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Runa

On-line version ISSN 1851-9628

Runa vol.42 no.1 Ciudad Autónoma de Buenos Aires Apr. 2021  Epub Apr 21, 2021

http://dx.doi.org/10.34096/runa.v42i1.8396 

Dossier - Artículo original

Operações Policiais no Rio de Janeiro (2006-2020).Da lacuna estatística ao ativismo de dados

Police especial operations in Rio de Janeiro (2006-2020):from statistical gap to data activism

Operaciones policiales en Río de Janeiro (2006-2020):de la brecha estadística al activismo de datos

Daniel Veloso Hirata1  * 

Carolina Christoph Grillo1  ** 

Renato Coelho Dirk1  *** 

1 Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil.

Resumo

Este trabalho discorre sobre a iniciativa do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF) de produzir dados próprios sobre as operações policiais no Rio de Janeiro, a fim de preencher importantes lacunas deixadas pelas estatísticas oficiais e intervir no debate e decisões públicas a respeito das letais ações do Estado em favelas. Amparados pela perspectiva do ativismo de dados, os pesquisadores do GENI/UFF têm se associado a demais coletivos para incidir sobre o espaço público por meio dos números. Os dados oficiais disponíveis atestam a exorbitante letalidade decorrente de ações policiais no Rio de Janeiro, mas não possuem informações sobre as operações policiais. Este artigo apresenta os principais resultados do levantamento inédito realizado pelo GENI/UFF sobre essas operações, em série histórica, e narra as experiências recentes de colaboração com outros coletivos, através de relatórios, para incidir sobre uma ação que tramita no Superior Tribunal Federal sobre o tema das operações policiais em favelas.

Palavras-chave: perações Policiais; Ativismo de dados; violência; crime; Rio de Janeiro

Abstract

This paper addresses the initiative of Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos from Fluminense Federal University, Brazil, of producing a database on police special operations in Rio de Janeiro favelas, to fulfill the gaps left by official statistics and to intervene in public debate and decisions in regard to police use of lethal force in favelas. Based on the perspective of data activism, researchers from GENI/UFF have associated with partner groups to intrude in public space through the display of numbers. Official data available attests the outrageous amount of deaths due to police action, but they do not have any information on police special operations. This paper presents the main results of the research conducted by GENI/UFF on these operations and accounts for the recent experiences of collaboration with other collectives, through the writing of reports, to interfere in a Supreme Court process that addresses police special operations in favelas.

Key words: Police Special Operations; Data activism; Violence; Crime; Rio de Janeiro

Resumen

Este trabajo trata de la iniciativa del Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos de la Universidad Federal Fluminense (GENI/UFF) de producción de datos propios sobre operaciones policiales en Río de Janeiro. El objetivo es complementar importantes brechas de las estadísticas oficiales e intervenir en el debate y las decisiones públicas sobre acciones letales perpetradas por el Estado en favelas. Anclados en la perspectiva del activismo de datos, investigadores del GENI/UFF han establecido colaboraciones para incidir sobre el espacio público a través de los números. Aunque los datos oficiales disponibles confirmen la exorbitante letalidad resultante de acciones policiales, lo mismo no aportan ninguna información sobre las operaciones policiales. Este artículo presenta los principales resultados del relevamiento inédito realizado por el GENI/UFF sobre esas operaciones, en serie histórica, y narra las experiencias recientes de colaboración con otros colectivos, por medio de informes, para incidir sobre una acción que tramita en el Superior Tribunal Federal sobre el tema de las operaciones policiales en favelas.

Palabras clave: Operaciones policiales; Activismo de datos; Violencia; Crimen; Río de Janeiro

Introdução

Praticamente todos os dias nos deparamos com notícias de que policiais armados com fuzis realizaram operações de incursão em favelas do Rio de Janeiro, Brasil, frequentemente a bordo de um veículo blindado -o temido “caveirão”- e, às vezes, auxiliados por um helicóptero blindado -o ainda mais temido “caveirão voador”-, utilizado também como plataforma de tiro. Em boa parte dessas operações há intensos tiroteios, que muitas vezes resultam em mortes. Escolas e postos de saúde deixam de funcionar, moradores de favela são impedidos de comparecer no trabalho, famílias inteiras são obrigadas a deitar no chão de casa para se proteger contra os tiros de fuzil que atravessam as janelas e paredes de suas residências. Parte dessas operações resulta na prisão de suspeitos e/ou na apreensão de drogas, armas, dinheiro, bens subtraídos etc., mas ao custo de milhares de vidas e da ruptura do cotidiano nas localidades afetadas. Apesar da intensa mobilização por parte dos movimentos de moradores de favela e de familiares de vítimas e das organizações de defesa dos direitos humanos para denunciar abusos e cobrar providências, as autoridades alegam não ser possível exercer o controle combater sobre a criminalidade sem a realização dessas operações.

Se as incursões policiais armadas em favelas são consideradas inevitáveis para as políticas de segurança pública no Rio de Janeiro, supõe-se que deveríamos ser capazes de avaliá-las. Quantas operações de incursão em favelas são realizadas? Por quais forças? Onde? O que motiva essas operações? Quais são os seus resultados? É surpreendente que nem as próprias instituições policiais saibam dizer quantas operações realizaram, muito menos o porquê de as ter realizado e seus resultados. Ao mobilizar dezenas de policiais armados com fuzis em veículos blindados para realizar operações de incursão armada em territórios densamente populados, os registros de atividade policial produzidos são os mesmos do atendimento a qualquer outra ocorrência e não são quantificados. A ausência de registros ou documentos de registro ou notação para ações tão importantes na área de segurança pública não deixa de ser notável, sobretudo pelo seu interesse para o debate público. Essa ausência parece ser uma ação administrativa que ilumina uma delimitação do que deve ou não deve ser posto em debate.

E foi justamente no sentido de preencher essa lacuna de informações e fomentar o debate público acerca do uso da força por agentes estatais, que o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI-UFF) iniciou um levantamento inédito sobre as operações policiais no Rio de Janeiro, cujos resultados e desdobramentos serão descritos adiante. Movidos pela perspectiva do data activism ou do estatactivisme (Bruno, Didier, Previeux, 2014), engajamo-nos na produção de números sobre as operações policiais de incursão em favelas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. E como tais operações constituem o grande instrumento da ação pública para a área de segurança pública no estado do Rio de Janeiro, elas deveriam ser caracterizadas à contento. Ao realizar o levantamento das operações policiais será possível dimensionar o direcionamento do uso da força pelo Estado e seu impacto na letalidade.

Em seguida, como será relatado, a produção desses dados passou a ser parte da construção de evidências no contexto de uma ação judicial que tramita no Supremo Tribunal Federal, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 635 - a ADPF 635 ou ADPF das Favelas - , que visa à transparência, a prestação de contas, a defesa da vida e a responsabilização do estado do Rio de Janeiro sobre as operações policiais em favelas. A proposta de nossa atuação é voltada ao fortalecimento do espaço público de uma forma específica em que os dados são os principais actantes (Boltanski, 1990) e é sobre essa experiência de intervenção no debate sobre segurança pública no Rio de Janeiro por meio do ativismo dos dados que o presente artigo se debruça.

Seguindo a sócio-história da estatística proposta por Alain Desrosières, o espaço público não é apenas uma ideia vaga, abstrata e normativa que deve ser respeitada, mas também um espaço historicamente e tecnicamente estruturado e limitado que permite o acesso a informações disponíveis a todos por meio da consistência e da permanência, política e cognitiva, de objetos que servem por referência aos debates e que podem ser sempre questionados (Desrosières, 1993). Essas características que entrelaçam o espaço público e a estatística são condensadas no conceito de “convenções de equivalências” (Desrosières, 2008). O conceito de “convenções de equivalências” ilumina a inovação epistemológica da abordagem do autor ao tratar concomitantemente as suas dimensões construídas e reais, as duas lentes complementares que mostram como a estatística é produzida e produz o mundo (Didier, 2014). Essas duas lentes do conceito parecem sintetizar um expansivo campo de estudos sobre as quantificações (Brun, Jany-Catrice, Touchelay, 2016), que procura compreender simultaneamente os múltiplos encadeamentos entre os aspectos políticos e cognitivos das estatísticas (Didier, 2014), seu uso como instrumento de governo de territórios e populações (Foucault, 2008, 2009; Rose, Miller, 1992) construído nas múltiplas formas de tradução e translação entre poder e verdade (Latour, 1988, 2000).

Em nosso caso, a potência do conceito vem da complexa relação entre a mobilização da estatística como instrumento de governo, de fixação de equivalências, mas sobretudo como instrumento de libertação e resistência, pela possibilidade de que antigas equivalências sejam postas em xeque, abrindo-se novas possibilidades de equivalências e questionamentos, tanto políticos como cognitivos. Dentro dessa perspectiva, nosso intuito é irromper o espaço público, deslocar os termos dos debates constituídos e questionar as suas “convenções de equivalências”. Mas uma dificuldade suplementar para essa irrupção é que, mesmo o questionamento das equivalências, supõe um espaço anterior, sólido e permanente, que permite o seu próprio questionamento. O que fazer, contudo, quando essas informações não estão disponíveis? Como estruturar politicamente e cognitivamente o debate público sobre um espaço ainda em construção? Essa dificuldade impulsionou nossas ações sobre as operações policiais no Rio de Janeiro.

O presente trabalho inicia-se com um panorama dos dados oficiais disponíveis sobre violência, desembocando no problema da completa ausência de informações e de prestação de contas à sociedade sobre as operações policiais no Rio de Janeiro, circunstâncias em que ocorrem a maioria das mortes decorrentes de ações policiais no estado. Em seguida, descrevemos a nossa iniciativa de produção de dados sobre operações policiais e narramos as nossas experiências de ativismo por meio dos números em colaboração com outros coletivos, apresentando os resultados de nossas pesquisas, realizadas com o intuito de subsidiar ações coletivas em defesa do interesse público.

Da lacuna estatística...

Para se ter uma dimensão do problema que se relaciona ao uso da força estatal, é importante primeiro um breve panorama de quais dados são existentes e quais não são, em que tipo de informação é possível jogar luz e quais permanecem nas sombras, pois isto vai pontuando quais são os limites em disputa ao redor do problema público violência no Rio de Janeiro (Machado da Silva, 1999).

Podemos iniciar com os dados oficiais disponíveis, produzidos por uma pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID, 2018), coordenada por Nathalie Alvarado e Robert Muggah. A América Latina, que concentra 8% da população mundial, responde por 39% de todos os homicídios do mundo, são 144 mil homicídios por ano na média dos últimos 5 anos. Desses 144 mil homicídios de toda região, o Brasil concentra em média cerca de 65 mil, 45% dos homicídios da América Latina: portanto, o Brasil, com 3,6% da população mundial responde, sozinho, por 18% dos homicídios no mundo. Temos então que a América Latina é a região mais violenta do mundo e o Brasil concentra o maior volume desses homicídios.

Tudo isso é relativamente conhecido, mas resta ainda uma pergunta crucial: quantos desses homicídios são praticados pelo Estado? Apenas em termos comparativos, ao olhar os dados oficiais do “Uniform Crime Reporting”1 do FBI, percebemos que ao longo dos últimos 5 anos, todas as polícias dos EUA - mundialmente conhecidas como muito violentas -, mataram em média 452 pessoas por ano. No Brasil, campeão mundial de mortes praticadas por policiais tivemos, em 2016, por volta de 6000 mortos por policiais intervenção de agentes do Estado. Desses 6000 mortos pela polícia no Brasil, cerca de 25% se concentrava no estado do Rio de Janeiro. As polícias fluminenses mataram, apenas em 2019, 1810 pessoas. Em resumo, num estado com cerca de 16 milhões de pessoas, suas polícias matam mais de quatro vezes a soma das mortes praticadas por todas as polícias dos EUA, um país com 327 milhões de habitantes.

Para finalizar o panorama obtido pelos dados oficiais, entre 2013 e 2017, as polícias do Rio de Janeiro foram responsáveis por algo como 15% dos homicídios no estado. Em 2018, ano da intervenção federal, esse número passou para 28%, enquanto em 2019, ano da virada de governos de extrema direita nas esferas estatal e federal, a polícia foi responsável por quase 40% de todas as mortes (Monteiro, Fagundes, Guerra, 2020). Podemos, portanto, dizer que a América Latina é violenta, que o Brasil é violento e que o Rio de Janeiro, além de ser muito violento, se caracteriza por uma violência impulsionada pelas suas polícias, pela violência de Estado.

A pergunta que então se coloca é: em que situações os policiais matam? Aqui começa a nossa pesquisa, já que é onde se inicia a lacuna estatística que nos impede de avançar no entendimento da questão da violência de Estado. Realizamos um levantamento sobre as chamadas “operações policiais”, quantificando as informações passíveis de serem encontradas sobre as incursões armadas realizadas por diferentes forças policiais/militares. As operações policiais de incursão em favelas constituem o principal instrumento da ação pública (Lascoumes y Le Gales, 2004) para a área de segurança pública no estado do Rio de Janeiro. Tal método de controle do crime depende de que não haja patrulhamento regular em determinadas áreas da cidade, de modo que a presença da polícia se dê apenas por meio de operações esporádicas e relativamente imprevisíveis. Sob o argumento de que não há segurança para os policiais realizarem rondas cotidianas e atenderem a ocorrências nos mesmos moldes em que fazem no restante da cidade, grandes porções territoriais são taxadas como “áreas de risco” ou “áreas sensíveis” e relegadas ao domínio armado (Miranda, Muniz, 2018) de criminosos. Ao mesmo tempo, a prioridade de “combate ao crime” opera como justificativa para a criação de territórios de exceção onde os direitos civis da população são colocados em suspenso. Faz-se, portanto, urgente estabelecer parâmetros de quantificação de uma política tão controversa.

As experiências vividas nos momentos de “operações” foram relatadas de forma bastante clara por meio de dezenas de pesquisas qualitativas conduzidas junto a policiais, moradores e traficantes, ao longo dos últimos anos, que demonstram aspectos importantes, tais mostram como a atuação de policiais se volta para o “combate” de “inimigos em territórios hostis” (Kant de Lima, 1995; Muniz, 1999), as experiências do “terror” a que são submetidos os moradores de favelas, frequentemente mortos, extorquidos, torturados, feitos prisioneiros no interior do “fogo cruzado” entre traficantes e policiais (Machado da Silva, 2008) e o ódio da polícia por parte de traficantes que dependem da demonstração de sua “disposição” para se destacar no “crime” (Grillo, 2013).

Tais operações também já foram descritas como parte dos cálculos para o pagamento do chamado “arrego”, que se traduz pela “compra de proteção”, que os traficantes pagam a policiais para que possam continuar seus negócios ilícitos (Barbosa, 2005; Misse, 2006; Grillo, 2013; Hirata, 2018). De fato, a atuação da polícia em favelas não se propõe a prover segurança pública para a população, mas a regular as atividades do tráfico. As operações servem fundamentalmente para ocasionar prejuízos para os traficantes e medir a sua capacidade de resistência, ajustando o valor do suborno/extorsão conhecido como “arrego”. Embora ilegal, é público e notório que em praticamente todas as favelas onde há tráfico ocorre o pagamento do “arrego”, de maneira a evitar que sejam realizadas incursões armadas na favela ou blitzen no seu entorno para fiscalizar a saída dos usuários de drogas. O grau da capacidade de resistência dos traficantes à ação policial influi na transação de “mercadorias políticas”, ironicamente, tornando as favelas mais inseguras quando a “boca” (apelido dado ao local de venda de drogas nos morros e favelas cariocas) está “fraca”, isto é, simultaneamente incapaz de pagar o “arrego” cobrado ou resistir à repressão policial (Hirata y Grillo, 2017).

Misse (1999) define “mercadoria política” como “toda mercadoria cuja produção ou reprodução depende fundamentalmente da combinação de custos e recursos políticos, para produzir um valor de troca político ou econômico” (p. 295). No caso do “arrego”, a mercadoria política sendo comercializada é o relaxamento da repressão policial ao tráfico, transacionada pelos agentes a quem o Estado delega a prerrogativa legal de “combater” esse mercado ilegal. O modelo de gestão dos territórios empregado pelo tráfico em favelas implica na necessidade da compra das mercadorias políticas, pois os pontos de venda de drogas são fixos e devem ser facilmente identificáveis pelos usuários que procuram as “bocas”, tornando a sua localização igualmente conhecida por parte da polícia e traficantes rivais. Surge daí a necessidade de defesa armada da vida e liberdade dos traficantes, bem como das drogas e dinheiro que circulam nesses pontos, mas a superioridade bélica do Estado impõe que sejam também negociadas mercadorias políticas de modo a reduzir as interrupções no fluxo normal das rotinas do tráfico.

Este quadro de caracterização qualitativa do modelo de operações policiais, contudo, não foi acompanhado da produção de dados quantificáveis sobre essas operações, ou seja, não existem dados que sirvam para apoiar o debate público sobre esse modo de uso da força estatal. Essa ausência é mais espantosa quando confrontada com o fato de que, nos últimos 30 anos, os dados sobre segurança pública terem experimentado uma verdadeira explosão no Brasil, tornando-se um dinâmico campo do debate público (Costa e Lima, 2017). Nesse período, organismos dos diferentes níveis político-administrativos passaram a produzir e divulgar regularmente números sobre segurança pública; cursos de graduação, especialização e pós graduação foram abertos, construindo uma rede nacional de estudos na área com produção de indicadores sistemáticos; grandes ONG’s e think tanks passaram a se dedicar exclusivamente ao tema com relatórios e informes periódicos; e movimentos sociais e ativistas de direitos humanos expandiram e ganharam protagonismo na cena pública, muitas das vezes apoiando suas reinvindicações em quantificações. Parece que a ausência de uma reflexão sobre os números das operações se justifica pelas fontes que servem de referência aos dados produzidos e por uma perspectiva hegemônica adotada.

As fontes dos dados que alimentam esse conjunto de atores que emergiu na construção de um debate sobre os temas da segurança pública são majoritariamente estatais e policiais. Os núcleos de irradiação são as polícias civis de cada estado da federação, pela competência de lavrarem os Registros de Ocorrência (RO’s). Os RO’s são documentos administrativos com o objetivo de notação de eventos que se inscrevem em tipificações penais e fatos administrativos para “orientar a investigação subsequente, de modo a serem complementadas, confirmadas ou refutadas no decorrer da investigação policial” (Miranda y Dirk, 2010). A organização desses documentos estrutura a base de dados das polícias civis e, em alguns casos, é permitido o acesso a outros órgãos para tratamento estatístico. No caso da cidade do Rio de Janeiro, o Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ) tem funcionamento autônomo com relação à polícias e a extinta Secretaria de Estado de Segurança (SESEG), dado o papel de pesquisadores em sua formação original, mas ainda assim, tem acesso parcial ao conjunto de dados da base de RO’s da polícia civil do Rio de Janeiro (PCERJ). Posteriormente, os dados consolidados pelo ISP-RJ podem ser solicitados por qualquer cidadão mediante pedido formal à instituição e, de modo geral, são essas as informações que alimentam os dados dos governos estaduais e federal, como também das diferentes organizações da sociedade civil. Para o caso de nossa pesquisa seria impossível solicitar os dados das operações policiais dado que elas não são registradas nos RO’s e em nenhum outro lugar. Essa ausência de registros ou documentos de notação para ações tão importantes da atuação na área de segurança pública não deixa de ser notável, sobretudo pelo interesse para o debate público na área da segurança pública no Rio de Janeiro.

Uma questão importante a ser destacada acerca da ausência de dados sobre as operações policiais no Rio de Janeiro é a perspectiva por meio da qual o debate público mediado pelos números vem sendo construído. Os trabalhos sobre números realizados pelo ISP-RJ versam, sobretudo, sobre as ocorrências criminais, procurando oferecer um panorama das variações das ocorrências, apresentadas sob a forma de boletins mensais e, ocasionalmente relatórios anuais ou relatórios temáticos especiais, inclusive por meio de sua revista institucional. O objetivo desses boletins e relatórios é dar magnitude à performance das instituições de segurança pública, seguindo os programas implantados pela SESEG. Desde 2009, o ISP-RJ também organiza os dados para o Sistema de Metas e Acompanhamento de Resultados, baseado nos Indicadores Estratégicos de Criminalidade. Os indicadores estratégicos de criminalidade no Estado do Rio de Janeiro são três: letalidade violenta, roubo de veículos e roubo de rua. A ideia, segundo o Instituto de Segurança Pública, é produzir “indicadores com maior impacto na sensação de insegurança da população”, que serviriam para o monitoramento das ações em toda a área de segurança no estado.

A estratégia gerencial, concebida por consultorias privadas, seria a de construir indicadores de performance capazes de induzir a ação dos profissionais da área de segurança pública em uma certa direção (Grillo, Hirata, 2018). Sobre esse ponto, a profusão de dados de algumas das grandes ONG’s e think tanks nacionais e internacionais presentes no Rio de Janeiro também buscam criar parâmetros avaliativos de políticas públicas, dos regimes de eficácia de ações e programas, por meio de indicadores de performance, avaliação e rankings, típicos do benchmarking (Bruno, Didier, 2013). Esta dinâmica de criação da realidade dos números (Boltanski, 2013) não é uma particularidade do Rio de Janeiro, em todo o Brasil procura-se estabelecer relações entre programas de segurança pública e seu principal indexador, a taxa de homicídios, mas também como indexador secundário, se utiliza de forma recorrente, a letalidade policial.

Por outro lado, pode-se dizer com bastante segurança que, no Rio de Janeiro, utilizar a letalidade violenta e a letalidade decorrente de ações policiais como indexadores de performance foi um avanço considerável. Tal é a recomendação das Nações Unidas, segundo a qual os homicídios intencionais são o melhor indicador de violência, não apenas por sua gravidade, mas também por serem mais mensuráveis e comparáveis (geográfica e longitudinalmente) do que outros tipos de crimes, devido à sua condenação virtualmente universal e baixa subnotificação (UNODC, 2019). No entanto, no Rio de Janeiro, desde 1995 até a implementação dos sistemas de Metas e Acompanhamento de Resultados em 2009, vigorava a chamada “gratificação faroeste” - em que condecorações e progressões funcionais a policiais eram “indexadas” pela “bravura” -, o que fez aumentar a mortalidade e letalidade policial no período (Cano, 1997). Desse ponto de vista, um estímulo que fosse pensado em termos de diminuição dos crimes juridicamente tipificados em regiões geograficamente definidas foi um avanço em relação a gratificações individuais feitas por critérios opacos e mal definidos, mas que na prática apareciam como um incentivo ao confronto pelos policiais nos momentos das operações policiais (Silva, 2017). Contudo, parece haver um problema não apenas sobre os critérios que repousam os indexadores de performance, mas também na própria utilização desses como instrumentos de governo (Didier, 2011). Isto pelo conhecido problema do “gaming” (Bevan, Hood, 2006), o jogo estratégico dos atores sobre tais indicadores de performance e dos sistemas de metas.

O caso da letalidade decorrente de ações policiais é exemplar dado que, quando, em 2013, o número elevado dos então chamados “autos de resistência” foi posto como questão pública, o número de pessoas desaparecidas passou a aumentar na mesma proporção em que a letalidade policial caia (Araújo, 2014). Segundo Misse, Grillo, Neri, Teixeira (2013), mais de dez mil homicídios haviam sido cometidos por policiais em serviço no Rio de Janeiro entre 2002 e 2011, sem que houvesse qualquer empenho da Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público e Tribunal de Justiça para apurar as suas circunstâncias e, eventualmente, responsabilizar policiais. Cabe destacar que a suspeita de que os homicídios cometidos por policiais em serviço (normalmente em operações policiais), estariam passando para a categoria de “desaparecidos”, ou seja, que os corpos estariam sumindo, veio no bojo de uma intensa mobilização de movimentos sociais, como associações de moradores de favelas e de familiares de vítimas de violência de estado. Eles estavam menos preocupados com a avaliação da eficácia e performance dos programas de segurança pública e muito mais em construir denúncias públicas (Boltanski, 1990), ou seja, não apenas “melhorar o Estado”, mas, sobretudo, “pressionar o estado”.

São esses mesmos atores que, utilizando os dados oficiais do ISP-RJ, atualmente produzem números não sobre a relação entre ocorrências criminais e performance estatal, mas sim sobre a seletividade da letalidade sob cortes raciais, de classes sociais, de idade, de gênero e territoriais. É sob essa perspectiva, de uma crítica radical (Boltanski, 2013), que essas iniciativas procuram não apenas reforçar e intensificar a boa gestão do governo dos números, mas deslocar o debate sobre segurança pública em uma outra direção.

É nessa direção que, por meio da parceria firmada com coletivos parceiros, temos buscado fortalecer o deslocamento do debate público acerca do uso da força estatal por meio da análise das chamadas operações policiais. Cumpre ressaltar que, ao utilizar fontes de dados originárias de registros administrativos, como é o caso dos dados de segurança pública, que advém dos registros de ocorrências lavrados em delegacias, como também utilizar dados provenientes de matérias de jornais ou outros meios midiáticos, como a produção das bases de operações policiais e de tiroteios, temos que levar em consideração a subnotificação de informações que reduz a quantidade total de observações de determinado fenômeno. Dito isso, tanto os dados produzidos acerca de operações policiais quanto os dados oficiais aqui utilizados, tiveram seus resultados analisados e interpretados como sendo o limite inferior da cadeia de distribuição de dados, ou seja, não existem resultados menores que os observados aqui. E por conseguinte, e tomando noção da presença das subnotificações inerentes a tais dados, os resultados aqui obtidos podem apresentar valores superiores aos encontrados e descritos. Torna-se necessária interpretação dos dados segundo seu limite inferior, pois do contrário, a subnotificação inviabilizaria todo e qualquer estudo que não fosse proveniente de pesquisas com amostragem estatística, onde é possível controlar a precisão e o erro amostral sobre os resultados.

Ao ativismo de dados

A ONG Redes da Maré foi pioneira na produção de dados sobre as operações policiais, realizando levantamentos in loco no território chamado complexo da Maré em 2016. O levantamento feito pela Redes da Maré é aquele de melhor qualidade disponível até hoje pelo fato de não só compilarem dados, mas sobretudo de produzirem dados a partir da atuação de diversos agentes de campo, muitos deles moradores da Maré e de sua extensa rede de colaboradores (mais de 140 pessoas em 21 organizações). Os dados coletados e transformados em números são divulgados por meio da publicação de boletins anuais que atualizam, dentre outras informações, dados sobre as operações policiais no Complexo da Maré. A cada ano esse boletim vai avançando em novos elementos analíticos que ajudam a compreender como funcionam as operações policiais e seus impactos, como por exemplo o número de dias sem aulas. Em seguida, o Centro de Estudo de Segurança e Cidadania (CESeC), referência na política de dados alternativos no Brasil, produziu relatórios importantes durante a Intervenção Federal em 2018 e, agora no formato da Rede de Observatórios da Segurança, monitora, por meio de mídia impressa e redes sociais, continuamente a atividade policial, quantificando ações de patrulhamento e operações. Importante parceiro do GENI, o laboratório de dados Fogo Cruzado - RJ, destaca-se também por produzir dados sobre a ocorrência de tiroteios, desde 2016, também tendo como fonte a imprensa e as redes sociais. Apesar de não produzir dados específicos sobre operações policiais, o Fogo Cruzado realiza a contagem de “tiroteios com presença de agentes de estado”, que possibilita uma aproximação com os eventos típicos das operações policiais.

Nesse contexto emergente de produção de dados alternativos sobre operações policiais, decidimos em 2018 realizar um grande levantamento de dados em ampla série histórica (com início em 1989 e alimentação contínua da base) e abrangência geográfica para toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). Nos concentramos, em particular, nas operações de incursão armada realizadas pelas forças da ordem (policiais, mas também militares) em territórios taxados como “áreas de risco”, notadamente favelas e bairros pobres do Rio de Janeiro, controlados por grupos armados de traficantes ou milicianos. Adotamos como fonte de informação, inspirados na metodologia adotada pelo Fogo Cruzado, os principais jornais de “notícias policiais” (Extra, Dia e Meia Hora) e dados provenientes de redes sociais, especialmente o Twitter, procurando estabelecer duas fontes comparativas com vistas a conferência das notificações das operações policiais.

Sobre essa dupla base, o objetivo inicial foi produzir um relatório sobre operações nos últimos 12 anos (2007-2018) na RMRJ, com maior detalhamento para a cidade do Rio de Janeiro, onde as operações parecem se concentrar. Os elementos descritivos mais gerais para a caracterização das operações policiais foram a sua evolução temporal, as instituições que participaram e sua localização, ou seja, cabe entender quantas operações foram realizadas ao longo de 2007-2018, quem foi o responsável e onde ocorreram. Sempre que possível acrescentamos informações sobre por qual razão a operação foi realizada. Após estimarmos o volume, os autores, o local e as razões das operações policiais, buscamos entender os resultados dessas operações em termos de mortos, feridos, prisões e apreensões. Depois da divulgação do relatório passamos ao diálogo mais próximo das organizações da sociedade civil que se organizavam em ações no âmbito judiciário, especialmente as Redes da Maré.

De fato, os boletins divulgados pela ONG Redes da Maré subsidiaram o trabalho de resistência às letais incursões das forças da ordem, por meio de uma Ação Civil Pública (ACP) iniciada em 2016 e, em 2017 já haviam logrado conquistas importantes na redução da violência de estado. Dentre outras conquistas, a proibição de operações policiais para cumprimento de mandados no período da noite, a instalação gradual de câmeras de vídeo e GPS nas viaturas de polícia presentes na Maré, a disponibilização de ambulâncias em dias de operação e a elaboração de um plano de redução de danos. Tais conquistas inéditas, feitas pela primeira ação coletiva sobre segurança pública sobre favelas do Brasil, minorou as violações de direitos contra a pessoa (invasão de domicilio, violência física, psicológica e ferimentos e mortes decorrentes da ação policial), como também contra a coletividade (o direito de ir e vir e de acesso a equipamentos públicos como escolas e postos de saúde), gerando uma mobilização muito importante de diferentes atores sociais.

No bojo dessas conquistas, a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 (ADPF 635) foi requerida pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) “a fim de que sejam reconhecidas e sanadas as graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição praticadas pelo Estado do Rio de Janeiro na elaboração e implementação de sua política de segurança pública”, como exposto na petição inicial, protocolada em novembro de 2019. No cerne da ADPF 635 está o combate à “excessiva e crescente letalidade da atuação policial, voltada sobretudo contra a população pobre e negra de comunidades”. São exigidas providências como a formulação de um plano para a redução das mortes decorrentes de ações policiais, protocolos claros para a realizações de operações, a proibição de disparos de tiro nas imediações de creches, escolas e equipamentos de saúde e maior accountability e transparência de dados. Como Amici Curiae da ADPF 635, participam diversos movimentos, instituições e/ou organizações da sociedade civil, e assim, pela primeira vez na história do Brasil, movimentos de favela submeteram a sua própria sustentação oral ao Supremo Tribunal Federal (STF) em um julgamento sobre o tema da segurança pública.

Logo após os efeitos da pandemia do covid-19 se fazer sentir no Brasil, a votação no plenário do STF foi suspensa dia 17 de abril, após o pedido de vista de um dos ministros. Contudo, dia 5 de junho, o relator do processo, ministro Edson Fachin, emitiu decisão liminar proibindo as operações policiais durante a pandemia, salvo em casos “absolutamente excepcionais”. Após quinze dias de vigência da liminar, publicamos um relatório técnico incorporado aos autos da ADPF 635 onde procurávamos avaliar os impactos da decisão liminar. Mostramos nesse relatório que durante aquela primeira quinzena, quando comparada a igual período dos últimos 14 anos, havíamos encontrado uma queda de mais de 60% nas operações policiais e, como consequência, o número de mortos em operações policiais (entre policiais e civis) havia reduzido em mais de 70%, o número de feridos em 50% e, como projeção, mais de uma vida por dia teria sido salva.

Nosso relatório teve grande repercussão e foi prontamente respondido nas “considerações” da Subsecretaria de Planejamento e Integração Operacional (SSPIO) da Secretaria de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro e no “argumento da Polícia Militar” realizada pela Subsecretaria Geral da Polícia Militar da Secretaria de Estado da Polícia Militar, ambos anexados como documentos comprobatórios nos autos da ADPF 635. Nesses documentos, dizia-se que nosso grupo era de “pseudo-pesquisadores” que faziam “afirmações criminosas” e que, naquele momento, o Rio de Janeiro possuía números de crimes contra a vida e contra o patrimônio muito baixos “obtidos com o combate frontal as organizações criminosas” e que isto “não se construía em 15 dias”. A “guerra dos números” estava iniciada, ainda que as instituições policiais do Rio de Janeiro procurassem nos desqualificar, pois aceitaram os termos de um debate público “baseado em números”.

Com o intuito de continuar nossa colaboração com a ADPF 635 redigimos um segundo relatório técnico. A pesquisa utilizou dados oficiais sobre ocorrências criminais produzidos pelo Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ), nossos dados sobre operações policiais e dados sobre tiroteios do Fogo Cruzado - RJ para realizar análises estatísticas. Visando à instrução do julgamento da ADPF 635, ainda em aberto, a questão que norteou o estudo foi saber se a realização de operações policiais estaria ou não relacionada ao aumento ou diminuição da criminalidade violenta e, se sim, qual seria esta relação. Dito de outra maneira, decidimos, como cientistas sociais, “levar a sério” nossos interlocutores, que argumentavam que a restrição às operações policiais as impedia de trabalhar no “combate ao crime”.

Os dados apresentados apontaram que o aumento de operações policiais não era acompanhado da diminuição das ocorrências criminais, mas sim o seu inverso: um maior número de operações policiais parecia associar-se a um aumento dos crimes contra a vida e não impactar na redução dos crimes contra o patrimônio. Nesta mesma direção, mostramos, em estudo que atualizava o primeiro, que durante os 31 primeiros dias de vigência da Decisão liminar do Ministro Edson Fachin de restringir as operações policiais no período da pandemia, contribuiu para reduzir a letalidade decorrente dessas operações, sem produzir um aumento das ocorrências criminais. Em seu conjunto, os dados indicam, portanto, a ineficiência das operações policiais no controle do crime e a efetividade do deferimento do pedido de tutela provisória incidental na ADPF 635 em preservar vidas. O estudo afirmou que a postura de negligenciar a defesa da vida sob a justificativa de uma suposta efetividade no controle da criminalidade violenta não era corroborada por uma análise assentada em dados.

Utilizamos o coeficiente de correlação (R) para medir a correlação entre operações policiais e ocorrências criminais. Ao verificar se há uma correlação entre duas variáveis, o que interessa é saber a força dessa correlação (se forte, média ou fraca) e o sentido (se positivo, sendo diretamente proporcional ou negativo, sendo inversamente proporcional). O coeficiente de correlação, portanto, é uma expressão numérica da força e do sentido da correlação. Para realizar o teste de correlação, as operações policiais são a variável independente que deveria incidir sobre o número de ocorrências de crimes contra a vida e de crimes contra o patrimônio, suas variáveis dependentes.

Os resultados do teste de correlação entre a variação anual do número de operações policiais e de ocorrências de crimes contra a vida mostram que existe uma relação moderada e positiva entre as variáveis (R= 0,61), ou seja, que as operações policiais não apenas são ineficientes em reduzir os crimes contra a vida, como também atuam em seu incremento.

Os gráficos abaixo (Gráficos 1 e 2), mostram como se distribui essa associação, representando a variação percentual anual do número de operações policiais e de ocorrências de crimes - contra a vida (Gráfico 1) e contra o patrimônio (Gráfico 2). O eixo vertical refere-se à variação percentual anual do número de crimes contra a vida, ao passo que o eixo horizontal, à variação percentual anual do número de operações policiais. Cada ponto nos gráficos representa um ano da série entre 2007 e 2019 e a sua localização se refere ao valor do percentual de aumento ou diminuição do número de operações policiais (eixo horizontal) e crimes (eixo vertical), em relação ao ano anterior, o que oferece a combinação de cada quadrante. O tamanho dos pontos representa o número de operações policiais no ano designado.

Dentre os crimes contra a vida (homicídio doloso, morte por intervenção de agente do Estado, latrocínio e lesão corporal seguida de morte) são os homicídios dolosos que apresentam um vínculo positivo mais forte (R = 0,71), ou seja, a afirmação de que as operações policiais incrementam os crimes contra a vida é especialmente válida para o caso dos homicídios dolosos. Como hipótese para a interpretação desses resultados, sustentamos que as incursões policiais em territórios conflagrados acirram os conflitos entre os grupos armados (facções do tráfico de drogas e milícias) que disputam esses territórios, à medida que a atuação estatal enfraquece alguns grupos, favorecendo a expansão de outros. Este problema parece ser agravado pela discricionariedade concedida às equipes policiais para realizarem operações sem solicitar autorização ou prestar contas ao Governo do Estado do Rio de Janeiro, o Ministério Público ou a sociedade civil, o que propicia o uso da força estatal para a obtenção de vantagens particulares por parte de indivíduos ou grupos dentro das instituições policiais. Tais dinâmicas foram descritas por pesquisas qualitativas realizadas em áreas controladas por facções do tráfico de drogas (Misse, 2006), mas ainda carecem de mais investigação para a devida compreensão das maneiras pelas quais as operações policiais impactam na dinâmica de disputas entre facções do tráfico de drogas e as chamadas “milícias”, assim como seus possíveis efeitos nos homicídios dolosos - especialmente no contexto atual de expansão das milícias.

Gráfico 1 Correlação entre operações policiais e crimes contra a vida na RMRJ (dispersão feita pelas diferenças percentuais anuais, 2007 a 2019). Fonte: ISP-RJ e GENI/UFF (elaboração GENI/UFF) 

Gráfico 2 Correlação entre operações policiais e crimes contra o patrimônio na RMRJ (dispersão feita pelas diferenças percentuais anuais, 2007 a 2019). Fonte: ISP-RJ e GENI/UFF (elaboração GENI/UFF) 

Com relação aos crimes contra o patrimônio, procedemos da mesma maneira o teste de correlação. Os resultados mostram que existe uma relação fraca e positiva entre as variáveis (R= 0,40), ou seja, que as operações policiais não parecem ter correlação com os crimes contra o patrimônio, apresentando uma correlação fraca na direção do seu incremento. O gráfico abaixo (Gráfico 2) mostra de que maneira se realiza a distribuição da associação entre operações policiais e crimes contra a o patrimônio.

Dentre os crimes contra o patrimônio aqui considerados (roubo de veículo, roubos de rua e roubo de carga) são os roubos de veículos que apresentam um vínculo positivo mais forte (R = 0,61), contrastando com vínculos fracos e positivos para o roubo de rua (R = 0,29) e o roubo de carga (R = 0,08). Nossa hipótese para interpretar esses resultados acerca da relação entre operações policiais e crimes contra o patrimônio se apoia nas conclusões do estudo realizado pelo Centro de Pesquisa do Ministério Público do Rio de Janeiro (CENPE/MPRJ), que apresenta procedimentos metodológicos e resultados muito próximos do presente relatório. Segundo o CENPE/MPRJ, amparando sua afirmação na literatura internacional, o enfrentamento do crime por meio de operações policiais é muito menos efetivo do que aquele dirigido em ações preventivas seguindo as manchas criminais, incidindo, portanto, onde os crimes ocorrem e não onde supostamente estão os criminosos. A falta de efetividade das operações policiais em diminuir os crimes contra o patrimônio poderia ser explicada, portanto, pelo direcionamento de suas ações contra os lugares onde se imagina que moram os criminosos e não para a prevenção orientada nos lugares recorrentes dos crimes.

Com relação aos impactos da decisão liminar, mostramos uma redução de 78,0 % das operações realizadas no período em relação à média dos anos anteriores e que, como resultado da diminuição da quantidade de operações policiais realizadas, houve entre 5 junho e 5 de julho de 2020 uma redução de 49,6% em relação à média de feridos 72,5% dos óbitos decorrentes de operações policiais em relação à média de mortes no mesmo período. A redução do número de operações policiais e, consequentemente, do número de mortos e feridos delas decorrentes constatada com base nos dados do GENI/UFF encontrou forte correspondência com os dados sobre tiroteios produzidos pelo Fogo Cruzado - RJ. A ocorrência de tiroteios caiu 56,0% no período entre 5 de junho e 5 de julho em comparação com a média observada no mesmo período nos anos de 2017 a 2019. Redução que é ainda maior, de 71,5%, quando considerados apenas os tiroteios em que foi notificada a presença policial, situações estas que se aproximam das circunstâncias das operações policiais. O ano de 2020 apresenta o menor patamar da série histórica para os tiroteios com presença policial. Os dados do Fogo Cruzado - RJ apontaram também para uma significativa diminuição do número de mortos e feridos em tiroteios, bastante semelhante à constatada com base nos dados do GENI/UFF sobre mortes em operações policiais - grande convergência nos percentuais de redução de mortes em operações (-72,5%) e em tiroteios com presença de policiais (-73,1%), como também, em menor grau, a convergência nos percentuais de feridos em operações (-49,6%) e em tiroteios com presença de policiais (-58,8%).

Incluímos também os dados oficiais do ISP-RJ sobre mortes por intervenção de agentes do Estado, os outrora chamados “autos de resistência”, comparando o mês de junho de 2020 com a série iniciada em 2007. Pode-se observar que a redução percentual (76,8%) dessas mortes é também semelhante ao percentual de redução dos mortos em operações e dos mortos em tiroteios com presença de policiais. Destacamos que essa redução do número de mortos e feridos inclui também os policiais vitimados em confronto. Ao comparamos a notificação de policiais mortos e feridos entre os dias 5 de junho e 5 de julho de 2020 com a média de policiais mortos e feridos em operações policiais e tiroteios ocorridos no mesmo período em anos anteriores, foi possível perceber que o número de policiais mortos em operações policiais, cuja média era de 2 vítimas no período em anos anteriores, passa para 1 vítima em 2020; e que, sendo 10 vítimas a média de policiais mortos em tiroteios no período em anos anteriores, foi 5 o número de vítimas em 2020. Com relação ao número de feridos, a redução foi de 7 para 5 em operações e de 20 para 4 em tiroteios.

O número de vidas poupadas seria ainda maior caso fossem considerados também os demais efeitos de preservação da vida decorrentes da Medida Cautelar, difíceis de quantificar, como aqueles proporcionados pela maior garantia de paz ao funcionamento dos serviços de saúde e da ajuda humanitária em áreas pobres no contexto específico da atual pandemia. Como forma de estimar esse impacto, os dados do Fogo Cruzado - RJ acerca de tiroteios no entorno de unidades de saúde é bastante significativo. Na comparação entre a média dos tiroteios no entorno de unidades de saúde entre 2017-2019, em 2020 houve uma redução de 61,0% e, feita essa mesma comparação com relação aos tiroteios com presença policial, a redução foi de 82,4%,

Por fim, como forma de associar todos esses resultados positivos na preservação de vidas decorrentes da Decisão liminar do Ministro Edson Fachin ao primeiro item do relatório, cujos resultados mostraram que as operações são um método ineficaz no controle da criminalidade, procuramos comparar os dados criminais durante o período do mês de junho de 2020 com a média de igual período entre 2007-2019. Segundo dados oficiais compilados pelo ISP-RJ e os dados levantados pelo GENI/UFF, a diminuição das operações policiais e a consequente redução no número de mortos e feridos em operações policiais foi acompanhada de uma diminuição da criminalidade. Houve redução em 47,7% dos crimes contra a vida e, particularmente nos casos de homicídios dolosos, diminuição de 39,9%. De forma convergente, houve redução em 39,0% nos crimes contra o patrimônio, em particular de 32,1% nos casos de roubo de veículos.

Conclusão

No momento em que terminamos de escrever o presente artigo quatro ministros do Supremo Tribunal Federal haviam votado favoravelmente a liminar de restrições de operações policiais durante o período da pandemia e nenhum ministro havia se pronunciado de forma contrária. Ainda são necessários mais dois votos para que a decisão liminar seja aprovada. O julgamento da petição inicial ainda será realizado no plenário da instância maior do judiciário brasileiro e seu futuro é incerto.

Os números, contudo, já atuaram de forma a sustentar um debate que os leve em consideração e esperamos que eles continuem a agir sobre o debate público e o juízo dos ministros no caso específico da ADPF 635. Os números também ajudaram a criar vínculos entre os portadores do movimento ao redor da ADPF 635, os movimentos de favelas e de familiares de vítimas de violência de estado, e ONG’s de defesa dos direitos humanos, segmentos estatais como a defensoria pública do Rio de Janeiro e Universidades e centros de pesquisa.

No país onde vivemos, atualmente sob um governo eleito com fortes denúncias de utilização de fake news e que vem se esforçando para desqualificar algumas das principais instituições de produção de dados confiáveis nacionais, fomentar o debate público pela mediação de dados confiáveis parece ser um ato de resistência. Poderíamos lembrar do caso do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, no contexto das queimadas na Amazônia, dos ataques à realização do censo pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística este ano, assim como as ameaças constantes às universidades públicas. Combinam-se restrições orçamentárias com demissões arbitrárias, procedimentos articulados da racionalidade neoliberal e autoritarismo que caracterizam o governo atual do Brasil.

Não é surpresa, portanto, que a área prioritária do governo federal, a segurança pública, seja povoada por opiniões sem qualquer embasamento dentro do imenso campo de pesquisas que se consolidou nas últimas décadas no Brasil e no mundo. Mas os números e as alianças que esses poderosos vinculantes produzem continuam a resistir.

Agradecimentos

Agradecemos ao nosso parceiro, o datalab Fogo Cruzado-RJ, em especial à Maria Isabel Couto, a todos os coletivos e instituições que participaram da mobilização coletiva pela ADPF 635, principalmente a Redes da Maré e o Observatório da Segurança Pública do CESeC, e aos nossos financiadores, Fundação Heinrich Böll Brasil, FAPERJ e CNPq.

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1 . Ver https://www.ucrdatatool.gov/

Financiamento Auxílios à pesquisa da Fundação Heinrich Böll Brasil, Fundação Carlos Chagas de Apoio à Pesquisa do Rio de Janeiro - FAPERJ e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Received: July 31, 2020; Accepted: February 05, 2021

Correo electrónico: velosohirata@gmail.com.

Correo electrónico: carolina.c.grillo@gmail.com.

Correo electrónico: rcdirk@hotmail.com.

Biografia Daniel Veloso Hirata é professor do Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF, Niterói, Brasil) e coordenador do Núcleo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da UFF. É doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP, São Paulo, Brasil). Carolina Christoph Grillo é pesquisadora de pós-doutorado e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal Fluminense (UFF, Niterói, Brasil), e pesquisadora do Geni-UFF. É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da UFRJ. Renato Coelho Dirk é pesquisador do Geni-UFF e do Nucec-UFRJ. É mestre pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, Rio de Janeiro, Brasil) e tem graduação em ciências sociais pela UFF.

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