SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 número1Feminismos latinoamericanos: trayectorias, junturas, tensiones, aperturasTrayectoria y hallazgos de la Red de Sostenes (Unquillo, Córdoba, Argentina): cuando las mujeres se entraman índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

  • No hay articulos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Estudios de filosofía práctica e historia de las ideas

versión On-line ISSN 1851-9490

Estud. filos. práct. hist. ideas vol.22 no.1 Mendoza jun. 2020

 

DOSIER

Tecendo palavras com (desa)fios, resiliências e resistências: reflexões de uma mulher negra e docente acadêmica

Tejiendo palabras con hilos (desafiantes), resiliencias y resistencias: reflexiones de una mujer negra y docente académica

Weaving words with (un)threads, resiliences and resistances: reflections of a black woman and academic teacher

 

Terezinha Oliveira Teca

Universidade Federal do Oeste da Bahia, Brasil

 

Recepción: 04/10/2019
Aceptación: 19/02/2020


Resumo

Trata-se de um exercício de escrita no qual busquei, ora através da autonarrativa, ora através da leitura do cenário sociopolítico brasileiro, promover uma reflexão acerca do meu processo de descolonização mental, iniciado na sala de aula da Educação de Jovens e Adultos, em Salvador-Bahia, cidade mais negra fora de África. Atualmente, sou docente acadêmica, espaço ainda pouco acessado pelos corpos negros tanto dos estudantes quanto dos professores, apesar dos avanços advindos das políticas de ação afirmativa. Meu texto dialoga com autoras, a exemplo de Carolina Maria de Jesus, Lélia González, Glória Anzaldúa e Conceição Evaristo, mulheres que me ajudaram na tessitura das palavras, na cartografia de minhas lembranças e no meu resgate subjetivo como forma de empoderamento. Além dessas mulheres, outras vozes aqui se fazem presentes e podem-nos ajudar a refletir acerca das desigualdades educacionais, em suas intersecções de gênero, raça e classe social, ainda presentes em nosso cotidiano, mesmo após 131 anos de abolição da escravatura.

Palavras-chave: Docentes negras; Narrativa de si; Trajetórias; Educação; Empoderamento.

Resumen. Es un ejercicio de escritura en el que busqué, a veces a través de la narración propia, a veces leyendo el escenario sociopolítico brasileño, promover una reflexión sobre mi proceso de descolonización mental, iniciado en el aula de Educación para Jóvenes y Adultos. , en Salvador-Bahía, la ciudad más negra fuera de África. Actualmente, soy un profesor académico, un espacio al que los cuerpos negros de los estudiantes y los profesores todavía tienen poco acceso, a pesar de los avances derivados de las políticas de acción afirmativa. Mis diálogos de texto con autores, como Carolina María de Jesús, Lélia González, Glória Anzaldúa y Conceição Evaristo, mujeres que me ayudaron a tejer palabras, a la cartografía de mis recuerdos y a mi rescate subjetivo como una forma de empoderamiento. Además de estas mujeres, otras voces están presentes aquí y pueden ayudarnos a reflexionar sobre las desigualdades educativas, en sus intersecciones de género, raza y clase social, aún presentes en nuestra vida cotidiana, incluso después de 131 años de la abolición de la esclavitud.

Palabras clave: Docentes negras; Auto-narrativa; Trayectorias; Educación; Empoderamiento.

Abstract

This is a writing exercise in which I sought, sometimes through self-narrative, sometimes through reading the Brazilian sociopolitical scenario, to promote a reflection on my process of mental decolonization, started in the Youth and Adult Education classroom. In Salvador-Bahia, the blackest city outside Africa. I am currently an academic teacher, a space still little accessed by the black bodies of both students and teachers, despite the advances that come from affirmative action policies. My text dialogues with authors, such as Carolina Maria de Jesus, Lélia González, Gloria Anzaldúa and Conceição Evaristo, women who helped me in the weaving of words, in the cartography of my memories and in my subjective rescue as a form of empowerment. Besides these women, other voices are present here and can help us to reflect on the educational inequalities, in their intersections of gender, race and social class, still present in our daily lives, even after 131 years of abolition of slavery. 

Keywords: Black teachers, Self narrative, Trajectories; Education; Empowerment.


 

Introdução

 

“(...) encontrei minhas origens
na cor de minha pele
nos lanhos de minha alma
em mim
em minha gente escura
em meus heróis altivos
encontrei
encontrei-as enfim
me encontrei1

Oliveira Silveira

 

Escrever sobre ser mulher negra e docente acadêmica no Brasil é, antes de tudo, um movimento político de visibilidade e lugar de fala, levando em consideração as estratégias de desumanização direcionadas aos colonizados, no contexto da dominação europeia, com consequências sociopolíticas, econômicas e psicológicas devastadoras, desde o encontro do colonizador com a população nativa brasileira e africanos escravizados até os dias coetâneos. Nesse sentido, o ato de escrever, para mim, é carregado de simbologias, uma vez que ele pode ser visto como mais uma forma de dizer quem somos, já que a alteridade há muito tempo vem sendo narrada sempre do ponto de vista da linguagem etnocêntrica.

Além de uma agência de escrita, este texto é uma homenagem a algumas mulheres latino-americanas que têm inspirado minhas trajetórias pessoal e profissional. Curvo-me em reverência à Carolina Maria de Jesus, Gloria Anzaldúa, Lélia González e Conceição Evaristo. Entre muitas, por que essas mulheres, em especial? Admiro Carolina, mulher negra que vivia em condições sub-humanas numa favela paulista nas décadas de 50 e 60. Com pouca escolaridade, aquela senhora encontrava na escrita o seu modo de expressão. No livro Quarto de despejo: diário de uma favelada ficamos a par da sua experiência cotidiana como catadora de papel e mãe solteira, com três filhos para criar. As mãos, que durante o dia buscavam no lixo a alternativa para a subsistência do corpo, à noite assentavam-se no domínio da pena sobre o papel, na catarse de uma produção literária que lhe garantia a subsistência da alma.

Carolina Maria de Jesus, com seus textos e atitudes, diz-me que posso escrever sem importar-me com a adequação do ambiente, visto que a pulsão de colocar palavras no papel deve ser maior do que a miséria ou quaisquer outras adversidades circundantes. Sua coragem impulsiona-me à inserção na “escrevivência”, como bem nos diz Conceição Evaristo, escritora negra contemporânea, não menos querida que nos conta história de mulheres e de “[…] meninos/homens perdidos, herdeiros de mães sem nome, herança que as mulheres deixaram e que ninguém quis receber”. Assim escreve Jurema Werneck (2014,14) na Introdução de “Olhos d´ água”, livro de contos da referida autora. Encorajo-me. Entretanto, fracassadamente, estou sempre a recuar e a adiar o momento, assim, tentei várias vezes começar este texto e, na mesma proporção, dele desisti à espera da inspiração para a escrita do texto perfeito, idealizado no meu imaginário e, por isso, cada vez mais distante de vê-lo materializado.

Gloria Anzaldúa em seu ensaio, Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo, dirige-se às “queridas mulheres de cor, companheiras no escrever”. Sou sua interlocutora atenta, suas palavras penetram minha visão, sintonizando-me na empatía, quando ela nos diz da sua dificuldade em escrever, pois ainda está presa ao processo de escrita ensinado pela escola. Naquelas lições, os autores parecem seres sobrenaturais, sacralizados, conhecedores de escolas filosóficas e demais saberes com os quais produziram os textos clássicos da literatura. As palavras de Anzaldúa levam-me para mais perto de Carolina Maria de Jesus e percebo que sua escrita é, também, um ato de descolonialidade, pois seu texto não está submisso aos cânones literários. Ela afirma-se como escritora sem questionar se pode ou não escrever, sem pedir licença, ela escreve. Escreve para não se entregar. Escreve para não enlouquecer. Escreve para não morrer. Retorno ao texto de Glória Anzaldúa e o leio em voz alta para que suas palavras reverberem e se alojem dentro da minha mente:

Escrevam com seus olhos como pintoras, com seus ouvidos como músicas, com seus pés como dançarinas. Vocês são as profetisas com penas e tochas. Escrevam com suas línguas de fogo. Não deixem que a caneta lhes afugente de vocês mesmas. Não deixem a tinta coagular em suas canetas. Não deixem o censor apagar as centelhas, nem mordaças abafar suas vozes. Ponham suas tripas no papel. (Anzaldúa 2000, 23).

Portanto, movida por essas e tantas vozes ancestrais, escrevo com o objetivo de promover uma reflexão acerca da minha trajetória pessoal e profissional, como mulher negra e docente acadêmica. Distribuirei a minha escrita em dois tópicos. No primeiro: “Mulher negra: a consciência de si como um movimento político” ratifico que ainda precisamos lutar muito para alterar os lugares que nos foram destinados nessa sociedade sexista e racista. Isso significa que não basta acessarmos a educação superior e avançarmos nos cursos de pós-graduação, visto que as relações étnico-raciais são baseadas nas estratégias de inferiorização camaleônicas e poliglotas, isto é, elas mudam de formas/cenários e de idiomas, mas a semântica é a mesma.

O segundo tópico: “Mulher negra e acadêmica: (re) existências!” apresento um quadro, ainda que uma pequena amostra, no sentido de visibilizar os efeitos perversos do binômio educação e raça, nas dificuldades enfrentadas pelo corpo negro na sua inserção acadêmica, seja como estudante ou docente. Esses efeitos dialogam, cotidianamente, com as estatísticas das desigualdades sociais registradas pelas pesquisas das agências oficiais e/ou não oficiais. Ao final de 2018, num momento de efervescência política com as campanhas dos candidatos às eleições em 7 de outubro, essas desigualdades foram estampadas em sua publicidade ostensiva.

Nos seus discursos, os candidatos à presidencia do Brasil valem-se das mesmas apelações e melhorar a qualidade do ensino público é uma delas. Estamos há 9 meses sob a gestão do presidente eleito2 e, na turbulência de uma política de arrocho fiscal, enfraquecimento da democracia, fracassos administrativos, a exemplo do Ministério da Educação com a sucessiva troca de dirigentes, fica claro que ser cidadã/cidadão no Brasil, para os afastados do poder econômico, é uma condição tantas vezes anunciada e prometida e, na mesma proporção, sempre adiada.

1. Mulher negra: a consciência de si como um movimento político

Das mulheres que anunciei uma homenagem no início desse texto, Lélia González foi a que me ajudou a compreender pontos da questão racial que eu desconhecia, a exemplo do duplo fenômeno do racismo e do sexismo presentes na sociedade brasileira, e de que maneira a lógica da dominação produz corpos domesticados a ponto de aquilo, que é racismo, seja visto como uma condição natural, ou seja, é natural que os negros sejam vistos como pessoas irresponsáveis, infantis, incapazes intelectualmente, e que vivam em condições de miséria. Sendo assim, não há racismo no Brasil, porque os negros, quando se esforçam, alcançam a ascensão social como qualquer um, sendo que alguns são tão cultos e educados que nem parecem negros (Gonzalez, 1984). Há uns 15 anos, como professora da educação básica, eu pensava assim ao avaliar as produções escritas dos estudantes nas suas tentativas de dominar a língua portuguesa, língua materna, em sua variante de prestígio. Considerava-me uma vitoriosa porque, com muita luta, eu tinha conseguido um discutível empoderamento como professora daquela língua e, a partir dessa identidade, julgava que aqueles estudantes não se esforçavam o bastante para chegar aonde eu cheguei. Não é fácil dizer isso hoje.

Essa consciência crítica de si é um lugar de sofrimento, o que me faz concordar com as palavras de Fanon, quando ele nos diz que “a descolonização é sempre um fenômeno violento” (Fanon, 1968, 16). Foi revoltante constatar que, eu que, de certo modo, sabia manejar aqueles saberes, de maneira paradoxal, pouco sabia a meu respeito, se o que tinha feito até então, sendo negra numa sociedade racista, tinha sido a assimilação de seus valores culturais (Souza, 1983; Munanga, 1988), numa tentativa de escapar da condição de inferioridade. Numa mirada mais íntima, constatei que, por muito tempo, não senti a textura natural do meu cabelo, porque o alisava. A principio a ferro quente, mais tarde, com produtos químicos. Com o cabelo alisado a quente, não se podia tomar banho de chuva, para mim, a expressão maior de um corpo em liberdade. Não vi a minha beleza, porque na minha concepção e, pelo padrão estético disponibilizado pela colonização, o belo pertencia ao vocabulário das mulheres brancas, e assim, embotei meu corpo, silenciei desejos, reprimi afetos.

Nesse processo dorido de me (re)conhecer negra, fui percebendo que a violência racista fez com que negros e negras, submetidos àquele processo de representação e tradução pelo Outro, podem apresentar narrativas comuns em relação à emocionalidade no que se refere à “reconquista de si” (Munanga, 1983, 32). De acordo com esse autor, os processos de construção da identidade, nascidos com base na tomada de consciência das diferenças entre “nós” e “outros”, não podem ser idênticos entre todos os negros, visto que os contextos socioculturais em que vivem também não são idênticos. Entretanto, as palavras de Audre Lorde ratificam minha percepção e me incentivam a dar continuidade ao meu texto:

In the cause of silence, each of us draws the face of her own fear – fear of contempt, of censure, or some judgment, or recognition, of challenge, of annihilation. But most of all:, I think, we fear the visibility without which we cannot truly live .Within this country where racial difference creates a constant, if unspoken, distortion of vision, Black women have on one hand always been highly visible, and so, on the other hand, have been rendered invisible through the depersonalization of racism (Lorde 1984, 42).3

Gratidão, Audre Lorde! Em relação à minha prática pedagógica, além de sair do silenciamento, à época, significou a oportunidade de olhar para os estudantes da sala de aula da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e, pela primeira vez, querer saber sobre cada um deles e suas opiniões acerca do processo de ensino e aprendizagem ao qual estavam submetidos. Essa escuta sensível resultou na dissertação de Mestrado, intitulada Configurações identitárias numa turma da EJA: uma leitura para além das margens, defendida em 2006, na Universidade Federal da Bahia. Tratou-se de uma pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico, que teve como objetivo promover uma reflexão acerca dos processos de construção identitária sociocultural e como a linguagem verbal constituía esse processo na sala de aula de português, como língua materna, dando visibilidade a mim, enquanto professora e aos estudantes de uma escola situada em Cajazeiras, um conjunto habitacional da periferia de Salvador-Bahia.

Nessa (re) visão da minha prática docente e da minha relação de alteridade com os educandos da EJA, movida pela pergunta: “o que significa ensinar língua portuguesa a falantes nativos?” busquei informações nas Ciências Sociais para que o passado me ajudasse a compreender melhor o presente e me preparasse para o futuro. Nesse gesto metafórico de volver o pescoço e “olhar por sobre os ombros”, pude entrever que, em algum porão dos tumbeiros que atravessaram o Atlântico Negro estavam as artérias iniciais da minha cartografia genética e esse fato, por si só, era o suficiente para que eu quisesse saber mais a meu respeito.

Passei a entender que esse “lugar do desconhecimento” fazia parte do que González (1984, 226) chama de noção da consciência, que é o lugar onde o discurso colonizador se introjeta como o discurso dominante, e faz com que colaboremos com o opressor para que a nossa história seja esquecida. Em oposição à noção da consciência, a autora nos fala da noção da memória como “o lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita (…) o lugar de emergência da verdade”.

2. Mulher negra e docente acadêmica: (re)existências!

.Atravessamos os séculos sob a dominação do racismo e do sexismo, mas de acordo com Figueiredo; Grosfoguel (2009), apenas na década de 90, o Brasil assumiu oficialmente ser um país cuja base das relações sociais era marcada pela existência do preconceito e da discriminação racial, mesmo que o ativismo negro e as Ciências Sociais já viessem, há muito tempo, denunciando as injustiças provenientes daqueles fenômenos no mercado de trabalho. Aquelas observações colaboraram para que no avançar do tempo, se pudesse analisar de que maneira o racismo estrutural estava presente nas desigualdades no acesso à educação e nas diferenças de renda entre negros e brancos.

De acordo com Gomes; Marli (2018), as estatísticas de cor ou raça produzidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) confirmam que o Brasil está muito distante de ser uma democracia racial. Em relação ao mercado de trabalho, os brancos têm os melhores salários e, em média, são menos atingidos pelo desemprego. Em relação à educação, os brancos são a maioria entre os que frequentam o ensino superior. Para a população preta, parda ou indígena os indicadores socioeconômicos registram o gráfico crescente das desvantagens. Entretanto, as feministas negras apontam falhas nessas pesquisas, especialmente no que se referem às transformações na educação formal brasileira, devido ao fato que aquelas investigações invisibilizam a opressão e a exploração sexista, somadas às outras dimensões, a exemplo do racismo, classicismo, faixa etária, homofobia, machismo etc., que se interseccionam e atravessam o corpo e a subjetividade da mulher negra.

Esse é o pensamento de Sotero (2012), ao analisar, a partir de indicadores disponibilizados pelo Ministério da Educação (MEC), e perceber que há uma ampliação da presença feminina negra no ensino superior, fato que pode ser creditado aos resultados das políticas de ação afirmativa vigentes nos últimos anos. No entanto, a autora chama a atenção para a necessidade de uma análise crítica desse acesso, considerando a noção de hierarquização dos cursos e das instituições de ensino, e de que maneira as mulheres negras e brancas estão distribuídas nos cursos e nas instituições, ou seja, qual a porcentagem de mulheres brancas em Medicina numa instituição renomada e qual a porcentagem de mulheres negras nos cursos de Ciências Humanas, por exemplo.

Em complemento à observação de Sotero (2012), no Brasil, quando os estudantes negros, através das cotas, conseguem acessar uma universidade elitizada, eles precisam de força e perseverança para vencer os desafios. Entretanto muitos desistem por não se adaptarem ao ambiente no qual, além das diferenças raça/classe, não dispõem de outros saberes, a exemplo de uma base formativa sólida nas suas etapas iniciais do letramento escolar. Porém qualquer queixa da população negra, em relação às injustiças advindas da sua situação de exclusão, pode dar início aos discursos de ódio que minimizam a experiência e as subjetividades daquelas pessoas como se as suas falas não merecessem credibilidade. Para Figueiredo; Grosfoguel (2009), a maioria dos brasileiros admite que haja preconceito e discriminação racial no País. Paradoxalmente, essa maioria não acredita que isso afete profundamente aos que são discriminados, seja na vida escolar, nas suas expectativas de vida e nas suas chances de ascensão social, através de boas escolhas no mercado de trabalho. O racismo é visto como algo abstrato, já que ele não se concretiza em ações de segregação racial como se vê em outros países.

Ao trazer esse pensamento para o espaço universitário, os autores afirmam que ele está associado “às práticas cotidianas que desqualificam ou desestimulam a trajetória de acadêmicos negros” (Grosfoguel 2009, 229), fato que, por si, reclama a necessidade de conhecimentos maiores acerca da experiência cotidiana dos estudantes negros no espaço acadêmico tampouco da composição étnico-racial dos professores naquele mesmo espaço, já que há poucos professores negros nas universidades públicas federais. Conforme Figueiredo; Grosfoguel (2009), o magistério superior nas instituições públicas federais é um espaço majoritariamente branco. A inexistência de professores negros em alguns cursos é justificada, muitas vezes, pela ausência de inscrição de candidatos negros ou pela falta de preparo dos poucos candidatos que se submetem aos processos avaliativos, o que dificulta comprovar que as universidades praticam uma cultura racista, internalizada e reprodutora, já que, de acordo com o resultado dos processos, os negros não correspondem ao perfil do melhor candidato pelo mérito e não pela pertença étnico-racial.

Desde 2014, faço parte do quadro de docentes de uma universidade pública federal. Essa instituição multicampi, inaugurada naquele ano, está situada na região Oeste da Bahia; isso significa uma distância de 600 km da capital Salvador, lugar onde eu vivia até aquela data. Após processo avaliativo, aos 52 anos, passei a ocupar esse espaço acadêmico. A idade com que as mulheres negras datam suas conquistas também merece atenção. Essa agência significou empoderamento político no sentido do lugar de fala como professora-pesquisadora, assim como significou colocar um ponto final numa união afetiva que durou mais de 30 anos. Casamento finalizado, filho criado. Recomeçar, essa foi a palavra de ordem naquela etapa da minha vida.

Sou docente em um campus de Ciências Agrárias, faço parte da área das Ciências Humanas, ministrando aulas de Oficina de Leitura e Produção Textual para estudantes dos cursos de Agronomia e Medicina Veterinária. Esse campus está localizado no município de Barra, em sua identidade ribeirinha, isto é, ele é banhado por dois rios: o Grande e o São Francisco, o que o caracteriza como um lugar onde as desigualdades sociais são maiores e o mito da democracia social ainda persiste na sua força ilusória e opressora. No entanto, todo o meu percurso de conscientização de quem sou e do que posso fazer, enquanto mulher negra, em prol de outras subjetividades injuriadas, ajudaram-me e têm-me ajudado no acesso e permanência nesse lugar nas minhas experiências cotidianas como moradora e como docente.

Estou ciente de que ocupar esse lugar é ocupar o “lugar” do branco nessa nossa sociedade racista e sexista. No imaginário coletivo não há suspeitas sobre as habilidades da mulher negra como boa cozinheira, sambista e corpo hipersexualizado, visto que essas são características “naturais”. Entretanto, ao ocupar os lugares destinados à intelectualidade, as suas ações de sucesso são tomadas quase sempre como uma surpresa, algo que contraria as expectativas da própria comunidade acadêmica. Santos (2006) apresenta um panorama mais detalhado da trajetória de professoras e professores negros para acessar e garantir o seu lugar na docência no magistério superior. Além da questão dos cuidados com a aparência, é preciso provar aos seus superiores, aos colegas e aos estudantes que possuem capacidades cognitivas para ocupar aquele lugar, um lugar que não foi reservado historicamente para o corpo negro. Nesse sentido, Silva (2010), em sua análise sobre a participação das mulheres negras com doutorado ou mais atuantes no ensino universitário e, de acordo com o censo realizado por agências oficiais de pesquisa, observou que, em 2005, das 63.234 docentes existentes no País, apenas 251 eram mulheres negras, o que equivale a 0,4%, e dessas docentes com doutorado, sendo que 98 delas estão nas áreas das Ciências Humanas.

Com uma pesquisa mais atualizada, Brito (2017) tomou a Universidade Federal da Bahia como espaço de investigação, buscando saber onde estavam as docentes negras dessa instituição. A pesquisa geral ainda não está concluída, entretanto a autora traz os resultados de uma etapa cujos cursos escolhidos foram: Serviço Social, Ciências Sociais, História, Geografia, Filosofia, Pedagogia, Psicologia e Direito. Os resultados, transcritos, a seguir, foram obtidos considerando a interseccionalidade das categorias cor/raça:

Tabela 1

Fonte: Tabela 9 – Brito (2017) – Distribuição de professores (as) por raça/cor conforme área de conhecimento e curso. Ano 2016-2017.

Considerações finais

Diante do exposto, constata-se que, apesar dos 131 anos da abolição da escravatura, as desigualdades sociais vigentes no país são ressonâncias do abandono a que foi relegada a população negra, ao longo dos séculos, com graves consequências no correr dos anos. A maioria dos brasileiros espera viver num país no qual a saúde, a habitação, a segurança e a educação de qualidade seja realmente um direito de todos. Portanto, quando as pessoas pertencentes às camadas populares acessam, ainda com dificuldade, o ensino superior é uma prova de resistência e sobrevivência.

Particularmente, sinto-me orgulhosa e grata aos meus pais pela garantia do percurso educacional dos seus oito filhos. Todos os meus irmãos conseguiram acessar esse direito, via escola pública. Minha mãe, a certa altura, tornou-se aluna da EJA e certo dia, ao vê-la tentando ler as páginas de um livro, mesmo com dificuldade, tamanha foi a minha emoção que me escondi para que ela não visse minhas lágrimas. Com esse sentimento, ratifico a minha afinidade com aquela modalidade educacional, paradoxalmente, esperando que um dia ela não mais exista. Todos deveriam frequentar a escola na idade/série regular, todos deveriam saber utilizar a leitura e a escrita como ferramentas de acesso aos bens comuns.

.Ainda sob o signo da resistência, em outubro de 2018, numa empreitada coletiva, coordenada pelo amigo, colega de jornada, Prof. Dr. Carlos Henrique de Lucas, obtivemos, junto à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), a aprovação da pós graduação stricto sensu, de natureza acadêmica, em Ciências Humanas e Sociais para a nossa instituição, a Universidade Federal do Oeste da Bahia. Em setembro/outubro de 2019, o Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais (PPGCHS) que possui duas linhas de pesquisa: Linguagem, cultura e poder; Sociedade, Políticas Públicas e Sustentabilidade inseriu-se historicamente no cenário pedagógico, local e global, com a organização e apresentação do evento Fórum Sociedade Crítica4, com discussões e reflexões reunindo intelectuais nacionais e estrangeiros. Com muito orgulho, faço parte do quadro de docentes permanentes daquele “(...) projeto de transformação e, mais agudamente, de real incidência na vida das populações adstritas à influência da única universidade federal da região (...)”5.

Nesse meu percurso de reflexões e agências, Sotero (2012, 36) ajudou-me a encontrar o nome para o meu espaço de inserção como uma intelectual. Essa autora, em seu trabalho, destaca Patricia Hill Collins e seus estudos baseados no feminism standpoint. É o feminismo negro que acolhe o meu histórico, visto que seu objetivo é “(...) salientar a diversidade de experiências tanto de mulheres quanto de homens e os diferentes pontos de vista possíveis de análise de um fenômeno, bem como marcar o lugar de fala de quem a propõe”. Esse foi o meu propósito neste texto.

Notas

1. Encontrei minhas origens. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/11-textos-dos-autores/849-oliveira-silveira-encontrei-minhas-origens. Acesso em: 29 abril 2019.

2. Em 01 de janeiro de 2019, o candidato do PSL (Partido Social Liberal) Jair Messias Bolsonaro, 63 anos, tomou posse como o 38º presidente do Brasil, após ser eleito com 57,8 milhões de votos.

3. Na causa do silêncio, cada um de nós atrai o rosto de seu próprio medo - medo do desprezo, da censura ou de algum julgamento ou reconhecimento de desafio, de aniquilação. Mas acima de tudo: eu penso, nós tememos a visibilidade sem a qual não podemos verdadeiramente viver. Dentro deste país onde a diferença racial cria uma distorção da visão constante, não expressa, as mulheres negras, por um lado, sempre foram altamente visíveis, e assim por outro lado, foram invisibilizados pela despersonalização do racismo (Lorde 1984, 42).

4. O Fórum Sociedade Crítica (FSC) se apresenta como um espaço aberto para o pensamento e para a reflexão sobre a contemporaneidade na medida em que busca posicionar criticamente o corpus pensante da Universidade diante de temas e problemas caros aos tempos atuais.Disponível em: http://www.sociedadecritica.com. Acesso em: 04 out.2019.

5.  PPGCHS. Histórico do Curso. Disponível em: https://ppgchs.ufob.edu.br/direcao/historico-do-curso. Acesso em 29 abr.2019.

Bibliografía

1. Anzaldúa, G. 2000. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 8 (1): 229, jan. 2000. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/>. Acesso em: 18 ago. 2018.         [ Links ]

2. Brito, A. E. C. de. 2017. A balança de Efa: uma análise quantitativa de raça e gênero sobre a inserção de negros e negras no magistério superior da UFBA (2016 2017). Revista Gênero. Disponível em: http://www.revistagenero.uff.br. Acesso em: 30 ago. 2018.         [ Links ]

3. Fanon, F. 1968. Os condenados da terra. Tradução de José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

4. Figueiredo, A. e Grosfoguel, R. 2009. Racismo à brasileira ou racismo sem racistas: colonialidade do poder e a negação do racismo no espaço universitário. Revista Sociedade e Cultura, Universidade Federal de Goiás, 12 (2), jul-dez, .223-234.         [ Links ]

5. Gomes, I e Marli, M. 2018. As cores da desigualdade. Retratos: Revista do IBGE. Rio de Janeiro, (11): 15-19, maio.         [ Links ]

6. González, L. de A.1984. Racismo e sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. Anpocs, 223-24 Disponível em: https://www.academia.edu/27681600. Acesso em: 28 ago. 2018.         [ Links ]

7. Lorde, A. 2009. The transformation of silence into language. En ____, I am your sister: collected and unpublishied wrtings of Audre Lorde. Oxford: University Press 2009, 39-43.         [ Links ]

8. Munanga, K.1988. Negritude: usos e sentidos. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

9. Santos, T. J. C. dos. 2006. Professores universitários negros: uma conquista e um desafio a permanecer na posição conquistada. En Oliveira, Iolanda de (Org.). Cor e Magistério. Niterói: Quartet/ EDUFF, 157-183.         [ Links ]

10. Silva, J. da. 2010. Doutoras professoras negras: o que nos dizem os indicadores oficiais. Perspectiva. Florianópolis, 28 (1): 19-36, jun. 2010. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva. Acesso em: 12 set. 2018.         [ Links ]

11. Sotero, E. C. 2013. Transformação no acesso ao ensino superior brasileiro: algumas implicações para os diferentes grupos de cor e sexo. En Mariana Mazzini et al. (Orgs.) .Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília: Ipea, 35-53.

12. Souza, N. S. 1983. Tornar-se negro. 2da. ed. Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons