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Prohistoria

On-line version ISSN 1851-9504

Prohistoria vol.21  Rosario June 2014

 

ARTÍCULOS

Monarquia e câmaras coloniais: Sobre a comunicação política, 1640-1807*

Ronald J. Raminelli

Universidade Federal Fluminense, Brasil, e-mail: rraminelli@uol.com.br


Resumo

Estudo sobre a "comunicação política" entre a monarquia portuguesa e as câmaras do Brasil colonial. Inicialmente aborda o debate historiográfico brasileiro e, em seguida, analisa de forma quantitativa as cartas e representações das câmaras coloniais enviadas à administração metropolitana, entre 1640 e 1807. Por fim, detecta uma alteração da administração da monarquia portuguesa na segunda metade do século XVIII, responsável por diminuir o poder de negociação dos municípios.

Palavras chave: Monarquia; Poder local; Municípios; Colonia; Metrópoli.

Monarchy and Colonial Municipal Councils: On Political Communication, 1640-1807

Abstract

Study on the "political communication" between the Portuguese monarchy and municipal councils of colonial Brazil. First, it addresses the Brazilian historiographical debate, and then analyzes quantitatively the letters and representations of colonial cameras sent to the metropolitan administration between 1640 and 1807. Finally, it detects a change in the administration of the Portuguese monarchy in the second half of the eighteenth century, responsible for reducing the bargaining power of municipalities.

Key words: Monarchy; Local power; Municipalities; Colony; Metropolis.

Monarquía y concejos municipales coloniales: Sobre la comunicación política 1640-1807

Resumen

El estudio trata sobre la "comunicación política" entre la monarquía portuguesa y los concejos municipales del Brasil colonial. Primero aborda el debate historiográfico brasileño y luego analiza cuantitativamente las cartas y las representaciones de los concejos municipales coloniales enviadas a la administración metropolitana, entre 1640 y 1807. Por último, muestra un cambio en la administración de la monarquía portuguesa en la segunda mitad del siglo XVIII, responsable de reducir el poder de negociación de los municipios.

Palabras clave: Monarquía; Poder local; Municipios; Colonia; Metrópoli.


Os historiadores brasileiros ainda não exploraram a contento a relação política entre os municípios coloniais e a monarquia portuguesa. Nos estudos históricos, ora as câmaras eram subordinadas ao controle absoluto da monarquia, ora eram autônomas e capazes de estabelecer o autogoverno. Para além de vislumbrar os nexos entre a monarquia e os poderes locais, os estudos mais recentes ainda pretenderam criticar o conceito de Estado Moderno e o poder absoluto dos reis. Concebem ainda o Estado e os munícipios como forças antagônicas: ora o controle absoluto do monarca dominava os poderes locais, ora a enorme autonomia municipal era indício da frágil construção das monarquias. Apresentam, por vezes, uma visão bastante simplificada, ou mesmo dicotômica da relação entre macro e micro poderes.

Os debates em torno da dependência ou autonomia municipal se intensificaram nos anos de 1990, quando os estudiosos estreitaram ainda mais vínculos acadêmicos com a promissora historiografia portuguesa, fortalecida desde a queda do regime salazarista. Os estudos de António Manuel de Hespanha1 receberam extraordinária acolhida nos meios universitários ao defender uma concepção anti-estadualista da Idade Moderna, ao denunciar como anacrônico a noção de poder absoluto dos soberanos. No reino português coexistiam poderes e normas nem sempre orquestrados por um centro. No contexto de uma sociedade corporativa, Hespanha concebia o rei como justiceiro e cabeça do corpo social, mas dependente de diversas jurisdições que nem sempre eram harmônicas. A negociação entre o soberano e os poderes locais preservava o equilíbrio e reafirmava, por conseguinte, o rei como cabeça da monarquia. Longe de ser absolutista, ele mal controlava seus territórios centrais, permitindo às periferias o autogoverno, ou seja, a hegemonia das elites locais. Para além da nova percepção do funcionamento das monarquias na época moderna, as críticas de Hespanha forneceram munição para atacar frontalmente os modelos de interpretação do passado estribados na teoria da dependência.

Vale então remeter ao debate da história econômica até então dominado por temas vinculados ao subdesenvolvimento das economias latino-americanas. Na polêmica entre os estudiosos brasileiros, destaca-se a contribuição de Fernando Novais que recorreu ao conceito de "Antigo Sistema Colonial" para analisar os entraves à acumulação primitiva de capitais e à formação do mercado interno colonial. A escravidão e as práticas mercantilistas levadas pelo Estado Moderno português eram responsáveis pela atrofia da economia.2 Assim, a enorme capacidade de intervenção ultramarina da monarquia absolutista era responsável por verter os capitais gerados pela lavoura açucareira e minas de ouro em direção à Europa.

Percebem-se então os vínculos entre três debates. Dedicado à história econômica, o primeiro criticava estudos que demonstravam a inviabilidade da formação do mercado interno em uma economia colonial e escravista. Por conseguinte, pretendiam comprovar a acumulação de capitais por parte de comerciantes brasileiros e a existência de mercado interno.3 Com enfoque político e europeu, o segundo debate critica a concepção absolutista do Estado Moderno e comprova que a burocracia estatal, mesmo nas monarquias europeias, era incapaz de controlar o território ou fazer cumprir as leis determinadas pelo soberano.4 Por fim, o terceiro debate é um desdobramento do segundo, pois tende a ver a autonomia dos municípios, inclusive dos ultramarinos, como resultado da incapacidade do poder central de intervir nas localidades.5

Assim, entende-se melhor o motivo para a rápida aceitação dos escritos de António Manuel Hespanha entre os historiadores brasileiros, pois ele concedeu argumentos robustos para criticar tanto a teoria da dependência, como também o poder ilimitado da monarquia portuguesa sobre o ultramar. Recorrendo às suas reflexões, os estudos brasileiros passaram a criticar a teoria da dependência não somente pelo viés econômico, mas também pelo político. Assim, o Estado Moderno era incapaz de controlar seu território sem prescindir de alianças com poderes locais. Por ceder aos interesses da periferia, as elites coloniais não raro descumpriam os ditames metropolitanos. A negociação entre reis e súditos era indispensável para promover guerras, cobrar impostos e controlar as comunidades locais. Em contrapartida, as elites coloniais controlavam postos na administração, recebiam benesses da monarquia, acumulavam capitais, determinavam os preços do açúcar ou contestavam as cobranças do fisco.

Desde então, os historiadores entenderam as câmaras municipais como instituições intermediárias entre os moradores e a monarquia, canal de comunicação entre as periferias e o centro, porta-vozes das negociações com a administração régia reinol. Entre os estudiosos mais radicais, defende-se que o poder camarário era concorrente à monarquia. Ao estudar os municípios em Portugal, Hespanha defendia a efetiva autonomia dos municípios, pois a lógica interna do sistema político-administrativo monárquico não intentava substituir ao sistema local, "mas antes de, deixando-o quanto possível intacto, estabelecer instâncias "externas" de controle, segundo um modelo que a teoria administrativa recente denomina de autogoverno".6

Para além do autogoverno e na mesma perspectiva do historiador português, recentemente João Fragoso defendeu a existência de uma oposição dos municípios aos poderes do centro: "Tanto em Portugal como nas conquistas o município surgia como poder concorrente, pois os oficiais da câmara eram escolhidos por um colégio eleitoral formado por homens bons, cabendo a eles o cuidado com o bem público".7 De todo modo, o fato de a eleição para as câmaras se fazer entre a "nobreza da terra" não é suficiente para explicar a oposição explícita aos poderes do centro. Vale lembrar que os edis eram por vezes vigiados e controlados pelos oficiais régios, embora pudessem cooptar os representantes do soberano. De todo modo, a "nobreza da terra" dependia das mercês graciosamente ofertadas pelos monarcas, conforme artigo do próprio Fragoso.

Os estudos de Hespanha e de seus discípulos carecem, no entanto, de maior detalhamento, sobretudo em relação às disputas políticas camarárias. Embora fosse concreta a reduzida presença de oficiais régios nos municípios reinóis e ultramarinos, não dimensionam o jogo político entre as próprias elites regionais, tampouco as necessárias alianças entre os funcionários régios e os poderes locais. O que seria então o autogoverno? Seria a administração municipal sem nenhuma intervenção régia? No caso do ultramar, as ingerências nas câmaras por parte dos ouvidores, juízes de fora, governadores, altos magistrados e vice-reis foram amplamente documentadas. Para além destes limites, há que se atentar para a existência de tipos variados de câmaras. Por certo os oficiais da câmara de Salvador e Rio de Janeiro eram bem mais controlados pela coroa do que os de Cachoeira e Cabo Frio. Por tudo isto, considero prudentes e sábias as palavras de António Dominguez Ortiz: "... las relaciones entre el Estado absoluto y los municipios presentan una complejidad que nos induce a desconfiar de las fórmulas simplistas y las generalizaciones prematuras".8 Os estudos brasileiros, em geral, não seguem esta premissa e tratam os municípios como se fossem padronizados.

Entre os brasileiros, o tema da autonomia dos municípios não se originou da importante obra de Hespanha. Datam entre 1852 e 1854 as primeiras reflexões publicadas sobre os municípios. No Jornal de Timon,9 o historiador maranhense João Francisco Lisboa antecipou vários temas analisados somente nas últimas décadas. Em meados do século XIX, ele examinou arquivos das câmaras de São Luís e Belém para constatar que os homens bons da câmara detinham um "imenso poder político". Com ou sem o aval régio, os edis taxavam o preço da jornada dos índios, de artesãos e dos demais trabalhadores livres, ditavam ainda o valor da carne, farinha, sal, aguardentes, panos, medicamentos e produtos provenientes de Portugal. Legislavam sobre a agricultura, navegação, comércio e determinavam o preço da moeda. Permitiam o recrutamento (descimento) de índios, prendiam e punham a ferros funcionários e particulares. Por fim, "chegavam até a nomear e suspender governadores e capitães".10 Segundo Lisboa, a larga jurisdição das câmaras coloniais não tinha fundamento legal, tampouco espelhava-se na tradição das câmaras portuguesas, tidas como obedientes à monarquia, segundo de Alexandre Herculano. Assim, com a nobreza adquirida pelas armas, os oficiais das câmaras, desde o início, promoviam usurpações.

Ao invés de explicar os desmandos do poder local a partir da impossibilidade régia de exercer o governo a distância, João Lisboa responsabilizou a "habitual incúria, irreflexão e volubilidade com que procedia nos negócios das colônias", capazes de aplacar as leis superiores e a autoridade dos governadores. Por certo, o historiador apontava a distância como principal responsável pelo descaminho das leis e usurpação do poder promovido pelos oficiais da câmara. Diferentemente dos seguidores de Hespanha, ao abordar a autonomia das câmaras, o historiador oitocentista denunciava a corrupção e os crimes contra as populações. Concebia enfim, o autogoverno como contrários à monarquia, nefastos aos moradores e indígenas do Maranhão e Pará. Embora não esclareça ao leitor, a análise de João Lisboa não pretendia caracterizar a independência dos edis como resultado do pacto entre o rei e seus súditos, como aliança própria das sociedades corporativas de base católica. Os oficiais da câmara agiam, portanto, movidos por interesses particulares ao invés de defender a "república". Infelizmente, as investigações de Lisboa não tiveram prosseguimento, tampouco o conhecimento mais aprofundado da documentação municipal esteve a cargo de um historiador de ofício. Por muito tempo, os estudos históricos brasileiros tiveram caráter ensaístico, ou seja, destituídos do devido embasamento empírico.

Cem anos após João Lisboa, veio a público o estudo de Caio Prado Jr, Formação do Brasil Contemporâneo (1942) que abordou em poucas páginas e de forma diversa o tema das câmaras municipais. Embora mencione as vastas competências dos edis, como fizera o antecessor, ele enumerou as autoridades responsáveis por constantes intervenções nos negócios da câmara. Aliás, os ouvidores interferiam diretamente em "questões de pura administração municipal", pois examinavam as contas, autorizavam despesas, consentiam abatimento nos créditos e intervenções no patrimônio. Participavam das reuniões (vereanças) quando se elegiam as listas de candidatos ao posto de capitão-mor das ordenanças, disputadíssimo pelas elites locais. Se não bastasse, os governadores se imiscuíam na composição da câmara, pois proviam e davam posse aos escrivães; além de poder prorrogar o mandato do juiz ordinário e de todos os demais edis.

Os governadores e as câmaras agiam em conjunto na administração local, segundo Prado Jr. Ao invés de indicar a independência municipal, o estudo apontou a quase total subordinação dos oficiais da câmara ao governador. Eram então "mero departamento administrativo, subordinado ao governo geral e nele entrosado intimamente...". A subordinação se fazia mesmo tendo as câmaras patrimônio e finanças próprias. A autonomia econômica não viabilizava o autogoverno, mas o contrário, pois, as câmaras "funcionavam como verdadeiros departamentos do governo geral e entram normalmente na organização e hierarquia administrativa dele".11

Feito o confronto, João Lisboa e Prado Jr parecem estudar colônias distintas, pois retratam de forma antagônica a administração municipal do Brasil colonial. Ambos mantêm o tom ensaístico, característica recorrente até então dos estudos históricos brasileiros. Suas análises não se remetem à consulta de acervo documental significativo, tampouco priorizam recortes cronológicos. Retratam as câmaras sem considerar as variações temporais. Seus descompassos podem, em parte, ser atribuídos ao universo de análise compulsado. Mesmo sem mencionar as referências documentais, os estudiosos talvez tivessem abordado temporalidades distintas. João Lisboa parece tratar mais do século XVII enquanto Caio Prado concentrou suas observações sobre material empírico de fins do século XVIII. Assim, pode-se concluir que as câmaras municipais tiveram sua autonomia cerceada no século XVIII, quando se introduziram os juízes de fora, e os governadores se tornaram os principais representantes do poder monárquico e obscureceram a autonomia dos municípios.

Embora fosse estudo dedicado inteiramente às câmaras municipais do Brasil, entre 1532 e 1700, a obra de Edmundo Zenha manteve a tradição inaugurada por João Francisco Lisboa. Mesmo promovendo um recorte temporal muito inovador para a época, o estudioso teceu importantes considerações sobre a autonomia das câmaras baseadas em análises parciais, ou melhor, sem investigar a documentação dos municípios de forma mais cuidadosa e metódica. Como o historiador do Maranhão, Zenha enumerou a vasta gama de atribuições municipais e responsabilizou o localismo e a distância pela autonomia usurpada pelos edis. Controladas por proprietários de terras, as câmaras seiscentistas atuavam em defesa da produção e comércio do açúcar. Assim, contrariavam por vezes as diretrizes da monarquia.12

Sua análise se alinha bem às de João Francisco Lisboa, pois ressalta a independência e usurpação de poder por parte dos oficiais camarários. No entanto, assevera que suas conclusões estavam restritas aos dois primeiros séculos da colonização, no recorte 1532 e 1700. Para Zenha, a autonomia das câmaras municipais não perdurou por muito tempo, pois, a monarquia tratou de criar mecanismos para subtrair os poderes concentrados pelos edis entre os séculos XVI e XVII. Por certo, ele considerou como ruptura da ordem administrativa vigente a introdução do juízes de fora, magistrados, formados em leis em Coimbra, e providos por Lisboa com um mandato de três anos. Constituíam, em princípio, uma importante forma de intervenção régia no município que se somava à atuação dos ouvidores, governadores e, por vezes, dos desembargadores no caso da capitania da Bahia e Rio de Janeiro no período colonial. Desde 1696, os principais municípios coloniais tiveram a liderança dos juízes de fora, pois passaram a comandar as sessões e interferir diretamente na composição das câmaras municipais. Os juízes letrados por vezes contrariavam os interesses locais, mas poderiam, perfeitamente, se aliar aos senhores das localidades. Zenha percebeu as mudanças no funcionamento e composição das câmaras a partir de início do século XVIII. No entanto sua análise não avança até o final do período colonial.

Historiadores como Lisboa, Zenha e Caio Prado analisaram as câmaras e as conceberam, muitas vezes, de forma antagônica. Desde então os estudos ora defendem a autonomia e ora a dependência dos municípios em relação à coroa. Como o espaço deste artigo é limitado, não tratarei dos estudos mais recentes e passo à reflexão quantitativa sobre a comunicação política entre as câmaras e a monarquia.13

As câmaras na comunicação política

Como medir a autonomia das câmaras municipais? De antemão, sei que a resposta a esta indagação não obterei com facilidade. Pretendo levantar questões e duvidar da existência do autogoverno nas principais cidades coloniais, recorrendo à troca de correspondência mantida entre a monarquia e os edis. Devido à enorme massa documental, o estudo se fez pela quantificação de dados, pela análise das emissões de papéis das câmaras ao centro administrativo e, em menor escala, pela recepção de papéis provenientes de Lisboa. Inicialmente interpreto o fluxo da comunicação política a partir de suas variações temporais e em seguida incluo as temáticas tratadas na correspondência. Analiso então dois grandes eixos.

O primeiro trata da intensidade da comunicação entre os reinados de D. João IV e D. Pedro II14 (1640-1700); governo de D. João V (1701-1750); de D. José (1751-1777); de D. Maria e a regência de D. João (1778-1807). O segundo eixo da pesquisa aborda os assuntos tratados na correspondência e suas variações temporais. Em princípio, defendo que a comunicação política entre as câmaras e a monarquia se alterou ao longo desses governos tanto no âmbito numérico quanto temático. Partindo da tese de Edmundo Zenha, considero que a intervenção régia era menos intensa no primeiro corte cronológico, ou melhor, as câmaras eram mais autônomas devido às guerras de restauração e aos problemas políticos internos da monarquia entre os governos de D. João IV e Pedro II. A partir do governo de D. João V e D. José, as intervenções do centro sobre o município se intensificam devido à introdução do juiz de fora, controle das eleições camarárias e cassação de privilégios dos homens bons.15 Ficam assim delineadas as hipóteses que serão testadas a partir da comunicação política, ou seja, do fluxo da correspondência trocada entre a monarquia e as câmaras.

Em princípio, a documentação das câmaras brasileiras pode ser classificada em três tipos: 1-registros internos – compostos basicamente pelas atas da câmara/acórdãos, listas nominativas dos eleitores, livros de receitas e despesas, registros da correspondência emitida e recebida; 2-a correspondência emitida ao governador/vice-rei, monarca, ao Conselho Ultramarino e, mais tarde, às Secretarias de Estado; 3-correspondência recebida, sobretudo proveniente do centro da monarquia. Na verdade são poucas as câmaras que preservaram este rico acervo. As mencionadas séries documentais ainda existem, com lacunas evidentes, em arquivos estaduais do Maranhão, Bahia, Minas e São Paulo, como mencionado anteriormente.

 No entanto, parte valiosa desta documentação está preservada em Portugal, no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Embora também haja lá muitas lacunas, pode ser encontrada a correspondência enviada por quase todas as câmaras coloniais no período entre 1640 e 1822. Mesmo com séries muito incompletas, com base no acervo, identificam-se a frequência temporal da comunicação entre as câmaras e o centro, os assuntos tratados e os receptores dos documentos emitidos pelas câmaras.

Entre muitos temas, a COMPOL16 permite investigar a autonomia e a submissão dos poderes locais em relação à monarquia, representados aqui nas emissões das câmaras. Assim, a "comunicação política", ou seja, a troca de correspondência, entre as câmaras e os monarcas, tornou-se objeto para se analisar a negociação, a autonomia e a subordinação à monarquia dos oficiais da câmara, notadamente, dos vereadores, juízes ordinários, procuradores, escrivães e juízes de fora, entre outros membros das câmaras. Entre 1640 e 1807, as câmaras do Brasil17 emitiram 2759 papéis, composta basicamente de cartas (44%) e representações (27%). No primeiro tipo documental, as autoridades locais comumente expunham assuntos administrativos enquanto no segundo existiam pedidos individuais ou coletivos às autoridades lisboetas.  

A hipótese central desse artigo estabelece que o alto fluxo de correspondência entre as câmaras e a monarquia se fez devido à interdependência,18 aos interesses comuns ou conflitantes existentes entre as duas instâncias de poder. O município de Salvador, por exemplo, tornou-se alvo de várias intervenções da coroa, medidas aceitas, negociadas ou rejeitadas pelos edis. Tanto a resistência quanto o cumprimento das ordens régias ficaram registradas nas cartas e representações emitidas pelas câmara. Em compensação, as câmaras pobres, localizadas em áreas remotas e despovoadas, pouco enviavam correspondência ao centro. Aliás, a monarquia não tinha interesse de intervir na sua economia e política. Por isso, elas eram bem mais autônomas e capazes de estabelecer o autogoverno. Tal hipótese se sustenta para os dados referentes ao período entre 1640 e 1750.

A partir do governo de D. José, as principais câmaras reduziram paulatinamente o número de papéis remetidos ao centro. À época, a configuração política se alterou e as intervenções do centro ficaram mais intensas, sobretudo no controle militar, fazendário e judicial. O grande desafio deste artigo é explicar a queda da correspondência emitida e recebida pelas câmaras ocorrida a partir de meados do século XVIII. Não considero que a retração do intercâmbio de cartas resultasse da crescente autonomia dos municípios. Prefiro explicar o fenômeno a partir de uma mudança na administração e na comunicação política entre o centro e as periferias.     

Analiso as emissões camarárias de capitanias centrais (Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais) e das periféricas à economia colonial (São Paulo e Maranhão).19 Frequentemente as vilas e cidades ultramarinas enviaram papéis aos monarcas, ao Conselho Ultramarino e à Secretaria de Estado de Negócios da Marinha e Ultramar. As demais urbes, ausentes da base dados, não foram aqui computadas. De todo modo, acredito que está incluída na análise a quase totalidade dos núcleos urbanos das mencionadas capitanias. Entre 1640 e 1807, nos documentos do AHU, encontram-se emissões de 35 câmaras da capitania de São Paulo, 25 da Bahia, 22 de Minas Gerais, 15 do Rio de Janeiro e 5 do Maranhão.20 Por certo, esse desequilíbrio dificulta a análise do fluxo de comunicação, como se verá em seguida. Neste sentido, a capitania de São Paulo não estava vinculada ao comércio atlântico, desenvolvia atividades econômicas ligadas ao abastecimento interno, mas reunia muitos municípios. Na capitania do Rio de Janeiro as características eram opostas, pois tinha poucas câmaras, mas atuava como o centro comercial importante no Atlântico sul, sobretudo a partir do século XVIII. Assim, a importância econômica nem sempre explica o grande fluxo da correspondência em direção ao centro, sobretudo na virada do século XVIII para o XIX.

Para explicar a quantidade de câmaras por capitania, recorro a três variáveis: a antiguidade da colonização, a extensão territorial e a expansão urbana promovida pela atividade mineradora. Dentre as capitanias em estudo, São Paulo e Bahia são as mais antigas e com maior número de câmaras; na primeira, o povoamento começou nas décadas iniciais do século XVI enquanto na segunda os primeiros moradores se instalaram a partir da fundação de Salvador em 1549.21 O rápido crescimento do número de câmaras em Minas Gerais vincula-se, por certo, às descobertas auríferas. A corrida do ouro incentivou a forte imigração, iniciada nas primeiras décadas do século XVIII.22 A colonização do Rio de Janeiro data de fins do século XVI, mas aí não se proliferaram as câmaras. Por certo o número reduzido vincula-se à particularidade de seu território, bem inferior às demais. Vale ainda mencionar que suas principais atividades econômicas e povoamento se restringiram, por muito tempo, aos arredores da cidade do Rio de Janeiro.23 Talvez fossem estes os motivos para existência de um número menor de municípios em relação à capitania de São Paulo e Minas. No Maranhão, fundaram-se igualmente poucas câmaras. Lá o povoamento português sempre foi insipiente e muito restrito a São Luís. Aliás, o crescimento populacional teve um significativo aumento somente nas últimas décadas do setecentos com a expansão das lavouras de algodão.

Na América portuguesa, embora houvesse um número razoável de câmaras, poucas emitiram com frequência ao centro, ou seja, somente os municípios cabeça da capitania mantiveram correspondência ativa com o monarca e seus conselhos desde 1640. No século XVII, a câmara de Salvador teve grande predomínio nas emissões ao centro a partir da capitania da Bahia. A mesma tendência encontra-se no Maranhão, não somente no século XVII, mas em quase todo o século seguinte. Assim, entre 1640 e 1777, os municípios que mais se destacaram, por capitania, na comunicação com o centro são uns poucos: Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, São Luís e Vila Rica.

Segundo a tabela 1, a tendência geral para todo o período é o declínio da correspondência enviada dos municípios ao centro, embora São Luís não siga esta tendência. Para a cidade de Salvador e São Paulo, a diminuição do fluxo é nítido enquanto para o Rio de Janeiro ele somente se verifica a partir do governo pombalino (1751-1777), mas teve ligeiro aumento no recorte seguinte. Em Vila Rica a crise aurífera e endividamento dos colonos intensificaram as emissões de cartas e representações ao governo central, mas depois da inconfidência de 178924, este canal de comunicação declinou drasticamente.  

Tabela 1: Emissões das principais câmaras (média anual)

 

1640-1700

1701-1750

1751-1777

1778-1807

Total

Salvador

141 (2,4)

45 (0,9)

51 (2)

15 (0,5)

257

Rio de Janeiro

98 (1,6)

165 (3,3)

55 (2,1)

66 (2,3)

494

São Paulo

02 (0,0)

84 (1,7)

33 (1,3)

17 (0,6)

143

São Luís

17 (0,3)

54 (1)

14 (0,5)

36 (1,2)

128

Vila Rica

00 (00)

115 (2,3)

72 (2,8)

09 (0,3)

201

Fonte: Compol

Em suma, entre 1778 e 1807, nas principais câmaras, verificou-se a queda das emissões. Desde então, Vila Rica e São Paulo, por exemplo, passaram a enviar papéis tanto quanto as câmaras menores que antes tinham participação muito acanhada na comunicação. No período ocorreu a descentralização das emissões endereçadas a Lisboa. A participação de maior número de municípios na comunicação política é evidente em São Paulo (com 35 câmaras) e na Bahia (25), porém quase inexistente nas capitanias do Rio de Janeiro (15) e Maranhão (5). Como não contavam com muitas vilas, as duas capitanias mantiveram a cabeça como principal emissor de papéis ao centro, ou melhor, a cidade do Rio de Janeiro e São Luís lideraram com folga as emissões em todo período estudado. A primeira teve o controle sobre 76% e a segunda 64% das emissões camarárias de suas respectivas capitanias, enquanto Vila Rica emitiu apenas 25% do total.

Desde de 1711, data da primeira emissão, as câmaras mineiras escreveram intensamente ao centro e simbolicamente elegeram o rei como seu principal destinatário. Para além de Vila Rica, as emissões originavam-se das câmaras de Mariana (Vila do Carmo), São João Del Rei, Sabará e Vila Nova da Rainha. Em relação à última câmara, vale mencionar a constância de suas emissões, pois no governo de D. João V enviou 12 cartas, no de D. José 17 e no de D. Maria 18. Tal frequência não se viu nas emissões de Vila Rica, principal núcleo urbano mineiro. Aí as emissões são irregulares e decrescentes. Seguindo o recorte cronológico anterior, verificam-se 115, 72 e 9 cartas, ver tabela 1. Por certo, o declínio das minas interferiu nestes números.

Por que então os homens bons de Vila Rica diminuíram drasticamente a comunicação com o centro? Em fins do século XVIII, as elites mineiras perderam interesse de atuar no município ou encontraram outro locus para fazer política? O declínio das emissões, porém, não era uma particularidade de Vila Rica. Na vila de São Paulo a tendência é a mesma e os números da emissão são os seguintes: no governo de D. João V 84, D. José 33 e D. Maria 17 (tabela 1). O fenômeno não se repete com a mesma nitidez em Salvador que teve o seguinte fluxo de emissões: 45, 51 e 15. Ali a queda é mais acentuada no final do período, mas de todo modo a curva é descendente. A tendência segue entre as principais câmaras e aponta talvez para uma alteração da comunicação política. 

Vale então mudar o enfoque. Se antes analisei as vilas e cidades, passo agora às capitanias, ou seja, aos municípios que faziam parte de cada capitania. Com tal abordagem, comprova-se que a emissão das câmaras mineiras é singular. Embora aí os municípios fossem fundados na primeira metade do século XVIII, desde o início eles remeteram anualmente muitas cartas e representações aos poderes do centro. Em nenhuma capitania as câmaras emitiram tanto ao longo do período colonial. Para além do volume, percebe-se uma melhor distribuição das emissões por municípios.

Tabela 2: Emissões das câmaras por capitanias (média anual)

Tempo

Bahia

Rio de Janeiro

Minas        

São Paulo

Maranhão

Total

1640-1700

166 (3)

103 (2)

00

05 (0,0)

23 (0,4)

297 (5)

1701-1750

85 (2)

211 (4)

340 (6,8)

159 (3)

62 (1)

857 (17)

1751-1777

92 (3,5)

85 (3)

309 (12)

80 (3)

21 (1)

587 (22)

1778-1807

49 (2)

107 (3)

140 (5)

128 (4)

82 (3)

505 (17)

Totais

392

499

789

372

188

2246

Fonte: COMPOL

Na tabela acima formaram-se dois blocos: as capitanias centrais e periféricas. Nas centrais (Bahia, Rio de Janeiro e Minas), a tendência é o declínio das emissões enquanto nas periféricas (São Paulo e Maranhão) a tendência é oposta, com ligeiro aumento dos envios a partir do último quartel do século XVIII. Verifica-se aqui uma transformação da comunicação política, caracterizado talvez pela retração da capacidade de negociação das câmaras centrais. Como indaguei anteriormente, as elites camarárias da Bahia, Rio de Janeiro e Minas perderam o poder de lutar por seus interesses? Ou a monarquia elegeu outro canal para administrar o ultramar que prescindia das câmaras.

A partir da apresentação de tantos números, retomo ao tema do autogoverno. Passo então a refletir sobre a relação entre a autonomia municipal e a comunicação política. Em princípio, o autogoverno não se submeteria às intervenções da monarquia. Seria então lógico que as câmaras autônomas não mantivessem estreitos vínculos com o monarca, ou melhor, enviassem e recebessem poucas notícias provenientes da administração central. Devida à baixa troca de correspondência, evidentes nas tabelas 1 e 2, as câmaras periféricas eram mais independentes e capazes de administrar seu pequeno patrimônio sem maiores intromissões da administração metropolitana. Na capitania da Bahia, por exemplo, a câmara de Maragogipe era certamente menos vigiada pela coroa do que a de Salvador, ou seja, o autogoverno municipal era mais viável nessa pequena vila do que na capital do Estado do Brasil.

A seguir este raciocínio, seriam mais autônomas as câmaras periféricas, como as capitanias de São Paulo e Maranhão. Seriam mais controladas e demandantes Salvador, Rio de Janeiro e Vila Rica. A hipótese se confirma quando se verifica a escassa emissão das câmaras menores, ou quando se compara os papéis enviados pelo Rio de Janeiro (381) e pela Vila de Campos dos Goitacazes (10), ou entre São Paulo (136) e Santos (36), para todo o período analisado. No século XVII, a câmara de Salvador emitiu 141 documentos do total de 166. A mesma preponderância verifica-se no Maranhão. Embora não disponha de comprovação empírica, talvez as câmaras menores estivessem na órbita das sedes de cada capitania, ou seja, Maragogipe fosse mais dependente da elite camarária de Salvador do que dos conselhos do rei em Lisboa.

A troca intensa de correspondência pressupõe interdependência, negociação, entre o monarca e as elites locais. Certamente os pedidos de mercês e as reações camarárias contrárias às imposição da coroa resultavam em aumento da correspondência. O grande fluxo de papéis entre o monarca e as câmaras indica ainda a importância das câmaras e capitanias no âmbito da monarquia portuguesa. No entanto, na tabela 2, esta tendência não está clara, pois as capitanias de Minas e São Paulo possuíam muitos municípios que passam a participar das emissões ao centro a partir da segunda metade do século XVIII. Capitania periférica na economia colonial, São Paulo tem emissões que se assemelham à Bahia. De todo modo, mesmo com número mais reduzido de câmaras, Bahia e Rio de Janeiro têm, no cômputo geral, participação intensa no envio de cartas e representações ao centro. Sendo assim, as duas câmaras mais importantes mantiveram trocas intensas de informações com a metrópole.

Curiosamente, as câmaras da Bahia, notadamente Salvador, escreveram exclusivamente aos monarcas, ou seja, não recorriam à intermediação do Conselho Ultramarino. Por certo, não era o soberano a instância única de análise de pedidos e resolução de querelas, mas o fluxo da correspondência se fazia em nome do rei. Simbolicamente, o monarca atuava como centro de decisão, como a instância superior para resolver conflitos e difundir normas.

Entre 1640 e 1807, é incontestável a centralidade do rei na comunicação política das câmaras em análise.

Ao longo do tempo, o aumento e a diminuição da emissão de papéis traduzem ainda o maior ou menor interesse da coroa de controlar as áreas sob a sua soberania. Acredito que o envio de cartas e representações camarárias era uma reação às intervenções da monarquia, ou ainda buscas de apoio do centro para a resolução dos conflitos locais. Os oficiais das câmaras escreveram aos monarcas para pedir privilégios, demandar recursos e provimentos de oficiais, reclamar do fisco, apontar conflitos de jurisdição e denunciar procedimentos equívocos de governadores e ouvidores. As intervenções régias estimulavam as emissões camarárias em apoio ou contestação da política régia em relação ao fisco, defesa, justiça, concessão de privilégios e cargos, entre outros temas. A intensa correspondência estava vinculada à importância política, militar e econômica das vilas e cidades no âmbito imperial. Enfim, o aumento das emissões demonstra a interdependência entre centro e periferias, fenômeno bem visível até o fim do governo de D. José.

Em Salvador, durante o século XVII, os oficiais trataram com grande destaque dos temas ligados ao comércio, navegação, economia e fiscalidade, juntos somam 40% do total de emissões. Entre as últimas a fiscalidade tem um grande peso, ou seja, tem quase a metade dessas emissões dedicadas à vida econômica da cidade. Esse conjunto documental, sem sombra de dúvidas, nos remete à negociação, aos conflitos de interesses entre a coroa e o ultramar. Os oficiais pediram parte dos subsídios dos vinhos para as despesas da câmara com obras públicas, solicitaram, em seguida, a redução do imposto sobre o vinho e atacaram a extinção das bebidas da terra (cachaça). Os edis ainda contestaram o estanco do sal, a contribuição para a construção do cais de Viana do Castelo e as isenções da contribuição concedidas aos fidalgos, oficiais de guerra, desembargadores e oficiais da Fazenda Real. Para justificar o pedido, eles alegaram que estes privilégios sobrecarregavam o povo. Apresentaram ainda uma lista de militares reformados e reivindicam que a câmara não lhes pagasse tributo por onerar muito aquele povo. Denunciaram os inconvenientes de se empregar os papéis selados e enumeraram a quantidade de açúcar e pau-brasil remetidos na frota por conta do dote da rainha da Grã-Bretanha e da paz com a Holanda, "queixando-se de que pela miséria em que aquele povo se acha, não poderá contribuir a cada ano, com mais de 40.000 cruzados". Enfim, ao longo do século XVII, os oficiais da câmara de Salvador apresentavam somente aos monarcas uma longa lista de reivindicações.25

As câmaras do Maranhão emitiram muito pouco durante o seiscentos (23 emissões). Embora os assuntos fossem variados, destacam-se a mão-de-obra indígena com 30% do total e os assuntos militares. O primeiro aborda justamente a necessidade de se estabelecer preços justos para os escravos vindos do sertão e de se fazer deslocamentos de aldeias indígenas para suprir as demandas das plantações de açúcar.26 Por certo, estas seriam as principais reivindicações que os homens bons da câmara faziam ao monarca e ao Conselho Ultramarino para viabilizar a economia em terras maranhenses, sobretudo depois da libertação do jugo neerlandês. As emissões dedicadas à guerra abordaram os embates contra os invasores do norte e seus posteriores desdobramentos. Enfim, as câmaras ultramarinas recorreram aos canais de comunicação com o centro para pleitear melhores condições para o "povo" da Bahia e para os proprietários de terras do Maranhão, dependentes do fornecimento dos braços indígenas.

Conforme a tabela 2, a prosperidade da primeira metade do século XVIII impulsionou o fluxo da comunicação política nas capitanias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. No centro sul da América portuguesa, o aumento da correspondência estava intimamente vinculado às descobertas de ouro, aumento do comércio, controle da fiscalidade, demandas de privilégios e nomeação de cargos. Na capitania de Minas Gerais, entre 1701 e 1750, os provimentos de ofícios camarários dominaram a grande maioria da correspondência enviada a Lisboa, com 85 emissões. Os assuntos camarários (a administração interna das câmaras) e econômicos têm respectivamente 67 e 52 emissões. Como provimento de ofício, existem a nomeação para cargos na câmara, requerimentos para pedir o posto e para solicitar prorrogação do exercício. Os ofícios se destacam pela diversidade, pois existem referências aos juízes dos órfãos, inquiridores, escrivães, tabeliães, entre outros. Por certo, o período de prosperidade das minas de ouro atraiu um número significativo de candidatos, brasílicos e reinóis, para ocupar postos. Vale também mencionar que nos anos de 1760, quando ocorreu o declínio da arrecadação do quinto e da produção de ouro, os requerimentos para exercer ou prorrogar o exercício de funções camarárias tiveram uma drástica redução. 

Embora o Maranhão tivesse poucas câmaras e ainda não estivesse submetido ao impulso econômico que sua agricultura terá mais tarde, suas emissões também tiveram um importante crescimento. Elas remeteram ao reino 62 papéis, sendo 51 para o monarca e apenas 3 para a Secretaria de Estado, onde existem referências ao governador e às ordenanças.27 Como em Salvador seiscentista, a correspondência camarária aumentou e se dirigiu quase que exclusivamente ao rei. O mencionado padrão se repete para as câmaras de Minas Gerais que também escolheram o soberano como principal direção de sua correspondência. Com o declínio do Conselho Ultramarino, evidenciado pelo número reduzido de correspondência recebida, percebe-se o fortalecimento dos laços entre as câmaras e o soberano, tendência comum a todo período analisado.

À época nas câmaras do Maranhão, a correspondência se ateve mais a temas econômicos (15), ao comércio, navegação e fiscalidade. Assim, dos oficiais camarários o soberano recebia pedidos para se introduzir na capitania moedas de ouro e prata, para se observar a lei quando se tratava do valor dos panos de algodão, lá empregados nas trocas comerciais. Devido à falta de escravos e moedas, os oficiais reclamavam ainda da decadência do Estado e consideravam prudente a separação entre o Maranhão e o Pará.28 Para além das mazelas da economia, existem várias cartas dedicadas aos assuntos do governo camarário (8).

Na primeira metade do século XVIII, dobrou o número de emissões das câmaras do Rio de Janeiro, endereçadas com quase exclusividade ao monarca. A urbe vivia o tempo de grande prosperidade, com crescimento da malha urbana impulsionado pelo ouro e pelo comércio, ver tabela 2. Entre as 211 emissões da capitania, 165 eram emitidas pela câmara do Rio de Janeiro. Do total, 60 reportavam ao rei temas da administração local, assuntos internos das câmaras e do governo da cidade. Endereçadas a D. João V, as cartas pediam privilégios para os "principais da terra", elogiavam o governador, solicitavam castigo para os comerciantes contrários às normas, recorriam às ordens régias para promover obras nas muralhas, permitir a expansão das áreas urbanas, fazer obras na câmara, recuperar fortalezas e pagar aluguel de prédios para instalação do juiz de fora e almotacéis.29 O predomínio de assuntos da administração do senado e da cidade na correspondência com o monarca demonstra, mais uma vez, a inconsistência da tese dedicada ao autogoverno das câmaras. Na mesma conjuntura existem notícias, em número bem inferior, sobre os conflitos com os governadores e ainda reclames sobre o pagamento de subsídios, donativos e estancos.30

Para todo o período, as emissões da câmara dedicadas à administração local se destacaram em todas as capitanias. Os assuntos camarários e a governação eram 17% e 10% respectivamente da correspondência. Assim os temas do governo interno da câmara, do gerenciamento das urbes e da relação entre a câmara e as demais instâncias do poder (governador, vice-rei, ouvidor...) perfaziam 27% dos requerimentos enviados ao soberano. Vale ainda mencionar que os pedidos de privilégios e provimentos de ofícios eram respectivamente 6,5% e 9% das emissões, enquanto a fiscalidade e a economia contavam juntas com 14%. Assim, os assuntos do cotidiano das vilas, a súplica por postos e privilégios eram constantemente remetidos a Lisboa e ocupavam mais a agenda desta comunicação do que as resistências e contestações às ordens e aos funcionários régios.

Entre 1701 e 1750, registrou-se o maior número de emissões ao soberano. A tendência é constante nas cinco capitanias. De fato as intervenções do governo joanino não intimidaram os oficiais das câmaras a negociar com os poderes do centro, mas, ao contrário, estimularam a comunicação política. A introdução do juiz de fora e a modificação das eleições nas principais vilas e cidades não diminuíram o fluxo da correspondência. Edmundo Zenha considerou o período como "canto do cisne" da autonomia das câmaras coloniais. Os números não demonstram declínio da capacidade de negociação das câmaras, mas o aumento da interdependência entre os poderes locais e a coroa. No entanto, Zenha não estava de todo sem razão, pois as emissões das câmaras no século XVII indicam que os assuntos econômicos (comércio, navegação, economia, escravidão e fiscalidade) eram preponderantes em relação aos administrativos (assuntos camarários e governação). A partir do governo de D. João V, as câmaras enviaram ao soberano com mais frequência questões diretamente vinculados ao funcionamento do senado e do cotidiano das cidades.

Entre 1751-1777 o fluxo da comunicação se manteve crescente, embora na capitania do Rio de Janeiro ocorresse uma queda enquanto na Bahia a tendência é oposta, ver tabela 2. Para o período anterior (1701-1750) a primeira capitania enviava cerca de 4,2 requerimentos por ano, no período seguinte caiu para 3; a segunda emitia 1,7 papéis por ano e passou para 3,5. Nesta conjuntura ocorreu a transferência da capital do Estado do Brasil de Salvador para o Rio de Janeiro.31 Talvez o aparato administrativo dos vice-reis e a instalação do Tribunal Relação (instância superior de justiça) competissem com a câmara do Rio de Janeiro como intermediários entre as elites locais e o monarca. Para as demais capitanias a tendência foi de aumento do fluxo, mas vale destacar as emissões das câmaras de Minas Gerais. Lá o fluxo quase dobrou, impulsionado pelos declínio da produção de ouro e do estabelecimento da derrama, ou seja, os temas econômicos e fiscais dominaram a correspondência.

Ainda conforme a tabela 2, as emissões das câmaras da Bahia, Rio de janeiro e Minas sofreram um nítido declínio entre 1778 e 1807, enquanto em São Paulo e Maranhão tiveram um pequeno aumento. Com a pesquisa em seu início, não se sabem ainda os motivos para se comunicar tão pouco com o centro nos últimos anos do período colonial. Para explicar, há que se aventar algumas hipóteses que, até o momento, não puderam ser comprovadas recorrendo somente à quantificação de dados. De todo modo, verifica-se que o declínio das emissões é mais nítido em São Paulo e Vila Rica. Se a diminuição das emissões da principal núcleo urbano mineiro seguiu o fluxo da capitania de Minas Gerais, o mesmo não aconteceu com a vila de São Paulo, onde as emissões declinaram e contrariaram o ritmo total das demais câmaras da mesma capitania. Lá dezenas vilas menores passaram emitir ao centro, no período pouco anterior à independência.  

Declínio da comunicação

Não é surpreendente que as câmaras centrais se comunicassem com mais intensamente com a coroa e seus conselhos. O grande fluxo da correspondência estava vinculado não somente à qualidade, ou mesmo à fidalguia, dos oficiais camarários, mas também ao alto número de cargos municipais existente nos principais centros urbanos. Percebe-se ainda que a variedade de postos é proporcional aos recursos manipulados pelos edis. Ou seja, quanto mais próspera era a vila ou cidade, mais funcionários emitiam correspondências e intensificavam o fluxo da comunicação política. Acredito que as câmaras fidalgas teriam mais contatos na administração central e, portanto, mais capacidade de negociar e enviar requerimentos. Vale ainda mencionar que existe relação direta entre o fluxo da comunicação e a prosperidade econômica das cidades e capitanias. Em conjunturas de crescimento econômico, verifica-se não somente o aumento de correspondência dedicada a normatizar o comércio, navegação, sesmarias e a economia de modo geral, como também emissões e recepções dedicadas à fiscalidade e fazenda. O aumento do fluxo ainda estava vinculado aos conflitos, jurisdicionais ou não, entre os oficiais das câmaras e vice-reis, governadores, ouvidores e mesmo juízes de fora ultramarinos, disputas minuciosamente descritas e emitidas a Lisboa.

Assim, a intensa comunicação entre Vila Rica e os monarcas não é nenhuma novidade, mas surpreendo-me quando, entre 1778 e 1807, as suas emissões se tornam inferiores às da câmara de Vila Nova da Rainha, pequeno núcleo urbano sem a mesma força política. Nesta mesma conjuntura, as câmaras de Minas e Bahia se comunicaram com menos intensidade com a coroa. No Rio de Janeiro, em princípio, não ocorreu alteração significativa, pois emitiu 107 cartas e manteve a média anual de papéis enviados ao monarca e à Secretaria de Estado (tabela 2). No entanto, verificou-se aqui um fenômeno excepcional, pois 39% destas emissões foram feitas pelo juiz de fora Baltazar da Silva Lisboa. Entre 1788 e 1793, muitas vezes movido por questões particulares, o juiz entrou em choque com os vice-reis, magistrados do Tribunal da Relação e oficiais da câmara. Para aumentar seu prestígio e angariar apoio, escrevia a Martinho de Mello e Castro, poderoso Secretário de Estado. Sua correspondência inflacionou as emissões da câmara32. Por conseguinte, acredito que também no Rio de Janeiro ocorreu uma queda nas emissões camarárias.

O aumento da comunicação política ocorreu no Maranhão e São Paulo, capitanias periféricas que até então participavam pouco da troca de correspondência entre câmaras e o centro administrativo. Em fins do séculos XVIII, impulsionado pelo crescimento agrícola e comercial, na capitania do Maranhão, ocorreu um aumento notável da comunicação política promovida pelos governadores, militares, particulares, representantes da igreja, justiça e fazenda. Entre 1640 e 1807, a capitania emitiu e recebeu 2775 papéis. No entanto, 60% de toda a correspondência data do período entre 1785 e 1795, quando circularam 1671 papéis, mas somente 51 provinham dos edis. Por certo o aumento total do fluxo também promoveu aumento das emissões das câmaras. Esse quadro não se repete nas outras capitanias no mesmo período. Em São Paulo, a dinâmica das emissões camarárias é diversa. Lá não era o crescimento econômico o principal incentivo para intensificar a comunicação política. Nessa conjuntura, o número de câmaras que emitiam ao centro teve aumento notável, ou seja, muitos núcleos urbanos pequenos passaram a enviar cartas e representações aos monarcas e aos secretários. Na vila de São Paulo, porém, as emissões declinaram, tendência observada com nitidez em Vila Rica e Salvador (tabela 1).

A autonomia municipal pressupunha vínculos mais fracos com a monarquia, a exemplo das pequenas câmaras que, ao longo do período colonial, pouco emitiram ao soberano. Tampouco a monarquia tinha interesse de aí intervir. Se houve autogoverno, ele funcionou em câmaras como Magé, Cametá, Icatu, Angra dos Reis, entre outras localizadas no sertão ou em áreas remotas. Então surge a pergunta: se nas câmaras principais a troca de papéis declinou, ficaram elas mais independentes do centro? Acredito que não. Sobretudo no século XVIII, a administração metropolitana não permitia a autonomia dos principais polos políticos da América portuguesa. Aliás, entre 1785 e 1795, momento de grande instabilidade política provocada pelos rumores revolucionários, não era possível que se instalassem autogovernos em Vila Rica, Salvador e Rio de Janeiro. Por certo, nesse momento, ocorreu uma alteração da comunicação política entre a monarquia e os súditos que não mais priorizava as elites camarárias.

Para avaliar esse paradoxo, a diminuição de emissões das câmaras mais poderosas do Brasil, verifiquei na base de dados as emissões dos governadores e vice-reis a partir do período pombalino (1750-1777) e constatei um aumento extraordinário de suas emissões direcionadas à Secretaria de Estado de Negócios da Marinha e Ultramar. Segundo Caio Prado, as câmaras funcionavam como departamentos, ou seja, submetidas ao governo geral das capitanias33. Não concordo inteiramente com a tese, mas os testemunhos indicam que as elites camarárias perderam a capacidade de negociar ao longo do setecentos. Desde os primeiros regimentos, os governadores sempre tiveram como função escrever relatórios, narrar os acontecimentos e atuar como intermediários entre as conquistas e os monarcas34. No entanto, a correspondência emitida pelos governadores teve aumento significativo na Bahia, Minas, São Paulo e Maranhão, sobretudo a partir de meados do século XVIII (ver tabela 3).

Tabela 3: Emissões dos governadores e vice-reis (média anual)

 

1735-1736

1755-1756

1763-1764

1785-1795

capitanias centrais35

196 (98)

229 (114)

261 (130)

1059 (96)

capitanias periféricas

33 (16)

 37 (18)

45 (22)

567 (51)

Total

229 (114)

266 (133)

306 (153)

1626 (147)

Na base COMPOL, as emissões dos governadores e vice-reis apresentam limites cronológicos diferentes quando comparados à correspondência expedida pelas câmaras. Mesmo com temporalidades diversas, ao comparar as tabelas 1, 2 e 3, visualizam-se duas tendências: movimento decrescente para o fluxo de papéis remetidos pelas câmaras e crescente para as remessas dos governadores e vice-reis. No período pombalino, a participação dos governadores/vice-reis é ainda mais nítida. Entre 1755-1756 e 1763-1764, os governadores/vice-reis alcançaram a marca de 130 emissões ao ano nas capitanias centrais - Bahia, Minas e Rio de Janeiro. Nas periféricas - Maranhão e São Paulo - o volume anual chegou a 22. Assim, onde o declínio da comunicação política das câmaras era mais evidente, os governadores/vice-reis tiveram participação mais ativa. No último recorte cronológico, durante o governo de D. Maria, o envio de correspondência ao centro diminui nas capitanias centrais e aumentou de forma extraordinária nas periféricas. No entanto, há que se destacar que das 567 emissões do período, 506 são referentes aos governadores do Maranhão (tabela 3). Conforme explicação anterior, 60% de toda a documentação da capitania se concentra neste período. 

Assim, exceto no Rio de Janeiro, os governadores passaram a se comunicar intensamente com o centro. No entanto, é pouco provável que houvesse declínio da comunicação política promovida pelos vice-reis, notado a partir do biênio 1763 e 1764, quando o Rio de Janeiro se tornou capital do Estado do Brasil. Por certo a única explicação plausível para a queda das emissões é a perda ou desvio da correspondência entre os vice-reis e a coroa. No governo dos vice-reis Luís de Vasconcelos e Sousa e do Conde Resende, as emissões são muito irregulares, variando entre 3 emissões por ano (1790) a 52 (1795). A lacuna documental fica mais evidente quando se constata que no biênio 1789 e 1790, tempo da repressão à Inconfidência mineira, o vice-rei envio correspondência ao centro somente 17 vezes.

Estou certo que o declínio da comunicação política das principais câmaras não ocorreu impulsionado pelo autogoverno. Desde o reinado de D. José, talvez o monarca e os secretários de Estado tenham intensificado os contatos com os governadores/vice-reis e os elegeram interlocutores privilegiados. Por isso, eles arrefeceram a comunicação com as elites camarárias. Partindo deste pressuposto, ocorreu uma alteração da comunicação política. Cada vez mais centralizada, a política colonial provocou a diminuição do poder de negociação das câmaras e a consequente queda das trocas de papéis com a monarquia.

A hipótese torna-se mais plausível quando analiso a correspondência enviada às câmaras, ou seja, a comunicação em direção invertida; antes da câmara ao centro e agora do centro às câmaras. Aliás, na América portuguesa, os testemunhos desta comunicação somente se preservaram, de forma substancial, para o Rio de Janeiro. Para ter alguma comparação recorro à base COMPOL, aos dados da câmara de Évora, Viana do Castelo e Faro. Junto a Lisboa e Porto, a primeira cidade tinha das mais importantes municipalidades do reino entre os séculos XVII e XVIII. Parte-se então do princípio que Évora e Rio de Janeiro eram destaques na monarquia portuguesa. A tendência pode ainda ser avaliada nos documentos referentes às demais câmaras presentes na base de dados. A análise de seus fluxos da correspondência permite, por conseguinte, vislumbrar as transformações da comunicação política nos últimos anos do Antigo Regime. 

Tabela 4: emissões do centro* para as câmaras (média anual)

 

Rio de Janeiro

      Évora

Viana

Faro

1600-1700

96 (1)

     790 (12)

           169 (3)

196 (3)

1701-1750

31 (0,6)

     403 (8)

212 (4)

313 (6)

1750-1807

10 (0,1)

     318 (5)

301 (5)

265 (4)

* Conselhos, Desembargo do Paço, Monarca, Rainha e Secretarias
Fonte: Compol

Conforme a tabela 4, os papéis provenientes do centro diminuíram em três pontos bem diferentes da monarquia. Para o Rio de Janeiro e Évora, a correspondência proveniente de Lisboa tratava sobretudo de assuntos econômicos e, em seguida, dos assuntos da administração local para a primeira câmara e justiça para segunda. O Conselho Ultramarino era o principal emissor ao Rio. Em seguida, com número de correspondência bem inferior, vinha o monarca. Para Évora existia mais equilíbrio das remessas do monarca e do Desembargo do Paço.

Para além da prestigiosa câmara portuguesa, vale mencionar que a correspondência enviada a Faro e Viana tratava das patentes de governadores, capitães-mores, mestres de campo, sargentos-mores, entre outros militares que atuavam nestas localidades. Os provimentos da fazenda mencionam as alfândegas, almoxarifes, meirinhos e almotacés. Os provimentos da justiça e polícia abordam as petições, nomeações de escrivães, juízes de fora e alcaides. De todo modo, os temas dos papéis têm pouca importância na presente análise. O relevante na tabela 4 é o ritmo crescente da comunicação política da câmara de Viana do Castelo, que destoa de todas as demais, exceto da de São Luís do Maranhão (tabela1), no que se refere ao envio de cartas e representações camarárias. Essa particularidade necessita de investigação mais aprofundada, fica aqui delimitado um novo tema pesquisa.

A correspondência recebida pelo Rio de Janeiro, Faro e Évora reforçam a tese de uma alteração da comunicação política entre a monarquia e os poderes municipais. Para o ultramar, essa alteração coincide com o aumento dos papéis enviados pelos governadores/vice-reis. O mesmo não se pode afirmar quando se trata dos municípios reinóis. A investigação deve prosseguir para explicar as razões para o declínio da comunicação entre o centro e as municipalidades reinóis. 

Em hipótese, acredito que a administração colonial tornou mais centralizada e arrefeceu o diálogo do centro com os poderes locais. Com a nova configuração36 do poder, a comunicação política entre o centro e as câmaras perdeu força. A partir do governo de D. José, a tendência centrípeta não era uma novidade, sobretudo quando se conhece a retração dos conselhos régios e a difusão dos secretários de Estado. O mesmo fenômeno se verificou no ultramar, ou seja, a perda de prestígio dos municípios e o fortalecimento das decisões tomadas pelos governadores/vice-reis. No entanto, vale mencionar que as tendências verificadas na quantificação são parte inicial de uma pesquisa que necessita de aprofundamento, delimitação espacial e temporal menores para construção mais sólida de uma tese sobre as transformações da administração colonial.

Como conclusão, considero equivocada a resistência das câmaras centrais à monarquia, tampouco concordo com o seu autogoverno. De fato, este estudo preliminar deixou claro que a comunicação política possui diferentes dinâmicas, fosse para as câmaras centrais (Salvador, Vila Rica e Rio de Janeiro), fosse para as câmaras periféricas (São Luís e São Paulo). Nas primeiras percebe-se o nítido declínio da comunicação com o centro em fins do século XVIII, visível também em Évora e Faro. O estudo quantitativo aqui exposto não pretende resolver os impasses, mas levantar problemas e indicar caminhos para uma investigação qualitativa. As evidências numéricas, enfim, delimitam tema de pesquisa promissor. Há que se investigar de forma mais aprofundada o processo de centralização administrativa impulsionado a partir do governo pombalino e seu impacto sobre as câmaras ultramarinas.

Niterói y Madrid, julho 2014.

Notas

* Agradeço as sugestões de Nuno Monteiro, Mafalda Soares da Cunha e Thiago Krause

1 HESPANHA, António M. As vésperas do Leviathan, Almedina, Coimbra, 1994;         [ Links ] Id. "Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime", Ler História, n. 8, Lisboa, 1986.         [ Links ]

2 NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), Hucitec, São Paulo, 1979.         [ Links ]

3 CARDOSO, Ciro F. "As concepções do "sistema econômico mundial" e do "antigo sistema colonial"" en LAPA, J. Roberto do Amaral (ed.) Modos de produção e realidade brasileira. Vozes, Petrópolis, 1980;         [ Links ] FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo O arcaísmo como projeto, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2001.         [ Links ]

4 BEIK, William, Absolutism and Society in Seventeenth-Century France, Cambridge University Press, Cambridge, 1985;         [ Links ] ELLIOTT, John H. "A Europe of composite monarchies", Past and Present, 137, Oxford, 1992, pp. 48-71;         [ Links ] GIL PUJOL, Xavier "Centralismo e Localismo? Sobre as Relações Políticas e Culturais entre Capital e Territórios nas Monarquias Europeias dos Séculos XVI e XVII", Penélope, n. 6, Lisboa,1991.         [ Links ]

5 HESPANHA, António M. "Centro e periferia...", cit.

6 HESPANHA, António M. "Centro e periferia...", cit., p. 59. Ver críticas à perspectiva defendida por Hespanha e seus discípulos, em SOUZA, Laura de Mello O sol e a sombra, Companhia das Letras, São Paulo, 2006, pp. 58-70.         [ Links ]

7 FRAGOSO, João et alii A América portuguesa e os sistemas atlânticos, FVG, Rio de Janeiro, 2013, p. 35.         [ Links ]

8 DOMÍNGUEZ ORTIZ, Antonio En torno al municipio en la Edad Moderna, Granada, CEMCI, 2005, p. 64.         [ Links ]

9 LISBOA, João Francisco Jornal de Timon, Imprensa União-Typographica, Lisboa, 1858.         [ Links ]

10 LISBOA, João Francisco Jornal de Timon..., cit., p. 57.

11 PRADO JR., Caio Formação do Brasil contemporâneo, Livraria Martins editor, São Paulo, 1942, p. 316.         [ Links ]

12 ZENHA, Edmundo O município no Brasil: 1532-1700, Instituto Progresso Editorial, São Paulo, 1948, p. 112.         [ Links ]

13 Vale citar alguns estudos mais recentes sobre as câmaras coloniais: BICALHO, Maria Fernanda A cidade e o império, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003, pp. 301-384;         [ Links ] GOUVEA, Maria de Fátima Silva "Homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822", Revista Brasileira de História, v. 18, n. 36, São Paulo, 1998, pp. 297-330;         [ Links ] SOUSA, Avanete Pereira A Bahia no século XVIII; poder político local e atividades econômicas, Alameda, São Paulo, 2012;         [ Links ] SOUZA, George Félix Cabral de Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: la Cámara Municipal de Recife (1710-1822), Universidade de Salamanca, Salamanca, 2007 (Tese de doutorado).         [ Links ]

14 Há aqui uma aproximação, pois o reinado de D. Pedro II vai até 1706.

15 BICALHO, Maria Fernanda A cidade e o império, op. cit, pp. 301-384.

16 COMPOL é a base de dados coordenada por Nuno Gonçalo Monteiro da Universidade de Lisboa, produto do projeto "A comunicação política na monarquia pluricontinental portuguesa (1580-1808): Reino, Atlântico e Brasil" (PTDC/HIS-HIS/098928/2008).

17 Na base de dados do projeto "Comunicação Política" (COMPOL), estão incluídas as seguintes capitanias: Bahia, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Em geral, as câmaras participam com menos de 10% de toda a documentação das capitanias do Brasil reunida no AHU.

18 ELIAS, Norbert O processo civilizador, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1983, v. 2, p. 103.         [ Links ]

19 Nestas capitanias, as câmaras fizeram 2214 emissões, conforme base de dados do projeto COMPOL.

20 Estes números são aproximados. Há grafias diferentes para vilas que deixam dúvidas.

21 RUY, Affonso História da Câmara Municipal de Salvador, Oficina Tipográfica Manu, Salvador, 1953;         [ Links ] MONTEIRO, John M. Negros da terra; índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, Companhia das Letras, São Paulo, 1994, pp. 17-56.         [ Links ]

22 ROMERO, Adriana Paulistas e emboabas no coração das Minas, Editora da UFMG, Belo Horizonte, 2008, pp. 35-80;         [ Links ] FONSECA, Cláudia D. Des Terres aux Villes de l’Or, Pouvoirs et territoires urbains au Minas Gerais (Brésil, XVIIIe siècle), Calouste Gulbenkian, Paris, 2003.

23 ABREU, Mauricio de A. Geografia histórica do Rio de Janeiro (1502-1700), Andrea Jakobson Estúdio, Rio de Janeiro, 2010, 2 vol.         [ Links ]

24 MAXWELL, Kenneth A devassa da devassa; a inconfidência mineiro: Brasil e Portugal 1750-1808, Rio de Janeiro, 1978, pp. 141-232.         [ Links ]

25 Documentos citados por ordem de menção. AHU, Bahia - Luiza da Fonseca, documentos (docs.) 1632, 2081-82, 1952, 2088, 3479, 1642, 1736, 1861, 1900 e 2190-91.

26 AHU, avulsos, Maranhão, docs. 429 e 463.

27 AHU, avulsos, Maranhão, docs. 1197, 1223 e 1467.

28 AHU, avulsos, Maranhão, docs. 2004, 2801 e 3230.

29 Sobre os pedidos de privilégios ao rei ver: AHU, avulsos, Rio de Janeiro, docs. 1236, 1421 e 1422, entre outros. Para os demais temas ver em ordens de citação: AHU, avulsos, Rio de Janeiro, docs. 1732, 1800, 1885, 1380, 1857, 1860, 2619, 2808, 4242, 21 2307, 2272 e 2036.

30 O tema da fiscalidade encontra-se em seis emissões, entre elas ver: AHU, avulsos, Rio de Janeiro, docs. 1235, 1982, 2150 e 2267.

31 ALDEN, Dauril Royal government in Colonial Brazil, University of California Press, Berkeley, 1968;         [ Links ] WEHLING, A. & WEHLING, M. J. Direito e Justiça no Brasil Colonial; o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808), Renovar, Rio de Janeiro, 2004.         [ Links ]

32 RAMINELLI, Ronald Viagens ultramarinas, Alameda, São Paulo, 2008, pp. 177-212.         [ Links ]

33 PRADO JR., Caio Formação do Brasil ... cit, p. 316.

34 Cfr. "Do regimento do S. A. Real, que trouxe Roque da Costa Barreto...", Revista do IHGB, v. 5, 1863, pp. 288-318.

35 Vale alertar que na base COMPOL não estão incluídos os documentos da coleção Castro Almeida referente à Bahia. Na tabela 3, recorri à mencionada base da dados, mas também aos papéis emitidos pelos governadores e vice-reis da Bahia a partir de uma quantificação feita por mim no catálogo da coleção Castro Almeida.

36 ELIAS, Norbert Introdução à sociologia, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 142.         [ Links ]

Recibido con pedido de publicación el 24 de febrero de 2014
Aceptado para su publicación el 22 de abril de 2014
Versión definitiva recibida el 8 de julio de 2014

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