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Runa

versión On-line ISSN 1851-9628

Runa vol.40 no.2 Ciudad Autónoma de Buenos Aires jun. 2019  Epub 19-Dic-2019

http://dx.doi.org/10.34096/runa.v40i2.7111 

Dossier - Artículo Invitado

A experiência da transmissão na escola pública brasileira. A reinvenção dos laços sociais entre crianças e adultos

La experiencia de la transmisión en la escuela pública brasileña: la reinvención de los lazos sociales entre niños, niñas y adultos

The experience of transmission in Brazilian state schools: the reinvention of social ties between child and adults

Lucia Rabello de Castro1  * 
http://orcid.org/0000-0003-1238-4497

Paula Pimentel Tumolo1  ** 

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

Resumo

Neste artigo analisamos de que modo, em um contexto escolar de muitas adversidades, se constroem alianças e pactos entre professores e alunos frente à demanda dos objetivos institucionais da escola. Interrogamos quais seriam as apostas que uma professora e um grupo de estudantes fazem no sentido de alterar o quadro de apatia e inércia frente a um cotidiano escolar que frustra as expectativas e os conduz a simplesmente se adaptarem a um contexto que parece sem solução. Propomos pensar a mediação da transmissão como um dispositivo para a reinvenção do laço entre professores e alunos. O estudo busca analisar estas questões a partir de um enfoque no microcosmo da sala de aula em uma escola pública do Rio de Janeiro após um longo tempo de imersão na escola que possibilitou a intervenção das pesquisadoras em uma disciplina ofertada ao longo de um semestre, em uma parceria colaborativa entre a professora, pesquisadoras e alunos.

Palavras-chave: Transmissão; Escola; Laços sociais; Criança; Adulto

Resumen

En ese artículo analizamos de qué modo, en un contexto escolar de muchas adversidades, se construyen alianzas y pactos entre profesores y alumnos frente a la demanda de los objetivos institucionales de la escuela. Interrogamos cuáles serían las apuestas que una profesora y un grupo de alumnos hacen en el sentido de cambiar el cuadro de apatía e inercia de un cotidiano escolar que frustra las expectativas y los conduce a, simplemente, adaptarse a un contexto que les parece sin solución. Proponemos a pensar la mediación de la transmisión como un dispositivo de reinvención de lazos entre profesores y alumnos. Este estudio busca analizar esas cuestiones en el microcosmos de la clase de alumnos en una escuela pública de Río de Janeiro luego de un período de inmersión en la escuela que posibilitó la intervención de los investigadores en una disciplina por medio de una colaboración entre la profesora, las investigadoras y los alumnos.

Palabras clave: Transmisión; Escuela; Lazos sociales; Niños y niñas; Adultos

Abstract

In this paper we analyse how, in a school context with many adversities, partnerships and pacts between teachers and students are constructed in order to respond to the institutional objectives of the school. We interrogate what kind of engagements are possible for a teacher and a group of students in order for them to change the conditions of apathy and inertia of the school routine which lets down their expectations and leads them to an adapt to a situation which seems hopeless. We propose to think about the mediation of transmission as a dispositif to reinvent social ties between teachers and pupils. This study seeks to analyse these questions in the microcosm of the classroom of a state school in Rio de Janeiro after a period of immersion in the school which allowed a research intervention in a syllabus course in a sort of collaborative activity between teacher, researchers and students.

Key words: Transmission; School; Social ties; Children; Adults

Introdução

A escola pública brasileira enfrenta enormes desafios hoje. Não apenas por conta da precariedade de investimentos financeiros que a tornam ineficiente e desinteressante na sua missão de transmitir o legado cultural. Talvez o desafio mais pungente se dê pelas imensas dificuldades de enlaçar crianças, jovens e adultos em torno dos mesmos ideais favorecendo que o encontro geracional possa ter sentido e reciprocidade. Reiteradamente as crianças e jovens se queixam de que não gostam da escola, a não ser pelas amizades e companheiros da mesma idade que aí encontram. De outro lado, o abatimento moral e psicológico dos e das professoras, revelado pelas taxas de absenteísmo, licenças médicas e desistência subjetiva (Mariguela, Camargo e Souza, 2009; Pereira, 2016) aponta para a aparente dificuldade de se engajar no projeto de ensinar. Estar hoje no lugar daquele que educa, perdeu todo o glamour. À profissão extremamente desvalorizada socialmente, acrescenta-se o questionamento do lugar daquele que supostamente tem mais experiência e mais conhecimento, enfim o lugar do adulto. Parece tácita a afirmação de que as professoras não são mais necessárias pois o conhecimento e a informação podem ser adquiridos de outra forma, por outros meios, como acessando o Google, por exemplo. Pode-se perguntar em que sentido a figura do adulto serviria então de valor identificatório para a nova geração (Castro, 2018).

No Brasil, o projeto democrático ainda se mostra titubeante quanto à realização de um de seus mais importantes fundamentos: a educação pública de qualidade para todas as crianças e jovens. O legado institucional da república brasileira resiste a transformações mais profundas na sua estrutura autoritária, racista e neocolonial (Miguel, 2016). Neste sentido, ainda vigem no país, em termos da educação fundamental, dois sistemas, um público e outro privado, o primeiro destinado à grande maioria de crianças das classes populares, e o segundo, para as elites que podem comprar melhores serviços educacionais oferecidos pelo setor privado. Contudo, neste contexto, engendram-se contradições entre a nação que “quer se desenvolver”, e por outro lado, aquela que perpetua as condições de marginalização social, econômica e cultural da maioria, considerando, como faz ver Souza (2018, 2019) que estes constituem uma “ralé” que não merece aquilo que o país tem de melhor. O país reproduz internamente as estruturas de dominação colonial como país colonizado que foi e periférico que é. Embora se tenham feito esforços para a universalização da educação pública mais recentemente, parece que um outro patamar precisa ser alçado no que se refere à qualidade das escolas, a formação dos professores, as condições de ensino e, também, ao próprio projeto de escola e educação para o país que se quer.

Em um contexto escolar de muitas adversidades, estudantes e professoras buscam dar sentido a um cotidiano que frequentemente foge às suas expectativas. Em uma pesquisa anterior com quase duas mil crianças e jovens no Rio de Janeiro (Castro et al., 2010), estes apontavam as dificuldades em relação a serem escutados nas suas demandas e queixas, seja por se sentirem incapazes e sem importância, seja porque a direção da escola não tem tempo para isso, ou porque os colegas vão zoar. Assim, parece se desenvolver uma posição de retraimento de cada um em relação aos problemas coletivos. Verificamos também neste estudo que, muitas vezes, a mobilização dos estudantes em relação a algo que os constrange pode sofrer intimidação por parte dos professores e direção, o que favorece um sentimento coletivo dos alunos de que “não adianta fazer nada”. Um exemplo é quando os alunos não tem professor de determinada matéria e desistem de um protesto coletivo por medo de serem punidos; logo, sustentam que é melhor “deixar para lá” e cada um tentar buscar ajuda fora da escola para aprender a matéria. Frente a dificuldades de toda sorte, ainda assim, os estudantes mostram muitas expectativas em relação à escola. O mais incrível foi constatar como hierarquizam o quê mais gostariam de mudar na escola. Observamos que as queixas referentes à escola como não sendo limpa, e/ou como um lugar sem atrativos ficam relativizadas quando são comparadas com suas demandas em relação aos adultos. A qualidade das relações entre estudantes e professores é considerada a demanda prioritária, aquilo que mais incomoda e precisa ser mudado na escola na visão dos estudantes. Portanto, parece haver por parte deles uma consciência da magnitude da importância desta relação para que a escola possa ser um ambiente construtivo, interessante e que responda às suas reais expectativas. Só que para alunos e professoras parece difícil enxergar como este status quo pode ser transformado.

Esta contribuição pretende se voltar para as relações entre estudantes e professoras nas escolas públicas brasileiras. Muitas são as mediações que vão modelar tais relações, sendo que significativamente digna de nota, é a posição institucional de aluno, de um lado, e de professora, de outro, que dá forma à relação de transmissão: distancia a professora do aluno, e vice-versa, hierarquizando a posição da primeira em relação ao segundo, assim como, aproxima professora e aluno diante dos propósitos da transmissão. Entendemos que nesse contexto de múltiplas mediações, os encontros e desencontros entre professores e alunos se constituem como sobredeterminados: aqui contam tanto as possibilidades de ação que podem ir além das injunções dos papéis sociais e ampliar a liberdade do agir, como também as diversas e inúmeras determinações que restringem o curso e as possibilidades de ação destes atores. Interessou-nos examinar se, e de que modo, em um contexto de muitas adversidades, se constroem alianças e pactos entre professora e aluno frente à demanda dos objetivos institucionais da escola; e sobre que bases -afetivas e normativas- essas alianças e pactos são feitos e como são sustentados. Quais seriam, afinal, as apostas que ambos, a professora, de um lado, e estudantes, de outro, fazem no sentido de alterar o quadro de apatia e inércia frente a um cotidiano escolar que frustra as expectativas e conduz alunos e professores a simplesmente se adaptarem ao que parece sem solução? Em que sentido a mediação da transmissão pode ser um dispositivo para uma reinvenção da relação professor-aluno? O estudo busca analisar estas questões a partir de um enfoque no microcosmo da sala de aula em uma escola pública do Rio de Janeiro. Além de um longo tempo de imersão no cotidiano da escola, o trabalho de campo envolveu uma intervenção dos pesquisadoras em uma disciplina que foi ofertada ao longo de um semestre, em uma parceria colaborativa entre a professora, pesquisadoras e alunos. Este trabalho foi resultado das trocas estabelecidas ao longo do período anterior à intervenção em que os pesquisadoras puderam conhecer melhor as demandas dos estudantes, ao mesmo tempo em que se tornou clara a relevância do envolvimento dos professores em qualquer iniciativa de intervenção sobre os vínculos na escola. Ficou claro, também, que a parceria de trabalho entre estudantes, professores e pesquisadoras só se tornaria possível mediante a construção de um laço de confiança entre estes atores. As desconfianças e as hostilidades que caracterizavam, em geral, as relações entre jovens e adultos tiveram que arrefecer e dar lugar a algum desejo de mudança, por menor que fosse. Relatamos, em seguida, as características desta escola, e como se desenrolou o período inicial de dificuldades e conquistas no tocante à aproximação dos pesquisadoras com a instituição e seus atores.

A escola, os estudantes e os professores: o estabelecimento da relação de confiança com os pesquisadoras

A escola municipal onde o projeto aconteceu atendia, em 2017, por volta de 300 alunos do 7º ao 9º ano do Ensino Fundamental II,1 moradores dos bairros e comunidades adjacentes a sua localização, na região central da cidade do Rio de Janeiro. O recrutamento dos estudantes se faz majoritariamente das camadas sociais empobrecidas da população. A instituição conta com uma equipe de por volta de 10 docentes. O espaço físico da instituição foi originalmente construído para comportar um teatro, tendo sido revertido em escola desde o início do século XX. A escola tem como principais espaços de circulação dos alunos e professores dois andares de salas de aula, uma quadra, um refeitório e um pátio central descoberto -que contém uma mesa de totó e alguns bancos e mesas de praça, além de três suntuosas árvores espaçadas de forma equidistante-. Essa instituição recebe, assim como é o caso de tantas outras no município, pouco investimento público, forçando os sujeitos que a frequentam a lidar cotidianamente com alguns problemas estruturais. Um deles é o de saneamento que ocasiona vazamentos de esgoto a céu aberto entre um banheiro e o refeitório em frente ao pátio; outro é na rede elétrica, o que impede a instalação de aparelhos de ar condicionados já cedidos à escola pela Prefeitura, por exemplo. Assim, os alunos têm que suportar o calor do verão por conta da impossibilidade do funcionamento dos aparelhos de ar nas atuais condições da rede elétrica.

As salas de aula são bastante uniformes, sendo que cada professor é responsável e fica domiciliado em uma dessas salas. Cada uma contém um quadro branco, carteiras coloridas de plástico, um armário e uma mesa para os professores. No entanto, cada professor escolhe como dispor essas carteiras, e escolhe também a decoração de sua sala, sendo que alguns -como a professora com o qual travamos uma parceria- a adornam com cartazes e trabalhos dos alunos, e outros deixam suas paredes e murais em branco.

A escola foi incluída no projeto “Ginásio Carioca”,2 da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, ao final do ano de 2015, reduzindo drasticamente seu corpo docente, que antes contava com 40 professores com matrículas tanto de 40 horas quanto de 16 horas. Atualmente, todos os professores da escola atuam aí como sua única instituição de atividade docente no nível municipal. A mudança também reduziu o corpo discente, através da eliminação das turmas de sexto ano na escola. Como parte das mudanças recentes, foi introduzida em sua grade curricular, a disciplina intitulada “Projeto de Vida”. Essa disciplina é ministrada para as turmas de 7º, 8º e 9º anos, tendo como objetivo principal a discussão sobre a cidadania e o projeto de vida individual dos alunos.

Os vínculos dos pesquisadoras com os estudantes se modificaram ao longo do período. Inicialmente, eles nos viam como “delegados da autoridade escolar”, e aos poucos suas desconfianças foram cedendo, passando a nos contar sobre a escola, seus espaços, seus colegas e professores de forma carinhosa e receptiva. Alguns alunos, no entanto, mantiveram a distância e alguma hostilidade, tentando por vezes intimidar os pesquisadoras, assustando-os ou dramatizando que iam assalta-los.

Ao descobrirem que vínhamos da área da Psicologia muitos alunos passaram a nos indagar se iríamos estudar seus comportamentos com o propósito de examinar desvios e anormalidades. Desconstruímos também essa expectativa, que dizem muito sobre as fantasias que, em geral, as crianças e os jovens fazem sobre a entrada de terceiros na escola - sendo esses sempre assumidos como estando ali para espiá-los, julgá-los ou castigá-los em parceria com os educadores.

A relação dos pesquisadoras com os professores, que não haviam sido avisados e prevenidos da presença de pesquisadoras na escola, foi inicialmente de desconfiança, em que apenas breves palavras eram trocadas evitando a aproximação. No entanto, aos poucos começaram a se abrir com os pesquisadoras, convocando-os principalmente para sessões de desabafo quanto ao árduo trabalho na escola.

O vínculo com a coordenação da escola, por sua vez, se alternou ao longo de todo tempo em que os pesquisadoras permaneceram na escola, cerca de 3 anos: havia sempre uma ambivalência que oscilava entre nos agradecer, dizendo sobre a importância de um olhar de terceiros sobre a escola, e cercear as oportunidades de estarmos com os alunos e professores, ao buscar controlar o processo de intervenção para que este não escapasse de seu controle micropolítico. Um exemplo disso foi conceder a autorização para que a professora Carolina pudesse atuar como parceira da pesquisa - ao longo do trabalho de intervenção, porque ela era considerada como digna da confiança da direção. Outros professores que também se dispuseram a trabalhar conosco não obtiveram tal autorização, talvez porque eram menos afinados com a direção da escola.

A disciplina “Projeto de Vida”, por sua relativa flexibilidade em termos de formato e conteúdo, se tornou uma das principais possibilidades de articular o trabalho de intervenção na escola em parceria com uma professora que se mostrou interessada. Em etapas anteriores da pesquisa, entre 2015 e 2016, realizamos um trabalho etnográfico e uma intervenção pontual junto a um grupo de mais ou menos 15 alunos de 7º, 8º e 9º anos, que escolheram realizar uma oficina de teatro. Ao longo do período anterior na escola, constatamos a difícil sustentação de um sentido de pertencimento coletivo à instituição e a seus objetivos de transmissão, tanto por parte dos alunos quanto dos professores.

A construção da parceria entre estudantes, professora e pesquisadoras no trabalho de intervenção

O trabalho de intervenção que desenvolvemos e é objeto do presente relato foi apresentado, inicialmente, aos professores e à coordenação da escola, em uma reunião em que conversamos sobre as dificuldades da convivência na escola. Discutimos a possibilidade de estabelecer um trabalho em parceria entre os pesquisadoras, os professores e os estudantes visando explorar maneiras de endereçar a dificuldade de sustentação de sentidos coletivos daquela instituição. Nessa ocasião, a professora de Língua Portuguesa, Carolina,3 se mostrou interessada em construir, junto conosco, uma disciplina que pudesse consistir em um fórum de discussão sobre temáticas relacionadas ao cotidiano escolar. Para tal, diversas atividades foram planejadas, como debates, rodas de conversa, atividades escritas e a confecção de uma linha do tempo. A turma de alunos envolvida neste projeto foi a do 7º ano. No início da parceria entre os pesquisadoras e a professora, foi importante conversar sobre as atividades a serem realizadas cujo planejamento também levou em conta as opiniões e os apontamentos dos alunos acerca de quais assuntos seriam relevantes para um fórum de discussão. No entanto, cabe destacar a expectativa da dificuldade, por parte dos pesquisadoras, de lidar com a agressividade e desrespeito dos alunos nas relações entre eles. A experiência anterior da Oficina de Teatro havia mostrado quão difícil e violenta poderia ser a convivência no grupo. Assim, os pesquisadoras tinham receio dos inúmeros entraves e dificuldades para se estabelecer uma comunicação efetiva e empática que viabilizasse a realização das atividades propostas.

O processo de intervenção ao longo da disciplina “Projeto de vida” foi realizado no segundo semestre de 2017 com 14 encontros de 1 hora e 20 minutos de duração cada um. Cerca de 30 alunos de 13 a 14 anos estavam presentes nos encontros semanais.

Carolina faz parte da equipe pedagógica da escola há muitos anos. Ela é descrita por si mesma e pelos alunos como uma professora rígida, e apresentou um estilo pedagógico disciplinador nas atividades ao longo da intervenção. Apesar disso, ela também é tida pelos alunos da escola como alguém em quem podem confiar, e que se preocupa com eles, conquistando seus afetos. Isso pode ser exemplificado pelo fato de que, em etapas anteriores da pesquisa, foi a única professora convocada pelo grupo de alunos a os ajudar, sob a justificativa de que seria a professora que mais se interessaria por seus esforços. O engajamento da profa Carolina no projeto nos pareceu consistente com seu desejo de não desistir dos alunos, mesmo que se queixasse, frequentemente, das enormes dificuldades relacionadas ao fato de os alunos não aderirem às regras tornando a convivência quase insuportável. Ao longo de todo o período da intervenção, a professora Carolina, por sua vez, se mostrou solícita e atenciosa com os pesquisadoras, se disponibilizando para conversas após as aulas, onde foram discutidas abertamente as impressões sobre o andamento das atividades.

De maneira geral, a dinâmica do grupo no início do semestre era agitada e dispersa. As atividades realizadas na disciplina Projeto de Vida não pareceram, nesse começo, mobilizar o interesse dos alunos. Durante esse período inicial, os alunos se apropriaram do espaço e tempo das atividades como uma espécie de “tempo-livre”, participando pouco ou intermitentemente das atividades propostas pelos pesquisadoras e pela professora. Ademais, era bastante difícil e problemático fazer com que os alunos estabelecessem um diálogo entre eles: em geral, acontecia uma profusão de conversas paralelas que atropelavam as falas dos poucos que estavam interessados nas atividades, e as interrupções eram frequentes acabando por forçar uma desistência geral da atividade. No entanto, ao longo do semestre percebemos um engajamento crescente nas discussões, especialmente nas ocasiões em que o assunto da atividade, que sempre esteve relacionado a suas vivências na escola, havia sido proposto ou indicado pelos próprios alunos. Assim, identificamos uma gradual disponibilidade dos alunos para se escutarem e coletivizarem suas angústias e reflexões sobre a escola. Ao final do processo, passaram a nos pedir permissão para permanecerem em sala por mais alguns minutos, de forma a terminarem as atividades do dia, ao invés de guardarem os materiais com pressa e aguardar para que a professora os liberasse.

A escolha das atividades dos encontros foi pensada pela professora e pesquisadoras levando em conta os interesses dos alunos. Assim, nos primeiros quatro encontros, o grupo construiu uma “árvore genealógica” para representar a “família” da turma com os “irmãs(ãos)”, “pais”, mães” e “primos” tal como uma família simbólica. Havia na escola uma prática de “adoção” de alunos mais novos pelos mais velhos, ou por colegas da mesma turma. Esta atividade permitiu mapearmos e explorarmos os vínculos entre os alunos e com os professores. A proposta da atividade foi construída em conjunto com a professora Carolina, apesar de esta ter ficado na retaguarda durante sua realização, preferindo não participar de sua mediação. Essa ideia foi bem recebida por alguns alunos, que tomaram a frente da atividade de forma entusiasmada, apesar de outros colegas não se engajarem.

Os cinco encontros seguintes foram ocupados por atividades propostas e trazidas aos alunos pela professora Carolina, que consistiam na escrita em grupo de regras de convivência escolar. Cada grupo, formado pela professora a partir dos galhos da “árvore genealógica”, foi incumbido então com a tarefa de escolher uma regra como a mais importante a ser seguida na escola. Posteriormente, foram solicitados a compartilhar e justificar suas escolhas com o restante da turma. Os alunos se engajaram muito pouco nessas atividades, postergando sua realização, e eventualmente delegando a um só colega do grupo todo o processo. Nessa ocasião, as pesquisadoras apenas acompanharam a realização das atividades pelos alunos, sem se envolver na mediação que ficou sob a coordenação da profa Carolina.

A partir desses trabalhos escritos, as pesquisadoras e a profa Carolina acordaram em propor para a turma a realização de dois debates nomeados de “júris simulados”. Nessas atividades, a turma se dividiu em “defesa”, “acusação” e “júri” para julgar a pertinência da adoção de duas regras de convivência escolar escolhidas como emblemáticas pelos alunos, tanto por se repetirem entre os grupos, quanto por terem se mostrado controversas durante as apresentações, suscitando discordâncias na turma. A primeira dessas regras foi resumida na frase “zoar os colegas com moderação (com exceções)”. Ela se refere à necessidade de eles refrearem as implicâncias entre si, exceto quando essas estivessem relacionadas a uma aluna em particular, Marina, com quem a turma possuía um conflito constante. A segunda regra a ser debatida no júri foi “pode usar celular e comer em sala”, que aludia a regras reforçadas pelos professores, inclusive Carolina, e costumeiramente burladas ou explicitamente violadas pelos alunos na escola. O objetivo foi aprofundar a discussão sobre as questões e conflitos relacionados à convivência escolar e seu balizamento institucional ao se poder coletivizar como cada um pensava a relevância desta regra. A professora Carolina interveio ao longo da realização dessa atividade com perguntas e colocações, apesar de se abster do seu manejo. As atividades dos “júris simulados” mobilizaram uma grande implicação por parte dos alunos.

No encontro seguinte aos “júris”, os alunos foram convidados pelas pesquisadoras a participarem de uma roda de conversa acerca dessa experiência, e de outras atividades realizadas pelo grupo até então. No entanto, essa roda de conversa foi pautada, por iniciativa e insistência dos próprios alunos, como um foro de debate sobre os conflitos existentes entre Marina e o restante da turma. Essa conversa se estendeu até o penúltimo encontro do grupo, e foi através dele, principalmente, que demonstraram o quanto se ressentem com os conflitos relacionais na escola, e da falta de um espaço e tempo institucional de fala e compartilhamento acerca desses assuntos - sentimento compartilhado pela professora Carolina e explicitado por ela em uma reunião com as pesquisadoras, ao final do encontro.

No último encontro com os alunos e professores, convidamos os alunos para a confecção coletiva de uma representação estética e afetiva do percurso percorrido pelo grupo ao longo do semestre através de uma “Linha do Tempo”. Os alunos nomearam os encontros e atividades realizadas ao longo do semestre com títulos, e adornaram as várias cartolinas justapostas onde grafaram esses encontros com desenhos coloridos e recortes de falas - ditas ao longo do semestre e trazidas em papel impresso pelas pesquisadoras no dia da atividade como material de uso opcional. Essa atividade de fechamento foi sugerida pelas pesquisadoras à Carolina com antecedência, que a acatou e auxiliou em sua viabilização, garantindo o acesso dos alunos a materiais de arte. A “Linha do Tempo” produzida pelos alunos expressa o significado dado por estes às conquistas e dificuldades enfrentadas ao longo desse processo. A maior parte da turma escolheu participar dessa atividade e, em nossa despedida, a professora Carolina recebeu a ajuda de alguns para pendurar o cartaz extenso e colorido em um quadro ao fundo da sala.

A análise dos diários de campo e dos materiais, como desenhos, produzidos ao longo do período de intervenção na escola nos possibilitou traçar alguns delineamentos acerca de como os alunos, a professora e as pesquisadoras se apropriaram daquele tempo e espaço coletivo para discutir e problematizar os impasses das relações escolares e se engajar em prol de outros formatos relacionais, ainda que em meio a inúmeras dificuldades de se escutarem, expressarem o que pensam e estabelecerem vínculos necessários ao trabalho coletivo. Organizamos estes delineamentos em torno de três dimensões que tematizam a transmissão escolar sob a perspectiva de essa vir a consistir um dispositivo para a consecução de vínculos e sentidos que aglutinem atores diferentes em prol de um projeto comum.

“Em busca de algo que nos una”: uma parceria entre alunos e professores é possível?

I) O desrespeito e a falta de sentido: estamos juntos, mas pra onde vamos?

Verificamos, através da pesquisa empírica, um duro cenário de vivências escolares permeadas pela agressividade entre os alunos e o desrespeito entre eles em sala de aula. Não observamos instâncias de desrespeito à professora Carolina, embora saibamos que outras professoras na escola tenham sofrido hostilidades por parte dos alunos. Compreendemos a atitude defensiva desta professora em muitas ocasiões ao longo do trabalho, e sua dificuldade de sair do papel disciplinador, talvez por receio de que os alunos pudessem atuar de forma não respeitosa caso ela se permitisse abandonar a posição de mando e controle que ela fazia questão de exercer. Por outro lado, notamos seu esforço genuíno em apostar em um formato de relação em que os alunos pudessem fazer valer mais suas demandas, ainda que, com isso, instaurassem um modo quase caótico de convivência. O caos se mensurava como o inarredável interesse de cada um quando ninguém parecia se importar com o outro. Dois alunos resumem essa dinâmica ao declararem que ali “ninguém respeita ninguém e todo mundo zoa todo mundo”. Ou seja, ninguém é “privado pelo outro”, no sentido de ter que inflexionar o que deseja pelo constrangimento ou limite dado por outrem; ao mesmo tempo, esta afirmação dos alunos nos conduz pensar que a zoação como modo prevalente de vínculo instaura um ethos do desprezo pelo outro, pelo que ele pode sentir e sofrer. Compreendemos que o ethos do desprezo se coloca como antitético a uma ética do concernimento pelo outro (Winnicott, 1965).

Assim, delineia-se um contexto onde o outro se torna objeto do riso e do sarcasmo e, frequentemente, de violência física. Em sala, durante as atividades do Projeto de Vida, os alunos trocaram xingamentos e insultos com frequência, além de ocasionais tapas e chutes. Por vezes, o clima de afrouxamento do controle rígido da disciplina, introduzido pelo trabalho de intervenção, parecia conduzir ao caos iminente, e ocasionou o retraimento de alguns deles que se abdicaram de participar das atividades. Em um dos encontros, enquanto a turma montava a “árvore genealógica”, Douglas justifica sua recusa em contribuir para os rumos da construção coletiva, apesar de suas discordâncias com as deliberações dos colegas: “Se eu der minha opinião vou ser linchado!”, diz ele.

A rivalidade entre a aluna Marina e o restante da turma, em específico, nos parece emblemática para pensarmos em como esta dinâmica relacional ocasiona a expressão indiscriminada dos mal-estares e frustrações perpetuando um ciclo quase interminável de trocas de ofensa. Marina contribui para o clima de implicâncias em sala, revidando os insultos dos colegas e escalando o conflito, razão pela qual ela parece ser o alvo principal para a liberação irrestrita das hostilidades por parte de todos. No entanto, apesar de passarem boa parte do tempo trocando farpas e ofensas, os alunos demonstram também uma exaustão e insatisfação com tal dinâmica de relações. Durante uma discussão com Marina, uma colega afirma: “Chega, já estou cansada de ser humilhada”. Neste sentido, a escalada de hostilidade cumpria a função pontual de antecipar a ofensa do outro respondendo com hostilidade, até para não se tornar o bode expiatório; porém alavancava também o sentimento de estar sozinho, não ter em quem confiar e, portanto, no esgarçamento total dos vínculos; logo, na falta de sentido de estar junto. O que se experimenta, então, é o desânimo dos estudantes em relação à escola e a poder experimentar ali outro tipo de relacionamento.

Em uma situação, Luiz diz que combina com os colegas de “meter a porrada” em alunos de turmas mais velhas em retaliação a agressões cometidas por eles, ao que Júlio discorda dizendo que o uso da violência física como forma de responder aos colegas pode ser pior. Ele explica que, quando há briga no pátio, vários alunos se juntam para incentivar o confronto, e ninguém se preocupa em apartar a briga. Adiciona que, apesar de isso ser uma diversão, as consequências são desastrosas, pois alguém sempre sai machucado com a cabeça sangrando, por exemplo. A indignação de Júlio foi compartilhada por outros alunos. Assim, o desprezo, a hostilidade e o desrespeito mútuos acabam por gerar sentimentos intensos de desamparo e uma perplexidade em relação ao porquê de estarem juntos.

Ao longo do trabalho com a turma, na ocasião do julgamento acerca da regra de convivência que dizia respeito a necessidade de limites para o desrespeito, com a exceção de Marina, observamos que os alunos falam da necessidade de encontrarem mediações para a verbalização dos conflitos. Expressam, assim, o desejo de uma relação com os colegas que não seja marcada pelas ofensas e agressões e onde precisem estar sempre com a guarda levantada.

A hostilidade, o desprezo e a violência, como modos prevalentes de relação entre pares, dizem, paradoxalmente, do desejo de ser escutado e compreendido. O psicanalista Donald Winnicott (1984) afirma, a partir de suas observações em instituições de acolhimento de crianças e adolescentes, que enquanto há uma “tendência anti-social”, há uma esperança de que o ambiente responda a essa demanda. No caso dos alunos, acreditamos que essa demanda esteja relacionada ao anelo de reconstrução dos vínculos entre eles e com seus professores e o ambiente escolar. Suspeitar que esta forma de relacionamento seja inelutável, trazendo divertimento, sim, mas também muito sofrimento e desamparo. Contudo, a mediação destes conflitos escolares parece estar além do quê os próprios alunos podem fazer por eles, e passa pela relação com seus professores.

Por exemplo, neste grupo de alunos, a profa Carolina é apreciada porque é uma das professoras na escola que “bota ordem” na turma, recriminando as trocas de ofensa entre os alunos e retirando alunos de sala para conversas em particular quando julga necessário. Dessa forma, ela procurava responder à demanda de contenção dos alunos, fato que não ocorria com todos os professores da escola. Observamos que muitos deles relutam em assumir o encargo de se imiscuir nos relacionamentos conflitivos dos alunos, circunscrevendo sua atuação à prescrição de transmitir o conteúdo da disciplina. Talvez por isso Carolina tenha recebido o lugar de matriarca na “árvore genealógica” desta turma.

No entanto, lidar com essa mediação constante, para além das incumbências de transmissão pedagógica, colocava Carolina e outros professores em um malabarismo constante, onde precisam dar conta de muito ao mesmo tempo, o que se torna uma tarefa exaustiva. Muitas vezes, Carolina nos relatou esperar “aprender algo com as pesquisadoras”, se mostrando desamparada frente a essas demandas do cotidiano escolar. Neste sentido, nos pareceu imensamente solitária a vivencia de como cada professora enfrenta as múltiplas demandas dos alunos, principalmente essas relacionadas à convivência. Em todo o tempo em que estivemos na escola não pudemos observar espaços institucionais em que as professoras pudessem compartilhar as dificuldades de manejo da turma, ou como cada uma lidava com os conflitos entre os alunos. Assim, a intensidade dos conflitos, somada à solidão dos professores e seu desamparo levam, frequentemente, a que adotem a indiferença e/ou a desimplicação como formas defensivas de lidar com as demandas que lhes parecem impossíveis, como mostra Oliveira (2016). O burnout docente associado a diversos adoecimentos físicos e psicológicos da carreira articula-se ao desamparo frente a demandas tão veementes dos alunos cuja compreensão e manejo são difíceis, e não encontram respaldo na institucionalidade escolar.

É interessante observar que a professora Carolina, assim como também os alunos, atribuíram os comportamentos de agressividade e desrespeito a um “comportamento infantil, que faz parte da idade”, relacionado às questões familiares dos alunos. Dessa forma, recorrem a explicações bastante comuns que recorrem a uma visão que tende a individualizar e pessoalizar as dificuldades dos grupos e coletivos. Essa tradição, que ainda informa o imaginário de professores e alunos, se coaduna com o ideário neoliberal, gerador de esgarçamento dos vínculos sociais e coletivos, isentando a instituição escolar de uma autoanálise acerca de suas contradições, tensões e fracassos (Amaral e Souza, 2011). Dessa forma, permanecem as causas dos conflitos escolares enquanto questões de desadaptação individual, informadas por teorias psicologizantes e estigmatizantes. Ignora-se a dimensão da escola enquanto um campo de disputas, dentro do qual são produzidos e transformados os lugares de professor e de aluno, assim como as bases normativas que regulam as relações entre adultos e crianças.

Nossa experiência junto ao grupo do Projeto de Vida evidencia relações escolares “amarradas” pelas ingerências de um contexto institucional com muitas adversidades e por uma dinâmica relacional belicosa, dificultando que a transmissão possa aglutinar professores e alunos em torno de um projeto comum. Por exemplo, a queixa frequente dos professores era que o conteúdo pedagógico, por si só, não era suficiente para interpelar os alunos no desejo de aprender. Como resultado grassavam o desinteresse e a insatisfação dos alunos que, frequentemente, afloravam criptografados na linguagem da violência entre eles, e na hostilidade com os professores. Pareciam interrogar o porquê de virem à escola, o porquê de serem obrigados a isso ou aquilo. Neste cenário, os professores mostravam perplexidade e desorientação sobre o seu lugar de transmissão e como ele deveriam responder a tantas demandas.

Entretanto, ecoando resultados de pesquisa em escolas latino-americanas (Monteiro, 2008; Grinberg, Machado e Defunchio, 2015; Hernández, 2016), observa-se, paradoxalmente, que muitos alunos continuam vindo à escola e investindo em tensionar esse ambiente de modo a descobrir o que ele pode lhes oferecer. Vale aqui a pergunta de como sustentar e apostar nesta presença no quê ela prenuncia como potencia e indício de um enlace geracional que possa ser positivo. Assim, seria possível entrever possibilidades de uma parceria real entre professores e alunos. Qual é o pacto possível entre eles?

II) Da “terra de ninguém” ao desafio de construir o “comum” na escola

A gritaria e a comunicação hostil, truncada e desafiadora caracterizavam um cenário de falta de balizamentos e ausência de diálogo. Alunos e professores vivenciavam a escola como um ambiente sem regras, ou cujas regras eram constantemente desrespeitadas. “Aqui pode tudo! Ninguém se respeita!”, nos disse um aluno. Neste ambiente não se podia observar uma direção das ações que aglutinava os interesses das duas partes, professores e alunos, ou, como coloca Hannah Arendt, não emergia um comum que, “a despeito das diferenças de posição e da resultante variedade de perspectivas, todos est[ivessem] interessados” (2004, p. 67). Subscrevemos aqui à noção de “comum” apresentada pelos filósofos Pierre Dardot e Christian Laval (2014), no sentido de que este não implica em um lugar ou coisa, e sim em um processo que se dá na práxis coletiva entre os não iguais, e que serve como princípio de atividade política democrática. Nesse caso, falamos da possibilidade de constituição do “comum” através da ação coletiva que a transmissão cultural favorece.

Outras pesquisas em escolas públicas latino-americanas apontam para cenários similares, onde a escola é representada como “terra de ninguém”, carente de um sentido comum entre alunos e educadores (Míguez, 2014; Núnez e Litichever, 2015).

Tanto os alunos quanto a professora demonstraram um sofrimento diante da falta de balizamentos e de pactos que sustentassem o cotidiano escolar e o processo de transmissão. A professora propôs aos alunos a resolução dessa questão ao longo do trabalho que empreendemos a partir da criação do que chamou de “normas para o bem viver”. Dessa forma, esperava que a transformação das relações escolares se desse a partir de uma apreensão consciente dos alunos sobre a importância e funcionalidade de regras de convivência. Contudo, os alunos não se interessaram inicialmente nesta atividade. Logo depois, quando a atividade se deu na forma de debate em que puderam assumir mais a iniciativa demonstraram maior interesse e propuseram as regras de não comer e usar o celular em sala, indicando que a sala de aula deveria ser um lugar onde a transmissão pudesse ter condições mínimas e democráticas para acontecer. O grupo também deu importância a outras regras de convivência, como “manter a sala organizada”, “respeitar os professores”, “não [...] falar alto” e “não [...] roubar os outros”. Assim, de uma forma ainda muito incipiente, aquiesceram à importância da normatividade que pode balizar e conter os arroubos individuais e prejudicam o trabalho coletivo. Só que para além desta apreensão faltaria ainda um longo caminho para que esta conscientização pudesse trazer, de fato, um ganho real. Um dos desafios consiste na ausência de um projeto institucional da escola que possa avalizar e sustentar o desejo coletivo emergente ao longo deste trabalho. Mesmo que o projeto de intervenção tenha possibilitado que esta turma vislumbrasse vias para um pacto possível, essas só poderiam ter efetividade se respaldadas pela ampliação desta discussão na escola e pela adesão de outros professores.

É interessante trazer aqui as contribuições de Jeremy Gilbert (2014) acerca da dimensão horizontal, transindividual e transversal da experiência coletiva. As relações de cooperação não se dão apenas em um nível racional e individual de interesses e deliberações. Gilbert amplia a ideia de um “comum” pensada por autores como Dardot e Laval, o entendendo como um “campo potencial” produzido pelos elementos de afeto presentes nas relações que a atividade coletiva estabelece. Como, então, a dinâmica afetiva e normativa impactou a aproximação entre alunos e professores no trabalho que empreendemos?

Apesar de Carolina ser disponível e preocupada com os alunos, as táticas que empregava para encaminhar a disciplinarização destes nem sempre eram lidas como justas pelos mesmos. Em algumas ocasiões presenciadas, diante da confusão em sala de aula, ela engrossava a voz e os ameaçava com medidas punitivas que visavam restringir seu horário de descanso e de lazer, mais especificamente o recreio e a aula de Educação Física. “Alguns alunos estão querendo que eu tire o almoço…”, dizia. Os alunos, por sua vez, protestavam: “Almoço é sagrado!”. Assim, as divergências sobre o que é justo e quais normas e práticas devem balizar a convivência escolar pareciam coloca-los em posição antagônica abrindo um fosso de incompreensão entre eles. No entanto, isso também não consistia assunto de discussão. Lembramos aqui as palavras de Paulo Freire (1996, p. 135), para quem “escutar [...] significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro”. Nesse sentido, as normas só adquirem validade quando há espaço para a consulta e negociação entre alunos professores.

Por parte dos alunos, percebemos seu constante movimento de burlar e subverter as regras escolares, muito no sentido do que a socióloga Vicky Plows (2012) observou em sua etnografia com jovens ingleses como uma “resistência/obediência em termos”. Por exemplo, os alunos costumavam se alongar no pátio, se atrasando para entrarem em sala para darmos início às atividades. Também escutavam música com fones de ouvido, escondendo seus celulares, de forma que isso passasse desapercebido pela professora. O mesmo acontecia com biscoitos que rateavam, sorrateiramente, entre si. Outras vezes, os alunos desafiavam às regras impostas pela professora de uma forma explícita, em alto e bom som. No entanto, tanto as subversões quanto as negações não se constituíram enquanto demandas organizadas coletivamente e endereçadas à professora, acontecendo de forma difusa e individualizada. Era uma forma de evitar ser constrangido e acabar fazendo o que se quer.

Talvez o desafio que se mostrou no microcosmo da sala de aula ao longo deste projeto de intervenção, em que estudantes estudantes e professores nem sempre convergem sobre o que é considerado bom, justo e adequado em relação às normas e práticas institucionais, como também na pesquisa de Lucia Rabello de Castro e Emilia Matos do Nascimento (2013) demande que repensemos esta questão em um horizonte mais amplo, qual seja, o de um projeto de educação das classes populares no contexto de um país extremamente desigual. Afinal, os conflitos entre professores e alunos não estariam também refletindo horizontes normativos de classe, raça e território que acabam por se impor também na dinâmica escolar e impactar suas relações? Assim, o estudo de Alceu Ferraro (2010) mostra a importância destas dimensões, e o de Cristián Bellei, Liliana Morawietz, Juan Pablo Valenzuela y Xavier Vanni (2015) aponta as questões conjunturais e estruturais que afetam a qualidade das práticas escolares e suas relações sociais.

Ao se propor a transmissão como dispositivo que pode operar transformações em prol de uma dinâmica escolar que viabilize ações em torno de um projeto comum, é mister que pensemos a transmissão como relacionada às identificações e aos ideais. Isso significa que as diferenças de crenças, valores e costumes relacionadas às vivencias de classe, raça e território -entre alunos e professores- vão estar permanentemente fazendo ruído ou causando grande turbulência nos pactos passíveis de serem construídos e nos objetivos e ideais a serem conquistados.

III) “Um esforço a mais”: ganhos relativos na reciprocidade e na confiança

Apesar das inúmeras dificuldades relacionais evidenciadas ao longo do processo de intervenção, presenciamos também algumas situações que denotam tentativas de aproximação entre esses sujeitos, através da disponibilidade ao diálogo e afeto. Foram esforços a mais em que o grupo -professora, alunos e pesquisadoras- se engajou na direção de alcançar mais convergência e reciprocidade de perspectivas. Assim, apresentamos algumas das conquistas e deslocamentos subjetivos desse grupo.

Ao longo do trabalho na disciplina Projeto de Vida, os conflitos entre os alunos permaneceram durante todo o tempo. Contudo, os alunos foram gradualmente deixando para trás o perfil de apatia e desrespeito constante que caracterizou a turma inicialmente. Passaram a se ouvir e a se organizar melhor durante as atividades, por vezes se experimentando na mediação das discussões e conflitos, o que caracterizou uma postura mais empática entre eles. Em algumas ocasiões, os próprios alunos pediam silêncio uns aos outros, percebendo a importância do estabelecimento do diálogo, e inclusive dando a vez e fala aos colegas e abrindo espaço para discordâncias. Isso aconteceu principalmente nas atividades do “Júri Simulado” e nas rodas de conversa, já mais ao final do processo de intervenção. O grupo também passou a se prontificar a ajudar a professora e pesquisadoras a organizarem as mesas e cadeiras da sala para as atividades.

Já a professora Carolina compartilhou com as pesquisadoras que essa pesquisa a ajudou a se experimentar de uma forma diferente em sala. Relata ter se deslocado de sua usual posição pedagógica mais enrijecida ao se dar conta de que os alunos conseguem sustentar conversas sobre os conflitos sem precisarem ser retirados de sala. Ela notou que também eles conseguiram diminuir o volume de suas conversas sem que ela precisasse recorrer a interdições disciplinares. Dessa forma, ela diz que não precisa usar seu poder para que os alunos cumpram com suas responsabilidades: “Posso dar mais poder a eles”.

As atividades parecem ter ocasionado um estreitamento de laços entre essa professora e sua turma. Gabriel faz questão de declarar à Carolina, frente ao restante da turma, no último encontro do grupo: “Antes a gente achava que você era chata. Mas agora… Ah, [...] a gente te ama”, fala que foi seguida de aplausos da turma e um sorriso de Carolina.

Percebemos, ao longo deste processo de intervenção, uma busca dos alunos e da professora por soluções para suas questões relacionais, assim como para encontrar mais sentido na convivência escolar. Parece haver angústia diante da falta de perspectivas frente à escalada de humilhações entre eles o quê causa muito desamparo e desgaste. A despeito destas dificuldades, há esforço para se abrir e exercitar esse diálogo na escola. Ambos, alunos e professora expressaram, através de seu engajamento nas atividades realizadas, a importância de estarem mais próximos, tendo em vista a precariedade das condições institucionais da escola pública no Brasil e as injunções administrativas que determinam limitações para mudanças na instituição escolar.

Considerações Finais

A escola em que se realizou este projeto não se distingue de outras tantas em que alunos insatisfeitos e, frequentemente, revoltados convivem com professores desgastados e ressentidos. A falta de perspectivas em relação à solução de grande parte dos problemas relacionais faz com que o cotidiano da escola brasileira caracterize-se pela animosidade não apena entre professores e alunos, como entre os próprios alunos.

Neste trabalho, resultante de uma parceria entre a professora da turma, os alunos e as pesquisadoras, acompanhamos o processo de questionamento sobre o que vai mal, e as tentativas do grupo de reconfigurar laços e pactos. Observaram-se as enormes dificuldades, tanto por parte da professora, como por parte dos alunos, de abandonarem seu repertório de modos de relacionamento. No entanto, o processo grupal de fala e escuta, muito turbulento no início, foi aos poucos corporificando possibilidades reais de fazer ver a todos o quão custoso e difícil era conviver. Sobretudo, pôde-se questionar a inexorabilidade de uma convivência marcada pelo desprezo e pela violência. Verificamos que a partir da proposta sofrida de refletir sobre a convivência na escola, houve ganhos ainda que pequenos: o crescente interesse na atividade coletiva, uma sensibilização maior em relação às diferenças de opinião, a percepção de que poderia haver outras alternativas de convivência mais satisfatórias. Da parte da professora, a sensibilização para outras formas de relacionamento com os alunos menos rígidas em que os alunos são vistos como mais capazes de autocontrole.

Este trabalho levanta também a pergunta de como esta experiência pode ser aproveitada mais amplamente na escola. Afora os ganhos e conquistas do grupo de pessoas envolvidas, nos parece difícil que possa haver efeitos institucionais mais amplos e duradouros. Projetos de pesquisa e intervenção nas escolas são acolhidos, mas, bem mais como eventos pontuais e delimitados no tempo, espaço e efeitos que devem permanecer circunscritos aos interesses dos pesquisadores. No caso deste estudo, a direção da escola pouco se interessou em discutir os resultados obtidos. Frente a tantas demandas, a escola vê o desenvolvimento destes trabalhos de pesquisa como uma demanda a mais, e não como um meio de conhecer melhor o que faz.

Ressaltamos, também, que em um país com tantas desigualdades, as crianças das classes populares permanecem à deriva de poderem usufruir plenamente da herança cultural a que têm direito. Assim, o processo de transmissão nas escolas públicas brasileiras é fundamental para o projeto de consolidação da democracia no país assentado sobre uma visão de educação popular cujo desenvolvimento leve em conta as especificidades do contexto no qual o endereçamento geracional é levado a cabo.

Agradecimientos

As autoras agradecem os recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) que permitiram a realização desta pesquisa.

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1O ensino fundamental II constitui o segundo segmento da educação fundamental brasileira indo do 6o ao 9o ano.

2De acordo com a página oficial do programa: “O Ginásio Carioca proporciona não só a excelência acadêmica dos jovens, como oferece um conjunto de ações sob a forma de práticas e vivências por meio da ampliação da jornada escolar e da implantação de metodologias que auxiliam na elevação dos indicadores de aprendizagem em todas as suas dimensões, ao apoio ao seu projeto de vida e a educação para os valores democráticos” (RIOEDUCA, 2017). A partir de janeiro de 2019, os Ginásios Cariocas passaram a ser nomeados e a atuar como Escolas Municipais de Aplicação Carioca (EMAC), “valorizando e estimulando as práticas exitosas existentes” (RIOEDUCA, 2019).

3Todos os nomes são fictícios.

Correo electrónico: lrcastro@infolink.com.br

Correo electrónico: paulatumolo@gmail.com

Sobre las autoras Lucia Rabello de Castro é Ph.D. em Psicologia pela Universidade de Londres, e professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Paula Pimentel Tumolo é Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e psicóloga clínica.

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