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Runa

versão On-line ISSN 1851-9628

Runa vol.40 no.2 Ciudad Autónoma de Buenos Aires jun. 2019  Epub 19-Dez-2019

http://dx.doi.org/10.34096/runa.v40i2.6270 

Dossier - Artículo Original

Controvérsias em torno da circulação de crianças indígenas e da reprodução social no Brasil

Controversias en torno a la circulación de niños indígenas y la reproducción social en Brasil

Controversies around indigenous children’s circulation and social reproduction in Brazil

Silvana Jesus do Nascimento1 

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Brasil. Correo electrónico: sjesusn@gmail.com

Resumo

Desde o final de 2017, participei no Estado de Mato Grosso do Sul, Brasil, de um grupo da sociedade civil que se organizou para apoiar Élida de Oliveira que reivindica o direito de conviver com o filho kaiowá que se encontra em uma instituição de acolhimento no município de Dourados desde 2015. Para elucidar o que vem sendo denunciado pela imprensa como “retirada” de crianças indígenas de suas famílias, apresento um caso onde suspeitas sobre a maternidade biológica, de uma mãe que não se submeteu aos procedimentos públicos de saúde, é usado como um dos motivos para a retirada das crianças por autoridades do Sistema de Proteção. A partir da mobilização política em torno do caso chamo a atenção para a participação heterogênea dos índios Guarani e Kaiowá em torno deste debate considerando o contexto histórico e social que se encontram.

Palavras-chave: Brasil; Acolhimento institucional de crianças; Adoção de indígena; Reintegração familiar; Guarani e Kaiowá

Resumen

Desde finales del año 2017, participé en el Estado de Mato Grosso do Sul, Brasil, de un grupo de la sociedad civil que se organizó para apoyar a Elida de Oliveira, quien reivindica su derecho a convivir con su hijo kaiowá, el cual fue llevado a una institución de acogida en la ciudad de Dourados desde 2015. Con el objetivo de elucidar lo que ha sido denunciado por la prensa como “retirada de niños y niñas indígenas” de sus familias, presento un caso en el que las sospechas sobre la maternidad biológica de una madre que no se sometió a los procedimientos públicos de salud son usadas como motivos para la retirada de niños y niñas por las autoridades del Sistema de Protección. A partir de la movilización política alrededor de este, llamo la atención sobre la participación heterogénea de los Guaraní y Kaiowá en torno a este debate, considerando el contexto histórico y social en que se encuentran.

Palabras clave: Brasil; Niñez en cuidado institucional; Adopción indígena; Reintegración familiar; Guaraní y Kaiowá

Abstract

Since last months of 2017, I participated in the State of Mato Grosso do Sul, Brazil, in a civil society group organized to support Élida de Oliveira who claims the right to live with his Kaiowá son, who is in an institutional care in the municipality of Dourados since 2015. In order to elucidate what has been denounced by the press as “removal of indigenous children” from their families, I present a case where suspicions about biological maternity from a mother who has not undergone public health procedures, are being used as one of the reasons for the removal of children by authorities of the Protection System. Starting from the political mobilization around the case, I draw attention to the heterogeneous participation of the Guarani and Kaiowá Indians around this debate, considering the historical and social context in which they are.

Key Words: Brazil; Children in institutional care; Indigenous adoption; Family reunification; Guarani e Kaiowá

Introdução

Este artigo trata da descrição e análise exploratória1 de um estudo de caso que busca dar inteligibilidade ao ponto de vista indígena a respeito da “retirada de crianças” do seu povo, a partir de processos legais que fazem uso de princípios nacionais e internacionais dos direitos das crianças. Crianças e adolescentes consideradas em situação de risco social, como medida protetiva, são retiradas por agentes governamentais de suas famílias. O acolhimento é uma medida de proteção, excepcional e provisório, para essas crianças e adolescentes. O Serviço de Acolhimento Institucional (SAI) é um dos ramos de proteção à criança e adolescente utilizado pelo Estado como forma de abrigar o menor em uma instituição. No período de 2009 a 2010 haviam 135 crianças e adolescentes indígenas em acolhimento institucional no Brasil, representavam 0,4% da população infantojuvenil em instituição. Elas estavam predominantemente nas regiões centro-oeste (42), sul (39) e sudeste (28) do país. O outro ramo são os Serviços de Acolhimento em Família Acolhedora (SAF) em que o “menor” é colocado provisoriamente na casa de uma família. Nesse mesmo período havia um total de 134 indígenas (0,4%) em acolhimento familiar. No Centro-Oeste estava a maior concentração de indígenas acolhidos nesta modalidade representando 1,8% (38) dos acolhimentos desta região, seguido pelo Norte com 1,2% (12) (Brasil, 2011). Ambas as modalidades são utilizadas como forma de transição para a reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para colocação em família substituta. Estas medidas protetivas têm sido compreendidas pela antropologia como um modo de reprodução politizado, pois envolve a redistribuição -e não apenas a produção- de crianças. (Modell, 1998; Fonseca, 2006; Villalta, 2009). A reprodução inclui para Modell (1998) o sentido “de criar uma geração”, entendimento este que possibilita compreender a questão da adoção de crianças indígenas no Brasil do ponto de vista destes povos.

A análise do referido diagnóstico quantitativo da realidade dos serviços de acolhimento no Brasil, no período de 2009 - 2011, apresentam algumas particularidades do acolhimento das crianças indígenas para os agentes governamentais. De acordo com Constantino, Assis e Mesquita (2013, pp. 179) as crianças e adolescentes indígenas quando comparadas as pretas e pardas, as brancas e as amarelas teriam destaque proporcional em relação: 1) “maior incidência de entrega da criança para acolhimento pelos pais ou responsáveis por motivos de doenças ou prisão”; 2) “sofrem mais exploração sexual, violência doméstica física, sexual e psicológica”; 3) “são mais dependentes de pais e responsáveis sem condições de cuidá-los por causa de dependência química”; 4) “entre os indígenas, é mais comum a entrega voluntária de crianças e adolescentes ao SAI”; 5) é mais comum “o acolhimento por motivo de transtorno mental e deficiência dos pais ou responsáveis”; e 6) é recorrente a entrada no SAI por motivo de “orfandade”. Esses apontamentos parecem reforçar o argumento de que as crianças indígenas estariam entre aquelas mais vulneráveis, principalmente pela “questão cultural” - entendida como um atraso do ponto de vista civilizatório - pouco considerando os processos históricos de colonização vivenciado pelos povos indígenas, cujos efeitos corporificados permanecem como as principais causas de violências e sofrimentos de homens, mulheres e crianças.

Com efeito o debate sobre as políticas de proteção às crianças indígenas pode ser sintetizado em dois argumentos. Primeiro, em nome do amor e da bondade a criança indígena é defendida desde uma perspectiva individual que a higieniza de seu pertencimento étnico. Este tipo de intervenção é acusado de reproduzir o racismo e o etnocídio contra os povos indígenas ao considerá-los incapazes de cuidar das suas crianças. Segundo, em nome do reconhecimento a diversidade e o respeito à diferença a criança indígena é defendida desde a perspectiva dos direitos coletivos que tende a “reduzir” sua particularidade geracional. Este tipo de defesa é acusado de preconceito e discriminação contra as crianças indígenas por negar-lhes o direito à igualdade (Cariága, 2012; Albuquerque, 2013; Nascimento, 2013; Oliveira, 2014; Costa, 2016). Ambas as perspectivas constituem em pautas disputadas respectivamente pela agenda política de partidos políticos de direita e esquerda.

Em 2015, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) chamou a atenção para o problema em torno da produção de dados estatísticos sobre as ações de guarda, adoção, acolhimento institucional e destituição do poder familiar envolvendo as crianças e adolescentes indígenas. No mesmo período o órgão indigenista afirmou que possuíam o registro de 217 crianças e adolescentes indígenas submetidos à algumas destas medidas protetivas, mas denunciavam a suspeita de que esses números fossem muito maiores devido à dificuldade de a instituição acompanhar estas situações. Do registro apontado pela FUNAI, 64% (cerca de 139) referia-se às crianças das etnias Guarani e Kaiowá que vivem no Sul, do Estado de Mato Grosso do Sul (MS). O número expressivo de crianças guarani e kaiowá envolvida nestes processos é algo que intriga os pesquisadores, sobretudo quando comparado a outras populações indígenas neste Estado, como é o caso dos Terena, que quase não tem registros desse tipo de ocorrência. O que estaria por trás dos problemas envolvendo as crianças guarani e kaiowá?

Proponho refletir sobre esta questão apoiada na antropologia e no método etnográfico. Sendo parte da população sulmatogrossense, há quase uma década busco estranhar as práticas relacionadas ao tema do acolhimento e da adoção de crianças indígenas. Neste trabalho a pesquisa de campo é constituída por meio da observação e participação nos debates local a respeito do caso de Élida de Oliveira e a discussão fomentada pelos movimentos étnico sociais guarani e kaiowá. Faço uso de diferentes técnicas como o registro sistemático de notícias produzida pelo jornalismo local, análise de documentos públicos, encontros para a formação de agentes governamentais, de entrevistas com indígenas e não indígenas e por meio da militância junto aos grupos que atuam em defesa de um tratamento diferenciado aos indígenas e suas crianças. Ao insistir no olhar antropológico desejo não apenas denunciar um caso individual, mas levantar aspectos para a análise social demonstrando a complexidade envolvida nestes debates que não deve ser reduzido a negação ou a autorização da adoção por não indígenas. Abordagem esta que dialoga com os estudos no campo da adoção de crianças internacional e interacial que rechaçam a dicotomização culpado ou inocente (Briggs, 2012) e introduz a questão da desigualdade social inerente a estes processos de transferências de crianças (Modell, 1998; Fonseca, 2006; Briggs, 2012).

Inicialmente, exponho neste artigo os elementos que configuram a “retirada de crianças indígenas”, no Sul de MS. Para elucidá-lo, apresento o caso “famoso”2 de Élida Oliveira onde suspeitas sobre a maternidade biológica, de uma mãe que não se submeteu aos procedimentos públicos de saúde, é usado como um dos motivos para a retirada do seu filho por autoridades do Sistema de Proteção. No momento seguinte, exploro a participação dos movimentos étnicos sociais guarani e kaiowá no debate sobre a circulação das crianças indígenas entre outras parentelas e principalmente entre os não indígenas. Finalmente, na última parte do artigo, abordo o elo existente entre a retirada da criança indígena e a participação heterogênea dos indígenas no Brasil.

A “retirada das crianças indígenas” no Sul do Mato Grosso do Sul

A questão das crianças indígenas passou a ser debatida nestes termos, após a proclamação da Constituição Federal de 1988 e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990. São reconhecidos avanços importantes para o direito indígena e para direito da criança com estes dois dispositivos jurídicos, ratificados por tratados e convenções internacionais, tais como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2004, e Convenção internacional sobre os direitos da criança, em 1990. O histórico de lutas no Brasil em torno dos direitos das crianças a partir do ECA implicou em avanços legislativos como: a alteração da legislação em 2009 (Lei no 12.010, de 03 de agosto de 2009) que passou a prever um tratamento distinto em relação a colocação da criança indígena e quilombola em família substituta, e; em 2016 foi publicada a Resolução 181, do Conselho Nacional do Direito da Criança e do Adolescente (CONANDA) que visa a adequação dos serviço da rede de proteção para o atendimento de crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais.

Estas normativas são o respaldo legal que nutre a política de proteção às crianças indígenas no Brasil. Primeiro, a política indigenista que antes pautava-se pela integração dos índios à sociedade nacional via assimilação, agora passa a pautar-se pela autodeterminação e valorização da diversidade e da especificidade cultural (Carneiro da Cunha, 2016). Com efeito, as políticas e as ações indigenistas, antes monopólio da FUNAI, foram fragmentadas em diversos ministérios como o da educação, da saúde, do meio ambiente. A área de assistência social antes de domínio das entidades religiosas e civil tem sua consolidação como política pública mais tardiamente. Face a demanda indígena a política de assistência social se dirigiu para a criação de espaços específicos de atendimento, mas posteriormente recuou. Segundo, no âmbito da infância e juventude a política antiga pautada na menoridade, deu lugar a proteção especial (Vianna, 2002; Schuch, 2009). A política antes dirigida aqueles em situação irregular passa a incluir todas as crianças e adolescentes como “sujeitos de direito”. O reordenamento institucional inclui o rompimento com a filantropia e a constituição de Conselhos de direitos e dos tutelares. A institucionalização indeterminada é substituída pelo acolhimento temporário e a priorização da reintegração familiar em detrimento da colocação em família substituta. Entretanto, os críticos vêm demonstrando que persiste nas políticas indigenistas e de proteção à infância e juventude continuidades das velhas políticas, sendo esta uma das razões que complexifica a proteção às crianças indígenas e desafia o trabalho em redes.

Entre os anos de 2005 a 2007 foram realizadas duas Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) - uma estadual e outra federal - para investigar as causas, as consequências e os responsáveis pela morte de crianças indígenas por desnutrição. O número mais elevado de morte de crianças indígenas por desnutrição ocorreu entre 2004 e 2005, chegando a totalizar 16 óbitos em um mês (Brasil, 2010). Em 2005, foi registrada superlotação de crianças internadas pelo diagnóstico de subnutrição no Centro de Recuperação Nutricional (Centrinho),3 da Missão Evangélica Caiuá, localizado nas adjacências da Reserva Indígena de Dourados, na Região Centro-Oeste do Brasil. No bojo destas investigações emergiu a questão das retiradas de crianças indígenas do convívio familiar e comunitário. As controvérsias em relação ao tema demonstravam uma dimensão de ordem política e de ordem cultural em torno das trocas de acusações entre os atores representantes de instituições que atuavam na Rede de Proteção Social à Criança e ao Adolescente.

Nos casos que envolviam a desnutrição, o processo de retirada da criança indígena de suas famílias iniciava principalmente com os atores responsáveis pelo atendimento básico de saúde indígena. Trabalho realizado naquele momento pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), juntamente com a Missão Evangélica Caiuá, diagnosticavam a desnutrição e prescreviam a internação da criança como um dos modos de monitorar e controlar sua recuperação. As famílias classificadas pelos atores da saúde como “resistentes” negavam-se a autorizar a internação dos seus filhos ou a permanecerem acompanhando-os durante o longo período de hospitalização. A “evasão hospitalar” sozinha ou acompanhada dos filhos era um recurso bastante recorrente, principalmente pelas mães. A “negligência” e o “abandono” são categorias utilizadas, pelos atores da saúde, para enquadrar estas “fugas” do que denominam “famílias resistentes”.4

O Conselho Tutelar (CT), então era acionado pelos atores responsáveis pela saúde indígena. O trabalho de “localização da criança” e do “convencimento da família” ao modelo de tratamento proposto pelo Sistema de Saúde era feito pelo CT (Brasil, 2008, p. 116). O “convencimento” muitas vezes implicava em “ameaças” de perda definitiva da criança diagnosticada com desnutrição e das outras que a família tivesse em sua companhia e, também, de prisão dos pais e outros responsáveis por omissão e negligência (Nascimento, 2013).

Indígenas e atores da Rede de Proteção Social comparam a atuação do CT à da polícia. O antropólogo do Ministério Público Federal, Lima, compartilhou comigo durante uma conversa que em 2011, uma liderança kaiowá, disse-lhe: “Conselho é que nem o BOPE [O Batalhão de Operações Policiais Especiais]”. Para este antropólogo, esta instituição se transformou em um dispositivo de controle dos índios por meio do “terror, da ameaça e do medo” de perderem suas crianças. Percepção que também é compartilhada por uma minoria dos atores da Rede de Proteção Social do município de Dourados-MS.

Uma vez alcançado o objetivo da internação social da criança para a recuperação nutricional, mesmo que à custa do afastamento da sua família e parentela, os atores da saúde indígena passavam a se preocupar com o seu encaminhamento futuro. Se apesar de toda a pressão e controle algum parente tenha conseguido manter contato com a criança, a preocupação dos atores governamentais é que no retorno para casa os mesmos cuidados hospitalares não fossem seguidos e a saúde da criança voltasse a se agravar. Para alguns casos a medida considerada “ideal” era o afastamento total da criança de sua família de origem, que passava a ser considerada “abandonada”.

As crianças indígenas “abandonadas” podiam ser colocadas em famílias indígenas substitutas, segundo os critérios estabelecidos pela saúde indígena, ou então nas instituições de abrigamento existentes em MS. O destino para os abrigos foi o que ganhou maior atenção pública, por gerar incertezas, a criança indígena poderia permanecer institucionalizada, retornar para alguma área indígena ou ser encaminhada para a adoção por não indígenas nacional ou internacionalmente.

O Ministério Público Estadual e ao Judiciário são os responsáveis por decidir sobre estes encaminhamentos os quais passam a ser mediado por relatórios de psicólogos e de assistentes sociais. Nos depoimentos à CPI a então promotora da Infância e da Juventude, Cantú da Silva explicou que havia uma diferença de compreensão e posição entre os antropólogos e os operadores do Direito em relação ao “melhor encaminhamento” para estas crianças indígenas “abrigadas”.5 Para ela, os antropólogos estavam “firmes no sentido de respeitar as tradições indígenas” (Brasil, 2008, p. 71), enquanto os profissionais do Direito faziam uma “avaliação objetiva que vida é direito fundamental, acima de qualquer valor cultural” (Brasil, 2008, p. 71).

A partir do argumento que opõe vida à cultura a promotora e outros profissionais do direito estavam colocando a criança indígena em família substituta não indígena. Esta medida que está implicada no direito fundamental da criança à convivência familiar estava sendo privilegiada em relação a sua institucionalização até a maioridade civil, como poderia ocorrer na velha política para a infância. Os casos de reintegração familiar, após o abrigamento, eram muito reduzidos seja pelo argumento de que a família não reunia condições econômicas e morais ou porque o afastamento prolongado implicou em perda de vínculos afetivos e culturais por parte das crianças e adolescentes indígenas.

O argumento de alguns antropólogos passou a compor esse debate sobre a criança indígena guarani e kaiowá a partir do trabalho do Comitê Gestor de Ações Indigenistas Integradas da Grande Dourados, em 2005. A realização dos debates sobre a retirada e a adoção das crianças indígenas em Mato Grosso do Sul foi possível por meio deste Comitê que investiu recursos humanos e materiais no órgão indigenista.

O Comitê foi criado durante o primeiro mandato do presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que unificou as pastas Assistência Social e da Segurança Alimentar no Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Além do Programa Fome Zero, outros como o Programa Bolsa Família (PBF) criados ou ampliados durante a gestão do Partido dos Trabalhadores (PT), foram estendidos aos povos indígenas.

Os levantamentos sobre a situação da sustentabilidade alimentar dos povos indígenas realizados na década de 1990, destacavam os Guarani e os Kaiowá em MS pela condição de vulnerabilidade alimentar e nutricional (Verdum, 2003). Esta situação de vulnerabilidade dos Guarani e Kaiowá foi atribuída “à reduzida dimensão das áreas indígenas e às diferentes formas de intrusão e depredação do meio ambiente por diferentes agentes - governamentais e não-governamentais” (Verdum, 2003, p. 137). Entretanto, a compreensão construída nesse momento é que o “problema indígena” não se resumia a questão da demarcação de seus territórios, mas era preciso incluí-los em outros programas para que tivessem condição de “desenvolvimento” (Verdum, 2003).

A reintegração familiar e comunitária das crianças indígenas abrigadas passou a ser disputada pela FUNAI como uma alternativa às adoções. O cadastramento das famílias no Programa Bolsa Família e a distribuição de cestas básicas foram meios que possibilitaram o retorno de diversas crianças abrigadas para o convívio familiar e comunitário. Esse período é lembrado com emoção e orgulho por algumas das assistentes sociais que estiveram temporariamente vinculadas a FUNAI e participaram ativamente desse processo de desinstitucionalização e reintegração familiar de crianças guarani e kaiowá: “a gente provou que era possível”, disse-me a ex-coordenadora Nicolleti, em uma entrevista em 2012. A assistente social Ebehart, em uma fala pública em 2019, disse: “A gente mexeu com causas grandes. Com as crianças que saíram do abrigo e voltaram para a aldeia deu tudo certo. Só uma não saiu, e após 10 anos voltei a encontrar com ela. [Diz com pesar] Ela está com dois filhos em acolhimento institucional”.

A visibilidade do problema da morte por desnutrição das crianças guarani e kaiowá contribui para o controle destas mortes. Os órgãos da saúde indígena aumentaram a vigilância sobre os índices de mortalidade infantil indígena. Todavia, oscilou e variou de acordo com os municípios o número de abrigamento de crianças guarani e kaiowá. Gomes, formada em Serviço Social, atuante desde 2010 como Indigenista Especializada da FUNAI, e protagonista desta temática nos últimos anos explicou que em 2010 havia 24 crianças “acolhidas” nos municípios do cone sul do MS. Foi para ela chocante se deparar com as situações, porque a maioria destas crianças tinham irmãos, os quais haviam sido adotados por não indígenas.6 A vigilância exercida pela FUNAI vem sendo considerada insuficiente para conter as novas entradas de crianças nos abrigos, além disso o órgão indigenista não goza de legitimidade junto ao Sistema de Justiça para “controlar” os encaminhamentos para adoção por não indígena.7 Apesar de garantido por lei o direito de participação nos processos judiciais que envolvem crianças indígenas, muitas vezes, a FUNAI não era intimada.

Esta contextualização do debate sobre a retirada de crianças indígenas no Brasil e, mais especificamente, em Mato Grosso do Sul tem o intuito é contribuir para o debate público da adoção de crianças indígenas e para o debate antropológico sobre a “circulação de crianças”. Os primeiros estudos antropológicos associou o tema da adoção a sociedades “tradicionais”, a observação de práticas de criação de crianças entre grupos tão diversos levou a relativização do conceito de adoção para distintas sociedades (Fonseca, 2011). A crítica pós-moderna ao problematizar os estudos clássicos contribuiu para demonstrar as possibilidades comparativas, por exemplo, da relação entre a economia social e política particular com o pós-colonial e global (Schachter, 2012). É a relação entre sociedades tradicionais e tecnologias de governo (Schuch, 2009; Villalta, 2013) que a observação da retirada das crianças guarani e kaiowá demonstra rendimento. Passo a apresentar o caso de Élida para que possa ser melhor compreendida o modo como se dá a relação entre a política para os índios e suas crianças e dos índios e suas crianças.

O caso da kaiowá Élida de Oliveira

Élida, nasceu em Iguatemi, na aldeia Porto Lindo, quando a sua mãe morreu os irmãos se “esparramaram”.8 Ela foi morar com o um tio materno na Aldeia Jaguari, em Amambai. Após isso, veio para a Aldeia Bororó, em Dourados, mas desde 2014 “não estava mais bom ali”. Então mudou-se para o acampamento Ñu Vera, que é uma área na periferia da Reserva9 Indígena de Dourados (RID) reivindicada por grupos que demandam a revisão e a ampliação das áreas reservadas (Crespe, 2015). Com o ex-marido teve os cinco primeiros filhos, em um primeiro momento veio com ele para o acampamento, posteriormente se separaram e ela permaneceu no local, enquanto ele se mudou para outro município. Os seus filhos mais novos são frutos de outros relacionamentos. Com 41 anos de idade é uma mulher robusta, muito sorridente e de poucas palavras. As quais se devem ao meu não domínio da sua língua materna, o guarani. Nossos diálogos foram sempre mediados por uma de suas filhas.

No acampamento, em princípio vivia sob um “barraco de lona” semelhantes aos locais onde residem os camponeses que compõem o movimento sem-terra, no Brasil. Após a intervenção realizada pelo Grupo de Apoio, passou a residir em uma estrutura feita de madeirite (madeira compensada ou um aglomerado de serragem que forma uma placa simulando a madeira), coberta com Eternit (material de cobertura utilizado em construções populares). No local não dispõe de energia elétrica e tampouco de água encanada, a qual é proveniente de um poço que cada morador do acampamento faz no pátio de sua residência.

Élida, os quatro filhos (com idades entre 1 e 16 anos) e o neto (com menos de dois anos) que com ela vive não são beneficiários do Programa Bolsa Família. As condicionalidades para o recebimento do Programa são: Saúde, educação e assistência social. Muitas vezes, a Secretária de Saúde Indígena (SESAI) não oferece os serviços de saúde.

Apesar de não existir uma justificativa clara para o não recebimento do benefício, ela é acusada de não garantir a frequência escolar dos filhos, principalmente de um menino, o que é requisito para o acesso ao benefício. Élida admite, às vezes, não consegue convencê-lo a ir à escola. Diante da insistência da mãe, o filho demonstrou muito nervosismo como se tivesse “traumado” - “com problema de cabeça” - e não consegue aprender ou memorizar as instruções que recebe mesmo em casa.

A família de Élida não apresenta renda mensal. Todos vivem de duas cestas básicas (uma é destinada ao núcleo familiar de Élida e outra para a filha que tem um filho) distribuídas mensalmente aos Guarani e Kaiowá em situação de acampamento pela FUNAI. De acordo com uma kaiowá, Agente Indígena de Saúde (AIS), que atende esse acampamento, eventualmente os filhos “grandinhos” de Élida percorrem bairros da cidade “pedindo coisas” que complementam suas necessidades.

Esta história tem semelhanças com a de outras famílias guarani e kaiowá. O caso de Élida destacou-se face à Rede de Proteção Social e as mídias locais e internacional, após sua experiência de sofrimento e luta para conviver com o filho acolhido institucionalmente chamar a atenção de Gomes, a Indigenista Especializada da Funai.

A indigenista compartilhou sua indignação com outras colegas “sensíveis” à causa indígena e/ou das mulheres: uma mãe indígena que “deseja conviver com o filho”, “não faz uso abusivo de álcool” e que “não submeteu este ou outros filhos a situação de violência”. Entretanto, ainda assim a Rede não consegue fazer com que eles voltem a conviver, porque de acordo com o despacho judicial, é “pobre” e “mora em barraco de lona”, “não pode oferecer as condições de vida que o filho está habituado em receber” na instituição de acolhimento. A partir de sua indignação o caso que corre em “segredo de justiça” por envolver uma criança ganhou um pouco mais de visibilidade levando a organização do Grupo de Apoio a Élida de Oliveira.

Enredo que culminou no acolhimento institucional do filho de Élida

Após esta breve narrativa da indigenista, as pessoas interessadas em compreender a história de Élida e apoiá-la em seu desejo de conviver com o filho reuniram-se e se propuseram a visitá-la para entender como poderiam colaborar. Estive presente neste encontro, nas visitas realizadas, e posteriormente colaborei com outras profissionais da assistência social e da psicologia no registro de relatórios que têm subsidiado a sua defesa jurídica. Minha compreensão do caso foi construída a partir da observação e da participação nas ações propostas por este movimento, bem como do trabalho de campo que havia iniciado no acampamento em que reside Élida nos primeiros meses de 2016.

Élida teve o filho acolhido após uma liderança kaiowá do acampamento colocar em suspeita a sua maternidade biológica. Ao levar o bebê com três dias de vida para realizar o primeiro atendimento pela equipe da SESAI volante - que faz os atendimentos preventivos e de baixa complexidade nos acampamentos quinzenalmente e às vezes mensalmente - a vice-capitã, a agente de saúde e os demais profissionais de saúde demonstraram-se surpresos por não terem sido comunicados da gestação e nem terem realizado o acompanhamento gestacional de Élida. De acordo com a agente de saúde às vezes em que fora questionada se estava gestante, Élida sempre negou. A partir de então ela foi acusada de ter “roubado” o recém-nascido, ao que parece uma maneira de represália encontrada pela liderança diante da insubmissão de Élida em comunicar este importante acontecimento de sua vida. A postura de Élida de não submissão aos atuais capitães e mesmo ao atendimento da SESAI estava diretamente relacionada à disputa entre dois grupos no acampamento, os que estavam na chefia do acampamento naquele momento haviam conseguido afastar a antiga liderança a quem Élida manifestava apoio.

Muitas vezes essa relação entre dois ou mais grupos é geradora de fofocas e boatos que na interação ligeira com os Guarani e Kaiowá os que com eles trabalham se vêem facilmente envolvidos e, por vezes, enredados. Antropólogos vinculados a universidades ou outras instituições que tiveram contato com esta temática costumam chamar a atenção para a apropriação das categorias de denúncia dos direitos das crianças pelos índios como uma estratégia de resolução de outros conflitos internos.10 Conflitos cujo mecanismo de resolução tradicional privilegiado por esses índios implica no afastamento territorial de uma das partes até que a situação esteja resolvida, seja pela agência do tempo ou da própria distância. Com os territórios reduzidos este afastamento torna-se mais difícil de ser alcançado havendo necessidade do uso de outras estratégias de força para obter esse mesmo resultado sem cair em um comportamento violento que é desaprovado pelo grupo. O enredamento dos atores da Rede de Proteção Social se dá a medida em que não percebem essa trama ou não sabem como proceder diante dela.

No caso de Élida esta questão - que denomino - política culminou na denúncia do caso às demais instituições da Rede de Proteção Social. No primeiro momento ao Polo da SESAI e a FUNAI. Estas instituições buscaram fazer diferentes orientações em relação ao caso, mas não conseguiram desvendar o “mistério” em torno da maternidade do recém-nascido.

Élida passou a negar a maternidade biológica com o recém-nascido, criando versões em que uma pessoa vinda do Paraguai ou uma prima cujo paradeiro não era identificado havia deixado o bebê para ela cuidar. Possivelmente a nova versão fora a estratégia encontrada para garantir que conviveria com o bebê e com os demais filhos, já que a acusação de “roubo” poderia inclusive culminar em sua prisão. No entanto, no entendimento da maior parte da Rede de Proteção Social (apenas a FUNAI e a Defensoria Pública têm contestado esta versão) restou a sua responsabilização pelo afastamento do convívio com o bebê e o acolhimento institucional: “se ela desejava ficar com ele, porque ela mentiu? Ele está aqui porque ela mentiu. Ele não foi tirado dela, como ela diz. Ela o entregou” (Psicóloga, da alta complexidade em Dourados).

Em meio a esse imbróglio no qual os órgãos indigenistas não puderam solucionar (em parte porque também estavam diretamente envolvidos, entendo que a denúncia beneficiou, por exemplo os servidores da SESAI, no mínimo da acusação de negligência diante de uma gestação não supervisionada) o CT foi acionado pela vice-capitã. Em todas as vezes que testemunhei Élida relatando sua história, ela faz questão de detalhar que: em uma tarde em que o menino tinha sete dias de nascido, ele foi retirado dos seus braços pela liderança e entregue ao CT, com oito dias ele amanheceu na instituição de acolhimento.

Qual o motivo do acolhimento? A motivação para o acolhimento justificado pela Rede de Proteção Social é “abandono”, se nos guiarmos pelo enredo que culminou na denúncia é o abandono pela genitora. Entretanto, no site do TJMS onde consta poucos dados públicos que envolve o processo 0001578-60.2015.8.12.002, o único relacionado ao nome de Élida de Oliveira, que diz respeito a medida de proteção à criança e ao adolescente tem como assunto: “abandono material”. Por sua vez, a FUNAI classificou a motivação para o acolhimento como “negligência”.11

As classificações de “abandono material” e de “negligência” mobilizadas para a retirada da criança, podem ser contestadas, pois ainda que a maternidade biológica estava em suspeita havia a maternidade afetiva e o cuidado de Élida para com a criança. Em relação aos kaiowá sabe-se da recorrência de casos em que as crianças não são criadas pela mãe e o pai de nascimento, mas por outros membros da parentela ou da etnia (Pereira, 2002). Portanto, o outros modos de resolução do conflito, os quais não passassem pelo afastamento da criança da família e da comunidade em que estava inserida, poderiam ser acionados.

Após o acolhimento institucional Élida informou-se com uma assistente social guarani que trabalhava no CRAS indígena, na Aldeia Bororó, sobre a localização da entidade de acolhimento. Passou a visitá-lo na instituição que está distante do acampamento aproximadamente sete quilômetros. Como os ônibus não circulam no acampamento e ela não tinha recursos econômicos para pagar as passagens, fazia o trajeto de bicicleta ou a pé. Nos dias ou nas semanas chuvosas é praticamente impossível realizar esses deslocamentos na terra vermelha e grudento característico da terra de Dourados. Ela e seus filhos eram os únicos a visitar o menino, quando não podia mandava a “filha maior” acompanhada de um dos irmãos. Essas visitas são narradas pelo Lar como “esporádicas”, podendo ser comprovada através de um caderno de visitas de familiares assinado pelos visitantes. Após um ano de visita sem que conseguisse reaver o direito de conviver com o bebê, Élida engravidou novamente, assim como sua filha maior que a auxiliava com as visitas. Devido ao avanço de ambas as gestações, as visitas foram se reduzindo.

Com aproximados um ano e seis meses de acolhimento institucional foi viabilizado pela justiça estadual a realização do teste de DNA. O teste de DNA confirmou a maternidade biológica de Élida com o menino. Nesse tempo o afastamento da família das visitas já era maior, Élida se preocupava com “o filho menor” que nasceu com baixo peso e outros problemas de saúde. A filha maior além de cuidar do próprio bebê precisava estar atenta aos irmãos. Élida precisou acompanhar o filho recém-nascido na internação no Centrinho, durante alguns meses até que ele ganhasse peso. De acordo com o Lar, fazia exatamente um ano em que Élida não visitava o filho quando voltou para visitá-lo. A criança não a reconheceu. Ela foi orientada pela equipe do Lar a descontinuar as visitas, porque seu filho logo seria encaminhado à “adoação” e uma reaproximação não seria boa nem para ela, nem para o menino (e, pela ênfase dada pelo Lar nem para a instituição). Nota-se que nem a comprovação do cuidado e da maternidade afetiva foram suficientes para impedir a retirada do seu filho, tampouco a comprovação da maternidade biológica para assegurar seu direito de conviver com ele.

A FUNAI foi intimada judicialmente a localizar a família extensa ou a sugerir uma família indígena interessada na adoção. Gomes passou a acompanhar o processo deste ponto. Ela indignou-se ao tomar conhecimento do processo e compreender os equívocos cometidos: a retirada apressada, o tempo para a realização do DNA, a negação do direito de convivência familiar mesmo após a confirmação da maternidade com a justificativa socioeconômica proibida pelo ECA.

De outro lado, o Ministério Público Estadual solicitava que a criança fosse diretamente encaminhada para a adoção por branco, ignorando a prioridade da família extensa e do grupo étnico que preconiza o art. 28, do ECA. O pedido era justificado pela idade em que o menino foi acolhido, pelo tempo de acolhimento institucional (a época mais de dois anos) e convivência prolongada com os costumes dos brancos que o fazia, segundo a promotora colocar em questão seu pertencimento racial/étnico: “o que ele tem de indígena?”

Élida reiterou o desejo de ter o filho de volta garantindo ser seu direito por ser ela a mãe dele: “eu sou a mãe”, insistiu ela em português.

O juiz não acata toda a solicitação do MPE. Entretanto entende que há distanciamento afetivo ou falta de vínculo do acolhido com a família, além da falta de condições estruturais em termos de moradia, mobília, alimentação, lazer, vestimenta. Estas são as justificações para o encaminhamento da criança para outra família, mas em respeito ao ECA prioriza uma família indígena que pudesse oferecer condições semelhantes à da entidade.

Movimento étnico social kaiowá - Aty Guasu, Kuñangue Aty Guasu, Retomada Jovem

Há, por parte dos grupos que defendem um tratamento diferenciado à criança guarani e kaiowá que necessitam de proteção social, grande expectativa com a participação dos movimentos étnico sociais guarani e kaiowá. A autonomia desses movimentos étnicos sociais em relação às instituições que compõem a Rede de Proteção Social, a vinculação aos debates internacionais sobre os direitos dos povos indígenas e o “desinteresse” nas disputas internas por recursos contribui para que tenham um outro posicionamento em relação a retirada das crianças indígenas. Com efeito, outra particularidade evocada pelo caso de Élida de Oliveira foi a participação destes movimentos.

Élida de Oliveira, por ser parte de um grupo que “retomou” um território reivindicado como uma extensão de reserva pode contar com o apoio do Conselho Missionário Indigenista (CIMI) em relação a sua demanda de reaver a guarda do filho. Um casal de missionários do CIMI a apresentou para o Conselho Aty Guasu - Grande Assembleia - durante uma reunião que precedeu o encontro12 coletivo de lideranças (capitães e rezadores) guarani e kaiowá realizada na Terra Indígena Panambizinho. O Aty Guasu encaminhou uma carta para diversas instâncias da Rede de Proteção Social acusando-os de racismo institucional e preconceito nas retiradas de suas crianças, manifestando solidariedade à Élida e utilizando seu caso como um argumento sobre a violência do Estado contra os povos indígenas. Diz, a carta:

Sabemos dos desafios do nosso povo, das situações que motivaram a acolhida de 46 crianças e adolescentes indígenas atualmente nas casas. Mas não podemos aceitar atitudes institucionais racistas, preconceituosas, que subjugue as capacidades dos nossos povos em construir soluções para os problemas comuns a toda sociedade humana, mas que no nosso caso, precisa ser respeitado nossos direitos específicos. [...] Ficamos transtornados, com o desabafo de nossa parente Élida [...]. Sr. Juiz, resguardado aspecto sigilosos, não temos dúvidas que o sistema violentou mais uma família indígena, mais uma criança Guarani e Kaiowá, por sua incapacidade de entender e respeitar nosso modo de vida. (ATY GUASU GUARANI KAIOWÁ, 2017)

A história de Élida antes de chegar ao Aty Guasu já havia sensibilizado duas jovens mulheres kaiowá que participam dos movimentos Kunhangue Aty Guasu - Grande Assembleia das Mulheres - e da RAJ - Retomada Jovem. Elas foram importantes para inserir o tema novamente no Kunhangue Aty Guasu, realizado na Aldeia Amambai, em julho de 2018. Nas Kuñangue Aty Guasu os Ava kuera - homens - também participam, um deles fez a seguinte argumentação:

A preocupação do Aty Guasu, quando nós fizemos aquela carta denunciando a retirada das crianças a nível do estado e também para fora, é aquela frase do juiz: [ele] alegou que foi retirado a criança da mãe porque ela vive embaixo de lona, sem condição de cuidar ou atender essa criança. Essa frase do juiz preocupou o movimento, porque para nós - no olhar de todas as lideranças - para refazer essa carta nós saímos na conclusão de que mais uma vez […] o próprio país Brasil, próprio estado e o governo, estão fazendo outro tipo de genocídio. (Ava kaiowá do Aty Guasu, durante Kuñangue Aty Guasu, Amambai, 14 de julho de 2018)

Nestas assembleias guarani e kaiowá a retirada e a adoção das suas crianças foram entendidas como uma forma de genocídio contra o seu povo. Uma kuña - mulher -, presente na reunião explicou na língua guarani e outra traduziu:

O Genocídio das nossas crianças está claro! A pobreza não justifica o acolhimento da criança! Precisam nos respeitar! Os não indígenas nascem no berço, no hospital, os nossos filhos nascem na aldeia, no nosso tekoha, embaixo da nossa casa, na terra. Precisam respeitar o nosso modo de ser nativo. Reclamam que nossos filhos são sujos, mas claro, vivemos na terra, cozinhamos no fogo. Não aceitamos a retirada de nossas crianças, a doação delas para não indígenas, não aceitamos o estado intervindo nas nossas formas de vida e cuidado com os nossos. (Kuña kaiowá, Kuñangue Aty Guasu, Amambai, 14 de julho de 2018)

As mulheres enfatizam o sentimento de desrespeito que sentem com muitas das atuações da Rede de Proteção Social e as diferenças que há no jeito kaiowá e branco de criação de crianças. O preconceito e o racismo institucional para elas estariam presentes na visão etnocêntrica que estes atores têm em relação ao cuidado com as crianças. Um discurso de uma kuña muito aplaudido na assembleia chamou a atenção para a ausência de reciprocidade nestas retiradas - os kaiowá só perdem crianças para os “brancos” - não há o movimento inverso de crianças brancas vindo conviver com os kaiowá.

Por mais que tem conselho tutelar, assistente social dizendo que tem pai, tem mãe bêbado pra retirar a criança e levar para o meio dos brancos a gente ficou assim, mas porque não tira essa criança e não dá para os parentes? Tem vários meios. Tem pessoas para se responsabilizar por essas crianças ou está virando lei pegar os indígenas e dar aos brancos? Daí cabe também, acredito que a gente vê também muitas bêbadas brancas e os homens brancos que também podem perder suas crianças e dá pra nós indígenas. (Kuña kaiowá, representante da ONU, no Kuñangue Aty Guasu, Amambai, 14 de julho de 2018)

Os discursos dos homens e mulheres guarani e kaiowá formulados nas assembleias remetem a discussão fomentada por Modell (1998) para famílias havaianas que enfrentam conflito com o Serviço de Proteção a Infância estadunidense. Se aos olhos do Estado as retiradas protegem as crianças indígenas, na visão destes guarani e kaiowá elas podem desaparecer com as crianças no sentido geográfico e principalmente no sentido cultural. Entender a circulação de crianças como um meio de reprodução para a autora implica em reconhecer que estas intervenções produz “gerações”, é política e envolve não só indivíduos, mas também household - família.

Considerações Finais

Neste artigo tratei da descrição e análise exploratória de um estudo de caso de retirada de crianças guarani e kaiowá que será aprofundado na tese de doutorado. O objetivo foi dar inteligibilidade ao ponto de vista indígena a respeito de processos legais de proteção que fazem uso de princípios nacionais e internacionais dos direitos da criança. Privilegiei a descrição como um modo de dar conta da complexidade envolvida em um debate político que no Brasil, assim como alhures (Briggs, 2012), apresenta-se polarizado por argumentos favoráveis ou contrários às adoções interraciais e internacionais.

A retirada das crianças guarani e kaiowá em MS como procurei demonstrar tem características de “retiradas forçadas” que se assemelham às denúncias que são realizadas em relação às experiências do século passado envolvendo as “gerações roubadas” na Austrália, os “Sixties Scoop” no Canadá, e as escolas residenciais nos Estados Unidos (Briggs e Dubinsky, 2013). Entretanto, se as histórias das ex-colônias inglesas em relação à adoção de crianças indígenas conforme se distanciam no tempo mais dolorosas são consideradas por envolver trauma e vergonha, elas também envolvem controvérsias. Permanecem (lá como no Brasil) disputas e lógicas paradoxais nas novas políticas dirigidas a estes segmentos que, por vezes, ignoram a história de colonização vivenciada pelos povos tradicionais e insistem em tratar os problemas sociais que enfrentam apenas em termos das diferenças culturais.

No debate internacional (Jacobs, 2014) e no Brasil o tema é tensionado pela heterogeneidade da participação dos indígenas. A participação dos Guarani e Kaiowá nas retiradas das suas crianças se dá através da: atuação nas instituições de saúde, na assistência social, no órgão indigenista, na chefia das áreas indígenas, nos movimentos étnicos sociais e em outros espaços. A partir de relações de poder assimétricas estes povos têm conjugado lógicas tradicionais de criação de crianças com as tecnologias de governo dirigidas a proteção à infância (Schuch, 2009; Villalta, 2013). Para compreender seus pontos de vistas é necessário se atentar para sua “cultura” e para as múltiplas relações que estabelecem com os agentes governamentais e não-governamentais de sociedade civil e religiosa em distintos contextos mundiais. Sem olvidar, que assim como demonstra o caso de Élida isto ocorre em um contexto desfavorável a prática do teko porã - jeito bom/bonito - dos Guarani e Kaiowá viver e em meio a luta por recuperar seus tekoha - “lugar onde o Guarani vive segundo seus próprios costumes” (Melià, Grünberg e Grünberg, 2008, p. 129).

Entre os Kaiowá mais reprovada socialmente do que a doação de crianças para grupos de outra parentela é doar para os não indígenas (Pereira, 2002). Os discursos dos movimentos étnico sociais Guarani e Kaiowá, apresentado, reforçam a oposição a transferência de crianças, sobretudo aos não indígenas e a denunciam como um modo de fazer desaparecer a cultura indígena. Argumento que ganham inteligibilidade com a proposição de extensão do conceito de reprodução social para a circulação de crianças, vista não apenas como uma micromovimentação, mas de replicação e reprodução de uma sociedade e uma cultura (Modell, 1998). Ainda que possa parecer paradoxal diante da heterogeneidade de participação dos indígenas no caso apresentado. Na atualidade o desejo de solucionar divergências, demonstrar autoridade, manter-se em cargos e papéis de destaque que possibilitem acesso aos reduzidos recursos disponíveis, lideranças tradicionais e representantes destacados por ocuparem cargos públicos podem “provocar” a “circulação das crianças” para fora de suas parentelas. Esta parece ser uma maneira de lidar com os conflitos entre parentelas em resposta às crises decorrentes do “estado de guerra” em que estão vivendo nas reservas indígenas. Contudo, não é possível deixar de observar que por mais que haja alarde com o número elevado de crianças indígenas nas entidades de acolhimento em MS (em alguns períodos as indígenas chegam a somar 80% das crianças acolhidas em um contexto que os Guarani e Kaiowá não somam 10% de toda a população) permanecem nestas comunidades a alegria e a esperança com cada novo nascimento, além de formas internas efetivas de “fazer crescer crianças”, do contrário a situação poderia ser muito mais grave.

Agradecimientos

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Estudo (CAPES) pela concessão de Bolsa de Doutorado que possibilitou a realização desse estudo. Agradeço à Levi Pereira, Mariana Pereira, Juliana Mota, Juliana Cuozzo, Íris Araújo pelas sugestões realizadas a este trabalho e ainda as contribuições da equipe de pesquisa Niñez, Alteridad y Ciudadanía, da Universidade de Buenos Aires.

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1Apresento resultados preliminares de estudo que será aprofundado na tese de doutorado.

2O caso de Élida foi denunciado em jornais internacional (Conselho Indigenista Missionário (CIMI), 2018; Klein, 2018; Mendes, 2018).

3O Centrinho, desde 2002, foi implementado no sistema público de saúde. É um serviço de baixa complexidade que compõe o atendimento diferenciado para a população indígena. No Brasil a atenção primária de saúde indígena é organizada de modo diferenciado e os outros níveis de atenção de modo genérico. Uma parte do sistema diferenciado é executado por organização não-governamental religiosa e outra por organização governamental.

4Silveira (2009) e Nascimento (2013) apresentam dados para melhor compreender a relação dos Guarani e Kaiowá com os serviços de saúde.

5De orfanato, para abrigo e deste para entidades de acolhimento. Nomes que expressam mudanças nas medidas de proteção e tentativas de reconhecimento do seu público e de transformação da relação entre os sujeitos visando a provisoriedade da medida e o retorno às suas famílias.

6Há casos em que grupos de irmãos são acolhidos ao mesmo tempo e há outros que após a vigilância sobre a família e a retirada do primeiro filho se procede com a retirada de outros. Os mais novos costumam ser os primeiros a serem adotados, seguido pelas meninas. Os meninos maiores e as meninas adolescente normalmente têm maiores chances de retornar à comunidade indígena, a princípio pelo desinteresse pela adoção nestes casos, mas também pelo desejo dos jovens de realizar esse retorno às suas origens (Nascimento, 2013).

7Nas denúncias às instituições nacionais e a sociedade que a FUNAI realizou em 2015 foram apresentados quatros casos de processos de adoção de crianças kaiowá por não indígenas. Todos implicam em “adoções compulsórias” em que o desejo da família de origem não fora respeitado, a busca pela colocação na família extensa não foi suficientemente realizada e nem houve esforço de colocação em outra parentela da mesma etnia.

8Esparramo - sarambi - na língua guarani, é comumente utilizado pelos Kaiowá para referirem-se ao processo de mobilização forçada desencadeada nesta região com a expulsão dos seus tekoha e o cerco nas Reservas Indígenas. Ouvi o termo esparramo também ser utilizado para referir-se à circulação das crianças motivada por situações como a morte de um dos seus responsáveis.

9As reservas indígenas tem um sentido particular para os Guarani e Kaiowá em MS. Para liberar espaços as frentes de colonização, no século passado, o Estado brasileiro criou espaços reduzidos e artificiais sem considerar as relações sociais e cosmológicas desses índios com determinados lugares, os seus modos de organização social e suas distinções étnicas. Desde o princípio este modo de gestão estatal destas etnias foi difícil de ser gerido, entretanto seus efeitos perversos permanecem na atualidade recrudescendo conflitos territoriais entre índios e grandes produtores rurais.

10Fonseca (1995) observa estratégia semelhante (por exemplo, alegação do risco de ser violentada por um vizinho ou pelo pai) entre mães de grupos populares no Sul do Brasil para garantir uma vaga aos seus filhos na antiga Fundação para o Bem-Estar dos Menores (FEBEM).

11A Funai estabelece uma classificação um pouco distinta organizando os casos em duas categorias gerais: negligência ou violência. Como negligência estão todos os casos em que houve suspeita de violência, geralmente classificados pelas demais instituições da Rede de Proteção Social como: alcoolismo, abandono, pobreza, etc.

12No Aty Guasu Guarani e kaiowá, realizado na Terra Indígena Pirakua, em 2017, o tema das adoções das crianças indígenas entrou como uma pauta e Élida de Oliveira teve a oportunidade de expor a sua experiência. Mais detalhes desta “Carta final da Aty Guasu 2017” pode ser acessado no Portal FIAN Brasil através deste link https://fianbrasil.org.br/carta-final-da-aty-guasu-2017/

Financiamiento Bolsa de Doutorado (CAPES) Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

Recebido: 15 de Maio de 2019; Aceito: 11 de Outubro de 2019

Sobre la autora

Doutoranda em Antropologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestre em Antropologia e Graduada em Ciências Sociais, pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

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