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Análisis filosófico

On-line version ISSN 1851-9636

Anal. filos. vol.37 no.2 Ciudad Autónoma de Buenos Aires Nov. 2017

 

ARTICULOS

Direito contratual , justiça rawlsiana e etos social*

Contract law, Rawlsian justice, and Social Ethos

Leandro Martins Zanitelli

Universidade Federal de Minas Gerais
leandrozanitelli@ufmg.br


Resumo

O artigo discorre sobre a relação entre o direito contratual e os princípios da teoria da justiça de Rawls, com especial atenção para o princípio da diferença. Parte-se da premissa de que as atitudes dos cidadãos (ou etos social) se sujeitam à influência das instituições. Todo o restante sendo igual, portanto, o princípio da diferença requer instituições que fomentem um etos social o mais igualitário possível. Conclui-se daí que o papel do direito contratual em uma sociedade ideal rawlsiana pode não ser o de promover a eficiência (isto é, beneficiar os cidadãos em pior situação mediante uma regulação eficiente das trocas), mas colaborar para um etos social menos propensoà desigualdade. Afirma-se que o direito contratual pode cumprir esse desiderato de duas maneiras: descritivamente, ao abrir mão da presunção de que os contratantes atuam unicamente para maximizar a própria utilidade (a presunção do homo economicus), e valorativamente, ao enaltecer comportamentos moderadamente altruístas.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Contratual; Rawls; Princípio da Diferença; Etos social.

Abstract

The paper addresses the relationship between contract law and Rawls’s theory of justice (particularly, the difference principle). It assumes that institutions can influence citizens’ attitudes (or social ethos). Thus, all rest being the same, the difference principle requires that, to the greatest possible extent, institutions favor an egalitarian ethos. This leads to the conclusion that the role of contract law in an ideal Rawlsian society may be other than promoting an efficient regulation of economic exchange. Contract law can switch citizens’ egoistic attitudes in two discursive ways: by doing away with the assumption that agents are interested only in maximizing their own utility (the homo economicus assumption) and praising the value of moderately altruist behavior.

KEY WORDS: Contract Law; Rawls; Difference Principle; Social Ethos.

Introdução

Este artigo versa sobre a relação entre o direito contratual e a teoria da justiça de Rawls (ou a "justiça como equidade"). Seu ponto de partida é um artigo no qual Joshua Cohen (2001) afirma que o princípio da diferença (a segunda parte do segundo princípio da justiça de Rawls) pode requerer instituições sociais que influenciem as atitudes dos cidadãos (ou etos social) de maneira que beneficie os cidadãos em pior situação. Argumenta-se que a afirmação de Cohen dá fôlego à investigação sobre a relação entre os princípios da justiça de Rawls (em particular, o princípio da diferença) e o direito contratual. Ao invés de certas consequências distributivas imediatas, o melhor que o direito contratual pode fazer, segundo uma concepção de justiça como a de Rawls, talvez seja tomar medidas contrárias a um etos social de maximização do autointeresse.
A primeira parte do artigo faz uma breve revisão da literatura sobre a relação entre a justiça como equidade e o direito contratual. A segunda parte apresenta o argumento de Joshua Cohen (uma resposta à crítica ao rawlsianismo feita por G. A. Cohen) sobre o impacto das instituições para o etos social e o princípio da diferença. Nela também se diferenciam três etos: HOMEN ECONÔMICO, TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA E IGUALITÁRIO
. Embora a crítica de G. A. Cohen se volte contra o fato de o rawlsianismo alegadamente tolerar a atitude de TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA, demonstra-se que uma sociedade ideal rawlsiana pode ter de se contentar com homem econômico (um etos ainda menos igualitário). Se uma cultura estritamente igualitária (como a de igualitário) não se mostrar viável, a suplantação de homem econômico por talentoso moderadamente egoísta (à medida que realizável) pode satisfazer ao princípio da diferença. Por fim, a terceira parte levanta algumas hipóteses sobre o papel do direito contratual para a moderação do egoísmo.

1. O direito contratual e a teoria da justiça de Rawls

Põe-se de lado neste artigo a questão de saber se o direito contratual é, para Rawls, parte da estrutura básica da sociedade. Os princípios de justiça que Rawls tem em vista se aplicam a essa estrutura, definida como "a maneira como as principais instituições sociais distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão das vantagens da cooperação social" (Rawls 1999, p. 6).1 Se o direito contratual não estiver entre essas instituições, qualquer relação sua com a teoria da justiça de Rawls estará descartada. Parte-se aqui, contudo, da premissa de que essa interpretação é equivocada.2
Quais seriam, então, as implicações da teoria da justiça de Rawls para o direito contratual? Rawls defende dois princípios (ou três, se, como é praxe, as duas partes do segundo princípio forem tratadas como princípios independentes). Enquanto o primeiro princípio assegura liberdades básicas (princípio das liberdades), o segundo requer igualdade de oportunidades (o princípio da equitativa igualdade de oportunidades) e que diferenças na distribuição de bens primários (como renda e riqueza) favoreçam (ou maximizem a vantagem) dos cidadãos em pior situação.
Sobre o primeiro princípio, um comentário importante é a respeito do que ele não implica. Rawls não inclui a liberdade de contratar em geral, ou "liberdade de contratar tal como entendida pela doutrina do laissez-faire" (Rawls 1999, p. 54)3 entre as liberdades asseguradas por esse princípio. Isso importa porque, devido à prioridade "léxica" (istoé, irrestrita) do primeiro princípio sobre o segundo, se o princípio das liberdades prescrevesse um direito contratual de laissez-faire, quaisquer demandas do segundo princípio para os contratos somente vigorariam sob a condição de não violar essa prescrição.
O que o princípio das liberdades requer, então, do direito contratual? Se admitirmos que alguns contratos podem atentar contra as liberdades básicas garantidas por esse princípio, seria forçoso então que o direito negasse eficácia a esses contratos. É o que Rawls pensa de contratos pelos quais as partes renunciem a direitos fundamentais, como o direito de voto e à liberdade de credo (Rawls 1993, p. 365-367). Nãoé claro, porém, se toda renúncia a direito fundamental é uma violação às liberdades básicas, e, portanto, a que atos de renúncia essa recomendação se aplica. Por exemplo, por certo as liberdades procriativas estão entre as liberdades básicas; deveriam ser considerados nulos, então, os contratos de gestação de substituição ("barriga de aluguel")?4
A primeira parte do segundo princípio não requer igualdade de oportunidades apenas, mas "equitativa" [fair] igualdade de oportunidades. Não basta, pois, que ocupações e cargos estejam formalmente abertos a todos. É preciso também que a desigualdade decorrente de contingências sociais seja abolida, de tal maneira que as chances de cada um dependam apenas das aptidões inatas e da disposição (Rawls 1999, p. 63). Para alguns autores (Shiffrin 2004, p. 1649-1650; Kordana e Tabachnick 2005, p. 630-632; Klijnsma 2005, p. 85), a equitativa igualdade de oportunidades limita a liberdade contratual ao proibir certas práticas discriminatórias (por exemplo, a discriminação no emprego).
Contra, porém, a ideia de tratar o princípio da equitativa igualdade de oportunidades como um princípio de antidiscriminação, pode-se alegar, primeiro, que nem toda prática discriminatória tem relação com as oportunidades. Uma cláusula que proíbe um imóvel residencial de ser sublocado para negros não influi sobre as oportunidades a que o segundo princípio alude (isto é, oportunidades para ocupações e cargos ou posições), salvo, é claro, à medida que a prática de vedar locações para negros tenha um efeito discriminatório irradiante. Segundo, o princípio em questão não requer que as chances de exercer cada cargo ou posição individualmente sejam as mesmas para os igualmente dotados (Zanitelli 2015, p. 398-399). Não viola o princípio da equitativa igualdade de oportunidades o fato de um empregador idiossincrático contratar apenas trabalhadores cujo nome começa com a letra "A", contanto que haja posições similares disponíveis em outros lugares. Em geral, portanto, o que atenta contra a equitativa igualdade de oportunidades não é um ato isolado, mas a discriminação disseminada.5
As observações acima levam a concluir que, se há um princípio da teoria de Rawls com impacto considerável sobre o direito contratual, esseé o da diferença. Tal conclusão, tendo em vista os efeitos dos contratos para a distribuição da riqueza, não é surpreendente. A esse respeito, a primeira consideração a fazer é que o mercado parece ter, para Rawls, um lugar na sociedade ideal. Os dois regimes institucionais que Rawls considera propensos a atender aos princípios da sua concepção de justiça, a democracia de cidadãos proprietários e o socialismo liberal (Rawls 2001, p. 138), incluem o mercado em sua caracterização. Sobre o último, em particular, Rawls ressalta que "não há qualquer liame essencial entre livre-mercado e a propriedade privada dos meios de produção" (Rawls 1999, p. 239).6 Um regime socialista pode, em consequência, usufruir das vantagens do mercado.
Quanto a essas vantagens, Rawls cita o fato de o mercado se coadunar com a liberdade de ocupação, uma das liberdades básicas (Rawls 1999, p. 240). Poder-se-ia objetar, contudo, que, idealmente, ao menos, o mercado não é uma condição necessária para essa liberdade. Em certo sentido, pode haver até maior liberdade de ocupação em uma sociedade na qual o mercado de trabalho seja substituído pelo trabalho não remunerado exercido à medida da capacidade de cada um. Ao argumentar a favor do mercado, no entanto, é bem possível que Rawls não tenha em vista arranjos institucionais pouco viáveis ou com consequências potencialmente devastadoras para a eficiência (Van Parijs 2009, p. 146). A alternativa ao mercado talvez seja, pois, aos olhos de Rawls, uma economia planejada com trabalho forçado, o que explicaria a preferência pelo primeiro.
Outro argumento em favor do mercado é o da eficiência. Rawls se vale de argumentos econômicos familiares sobre a capacidade do mercado para alocar recursos eficientemente, ainda que sem desconhecer a conveniência de políticas macroeconômicas e de combate a falhas de mercado, como externalidades (Rawls 1999, p. 238-241). A eficiência é importante para Rawls por uma razão análoga à usada em defesa do princípio da diferença: todo o restante sendo igual, é irracional preferir um arranjo institucional menos a um mais eficiente, assim como é irracional preferir um estado distributivo de estrita igualdade a outro no qual todos, inclusive os cidadãos em pior situação, estejam em vantagem. Voltaremos adiante à relação entre o princípio da diferença e a eficiência.
Reconhecer que o mercado está entre as instituições de uma sociedade ideal pouco diz, ainda, acerca do direito contratual. É duvidoso até mesmo que o mercado requeira um direito contratual, se como tal entendermos um direito contratual estatal. Embora todo mercado dependa de normas, não necessariamente essas normas hão de ser as ditadas por autoridades. Se é com a eficiência que estamos preocupados, pode até mesmo haver razões para preferir que as operações de mercado se submetam a normas não estatais (por exemplo, normas costumeiras ou definidas por associações).7 Pondo isso de lado, o fato é que os argumentos de Rawls em defesa do mercado não são elucidativos quanto ao conteúdo do direito contratual. Podemos depreender que alguma liberdade de contratar deva ser assegurada, mas não seus limites, nem, muito menos, como responder a questões de detalhe.
Uma hipótese seria então considerar que assim como a eficiência determina a preferência pelo mercado em detrimento de uma economia planejada, também deve reger o detalhamento do direito ao qual as operações de mercado se sujeitam. Entre desenhos do direito contratual mais e menos eficientes, deveríamos, pois, preferir os primeiros. A consequência seria conferir validade, sob a ótica rawlsiana, à vasta literatura (a "análise econômica do direito") sobre direito contratual e eficiência.8
O passo pode ser, contudo, precipitado. O princípio da diferença não é um princípio de eficiência. Entre arranjos mais e menos eficientes, o princípio da diferença só manda ficar com os primeiros se, além de eficientes, também forem mais favoráveis aos cidadãos em pior situação. Uma coisa, portanto, é comparar o mercado (em geral) com qualquer alternativa consideravelmente inferior em termos de eficiência. Se um arranjo é consideravelmente mais ineficiente do que outro, é provável que os princípios da diferença e da eficiência andem juntos, porque a tendência é que a ineficiência em questão contrarie os interesses de todos, inclusive dos cidadãos em pior situação. O caso é outro, no entanto, se as diferenças de eficiência são menos pronunciadas, tal como pode se dar quando comparamos não mais o mercado e a economia planejada, mas, por exemplo, uma norma que limita a indenização por inadimplemento de contrato aos danos previsíveis e uma norma de indenização ilimitada. Não é absurdo cogitar que uma norma ligeiramente menos eficiente seja, não obstante, mais vantajosa para os cidadãos em pior situação.
Por outro lado, os defensores da eficiência podem não depender da presunção (que, de fato, é frequentemente falsa) segundo a qual soluções institucionais mais eficientes são também mais favoráveis aos cidadãos em pior situação. É comum entre os defensores da análise econômica do direito alegar que, mesmo que a eficiência deva ser sacrificada por algum outro objetivo (como a maximização da vantagem dos cidadãos em pior situação), esse objetivo, ao menos à medida que envolva redistribuição da renda, deve ser perseguido por outros meios —em particular, a tributação e as políticas de transferência— que não o direito contratual. O argumento mais famoso a respeito é o da "dupla distorção", de Kaplow e Shavell (1994). Esses autores alegam que, em comparação com outrasáreas da legislação, o imposto de renda pode obter iguais resultados distributivos com menor sacrifício para a eficiência. O argumento, caso correto, levaria à conclusão de que os cidadãos em pior situação não têm nada a ganhar (mas sim, possivelmente, a perder) se o direito contratual for orientado para outros fins que não a eficiência.
Mesmo que Kaplow e Shavell estejam errados,9 há outros problemas com a ideia de usar o direito contratual para favorecer os cidadãos em pior situação (de outra maneira que não "indireta", istoé, pelo bem que um direito contratual eficiente propicia a todos).10 Um deles se refere ao fato de classes às quais normas contratuais poderem favorecer —como as de devedores, consumidores e inquilinos— não necessariamente corresponderem à dos cidadãos em desvantagem. Para evitar que o direito contratual incorra em "imprecisão distributiva", seria preciso redesenhar suas normas a fim de que, ao invés das categorias costumeiras, elas se aplicassem em favor apenas dos cidadãos que queremos beneficiar. Outro problema, mais sério ainda, é que um direito cujo intuito seja favorecer uma das partes da relação contratual pode se mostrar inócuo ou até contraproducente. Enquanto houver mercado, normas contratuais que dispensem tratamento especial aos cidadãos em pior situação podem ter o efeito de fazer com que outros agentes se recusem a contratar com essas pessoas ou só aceitem contratar sob termos mais gravosos.11
Algumas considerações sobre a relação entre o direito contratual e o princípio da diferença pecam por ignorar os problemas apresentados acima. Kordana e Tabachnick (2005, p. 626), por exemplo, afirmam que "o arranjo que maximiza a posição dos cidadãos em pior situação pode, portanto, um direito contractual que contenha, por sua vez, uma regra similar ao que geralmente se entende como lesão"12, entendendose como lesivo, ou inconscionable, no caso, o contrato com preço ou cláusulas abusivas. Não há nenhuma menção, entretanto, ao impacto do controle de preços ou cláusulas, o qual pode, como observado, acabar de fato contrariando os interesses daqueles aos quais queremos beneficiar. Kordana e Tabachnick (2005, p. 629) limitam-se a dizem que os juízes poderiam se recusar a chancelar contratos abusivos para favorecer os cidadãos em pior situação, sem demonstrar como os cidadãos em questão sairiam ganhando com essas decisões.13

2. Princípio da diferença, instituições e etos social

Tendo em vista as observações antecedentes, é grande a tentação de classificar a importância da teoria da justiça de Rawls para o direito contratual como modesta. Mesmo que o direito contratual esteja entre as instituições sujeitas aos princípios da justiça como equidade, parecem secundárias, em primeiro lugar, as implicações dos princípios das liberdades (uma vez descartada, como é de praxe, a ideia de que esse princípio ampare um direito contratual de laissez-faire) e da igualdade de oportunidades. Quanto ao princípio da diferença, vimos que há boas razões para que respalde um direito contratual orientado para a eficiência, uma conclusão que, embora não destituída de valor teórico (já que proveria uma justificação liberal-igualitária para a análise econômica do direito), equivaleria a reconhecer que o rawlsianismo não tem nada de substancialmente novo a oferecer para o direito contratual.
Pode ser, porém, que até aqui tenhamos apenas "procurado no lugar errado". Nesta seção, intenta-se demonstrar que o direito contratual pode satisfazer ao princípio da diferença de uma maneira não relacionada com a busca pela eficiência. Antes, no entanto,é preciso entender o papel do etos social na crítica que G. A. Cohen faz ao rawlsianismo, bem como a resposta de Joshua Cohen a essa crítica.14
G. A. Cohen (2008) atribui ao rawlsianismo a seguinte interpretação do princípio da diferença: ainda que causem desigualdade de renda, incentivos são justificados à medida que, sem eles, cidadãos talentosos se recusem a empregar seus talentos de maneira que beneficie os cidadãos em pior situação. Para ficar com o exemplo do próprio G. A. Cohen (2008, p. 184-185), considere o caso de uma pessoa que, por um salário de £20.000 anuais, prefira ser jardineira, e que, embora pudesse trabalhar como médica pelo mesmo salário, somente aceitaria abandonar a jardinagem pela medicina por £50.000 anuais ou mais. Admitindo-se que a sociedade em geral, inclusive os cidadãos em pior situação, estará melhor caso essa pessoa trabalhe como médica a £50.000, tal salário, apesar da desigualdade a que dá lugar, estaria justificado.
O argumento de G. A. Cohen é intrincado, mas, para o que nos interessa, pode ser resumido ao seguinte: se endossamos o princípio da diferença como princípio de justiça, então não podemos considerar justo que a pessoa mencionada acima receba £50.000 para trabalhar como médica. O princípio da diferença só admite desigualdades necessárias para beneficiar os cidadãos em pior situação, e, de acordo com G. A. Cohen, a desigualdade causada pelo salário de £50.000 não é necessária, porque a pessoa do exemplo poderia, se quisesse, trabalhar como médica por £20.000.
Uma das questões suscitadas pela crítica de G. A. Cohen se refere ao âmbito de aplicação dos princípios da justiça. Uma resposta a essa crítica consiste em dizer que, como os princípios da justiça rawlsiana se aplicam às instituições, mas não a comportamentos individuais, uma sociedade na qual médicos tenham um salário de £50.000 pode estar totalmente de acordo com esses princípios. Dependendo das motivações dos agentes, um arranjo institucional que permita incentivos como o do exemplo acima pode ser necessário para beneficiar os cidadãos em pior situação. Como é de decisões institucionais que se trata, incentivos se coadunariam, em tal caso, ao princípio da diferença.15
Não é preciso, porém, chegar a um veredito sobre o âmbito de aplicação dos princípios da justiça de Rawls para contestar a opinião de G. A. Cohen acerca da relação entre rawlsianismo e incentivos. Para entender por quê, repare que, no caso acima, o incentivo possivelmente só é necessário porque a cidadã talentosa possui uma certa atitude, ou etos,16 em relação às outras pessoas. É plausível atribuir a sua recusa a trabalhar como médica por £20.000 ao fato de ela não estar inclinada a realizar um trabalho do qual gosta menos sem ser recompensada, mesmo que £20.000 sejam um bom salário e que ela saiba que fará mais bem aos demais (inclusive aos cidadãos em pior situação) se trabalhar como médica.
Pois bem, considere, então, em contraste, o caso de uma outra pessoa apta a trabalhar como jardineira ou médica e que (a exemplo da anterior) aprecie mais a jardinagem do que a medicina. Por um salário de £20.000 anuais e todo o restante sendo igual, essa pessoa também preferiria, portanto, o trabalho como jardineira. Ao contrário da anterior, porém, a pessoa em questão agora age sob o que G. A. Cohen refere como etos igualitário. Ela está inclinada a fazer algum sacrifício (moderado) pelos cidadãos em pior situação e a aceitar, portanto, o salário de £20.00017 ou um pouco mais para fazer um trabalho que seja o seu preferido.
Tendo em vista essa possível diferença de atitudes, bem como o fato de, em uma sociedade, certas atitudes serem mais comuns do que outras (daí se falar em um etos social), J. Cohen (2001) afirma que rawlsianos não precisam se contentar com a recusa de cidadãos talentosos a, salvo mediante incentivo, empregarem seus talentos da maneira que mais favoreça aqueles em pior situação.18 Pois suponha que dois arranjos institucionais tenham diferente impacto sobre as atitudes dos cidadãos talentosos: enquanto um deles dá lugar a atitudes como a do cidadão que se recusa a abandonar a jardinagem pela medicina caso não receba £30.000 a mais, outro inspira o etos igualitário que caracteriza o segundo dos dois exemplos acima. Se assim for, então o princípio da diferença ordena que, todo o restante sendo igual, o segundo conjunto de instituições seja preferido ao primeiro, já que os cidadãos em pior situação terão a sua vantagem maximizada sob instituições que incitem os cidadãos a fazer uso de seus talentos sem a necessidade de incentivos.19
Considere três motivações possíveis: a de um cidadão que, em cada transação, tenta conseguir o máximo para si (o homo economicus, OU HOMEM ECONÔMICO), a de um outro que se recusa a trabalhar por uma renda condizente com os ônus que esse trabalho lhe impõe, mas se contenta com algo menos do que o máximo que poderia obter (TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA), e a de outro, por fim, disposto a usar seus talentos da maneira socialmente mais valiosa sem requerer para tanto nenhum benefício desproporcional ao trabalho que faz (igualitário). O debate entre G. A. Cohen e J. Cohen põe de lado o HOMEM ECONÔMICO, sob a alegação de que o princípio da diferença não endossa, nem mesmo no que o primeiro chama de interpretação frouxa [lax],20 a vantagem que o HOMEM ECONÔMICO aufere a mais do que o TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA (G. A. Cohen 2008, p. 57; J. Cohen 2001, p. 367). Sem dúvida, se £50.000 forem o mínimo necessário para que um aficionado por jardinagem trabalhe como médico, um salário superior a esse (mesmo que possível de obter) constitui, em qualquer sentido, um incentivo maior do que o necessário para maximizar a vantagem dos cidadãos em pior situação. No mundo real, porém, nenhum arranjo institucional é capaz de calibrar incentivos de maneira a que nenhum HOMEM ECONÔMICO ganhe mais do que um TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA ganharia. Tomandose as atitudes dos cidadãos como dadas, as instituições que satisfazem ao princípio da diferença são as que minimizam os efeitos negativos para os cidadãos em pior situação de dois tipos de erros: o de permitir que o HOMEM ECONÔMICO ganhe mais do que o TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA ganharia (o erro do incentivo além do necessário, ou erro de tipo 1) e o de levar o TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA a não empregar seus talentos por falta de incentivo (o erro do incentivo aquém do necessário, ou erro de tipo 2).21
A conclusão é que uma mudança do etos prevalente de HOMEM ECONÔMICO para TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA já beneficiaria consideravelmente os cidadãos em pior situação. Simplificando, se todos se comportassem como TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA, o risco de erros de tipo 1 desapareceria: como talentoso moderadamente egoísta conserva apenas o necessário para fazê-lo preferir o trabalho socialmente mais valioso, nenhum excesso de incentivo causará, de fato, dano aos cidadãos em pior situação. Bastaria, em tais circunstâncias, orientar os cidadãos com renda acima da média para que restituíssem ao erário (ou entregassem à caridade, o que fosse melhor) todo centavo porventura recebido em excesso ao mínimo necessário para que façam o trabalho desejado.22 Mais ainda, afastado o risco de erros de tipo 1, reformas institucionais poderiam se verificar com o fim de diminuir a frequência de erros de tipo 2. Se os cidadãos atendem espontaneamenteà orientação para restituir o que ganharam a mais (como se pode supor que TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA faria), parte da tributação poderia ser abolida e, com ela, os erros de tipo 2 que resultam de alguns cidadãos serem tributados em uma medida maior do que a máxima que os faria trabalhar da maneira mais benéfica para os cidadãos em pior situação. Evidentemente, instituições que lograssem fazer com que IGUALITÁRIO fosse o etos prevalente propiciariam ainda mais igualdade sem perda de bem-estar.
Se admitirmos que o etos social é importante para a desigualdade e que esse etos se sujeita à influência das instituições, a próxima questãoé: quais são as instituições capazes de modificar as atitudes dos cidadãos na direção certa? J. Cohen (2001, pp. 377-379) faz duas cogitações a respeito. A primeira, tendo por base a distinção de Arend Lijphart entre democracias consensuais e majoritárias, é que as instituições características das primeiras, ao requererem coalizões políticas mais amplas, acabem dando lugar a um etos mais solidarista. Uma segunda hipótese, mais próxima do que nos interessa, é que medidas de regulação do mercado de trabalho (em particular, sobre sindicalização e salário mínimo) tenham o mesmo efeito. Como reconhece o próprio J. Cohen (2001, pp. 378-379), no entanto, é difícil demonstrar que as instituições citadas sejam a causa de uma diferença de etos entre sociedades com democracias consensuais e regulação laboral e sociedades nas quais essas mesmas instituições não se fazem presentes. Ao invés de um etos mais solidarista ser um efeito das instituições, o correto pode ser justamente o oposto.

3. Direito contratual e etos social

Na seção anterior, mencionaram-se dois agentes com atitudes diferentes em relação às vantagens que o mercado pode oferecer, HOMEM ECONÔMICO e TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA. Apesar de se tratar de simplificações, é possível afirmar que, em geral, uma sociedade em que o etos predominante é o de TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA é, no que se refere ao princípio da diferença, superior a uma sociedade em que HOMEM ECONÔMICO predomine. Como as duas não diferem quanto ao uso dos talentos ou capacidades produtivas (as instituições de TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA podem ser arranjadas de maneira a incentivar os cidadãos a produzirem tanto quanto em HOMEM ECONÔMICO), não há uma vantagem de eficiência que justifique preferir alguma delas a despeito de causar maior desigualdade. A sociedade de TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA, ademais, é uma sociedade menos desigual do que a de HOMEM ECONÔMICO, na qual os cidadãos guardam para si a parte da renda que excede o incentivo necessário para o trabalho socialmente ótimo. Todo o restante sendo igual, portanto, instituições (o direito contratual entre elas) que promovam o etos de TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA são superiores a instituições que façam o mesmo com HOMEM ECONÔMICO (evidentemente, instituições que forjassem um etos ainda mais vantajoso para os cidadãos em pior situação, como igualitário, seriam tanto melhores).
Atualmente, são abundantes as evidências de comportamento desviante do HOMEM ECONÔMICO, como em experimentos com o jogo do ditador23 (Kahneman, Knetsch e Thaler 1986, Engel 2011). Se os seres humanos apresentam atitudes altruístas ou pró-sociais, a questão consiste em verificar o que causa essas atitudes. Interessa, sobretudo, saber se o direito, em particular o direito contratual, pode fomentá-las.
Pergunta-se por vezes sobre o efeito do mercado sobre normas sociais e motivações (Falk e Szech 2013). É claro, contudo, que não há um "mercado", mas diferentes mercados com características que variam de acordo com as instituições a que se sujeitam. Entre essas instituições está o direito contratual, que podemos definir não apenas como um conjunto de normas, mas também como prática discursiva. O direito contratual se constitui, em tal sentido, pelos discursos sobre a legislação e as decisões judiciais que a aplicam, bem como pelos discursos encontrados nessas decisões mesmas.
Gostaria de apresentar, então, as seguintes duas hipóteses. A primeira é a de que o direito contratual pode promover um certo etos social descritivamente, isto é, por meio de suas presunções comportamentais explícitas ou implícitas. A segunda é a de que tal impacto também pode ser alcançado valorativamente, por meio de discursos que valorem (positiva ou negativamente) certos comportamentos.
Em relação à primeira hipótese, a ideia fundamental é que descrições acerca do comportamento humano são "autorrealizadoras" [self-fulfilling], isto é, validam-se devido à força do discurso mesmo. Uma descrição dos seres humanos como agentes egoístas pode, pois, levar ao egoísmo (Miller 1999).24 Em relação ao direito, o temor que advém daíé que a presunção de que é preciso apelar ao autointeresse dos agentes mediante incentivos ou sanções transforme o autointeresse em norma social prevalente (Frey 1997).25
Um modo pelo qual o direito contratual pode dar lugar à atitude característica de HOMEM EGOÍSTA é, portanto, mediante a presunção de que essa seja a atitude das partes de um contrato. É plausível que essa presunção se faça especialmente saliente em pelo menos dois casos hoje em dia, o do controle do conteúdo contratual nos contratos de adesão e o das consequências do inadimplemento. Sobre o primeiro, quanto maior for o controle, mais patente parece ser a presunção de que as cláusulas atendem unicamente ao interesse da parte estipulante. Sobre o segundo, o endurecimento da sanção pelo inadimplemento (seja mediante normas dispositivas, a aplicar no silêncio das partes, seja pela invalidade de cláusulas que exonerem ou mitiguem a responsabilidade pelo inadimplemento) comunica a mensagem de que as partes são autointeressadas, e, portanto, somente se motivarão a cumprir a palavra dada pela ameaça de sanção.26
Passemos à segunda hipótese. Nela, a suposição é que parte das consequências culturais do direito decorre dos valores que ele comunica, o que se designa, por vezes, como "função expressiva" (Sunstein 1996, Van Der Burg 2001). No caso do direito contratual, a hipótese é que o etos social de TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA poderia ser fomentado por regras e discursos que expressem o valor de um altruísmo limitado. Em contrapartida, discursos que enalteçam o egoísmo desenfreado (por exemplo, por suas alegadas vantagens sociais) dariam força a HOMEM ECONÔMICO.
A função expressiva à que alude o parágrafo anterior é exemplificada pelo princípio da boa-fé, ou boa-fé objetiva (código civil, art. 422).27 Esse princípio requer que as partes de um contrato se comportem de maneira leal, levando em consideração os interesses uma da outra. De acordo com Martins-Costa (1999, p. 412), a boa-fé objetiva é "regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses do ‘alter’". O princípio da boa-fé é um moderador do autointeresse em particularmente duas instâncias. Primeiro, em relação à interpretação do contrato, a boa-fé objetiva não permite que, a pretexto de não haver expressa previsão legal ou contratual, as partes se escusem de fazer o que era, não obstante, razoável esperar delas. Exigemse dos contratantes, portanto, "comportamentos que não resultam nem de expressa e cogente disposição legal nem das cláusulas pactuadas", mas que sejam, não obstante, indispensáveis "à plena produção dos efeitos correspondentes ao programa contratual objetivamente posto" (Martins-Costa 1999, p. 429). Segundo, a boa-fé (relacionando-se à ideia de "abuso de direito") impede o exercício de direitos em circunstâncias nas quais tal exercício viole o "mandamento de agir com lealdade e correção" (Martins-Costa 1999, p. 457) ou contrarie "legítimas expectativas criadas na outra parte" (Negreiros 2006, p. 146).28
Outro princípio com valor expressivo é o da função social do contrato. No código civil (art. 421), a função social é explicitamente relacionada a limites à liberdade de contratar,29 comunicando-se a ideia de que o contrato não é um meio para que as partes persigam irrestritamente seus interesses. Por força do princípio da função social,"o contrato não deve ser concebido como uma relação jurídica que só interessa às partes contratantes, impermeável às condicionantes sociais que o cercam e que são por ele próprio afetadas (Negreiros, 2006, p. 208).30
Trata-se aqui, é claro, de meras suposições sobre a relação entre direito contratual e etos social. As hipóteses levantadas poderiam ser corroboradas por experimentos (por exemplo, experimentos com o jogo do ditador) nos quais os participantes fossem previamente apresentados a características do direito contratual ou dos discursos que o constituem. Mesmo, no entanto, que as suposições acima estejam corretas, não seguiria daí que o princípio da diferença requeira um direito contratual nos moldes referidos. Primeiro, por óbvio, não necessariamente instituições favoráveis ao etos de TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA são as que maximizam a vantagem dos cidadãos em pior situação, já que pode haver instituições alternativas com impacto cultural ainda mais favorável a esses cidadãos. Segundo, a influência do direito contratual sobre o etos social pode ser modesta, e as medidas necessárias a inspirar um certo etos podem ter consequências imediatas contrárias aos interesses dos cidadãos em pior situação. Por exemplo, afirmou-se acima que o controle sobre o conteúdo de contratos de adesão pode comunicar a presunção de que a parte estipulante (geralmente, um empresário) comporta-se autointeressadamente, uma presunção com possível efeito autorrealizador. É bastante plausível, no entanto, que esse controle de cláusulas ocasionalmente beneficie os cidadãos em pior situação que aderem a tais contratos, impedindo a aplicação de cláusulas que atentem contra seus interesses. Mesmo, pois, que o etos de TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA seja a meta de instituições sociais rawlsianas (dada a inviabilidade de uma cultura ainda mais igualitária) e que o direito contratual esteja apto a contribuir para que esse etos prevaleça, as consequências distributivas imediatas das regras contratuais devem ser consideradas.31

Conclusão

Este artigo versou sobre a relação entre os princípios da justiça de Rawls e o direito contratual. Afirmou-se, em consonância com o restante da literatura, que as implicações para o direito contratual dos princípios das liberdades básicas e da equitativa igualdade de oportunidades são periféricas. Quanto ao princípio da diferença, por sua vez, viu-se queé tentador concluir que um direito contratual que maximize a vantagem dos cidadãos em pior situação é, grosso modo, um direito contratual eficiente. Caso verdadeira, essa conclusão levaria rawlsianos a endossar as políticas de direito contratual preconizadas pela análise econômica do direito.
Instituições sociais, contudo, não atendem ao princípio da diferença apenas por seus efeitos distributivos imediatos, mas também pelo seu impacto cultural. Como argumenta J. Cohen (2001), instituições capazes de fomentar um etos social mais favorável aos cidadãos em pior situação são, todo o restante sendo igual, requeridas pelo princípio da diferença. Ao invés, pois, da eficiência das trocas, o direito contratual pode atender ao princípio da diferença se der lugar a atitudes que maximizem a vantagem dos cidadãos em pior situação. Mais precisamente, cogitou-se que o direito contratual poderia beneficiar os cidadãos em questão ajudando a suplantar o etos de HOMEM ECONÔMICO (ou da maximização do autointeresse) pelo de TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA (caracterizado por cidadãos talentosos que se contentam com o incentivo mínimo para empregar seus talentos da maneira que maximamente beneficie os cidadãos em pior situação). Por fim, descreveram-se dois modos de o direito contratual cumprir esse desiderato. Primeiro, é possível que o etos de HOMEM ECONÔMICO seja fomentado por medidas e discursos em que o autointeresse se presuma, explícita ou implicitamente. Evitar ou moderar essas medidas (como, por exemplo, o controle de conteúdo dos contratos de adesão) é, portanto, um meio de ajudar a que atitudes diferentes da de HOMEM ECONÔMICO preponderem. Segundo, o direito contratual pode expressar valores que se contraponham ao egoísmo desenfreado, tal como se faz, mediante o princípio da boa-fé, ao enaltecer o comportamento leal e a consideração para com o interesse da outra parte.

Notas

* O autor agradece a dois pareceristas anônimos de Análisis Filosófico pelos comentários e sugestões feitos a uma versão anterior deste artigo, bem como à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) por uma bolsa de iniciação científica conferida ao projeto de pesquisa do qual este artigo é resultado.

1 Tradução do autor. No original: "the way in which the major social institutions distribute fundamental rights and duties and determine the division of advantages from social cooperation."

2 Há uma famosa passagem na qual Rawls se refere a uma "divisão institucional do trabalho" entre, de um lado, o direito contratual e, de outro, as instituições incumbidas de corrigir o resultado acumulado de transações individuais e manter a "justiça de fundo" (background justice), tal como a tributação sobre a renda e a herança (Rawls 1993, p. 268-269). Essa passagem leva à interpretação de que o direito contratual não pertence à estrutura básica da sociedade. Contra tal interpretação, no entanto, veja Kordana e Tabachnick (2005) e Scheffler (2015).

3 Tradução do autor. No original: "freedom of contract as understood by the doctrine of laissez-faire".

4 Kordana e Tabachnick (2005, p. 613) reputam "nebulosas" [murky] as consequên cias do primeiro princípio para o direito contratual, assim como Scheffler (2015, p. 13). Tratei das implicações para os contratos do Estado de Direito [rule of law] como liberdade básica em um outro artigo (Zanitelli 2016).

5 O que não quer dizer que não haja razão para proibir atos isolados de discriminação. Sobre a inclusão de um direito a não discriminação entre as liberdades asseguradas pelo primeiro princípio, veja Shiffrin (2004, pp. 1646-1649).

6 Tradução do autor. No original: "there is no essential tie between the use of free markets and private ownership of the instruments of production".

7 Para revisões da literatura a respeito, veja Trebilcock e Leng (2006) e Rubin (2008).

8 Para um panorama atual, veja De Geest (2011).

9 Para críticas ao argumento da dupla distorção, veja, entre outros, Jolls (1998), Sanchirico (2001), Logue e Avraham (2003) e Blumkin e Margalioth (2006).

10 Sobre os problemas mencionados a seguir, veja Logue e Avraham (2003, pp. 177-188).

11 Ackerman (1971) enuncia as condições um tanto restritivas sob as quais normas sobre a qualidade de imóveis locados conseguiriam transferir renda de senhorios para inquilinos. Veja também Kennedy (1982, pp. 611-614). Por outro lado, nem toda disposição legal sobre contratos, é bom frisar, sujeita-se ao inconveniente aludido acima. Exemplos de regras cujo impacto distributivo não pode ser evitado pelas forças do mercado são as que permitem o comércio de bens antes inalienáveis (como partes do corpo humano) – o que não quer dizer, é claro, que regras assim sejam a melhor solução para beneficiar os pobres ou até mesmo, em geral, desejáveis. Sobre o efeito distributivo de medidas "comodificantes" (isto é, que transformam bens em mercadoria vendável) e questões correlatas, veja Radin (1987). Por fim, o direito contratual também pode ter um efeito distributivo "horizontal" (Logue e Avraham 2003; veja também Kennedy 1982, pp. 611-614), isto é, alterar a situação de pessoas que ocupem a mesma posição na relação contratual, como no caso de uma lei que beneficia alguns consumidores à custa de outros.

12 Tradução do autor. No original: "[t]he economic scheme that maximizes the position of the least well-off, then, may include a scheme of contract law that itself contains a rule resembling what is conventionally understood as unconscionability".

13 De modo similar, Klijnsma (2015, pp. 85-86) afirma que "a proteção da parte mais fraca nos direitos do trabalho, inquilinato e do consumidor pode ser vista como tentativa de fazer valer o princípio da diferença" (tradução do autor; no original: "weaker party protection, in labour law but also in tenant law and consumer law, can be seen as attempts to implement the difference principle"). Para uma posição mais cética, ver Hesselink (2011, pp. 303-304).

14 Para evitar confusão, as referências aos dois autores serão feitas doravante com as iniciais, G. A. Cohen para Gerald Allan Cohen e J. Cohen para Joshua Cohen.

15 Para a réplica de G. A. Cohen ao argumento acima, que ele designa como "objeção da estrutura básica", veja G. A. Cohen (2008, cap. 3).

16 A noção de etos é trazida à discussão por G. A. Cohen (2008, p. 144), segundo o qual "o etos de uma sociedade é o conjunto de sentimentos e atitudes em virtude dos quais suas práticas ordinárias, e pressões informais, são o que são (tradução do autor; no original: "the ethos of a society is the set of sentiments and attitudes in virtue of which its normal practices, and informal pressures, are what they are").

17 G. A. Cohen considera compatível com o etos igualitário que o salário de médica seja um pouco maior do que o de jardineira para compensar por um eventual especial ônus [special burden] que o exercício da medicina traga consigo (G. A. Cohen 2008, pp. 55-56).

18 Segundo G. A. Cohen (2008, p. 127), Ronald Dworkin lhe fez ponderação similar à de J. Cohen oralmente. Sobre o ponto, G. A. Cohen (2008, p. 127) afirma que um eventual dever de forjar instituições que fomentem um etos igualitário não poderia ser, para Rawls, um dever de justiça, o que, como observa J. Cohen (2001, p. 377),é patentemente falso. Se o princípio da diferença (um princípio de justiça) requer que as instituições maximizem a vantagem dos cidadãos em pior situação, e as instituições capazes de alcançar esse objetivo são as que tenham certo impacto sobre o etos social, então não há dúvida de que há um dever de justiça em favor de instituições assim. O que G. A. Cohen teria razão de dizer é que, se o melhor que as instituições de uma sociedade conseguirem alcançar ainda acomoda uma parte considerável dos cidadãos como maximizadores da própria vantagem, esse melhor estado possível (institucionalmente falando) será, no sentido de Rawls, justo, a despeito de as atitudes prevalentes não serem as mais benéficas aos cidadãos em desvantagem.

19 Rawls claramente espera que as instituições influenciem as atitudes dos cidadãos (Rawls 1996, p. 269): "um regime econômico, digamos, não é apenas uma ordem institucional para atender aos desejos e aspirações existentes, mas uma maneira de forjar desejos e aspirações no future. De maneira mais geral, a estrutura básica molda a maneira como o sistema social produz e reproduz ao longo do tempo uma certa cultura compartilhada por pessoas com certas concepções de bem." (tradução do autor; no original: "an economic regime, say, is not only an institutional scheme for satisfying existing desires and aspirations but a way of fashioning desires and aspirations in the future. More generally, the basic structure shapes the way the social system produces and reproduces over time a certain form of culture shared by persons with certain conceptions of the good").

20 Sobre a diferença entre as interpretações frouxa e estrita do princípio da diferença, veja G. A. Cohen (2008, p. 69). A primeira interpretação considera incentivos necessários à medida que, sem eles, os cidadãos talentosos não queiram produzir de maneira a maximizar a vantagem dos cidadãos em pior situação. A interpretação estrita não considera a mera recusa dos cidadãos talentosos como suficiente para dizer que um incentivo é necessário.

21 Para não complicar desnecessariamente a análise, presumo acima que o incentivo necessário para que o TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA empregue seus talentos da maneira mais apreciada socialmente também é o que maximiza a vantagem dos cidadãos em pior situação. Esse pode não ser o caso, porque o incentivo demandado por TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA pode ser grande o suficiente para anular a vantagem que resulta (para aqueles em pior situação) do uso ótimo das capacidades produtivas desse cidadão.

22 Por certo, a recomendação para restituir parte da renda pode demandar mais psicologicamente do que um imposto mediante o qual a renda em excesso seja tomada dos cidadãos coercitivamente. Na versão simplificada do que se chama acima de TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA, tais detalhes são desconsiderados. Se TALENTOSO MODERADAMENTE EGOÍSTA é definido simplesmente como alguém que guarda para si o necessário (e não mais do que o necessário) para preferir o trabalho socialmente mais valioso, não faz diferença o meio pelo qual a renda superior a esse mínimo lhe é tirada.

23 No jogo do ditador, um dos participantes (o "ditador") recebe (geralmente) dinheiro para dividir entre si e outro participante (o "destinatário"). O ditador pode determinar a divisão que quiser, inclusive uma em que o dinheiro fique todo para si. Contrariamente ao que a presunção do autointeresse levaria a esperar, sujeitos no papel de ditador frequentemente dão parte do dinheiro ao destinatário.

24 A força autorrealizadora do discurso é uma das hipóteses para a maior frequência de comportamentos autointeressados (aferida, por exemplo, em experimentos com jogos de cooperação) entre economistas. Ver Frank, Gilovich e Regan (1993), Wang, Malhotra e Murnighan (2011).

25 Há pelo menos duas explicações possíveis para o impacto comportamental da presunção de autointeresse. Uma é que, ao serem informadas sobre o comportamento autointeressado das demais, as pessoas passem a crer que é assim que devem se comportar também (Miller 1999). Outra é que elas se comportem como "cooperadoras condicionais" (Fischbacher, Gächter e Fehr 2001), isto é, estejam dispostas a agir de maneira não egoísta contanto que as outras também o façam. Assim, ao sugerir que o comportamento autointeressado é a norma, a cominação de sanção levaria cooperadores condicionais a atuar egoisticamente (Mulder, Van Dijk, De Cremer, Wilke 2006).

26 O discurso contratual comunica a mesma mensagem ao aduzir que, quando não pela sanção jurídica, as partes podem ser motivadas a adimplir pela vantagem que uma boa reputação oferece para interações futuras. Veja, por exemplo, Hadfield (2008, pp. 178-179).

27 Os exemplos a seguir são de princípios expressamente previstos pela legislação contratual brasileira. Em lugares nos quais não haja essa previsão, pode-se chegar a resultados semelhantes com base em princípios análogos enunciados em disposições legais ou por meio de decisões judiciais que apliquem os princípios referidos no texto (ou similares) como "princípios gerais de direito". Agradeço a um(a) parecerista anônimo( a) de Análisis Filosófico por insistir em um esclarecimento sobre esse ponto.

28 Não terá o princípio da boa-fé também um conteúdo descritivo? Não se pode depreender que só há um princípio jurídico para requerer que os contratantes se comportem de maneira leal porque, de fato (ou à falta de uma sanção), esse comportamento raramente se verificaria? Talvez, mas há uma diferença entre enaltecer a conduta leal e instituir medidas de repressão à deslealdade. Evidentemente que, como princípio jurídico, é de se esperar que a boa-fé objetiva se traduza em medidas assim, mas, em certos discursos doutrinários, a ênfase recai sobre o que é esperado que as partes façam, e não para a sanção aplicável em caso de violação.

29 Código civil, art. 421: "(a) liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato."

30 Pode-se, é claro, interpretar o princípio da função social do contrato de maneira condizente com HOMEM ECONÔMICO, como ocorreria se afirmássemos que o "interesse social" ou cumprimento da função social é assegurado por agentes predispostos unicamenteà maximização do próprio interesse. Essa, contudo, não é uma interpretação conforme aos limites à liberdade contratual que o art. 421 do código civil atribuià função social do contrato.

31 No caso em que uma medida apta a causar uma mudança desejável do etos social a longo prazo tenha efeitos imediatos desfavoráveis para os cidadãos em pior situação, um trade-off se mostra inevitável. Não é possível aqui entrar em detalhes sobre esse problema —um problema de justiça transicional—, mas parece certo que, para resolvê-lo, deva-se considerar, possivelmente entre outros fatores, a magnitude do efeito esperado sobre o etos social, a probabilidade de que esse efeito ocorra e a magnitude da piora imediata na situação dos cidadãos em desvantagem. Agradeço a um(a) parecerista anônimo(a) de Análisis Filosófico por chamar a atenção para esse problema.

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Recebido em 1º de dezembro de 2016; revisado em 5 de julho de 2017; aceito em 23 de agosto de 2017.

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