o Grupo de Trabalho CIMAS da Universidade Complutense de Madrid, a Corporación Región (Colômbia), o Conselho Internacional do FórumSocial Mundial, o LPP (Laboratório de Políticas Públicas) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Rede Mova-Brasil, a RAAAB (Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora do Brasil) e pelaAliança Internacional dos Habitantes. Grandes movimentos sociais, como o Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, aderiram à proposta desde o início.»

4 Fonte:www.universidadepopular.org/(Acessado em 20/02/2017)

5 http://www.universidadepopular.org/site/pages/pt/documentos/carta-de-principios.php

6 Optei por utiliza o «x» ao invés de uma designação binária de masculino/feminino, buscando assim uma linguagem mais inclusiva de gênero.

7 http://www.universidadepopular.org/site/media/Metodologia/Orientacoes_metodologicas_UPMS_-_PT_-_30-04-15.pdf

8 Há um debate recorrente nas oficinas sobre o uso do termo intelectual para essa definição do acadêmicx que participa da UPMS, pois nesse processo de construção de um outro tipo de conhecimento e de universidade o conceito de intelectual é alargado.

9 Fonte:www.universidadepopular.org/(Acessado em 20/02/2017)

10 http://rosaluxspba.org/es/estamos-aca-para-tejer-solidaridades/

11 http://rosaluxspba.org/es/estamos-aca-para-tejer-solidaridades/

Bibliografía

1 Benzaquen, J. Figueiredo. 2012a. A Universidade Popular dos Movimentos Sociais: Entrevista com o prof. Boaventura de Sousa Santos. Educ. Soc., Campinas, v. 33, n. 120, p. 917-927, jul.-set. Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>         [ Links ]

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