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Sociohistórica

On-line version ISSN 1852-1606

Sociohistórica  no.52 La Plata  2023

http://dx.doi.org/https://doi.org/10.24215/18521606e205 

Dossier

Biografia do Brasil: história social e individualismo psicologizante

Biography of Brazil: social history and psychological individualism

Biografía de Brasil: historia social e individualismo psicológico

1Universidade Federal de Goiás, Brasil

Resumo

O presente artigo analisa o livro Brasil: uma biografia, escrito por Lilia Schwarcz e Heloisa Starling. A obra propõe realizar um estudo histórico, social e político do Brasil, buscando inserir-se na tradição das grandes sínteses dedicadas a pensar o país construídas entre os anos 1930 e 1990. No entanto, diferentemente destas que trabalhavam com noções como formação, evolução, sentido, o livro de Schwarcz e Starling propõe pensar o país recorrendo à biografia. A proposta, que pode soar inusitada, é coerente com uma tendência editorial de sucesso que consiste em construir biografias sobre praticamente qualquer assunto. Esse alargamento do escopo do que pode ser biografado configura uma forma de narração que combina perspectiva histórica e visada psicologizante que, empregada para pensar o arco histórico do processo social de um país, esvazia o conteúdo potencialmente problematizador e político inerente ao tema que a reflexão põe em cena. A incapacidade de pensar a história social a partir de suas condicionantes materiais, históricas, culturais, como se procura discutir, relaciona-se com a racionalidade neoliberal que, ao se apresentar como referência incontornável de toda a experiência coletiva e individual, configura-se como um tipo específico de totalitarismo.

Palavras-chave Biografia; História; Processo Social Brasileiro; Despolitização; Neoliberalismo

Abstract

This article analyzes the book Brasil: uma biografia, written by Lilia Schwarcz and Heloisa Starling. The work proposes to make a historical, social and political study of Brazil, seeking to insert itself in the tradition of the great syntheses written between the 1930s and 1990s. However, unlike these, which worked with notions such as formation, evolution, meaning, Schwarcz and Starling's book proposes thinking about the country by resorting to biography. The proposal, which may sound unusual, is consistent with a successful publishing trend that consists of building biographies on virtually any subject. This widening of the scope of what can be biographed configures a form that combines historical perspective and a psychologizing viewpoint that, when applied to think a country's social process, drains the potentially problematizing and political content inherent to the theme that the reflection puts on the scene. The incapacity to think about social history from its material, historical, cultural conditioning is related to the neoliberal rationality which, by presenting itself as an unavoidable reference for all collective and individual experience, configures a specific type of totalitarianism.

Keywords Biography; History; Brazilian Social Process; Depoliticization; Neoliberalism

Resumen

: El presente artículo analiza el libro “Brasil: una biografía”, escrito por Lilia Schwarcz y Heloisa Starling. La obra propone llevar a cabo un estudio histórico, social y político de Brasil, buscando insertarse en la tradición de las grandes síntesis dedicadas a pensar el país, construidas entre los años 1930 y 1990. Sin embargo, a diferencia de estas obras que trabajaban con nociones como formación, evolución y sentido, el libro de Schwarcz y Starling propone pensar el país recurriendo a la biografía. La propuesta, que puede sonar inusitada, es coherente con una tendencia editorial exitosa que consiste en construir biografías sobre prácticamente cualquier tema. Este amplio alcance de lo que puede ser objeto de una biografía configura una forma de narración que combina perspectiva histórica y visión psicologizante, y al aplicarse para pensar el arco histórico del proceso social de un país, vacía el contenido potencialmente problemático y político inherente al tema que la reflexión pone en escena. La incapacidad de pensar la historia social a partir de sus condicionantes materiales, históricas y culturales, como se busca discutir, se relaciona con la racionalidad neoliberal que, al presentarse como referencia ineludible de toda la experiencia colectiva e individual, se configura como un tipo específico de totalitarismo.

Palabras clave Biografía; Historia; Proceso social brasileño; Despolitización; Neoliberalismo

1.

Em1 fins do séc. XX, as biografias alargaram seu escopo para muito além do ponto que costumava delimitá-las: a narração da vida de um ser humano. No período regido pelo neoliberalismo, ainda que a designação biografia 2 tenha sido mantida, o gênero ampliou muito sua gama de possibilidades que passaram a incluir a narração da “vida” de mercadorias, doenças, sofrimentos psíquicos, descobertas científicas, cidades, países.3

Esse é o caso do livro Brasil: uma biografia (2015), de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, a partir do qual procurarei discutir o possível significado do emprego do gênero biografia em uma obra que, ousadamente, procura retomar e reivindicar a tradição das grandes sínteses sobre o Brasil escritas entre os anos 1930 e 1990, que trabalhavam com noções como formação, evolução, sentido, num momento histórico em que elas deixaram de ser possíveis devido a relações materiais específicas ligadas à (ir)racionalidade neoliberal.

Comecemos frisando que as autoras são duas das mais importantes intelectuais e pesquisadoras brasileiras, com uma contribuição difícil de superestimar.

Lilia Schwarcz é historiadora e antropóloga. É professora titular do Departamento em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP), Global Scholar e professora visitante em Princeton, desde 2011. Além disso, é curadora adjunta para Histórias do MASP, sócia do IHGB e membro do conselho de revistas, centros de pesquisa e fundações em várias partes do mundo. Foi professora visitante e pesquisadora nas universidades de Leiden, Oxford, Brown, Columbia (como Tinker Professor), bem como na École des Hautes Études en Science Sociales, além de membro do Advisory Group da Harvard University. Recebeu bolsa da John Simon Guggenheim Foundation Fellow e inúmeros prêmios, entre os quais destacam-se: a medalha Júlio Ribeiro (ABL, 2008) e a comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico Nacional (2010). É autora, entre outros, de Retrato em branco e negro (1987; Prêmio APCA e FNL), O espetáculo das raças (1993, e Farrar Strauss & Giroux, 1999, prêmio FNL), As barbas do Imperador (1998, e Farrar Strauss & Giroux, 2004; Prêmio Jabuti4 de Melhor biografia e de Livro do Ano, além do Prêmio Clio de História e do Prêmio UBE), Na era das certezas (2002, Prêmio UBE); A longa viagem da biblioteca dos reis (2002, Prêmio do IHGB), O sol do Brasil (2008, Prêmio Jabuti 2009), Lima Barreto: triste visionário (2017, Prêmio APCA, Jabuti e Biblioteca Nacional) e O autoritarismo brasileiro (2018, Prêmio Jabuti 2019, APCA).

Heloisa Starling é historiadora e cientista política. É professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora da coleção Arquivos da Repressão no Brasil, pela Companhia das Letras. É autora, entre outros, de Ossenhores das gerais (1986), Lembranças do Brasil (1999), Ser republicano no Brasil colônia: a história de uma tradição esquecida (2018), A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil (2020), juntamente com Lilia Schwarcz, com quem também organizou o Dicionário da República: 51 textos críticos (2019), além de República e democracia: impasses do Brasil contemporâneo (2017), organizado juntamente com André Botelho.

Brasil: uma biografia recebeu o prêmio Jabuti de Ciências Sociais e foi publicado pela Penguin na Inglaterra, pela Farrar Strauss e Giroux nos EUA e pela Random House na Espanha, Argentina, México e Chile. O livro também foi eleito pelo Financial Times como um dos Best books politics 2018. A distinção atribuída justamente pelo Financial Times – impossível deixar de registrar – é muito sugestiva.

Enfatize-se, antes de prosseguir, que Lilia Schwarcz tem um trabalho consistente com biografias: publicou os livros As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos em 1998, (17 anos antes do livro que estamos começando a discutir) e Lima Barreto: triste visionário em 2017 (apenas dois anos depois do livro que estamos analisando), ambos premiadíssimos como o próprio Brasil: uma biografia. Algo que chama a atenção é que a peculiaridade deste último em relação aos outros dois trabalhos não parece ter sido devidamente reconhecida pela autora.

Primeiramente, cabe perguntar: o que significaria escrever a biografia de um país? Consideremos a justificativa das autoras.

Na introdução do livro são inicialmente retomadas questões fundamentais e já bem estabelecidas sobre o Brasil para assentar as bases da biografia do país proposta por Schwarcz e Starling. Há um acento forte na escravidão como traço decisivo para a compreensão do processo histórico brasileiro, algo sempre necessário e urgente, pois, desde a abolição (1888), o discurso oficial buscou transformar a escravatura em algo distante, “antigo”, como se tivesse ocorrido fora da história humana, de modo a inviabilizar a reflexão e, consequentemente, o elemento político e desestabilizador da barbárie aqui sustentada por quase quatro séculos e cujas marcas permanecem evidentes na sociabilidade e na incivilidade locais.

O escopo do livro é ousado: parte de Colombo (brevemente, é verdade) e dos primeiros conquistadores portugueses e termina nos anos finais do século XX, o que implica percorrer cinco séculos da história da nação. As autoras5 reconhecem que a proposta precisa ser dimensionada, pois, caso contrário, seria irrealizável: “A história do Brasil, por suposto, não cabe num único livro. Até porque não há nação cuja história possa ser contada de forma linear, progressiva, ou mesmo de uma só maneira” (Schwarcz & Starling, 2015, p. 19). Mas, no fim da introdução, afirmam:

Fica combinado, portanto, que não se pretende dar conta de toda a história do Brasil. Vamos antes, e tendo em mente as questões acima selecionadas, narrar a aventura da construção de uma complicada “sociedade nos trópicos”. Como dizia o escritor Mário de Andrade, o Brasil arromba toda concepção que a gente faça dele. Longe da imagem do país pacífico e cordato, ou da alentada democracia racial, a história que aqui se vai contar descreve as vicissitudes dessa nação que, sendo profundamente misturada, acomodou junto —e ao mesmo tempo— uma hierarquia rígida, condicionada por valores partilhados internamente, como um idioma social. Visto desse ângulo, e conforme provocava Tom Jobim, o país “não é para principiantes”, e precisa mesmo de uma boa tradução. (Schwarcz & Starling, 2015, p. 20, grifos meus)

O início é uma expressão da cordialidade brasileira (que é uma das questões selecionadas para serem discutidas e problematizadas no livro), uma vez que o uso de uma construção direta típica da fala cotidiana (“Fica combinado”) busca forjar muito direta e abruptamente uma intimidade com o leitor difícil de justificar num livro que se pretende historiográfico; fosse um narrador de Machado de Assis, todos os pelos do pescoço do leitor se eriçariam. Observe-se também o jogo oscilante de termos ficcionais (como “aventura”), emotivos, retóricos e a expectativa de objetividade que as autoras em nenhum momento desautorizam, como indica, por exemplo, o emprego do verbo “descrever”. Além disso, a referência descontextualizada à frase de Tom Jobim torna-se, no contexto, um gracejo, um recurso de sedução do leitor. E, se já não fosse o suficiente, as autoras terminam prometendo oferecer “uma boa tradução” do país, presunção incompatível com o rigor acadêmico, mas bastante coerente com as táticas da publicidade. Se o livro não se pretende acadêmico, pois objetiva dialogar com um público amplo, não seria necessário ceder à autopromoção, atitude quase incompreensível em autoras tão atentas.

Além disso, as ressalvas e volteios retóricos não resolvem o problema do desmesurado escopo do livro, dado que a proposta implica reconstruir, de alguma forma, todo o arco da “vida” do objeto biografado: o Brasil. Não se trata, portanto, de pensar o país discutindo-o a partir de uma perspectiva que permitisse construir uma síntese mais ou menos totalizadora, como é o caso de livros fundamentais como Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr., Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado, ou, mais recentemente, aquele que pode ser considerado o último dessa série, O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995), de Darcy Ribeiro, todos bem conhecidos das autoras e citados várias vezes em Brasil: uma biografia. O contraste joga luz sobre a concepção de história que organiza este último: seria possível narrar, em um único volume, os assuntos, acontecimentos, contradições que definiriam a vida do país, de seu nascimento até o ponto delimitado no livro. Assim, por mais que a habilidade das autoras seja inquestionável, que o livro seja agradável à leitura e que o esforço seja apreciável, trata-se de um tour de force impossível em qualquer circunstância.

Para as autoras, no entanto, seria possível, ainda assim, justificar a construção de uma biografia do país. A citação é longa, mas indispensável:

aqui não se pretende contar a história do Brasil, mas fazer do Brasil uma história. Ao contar uma história, tanto o historiador quanto o leitor aprendem a “treinar a imaginação para sair em visita”, como diria Hannah Arendt. E é por levar a sério essa noção de “visita” que este livro deixará de lado a meta de construir uma “história geral dos brasileiros” para se concentrar na ideia de que a biografia talvez seja outro bom caminho para tentar compreender o Brasil em perspectiva histórica: conhecer os muitos eventos que afetaram nossas vidas, e de tal modo, que continuam presentes na agenda atual.

Uma biografia é a evidência mais elementar da profunda conexão entre as esferas pública e privada: somente quando estão articuladas, essas esferas conseguem compor o tecido de uma vida tornando-a real para sempre. Escrever sobre a vida do nosso país implica questionar os episódios que formam sua trajetória no tempo e ouvir o que eles têm a dizer sobre as coisas públicas, sobre o mundo e o Brasil em que vivemos —para compreendermos os brasileiros que somos e os que deveríamos ou poderíamos ter sido.

A imaginação e a multiplicidade das fontes são dois predicados importantes na composição da biografia. Nela, cabem os grandes tipos, os homens públicos, as celebridades; cabem igualmente personagens miúdos, quase anônimos. Em nenhum dos casos, porém, cabe tarefa simples: é muito difícil reconstituir o momento que inspirou o gesto. É preciso “calçar os sapatos do morto”, na definição preciosa de Evaldo Cabral, conectar o público ao privado, para penetrar num tempo que não é o nosso, abrir portas que não nos pertencem, sentir com sentimentos de outras pessoas e tentar compreender a trajetória dos protagonistas dessa biografia —os brasileiros— no tempo que lhes foi dado viver; as intervenções que realizaram no mundo público de cada época com os recursos de que dispunham; a determinação de viver segundo as exigências de seu tempo e não de acordo com as exigências do nosso tempo. É, ainda, não ser indiferente à dor ou à alegria do brasileiro comum, invadir o espaço da intimidade de personagens relevantes e escutar o som das vozes sem fama. O historiador anda sempre às voltas com a linha difusa entre resgatar a experiência daqueles que viveram os fatos, reconhecer nessa experiência seu caráter quebradiço e inconcluso, e interpelar seu sentido. Por estar atenta a tudo isso, a biografia é, também, um gênero da historiografia. (Schwarcz; Starling, 2015, pp. 19-20, grifos meus)

No trecho, as autoras defendem uma concepção de biografia que permitiria “conhecer os muitos eventos que afetaram nossas vidas, e de tal modo, que continuam presentes na agenda atual”. Para isso, seria preciso “fazer do Brasil uma história”, uma vez que a “biografia é a evidência mais elementar da profunda conexão entre as esferas pública e privada” que, “somente quando estão articuladas (...) conseguem compor o tecido de uma vida, tornando-a real para sempre”. Conceda-se que seja uma bela frase, mas os termos são, a um só tempo, imprecisos (“tecido de uma vida”? Qual exatamente?) e hiperbólicos (“tornando-a real para sempre”). Além disso, se a “imaginação” é algo essencial para a construção do livro, não há, por suposto, nada de “evidente” nem de “elementar” no que está sendo proposto.

Observe-se ainda algo aparentemente estranho: o “Brasil” não é, segundo as autoras, o protagonista de sua própria biografia. Entende-se: como “Brasil” não é um sujeito, mas uma entidade abstrata, é preciso admitir que haja pessoas reais dando-lhe substância. Mas aí um problema poderia ser colocado: “Brasil” e “brasileiros” seriam a mesma coisa? Se sim, seria preciso distingui-los claramente. Se não, não haveria outro país possível, uma vez que este seria espelho direto do que “os brasileiros” seriam. Mas como definir uma população (para evitar as conotações perniciosas de “povo” e a fantasia inverossímil de “cidadãos” num país em que os direitos, como apontam as autoras, nunca chegaram a se universalizar) tão grande, tão diversa e desigual? Quem seriam “os brasileiros”? Como defini-los? Quais seriam os pontos de referência e quem os estabeleceria? A partir de que parâmetros? “Brasil” e “brasileiro” são noções genéricas, sem base concreta nem acento na realidade material. Logo, para responder a essas questões seria preciso recorrer a algum grau de mitificação. Por isso, a distinção clara seria não apenas exigência conceitual, mas também exigência epistemológica e ontológica, sem o que se acaba biografando fantasmagorias.

Além disso, as autoras reiteram várias vezes no livro que o Brasil seria um objeto escorregadio, repleto de ambivalências. Também aqui outra dificuldade se impõe porque não é fácil sustentar ambivalências, de forma a, efetivamente, garantir que a exposição mantenha os polos em equivalência. Para isso, seria preciso forjar todo um modo de exposição ou mais especificamente uma forma —em sentido forte— para sustentar a ambivalência como elemento constitutivo daquilo/de quem que se pretende biografar. Mas o tom fluido do texto (que não deixa também de ser uma qualidade) tende a colocar os problemas de maneira a um só tempo incisiva e edulcorada. Assim, se a ambivalência do objeto não se internaliza na forma, redunda em dualidade simples, repetindo a superfície do que certo discurso sobre o país afirma: somos uma nação “essencialmente” contraditória; esta é nossa condição “ontologicamente” triste e bela.

A questão não é reconhecer o óbvio, mas entender as condições materiais que condicionam e reproduzem a realidade social e histórica. Reconhecer questões como patrimonialismo, corrupção ou contradição entre extremos é da ordem da evidência e, ao prender-se à evidência, acaba-se por naturalizá-la, mesmo quando a intenção declarada é questioná-la. Da maneira como se apresenta ao leitor, Brasil: uma biografia não supera certa circularidade, uma vez que as questões apresentadas, ao fim, encerram-se no mesmo ponto onde começaram, o que não significa afirmar que a discussão não seja pertinente nem que o livro não seja instrutivo e interessante. O ponto fundamental é que pensar o país por meio da forma biografia termina por esvaziar o que poderia haver de revelador e de efetivamente problematizador nas inúmeras e pertinentes questões apontadas. Todas são relevantes, mas, digamos, nenhuma é chamada diretamente pelo nome e, por isso, o quadro construído esmaece.

Quanto ao público a que o livro se destina, pode-se compreender pela construção textual que se trata de um leitor médio, urbano, razoavelmente instruído, sensível a algumas questões sociais, mas pouco politizado, pois está mais interessado em detalhes e na reafirmação daquilo que já sabe e já o indigna do que nos impasses que o país deveria enfrentar para superar a miséria que nos constitui e desumaniza. Nesse sentido, é possível dizer que, ao menos em parte, o sucesso do livro vem do fato de que ele afaga e apascenta a consciência do leitor sem exigir esforço de compreensão e enfrentamento político.

Daí, inclusive, o final otimista do livro que aponta para uma república ainda muito aquém do que poderia ser e do que a Constituição de 1988 determina, mas que, ao mesmo tempo, demonstraria vigor e potencial, expressos no fato de o período democrático que se abriu após a ditadura civil-militar ser o mais longo vivido pelo país.

Mas, para infelicidade da nação e das autoras do livro, 2016 mergulharia o Brasil num mar de horrores, dos quais o golpe parlamentar que depôs Dilma Roussef foi apenas o mais estridente. Diante de um desmentido histórico quase imediato, as autoras compuseram um pós-escrito para a segunda edição em que reconhecem que o otimismo que norteou a construção do livro havia se tornado difícil de sustentar. Mas esse reconhecimento é feito de um modo peculiar. A primeira frase do pós-escrito é: “Países, como pessoas, por vezes sofrem com mudanças abruptas — e aquilo que ontem parecia tranquilo, hoje se convulsiona” (Schwarcz & Starling, 2017). Ou seja, no que se refere à aproximação imediata entre países e pessoas, as autoras dobram a aposta, propondo uma equivalência que o livro não havia feito de forma tão direta. O processo de ascensão e consolidação da extrema direita no Brasil é psicologizado e a “convulsão” que se anunciava desde 2013, no mínimo, é apresentada como evento fortuito. Mas não havia nada de fortuito nem abrupto no que estava acontecendo no país. Os desdobramentos históricos podem produzir perplexidade mesmo no mais diligente dos observadores, mas o papel do historiador seria voltar à pesquisa e tentar entender o que escapou à observação e à análise, algo que, aliás, passou a ser quase uma obsessão de todos os que se dedicam a refletir sobre história, sociedade, cultura, educação, pesquisa e artes no Brasil, Schwarcz e Starling incluídas. No entanto, não é isso o que começam fazendo aqui. O pós-escrito possui um tom descritivo, um tanto distanciado, que indica desnorteio (compreensível), mas também o que pode ser lido como uma tentativa de se colocar a uma distância razoavelmente segura dos fatos. Após descreverem as manifestações de 2013 e alguns de seus desdobramentos, afirmam:

Vistas na sua generalidade, e no seu início, essas eram manifestações críticas ao governo, animadas por uma aragem libertária, um estilo de ativismo autonomista e um imaginário de retrocesso político. A novidade era essa. Ideários antagônicos circulavam no mesmo ambiente, suscitavam pautas e estilos de mobilização que funcionavam como fator de repulsa e de atração em relação uns aos outros e não havia debate (Schwarcz & Starling, 2017).

É um comentário pertinente, mas inespecífico, que procura uma síntese descritiva dos antagonismos que formaram as manifestações de 2013, sem que, para além do reconhecimento, seja proposta alguma interpretação historicamente orientada. Pouco adiante, outro comentário, em tom pretensamente interpretativo, apenas repete o que já estava claro naquele momento e que era reiteradamente discutido nos jornais: “Nas bordas das manifestações de 2013 já se anunciava, porém, um ativismo de pendor individualista, uma postura intransigente e pautada no ódio, e cada vez menos afeita ao diálogo” (Schwarcz & Starling, 2017). A exposição chega, então, a uma formulação que soa como justificativa um tanto simplificadora para o fato de a intelligentsia brasileira não ter notado o tsunami se aproximava:

Vai demorar algum tempo para que possamos compreender tudo o que aconteceu no Brasil entre os anos de 2015 e 2017. Fazer uso de procedimentos rotineiros, obedecer formalmente à letra das leis vigentes no país, mas usá-los em favor de objetivos contrários aos valores democráticos preservados pelas instituições, é uma manobra, que foi apresentada e aceita por parte da população sem o devido juízo crítico e sem a avaliação do custo dessa operação para a própria Democracia brasileira (Schwarcz & Starling, 2017).

A conclusão condensa a posição adotada pelas autoras no pós-escrito:

Já escrevemos que a história do Brasil não traz uma perspectiva de destino — ela é feita de escolhas, projetos e de suas consequências. Aliás, essa não é a primeira vez que o país enfrenta crises de grande envergadura e proporção. De perto, porém, tudo parece agigantado e sem futuro ou saída possível. Mas, se a história ajuda a lembrar o passado, ela há de revelar como em vários momentos o país foi obrigado a procurar a si próprio e, por sinal, sempre se encontrou (Schwarcz & Starling, 2017).

A ideia de “escolha” associada ao processo histórico de um país é algo difícil de definir e mais ainda de sustentar. Estariam as autoras afirmando que o Brasil “escolheu” os caminhos que seguiu em sua história? Como o país teria feito isso? Se tiver sido a partir do confronto de interesses distintos, então não foram escolhas, mas embate político. Nesse caso, no entanto, a ênfase teria de recair não nas idiossincrasias e vicissitudes da “vida” do país, mas na análise das condições históricas e materiais que conformaram e aquelas que continuam conformando a experiência nacional. Além disso, “escolha” (choice) é, como se sabe, a palavra-chave da lógica neoliberal. Daí, inclusive, que o final pretensamente edificante, que convoca a que não se perca a esperança, seja vazio, afinal não se entende o que significaria a afirmação de que o país “se encontrou” sempre que foi “obrigado a procurar a si próprio”. É psicologizar ad absurdum esse personagem que é chamado pelas autoras de Brasil.

Por isso, talvez, mais impactante do que o pós-escrito seja a alteração promovida nas cores da capa do livro:

A troca do verde, amarelo e rosa, por preto, branco e laranja produz dois contrastes importantes: primeiro, marca a mudança de um momento mais otimista para outro de incerteza e ameaça; segundo, busca distanciar-se do verde e amarelo, cores da bandeira nacional que, naquele momento e até hoje,6 foram capturadas pela extrema direita. Além disso, cabe destacar que a foto é de candangos7 construindo Brasília, mais especificamente, uma das cúpulas do Congresso Nacional. Uma imagem forte e escolhida muito precisamente para revelar o disparate entre a condição social dos trabalhadores (e, por extensão, da maioria da população) e a megalomania faraônica da construção da nova capital que se pretendia a prova em concreto da modernização brasileira e da crença maníaca no futuro promissor da nação.

2.

Para esclarecer algumas questões, um brevíssimo contraste com Brasil: uma biografia não autorizada, do sociólogo Francisco de Oliveira, é útil. O livro, publicado em 2018, pode ser lido como uma espécie de réplica a Brasil: uma biografia, publicado três anos antes. Como indica o título, a diferença marcante entre os livros é que a noção de biografia é tomada pelo sociólogo de modo satírico, acidamente crítico. A biografia não autorizada é concisa —tem apenas 136 páginas—, pois seu objetivo não é reconstruir “a vida do país”, mas problematizar o processo histórico e político brasileiro. Não há espaço para afagos, nem tergiversações, pois tudo é chamado pelo nome, clara e frontalmente. Considerem-se três passagens do livro de Francisco de Oliveira:

Nascemos, como todos os países da América, dos dolorosos e cruéis processos de formação do Novo Mundo a partir das descobertas (?) ibéricas. Conosco renasceu também o Velho Mundo. Uma extraordinária combinação: o novo, financiando a acumulação de capital —numa época em que os metais preciosos eram a forma por excelência do dinheiro, provocou o renascimento do velho. Uma colonização inteiramente nova, cujo objetivo nunca foi, como nos séculos anteriores, apenas a conquista territorial — mesclavam-se propagação da fé cristã, comércio e exploração de riquezas comerciais. Conosco nasceu a modernidade. Éramos contemporâneos dela, seus fautores, junto com nossos conquistadores (Oliveira, 2018, p. 27).

Desde logo, eis os elementos do truncamento brasileiro, mesmo que não se adotasse ponto de vista de desenvolvimento histórico linear. Truncamento que alimentou a autoironia dos brasileiros, cáustica às vezes, mas baseada em fatos: uma independência urdida pelos liberais, que se fez mantendo a família real no poder e se transformou imediatamente numa regressão quase tiranicida; um segundo imperador que passou à história como sábio e não deixou palavra escrita, salvo cartas de amor um tanto pífias; uma abolição pacífica, que rói as entranhas da monarquia; uma república feita por militares conservadores, mais autocratas que o próprio imperador. Num registro não sarcástico: desenvolvimento conservador a partir de rupturas históricas libertadoras (Oliveira, 2018, p. 32).

Então, chegou o progresso mesmo, em pessoa, adornado com os títulos e as pompas da Universidade de São Paulo. Fernando Henrique Cardoso realizou o que nem a Dama de Ferro tinha ousado: privatizou praticamente toda a extensão das empresas estatais, numa transferência de renda, de riqueza e de patrimônio que talvez somente tenha sido superada pelo regime russo depois da queda de Mikhail Gorbatchov.

(...)

Essa turma se desfez do melhor da estrutura do Estado longamente criada desde os anos 1930, cortando os pulsos num afã suicida sem paralelo na história nacional. Honra a São Paulo e a seus ideólogos: Eugênio Gudin8 não faria igual, e o Estadão 9 exultava a cada medida “racional” do governo FHC. Manipulando o fetiche da moeda estável, Fernando Henrique retirou do Estado brasileiro a capacidade de fazer política econômica (Oliveira, 2018, p. 127).

Afirmações contundentes como essas expõem o Brasil sob uma luz nada cálida ou sentimental. Nenhuma relação com combinação de história pública e privada, com olhar sensível para “a dor ou a alegria do brasileiro comum” nem com perspectiva positiva sobre os rumos da ainda jovem democracia.10 O ponto de vista de Oliveira, sendo consistentemente crítico, recusa o otimismo fantasioso que apenas um ano depois da publicação de Brasil: uma biografia (2015), como vimos, obrigou as autoras a escreverem um pós-escrito.

Isso porque, se não for como sátira, o uso da “biografia” para realizar uma tentativa de síntese da história de um país, como procuramos argumentar, acaba esvaziando o elemento crítico, na medida em que o gênero, tal como configurado na atualidade, carrega em si, como elemento de sua constituição, a apologia, efeito final da pretensão de narrar diretamente a “biografia de um país”. Não por acaso, Brasil: uma biografia figurava nas estantes de livro que apareciam atrás de alguns comentaristas de TV a cabo que, devido à pandemia de covid-19, tiveram de montar pequenos estúdios em suas residências. A crítica, sendo palatável, foi presa fácil do discurso pasteurizado e despolitizado típico do jornalismo em geral e do brasileiro em particular. Se essa apropriação não depende das autoras, é preciso reconhecê-la como elemento constitutivo da obra.

Sem projeto de nação como possibilidade histórica concreta, noções como formação perderam o lastro. Biografá-lo, do modo como fazem Starling e Schwarcz, acaba sendo um modo de apontar os horrores de nossa história ao lado das realizações, num movimento de báscula que frequentemente termina por anular os termos e não por problematizá-los, inviabilizando – ou ao menos enfraquecendo muito – a politização pretendida, ainda que à revelia do esforço real e admirável de pesquisa e do desejo confesso das autoras.

3.

Se o escopo da biografia se alargou é porque as noções de vida, de sujeito e de pessoa foram reduzidas, por assim dizer, a nada. Se tudo e qualquer coisa pode ser “biografável” é porque já não há parâmetro de distinção entre vivo e morto, orgânico e inorgânico, ativo e inerte, sujeito e coisa, indivíduo e empresa, humano e mercadoria. O indivíduo é a única referência; a narrativa é construída a partir do filtro da psicologia individual, mas, ao mesmo tempo, o sujeito individual é destituído de sua potência e particularidade, sendo reduzido a coisas entre coisas.

Trata-se de uma configuração que leva ao paroxismo a clássica formulação marxiana, segundo a qual a mercadoria, sendo “uma relação social determinada entre os próprios homens”, assume “para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (Marx, 2017, pp. 147-148), de modo a não surgirem como “relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas [sachlich] entre pessoas e relações sociais entre coisas” (Marx, 2017, p. 148).

Do ponto de vista aqui defendido, a ampliação irrestrita da biografia pode ser lida como índice de uma expansão vertiginosa do neoliberalismo que, como advertem Pierre Dardot e Christian Laval, não é uma simples retomada em chave ampliada do liberalismo, nem apenas “uma ideologia, ou uma política econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade” (Dardot & Laval, 2016, p. 17), que tende “à totalização, isto é, a ‘fazer o mundo’ por seu poder de integração de todas as dimensões da existência humana” (Dardot & Laval, 2016, p. 16). É um sistema “pós-democrático” e “normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida privada” (Dardot & Laval, 2016, p. 8). Na sociedade neoliberal,

a ação coletiva se tornou mais difícil porque os indivíduos são submetidos a um regime de concorrência em todos os níveis. As formas de gestão da empresa, o desemprego e a precariedade, a dívida e a avaliação, são poderosas alavancas de concorrência interindividual e definem novos modos de subjetivação (Dardot & Laval, 2016, p. 9).

Assim, afirmam os autores, “com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos” (Dardot & Laval, 2016, p. 16, grifos dos autores), de tal maneira que “o indivíduo é instado a comportar-se como uma empresa”, que se converte em “modelo de subjetivação” (Dardot & Laval, 2016, p. 17), baseado na “concorrência sistemática entre os indivíduos” (Dardot & Laval, 2016, p. 30).

O uso da força passa a justificar-se, sobretudo, com base na noção de crise permanente (condição básica e chave do poder no neoliberalismo) e na litania de que “não há alternativa”, sempre forçando os limites da desagregação social na medida em que o próprio Estado é gerido como uma empresa, o que implica uma despolitização radical da sociedade.

Tal quadro resulta em formas de patologização do sofrimento psíquico, pois exige a “internalização de um trabalho de vigilância e controle baseado na autoavaliação constante de si a partir de critérios derivados do mundo da administração de empresas” (Safatle, 2021, p. 30). A empresa, no caso, “não é apenas figura de uma forma de racionalidade econômica. Ela é a expressão de uma forma de violência”, e essa violência “pede uma justificação política”, consolidando “uma vida social na qual toda a figura da solidariedade genérica seja destruída, na qual o medo do outro como invasor potencial seja elevado a afeto central, na qual a exploração colonial seja a regra” (Safatle, 2021, p. 32).

Como sintetiza Miguel Vedda no livro Cazadoresde ocasos:

O trabalho ideológico, talvez a dimensão em que o projeto neoliberal teve a mais alta eficácia, permitiu-lhe captar uma insólita adesão, em sociedades muito diversas, a um individualismo radical orientado a extinguir os ideais históricos de democracia, solidariedade e justiça social e concentrado em justificar o êxito ou o fracasso como resultado de decisões puramente pessoais, no mesmo momento em que os poderes hegemônicos exploram todos os meios para manipular e, sobretudo, disciplinar as decisões e o modo de vida dos indivíduos. Parte da doutrinação tem consistido em promover a aceitação da neoliberalização como um fatum inelutável: a célebre máxima de Thatcher There is no alternative vale, nesse sentido, tanto como síntese quanto como programa. (Vedda, 2021, p. 81; a tradução do trecho é minha)

Em outra passagem do mesmo livro, Vedda discute uma tendência que ajuda a compreender a atual propensão a biografar tudo. Partindo da noção de concretismoou personalização empregada por Adorno11 (Vedda, 2021, p. 25), Vedda caracteriza o sentimento regressivo, em face ao extremo caráter abstrato e impessoal assumido pela lógica do capital no presente, de individualizar e “humanizar” processos que, a rigor, não poderiam ser personificados. O autor verifica essa tendência em fenômenos característicos da cultura de massas, particularmente na literatura de horror, e a apresenta como uma via para se compreender o desejo de amplos setores sociais de refugiar-se na pequena casa do pretensamente concreto e humano, evitando enfrentar a “abstração real” de uma “forma adulta e democrática” (Vedda, 2021, p. 26).

Do ponto de vista aqui defendido, na era do totalitarismo neoliberal (Chauí, 2020), a própria reflexão, em campos tão diversos como a história, a antropologia, a sociologia, a psicologia, a medicina, a publicidade, perdendo as referências factuais, vê-se diante de um modelo narrativo que, para discutir os rumos históricos e as configurações sociais de um país inteiro, bem como transtornos de saúde mental, doenças, descobertas científicas ou simplesmente a exaltação de uma mercadoria, precisa converter a todos em “figuras biografáveis”, apresentadas a partir de um processo de psicologização que tudo engloba. As pessoas concretas terminam sendo instantes do grande movimento geral, exemplos em miniatura daquilo que protagoniza a narrativa e que arrasta e envolve a todos. Sem o sujeito individual o que aparece é “o Brasil”, “o câncer”, “a depressão”, mesmo que os autores das narrativas sejam sensíveis aos dramas das pessoas concretas. Isso porque a estrutura narrativa, ao enfatizar a coisa biografada, torna as descrições particulares, não raro, meras ilustrações. Reduzidas a tão pouco, qualquer noção de autonomia individual explicita-se como engodo, uma vez que as pessoas acabam representadas como sombras de configurações sociais, poderes corporativos, financeiros, estatais ou do espanto diante de inúmeras formas de adoecimento.

Concluindo, a biografia apresenta-se como uma espécie de pivô de qualquer reflexão e os procedimentos e visões de mundo expressos por meio dela surgem naturalizados, refletindo apenas a aparência imediata e inviabilizando o conhecimento das condições concretas da existência, reafirmando o totalitarismo neoliberal, mesmo quando a intenção autoral declarada é ultrapassá-lo. Mas, para isso, seria preciso revolucionar a forma.

Referências

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Notas

1Este artigo desenvolve parte da discussão realizada em “La biografía de todo como forma narrativa neoliberal: de la formación a la biografía de Brasil”, capítulo do livro Siegfried Kracauer como teórico y crítico de la literatura. Aproximaciones desde Argentina y Brasil (Flores & Vedda, 2022, pp. 271-312).

2O Oxford dictionary of literary terms registra essa mudança no início do verbete: “Biography: A narrative history of the life of some person; or the practice of writing such works. Most biographies provide an account of the life of a notable individual from birth to death, or in the case of living persons from birth to the time of writing; but some treat the connected lives of paired subjects or of groups (known as ‘group biography’); and since the late 20th century the term has been stretched to cover accounts of non-human subjects such as houses, cities, or commodities, in which case ‘a biography’ really means an intimate or gossipy history” (Baldick, 2015).

3lguns exemplos: Jones (2006), Paris: biography of a city; Mukherjee (2012), O imperador de todos os males: uma biografia do câncer; Ribeiro (2013), Por uma biografia social das coisas: a vida social da marca Havaianas e a invenção da brasilidade; Ricco e Vannucci (2017), Biografia da televisão brasileira; Dunker (2021), Uma biografia da depressão.

4Mais tradicional prêmio literário do Brasil, concedido pela Câmara Brasileira do Livro desde 1959.

5Como os objetivos deste ensaio implicam analisar o ponto de vista que constitui a narrativa, minha opção foi me deter em trechos da introdução e da conclusão, pois são os momentos em que a voz das autoras aparece mais diretamente, quase sem a mediação da construção historiográfica, uma vez que a ênfase recai na apresentação de questões de grande amplitude e na interpretação de cunho generalizante.

6Desde o início deste ano de 2023, há ações importantes, a começar pela comunicação visual do governo Lula, de resgatar as cores nacionais da violência extremista.

7Vale reproduzir a legenda, escrita pelas autoras, da imagem da capa: “De 1958 até a sua inauguração, em 21 de abril de 1960, Marcel Gautherot fotografou o canteiro de obras de Brasília e nos ensinou a ver a nova capital de uma maneira particular: a manifestação pública também ocorria ostensivamente do lado de fora da forma construída, no espaço público da cidade e de suas edificações. Na foto, o início da concretagem da cúpula do Senado Federal retrata, ao mesmo tempo, um destino e uma miragem do Brasil. Num impulso, os candangos, milhares de trabalhadores nômades que vieram de todas as regiões do país para construir a nova capital, estão, uma vez mais, prontos para partir – ‘em rota para a impossível utopia’. Início da concretagem da cúpula do Senado Federal, Marcel Gautherot, c. 1958” (Schwarcz; Starling, 2015, p. 2).

8Eugênio Gudin: economista. “No início da década de 50, (...) colocou-se frontalmente contrário à criação da Petrobrás e à instituição do monopólio estatal do petróleo. Ligado à União Democrática Nacional (UDN), apoiou decididamente (...) a campanha promovida contra Vargas, que acabaria por levar ao suicídio do presidente, em agosto de 1954. No mês seguinte, com a posse do vice-presidente João Café Filho, foi nomeado ministro da Fazenda. Promoveu, então, uma política de estabilização econômica baseada no corte das despesas públicas e na contenção da expansão monetária e do crédito, o que provocou a crise de setores da indústria. Sua passagem pela pasta da Fazenda foi marcada, ainda, pela decretação da Instrução 113 (...) que facilitava os investimentos estrangeiros no país (...). Foi por determinação sua também que o imposto de renda sobre os salários passou a ser descontado na fonte. (...) Durante o governo de João Goulart, publicava sistematicamente artigos na imprensa contra o presidente, defendendo a sua deposição. Nesse sentido, apoiou o golpe militar de março de 1964, que afastou Goulart do poder”. (Fonte: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/eugenio_gudin. Acesso em 04/09/2021)

9O Estado de São Paulo é um dos maiores jornais do Brasil e foi fundado em 1875. É um porta voz diligente do conservadorismo e dos interesses econômicos mais mesquinhos da elite brasileira.

10Cabe referir uma observação de Paulo Arantes que vai em direção semelhante: “[O Estado é] o principal operador da plataforma de valorização financeira em que se converteu a jurisdição político-administrativa chamada Brasil, da qual extrai os recursos exigidos pelas camadas rentistas associadas” (Arantes, 2007, pp. 281-282).

11O trecho de Sobre la teoría de la historia y de la libertad (Ed. de Rolf Tiedemann. Trad. y notas de Miguel Vedda. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2019, p. 173) citado por Vedda é: “el ejemplo de este modo de comportamiento es eso que, con una expresión de la psicología que procede originalmente de Jung, y que hace años me ocupé de traducir a la sociología, se pude denominar concretismo; es decir que la libido se deposita en aquello que está inmediatamente presente para los seres humanos y que estos, por así decirlo, a través de la identificación con las instituciones, mercancías, cosas, relaciones inmediatamente existentes para ellos, no son capaces de percibir en absoluto su dependencia respecto de procesos alejados de ellos, respecto de los verdaderos procesos objetivos” (Vedda, 2021, p. 25).

Received: December 14, 2022; Accepted: March 23, 2023; pub: September 01, 2023