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Revista latinoamericana de filosofía

versão On-line ISSN 1852-7353

Rev. latinoam. filos. vol.37 no.2 Ciudad Autónoma de Buenos Aires jul./nov. 2011

 

ARTÍCULOS ORIGINALES

As várias faces de um ator político1

 

Eunice Ostrensky
Universidad de São Paulo


RESUMEN: En este artículo se pretende demostrar que la ciencia política de James Harrington (1611-1677) tenía la intención de crear un complejo modelo republicano como solución a la crisis constitucional en Inglaterra durante la década de 1650. Pero, antes de presentar a sus contemporáneos su modelo de república, Harrington consideró necesario investigar por qué el poder soberano se rompió en 1640. Su punto de partida era más bien empírico que especulativo o abstracto. A pesar de que las fundaciones o relaciones materiales basados en la libre propiedad ejercieran un rol decisivo en la ciencia política de Harrington, la acción humana seria imprescindible para producir un orden político perfecto.

PALABRAS CLAVE: Ciencia política; Republica; Absolutismo; Propiedad; Agencia.

ABSTRACT: This article aims at showing that the political science of James Harrington (1611-1677) was intended to create a complex republican model as a remedy to the constitutional crisis in England during the 1650's. But, before presenting his model of republic to his contemporaries, Harrington thought it was necessary to investigate why sovereign power collapsed in 1640. His starting point was rather empirical than speculative or abstract. Despite the decisive part played in Harrington's political science by foundations or material relations based on freehold property, human agency was also considered altogether necessary to produce a perfect political order.

KEYWORDS: Political science; Republic; Absolutism; Property; Agency.


"Eu vos pergunto, cavalheiros, não somos nós, os escritores de
política, uma gente um pouco ridícula? Não é um caso típico de
loucura o desses homens privados que se fecham em seus gabinetes
e atormentam seus cérebros com modelos de governo?"
MATTHEW WREN,
Considerations upon Mr. Harrington's
Commonwealth of Oceana

I

Nas primeiras páginas do Contrato Social, uma possível objeção exige que Jean-Jacques Rousseau se detenha por um instante antes de entrar propriamente no seu assunto. O teor dessa objeção de algum modo ecoa pela história da teoria política: afinal, pode-se escrever sobre política sem ser político? Rousseau responde que, justamente por não ser príncipe ou legislador, é que ele pode escrever sobre política. "Fosse eu príncipe ou legislador" – acrescenta ele – "não perderia meu tempo dizendo o que deve ser feito: ou o faria ou me calaria" (Rousseau 2003, p. 7). Essa boutade parece sugerir que há de fato uma separação entre discurso e a prática política, e sugere ainda que a inversão desses papeis, ou seja, o escritor metido a político e o príncipe com ares de teórico, tenderia a produzir um efeito cômico, quando não desastroso. Porém, a distinção entre as duas atividades não é inteiramente isenta de tensões. Senão, por que escrever sobre a política?
A resposta que James Harrington fornece à zombaria de Matthew Wren citada como epígrafe deste texto é semelhante à de Rousseau, tanto no que diz respeito à inicial separação entre os domínios do discurso e da ação política, como no seu posterior entrecruzamento. "Afirmar que só o magistrado pode escrever sobre o governo", diz Harrington, "é tão absurdo como dizer que só o piloto pode fazer uma carta náutica" (Harrington 1771, p. 219). A despeito disso, enquanto é notório que Cristóvão Columbo fez, em seu cabinete, "a carta que o levou às Índias" (Harrington 1771, p. 219), "jamais um magistrado ou pessoa pública "escreveu algo que valesse um botão" (Toland 1771 p. xxx). Isso não significa que os homens excelentes nos princípios da política ambicionem tomar o lugar dos príncipes e que, por conta disso, justifique-se persegui-los e censurar-lhes as obras. Aos teóricos compete mostrar que nenhum governo "é uma instituição acidental ou arbitrária como as pessoas costumam pensar" (Toland 1771, p. xiv). Sua tarefa é dotar o povo e o legislador de uma prudência que os permita governar em vista da paz e da felicidade, sem cisões e divisões internas.
A intenção deste texto é mostrar que o modelo de governo com o qual James Harrington atormentou seu cérebro não foi mera especulação ou, pior, fantasia e quimera. Harrington julgou ter oferecido a seus contemporâneos o único modelo de república que, por se basear nas peculiaridades da história inglesa, poderia impedir o recrudescimento de facções e interesses privados ainda remanescentes da monarquia gótica. Essa questão parece importante por duas razões centrais. Em primeiro lugar, apesar de adotar uma estrutura explicativa relativamente rígida a respeito dos movimentos da história, Harrington não suprime a possibilidade, ou melhor, a necessidade de intervenção do agente político no seu tempo. Ao contrário do que afirma Marx no Dezoito Brumário, há, sim, momentos em que o homem faz a história segundo as circunstâncias de sua escolha. Em segundo lugar, enquanto parece claro que Harrington pretendia ver suas propostas implementadas, nãoé nada fácil saber como isso poderia acontecer, já que ao príncipe ou aos legisladores reais parece faltarem as virtudes quase míticas que seriam necessárias para a realização dessa tarefa histórica2. Nesse sentido, o texto a seguir pretende investigar se, entre os possíveis papeis do teórico político na constituição de uma república perfeita, não se poderia incluir até mesmo o de legislador.

II

No ano de 1656, James Harrington está apressado em publicar Oceana, mesmo temendo que não passe de um rascunho repleto de erros. A pressa não se deve às insistências dos editores – nada na Epístola ao Leitor e na Introdução permite concluir isso. É o próprio autor quem parece se colocar essa urgência, na tentativa de fornecer uma resposta rápida aos desdobramentos da vida política inglesa naquela quadra de 1650. Já no início da década, o experimento republicano havia fracassado, resultando no governo oligárquico de facto do Rump. Mas, quando Cromwell dissolveu o Rump e praticamente nomeou um novo parlamento, ficou claro que os diferentes poderes políticos do país, em vez de se dividirem, tendiam para o centro, tendiam para Oliver Cromwell e seu grupo de apoio. Tanto assim que no final de 1653 um decreto conhecido como Instrumento de Governo conferiu a Cromwell o título de Lorde Protetor da Inglaterra, atribuindo-lhe de direito todo o poder executivo (Kenyon 1986, p. 308). Isso significava que, na prática, Cromwell assumia poderes que num passado recente haviam sido exercidos pelo monarca; a diferença, agora, é que o ocupante desse cargo deveria ser eleito. No plano legislativo, as reformulações eram mais significativas. Entre elas estava a criação de um Conselho de Estado, órgão consultivo que deveria agir sob a égide de Cromwell3.
A forte presença de Cromwell na cena política era objeto de reflexão em várias obras publicadas na mesma época. Exemplos mais conhecidos são The Excellency of a Free State, de Marchamont Nedham, A Healing Question, de Henry Vane, e em particular Oceana (Skinner 1998, pp. 23-57). Em comum, todas essas obras defendiam a ideia de que o regime republicano era o único adequado à Inglaterra e de algum modo o Protetorado seria responsável por seu fracasso ou sucesso. Quanto à Oceana, não é exagero dizer que o papel de Cromwell na obra é o de protagonista. Resta saber, entretanto, se esse personagem que se introduz para sempre no teatro da história (Harrington 1996, p. 67) será reconhecido pela posteridade graças as suas imensas virtudes ou a seus tremendos vícios.
Oceana é dedicada a "Sua Alteza, Lorde Protetor da República da Inglaterra, Escócia e Irlanda". Mas supõe-se que aparição de Cromwell como personagem da obra aconteça no final da Primeira Parte das Preliminares, quando atenderia pelo pseudônimo de
Olphaus Megaletor e seria saudado como "capitão muitíssimo vitorioso" e "patriota incomparável". Nele, Harrington reconheceria um grande mestre da prudência antiga, por buscar inspiração para suas ações nos sábios ensinamentos dos Discorsi de Maquiavel (Harrington 1996, p. 66). A partir da Segunda Parte das Preliminares, quando é autoproclamado único legislador de Oceana, Cromwell se tornaria assíduo sob o título de Lorde Archon (Harrington 1996, p. 67). É Lorde Archon quem completa a transição de um regime monárquico (o chamado "equilíbrio gótico") para uma república, encarnando a virtude dos legisladores Moisés e Licurgo, ao instituir "de uma vez só uma república inteira" (Harrington, 1996, p. 66). E, como Licurgo, Lorde Archon contempla em êxtase a excelência da constituição recém criada para em seguida informar a seu conselho de legisladores que deverá finalmente se retirar. Mas, ao contrário de Licurgo que se suicida ao final de sua obra, Lorde Archon propõe abster-se de toda a ambição, de toda concupiscência carnal, com a renúncia ao cargo de magistrado, gesto que se mostrará, porém, impraticável, graças ao humor ainda sectário dos ingleses. A presença de Archon permanece necessária para evitar que as divisões entre senado e povo reacendam a guerra civil.
Se Cromwell realmente puder ser identificado a Lorde Archon, tenderíamos a concluir que Oceana teria sido escrito para nortear as ações de Cromwell nessa grande empreitada histórica proporcionada pela Fortuna: a criação de uma república em moldes modernos na Inglaterra. Esse "momento maquiaveliano" teria então em Cromwell um de seus principais líderes. Mas essa identificação é arriscada. Já na Dedicatória, uma passagem das Sátiras de Horácio indica que os maus caminhos aonde a bestial ambição de Tântalo foram dar podem ser também os de Cromwell e os de todo o povo inglês4. A mesma passagem sugere ainda que Oceana também faz uma pintura dos vícios dos protagonistas da política inglesa ("muda o nome: esta fábula pode ser a tua história"). Além disso, Harrington de algum modo está alertando seus leitores para a trágica possibilidade de que, num descuido, a Inglaterra venha a perder a oportunidade rara, senão única, de se converter numa verdadeira república – e como Tântalo morreria de sede tendo ao alcance das mãos a água mais fresca que existe5. Mas não apenas. Em Oceana, o registro ficcional serve tanto para retratar a extrema venalidade de Cromwell, convertendo-o mais propriamente na antítese de Lorde Archon6, como ainda para enaltecer o modelo de legislador virtuoso necessário para a implementação da república inglesa. Por fim, o emprego constante de metáforas e analogias permite a Harrington ironizar o desejo de permanência no poder de Cromwell com a morte de Lorde Archon no fim do livro (Harrington 1996, pp. 264-265).
Em vez de grande mestre da prudência antiga, o Lorde Protetor seria então um perfeito símbolo da prudência moderna, isto é, "da arte mediante a qual um homem ou poucos homens sujeitam uma cidade ou nação e a governam de acordo com seu interesse privado" (Harrington 1996, p. 9). Suas ações, em vez de inspiradas nos Discorsi, estariam seguindo a perigosa fórmula do Leviatã (Harrington 1996, p.). E se Harrington continua a publicar outras obras mesmo depois da morte de Cromwell em 1658, é porque a crítica a Cromwell poderia ser estendida a todo governante que demonstrasse intentos absolutistas naquela altura da história inglesa. Isso começa a explicar, por exemplo, por que em The Art of Lawgiving, de 1659, publicado na iminência de Restauração monárquica, Harrington insiste uma vez mais em que a Inglaterra deve instituir um governo republicano, se quiser evitar novas guerras civis. Nessa obra Hobbes deixa de figurar como um dos alvos dos ataques de Harrington, talvez porque o Leviatã não sirva mais como substrato ideológico do regime. A doutrina que Harrington mais parece empenhado em demolir, em The Art of Lawgiving, não é uma novidade: é o direito divino dos reis em sua roupagem tradicional; seus adversários são "os teólogos e os demais defensores da monarquia" (Harrington 1986, p. 395).
Colocadas lado a lado as duas faces, a de herói e vilão da república, Cromwell se revela como o protagonista moralmente ambíguo de Oceana. De um lado, a emular a grandiosidade de Licurgo e Moisés, prefere dar vazão a uma ambição cega; a instituir uma república, prefere o caminho anacrônico da monarquia7. De outro, seus vícios tamanhos poderiam talvez ser relativizados, se de algum modo ele aceitasse incorporar o legislador harringtoniano8. Entretanto, a morte do Protetor não parece nem um empecilho nem um estímulo ao projeto republicano idealizado por Harrington. O que temos de investigar na sequência é, primeiro, por que o autor considera a república o único regime possível na Inglaterra; depois, quem poderia ser o legislador responsável pela realização dessa imensa tarefa história.

III

Ao refletir sobre as causas que haviam levado às guerras civis, Harrington observou, a contrapelo de muitos de seus contemporâneos, que a ação individual não seria capaz de produzir sozinha as transformações que todos podiam testemunhar. Hobbes, por exemplo, atribuía o conflito tanto à irracionalidade de seus concidadãos, tão voltados para seus interesses autodestrutivos, como às fragilidades de uma monarquia incapaz de submetê-los (Hobbes 2001, pp. 31-35). Muitos republicanos, por sua vez, viam no regicídio e na abolição da monarquia o resultado da ação direta dos ingleses livres, em sua luta para se manterem ao mesmo tempo cidadãos e santos9. Mas Harrington não parecia convencido de que a vontade humana fosse o motor da história. Tampouco considerava que se pudesse creditar o estado de coisas presente, como supunham muitos de seus contemporâneos, inteiramente aos "modos invisíveis da providência" (Harrington 1986, p. 396), que permanecem inexplicáveis.
Ao contrário, observando fatos aparentemente desconectados, Harrington descobria traços comuns, isto é, princípios imanentes que faziam a história operar por graus e passos, formando uma"série universal" (Harrington 1996, p. 36). Esses fatos aleatórios foram narrados em obras tão distintas como as Sagradas Escrituras e os livros de Tucídides, Gianotti, Aristóteles, Plutarco, Walter Raleigh, Francis Bacon, John Selden e, principalmente, Maquiavel. Mas também se encontravam nas leis promulgadas na Inglaterra desde o reinado de Henrique VII e nos discursos dos reis aos parlamentos. Mas todas essas fontes, embora tenham ajudado Harrington a decifrar a sequência dos fatos, não forneceram sua explicação, a saber, que todo governo se funda sobre um equilíbrio de propriedades. É curioso que, farejando os efeitos de certos acontecimentos, os filósofos e os governantes não atinassem com suas causas. Para Harrington, várias passagens dos Discorsi evidenciam que Maquiavel esteve a um palmo de alcançar "o sentido verdadeiro desse princípio", chegando a fazer uso extremamente correto dele (Harrington 1986, p. 401), mas também as inferências mais perigosas. O autor dos Discorsi compreendeu a importância da propriedade fundiária nas disputas entre patrícios e plebeus, sem perceber que o conflito era sinal, não de vitalidade da sociedade romana, mas de sua fratura irreversível (Harrington 1996, p. 15). E por grande que seja a dívida de Harrington para com Maquiavel, há uma divergência básica entre eles: ao contrário deste e em consonância com Hobbes, Harrington julga que a ordem e a paz são finalidades indispensáveis à vida das repúblicas.
Graças ao esforço de identificação dos princípios que o convertem num historiador, Harrington sabe como as invasões bárbaras possibilitaram o surgimento das monarquias europeias, como a república inglesa estava irremediavelmente vinculada às primeiras repúblicas. São estes, dois princípios, estas duas descobertas reivindicadas por Harrington, que responderiam por todas as questões de governo, a saber: a fundação ou equilíbrio de propriedades (Harrington 1996, p. 11) e a superestrutura (Harrington 1996, p. 33; 1986, p. 404).
O primeiro princípio, o da fundação ou equilíbrio de propriedades, deriva diretamente de uma certa concepção de poder, domínio
ou bens da fortuna. Todos esses termos podem ser definidos como os meios de que se dispõe para sobreviver, de tal modo que um homem sem poder é o que não depende exclusivamente de si para sobreviver – sua própria vida não lhe pertence, razão pela qual ele se define como "servo" (Harrington 1996, p. 269). A relação de um homem ou de uma nação com o poder é, por consequência, de necessidade, não de escolha (Harrington 1996, p. 11). Harrington é ardiloso ao emprestar de Hobbes (Hobbes 2003, cap. X, p. 75) uma definição de poder e fazê-la voltar contra seu criador: tem poder quem não precisa se preocupar com sua subsistência, com seu pão; tem pão quem cultiva o trigo, isto é, quem tem terras. Isso significa que, quanto maior a riqueza, maior o poder; em contrapartida, quanto mais distribuída estiver a riqueza, mais distribuído estará o poder. Daí o princípio da fundação, que se define pela proporção em que as terras estiverem distribuídas. Isso ajuda a entender por que a monarquia absoluta é radicalmente distinta da república: na monarquia absoluta, cujo modelo é o turco, um único homem possui dois terços do território, ao passo que na república, cujo modelo é a Inglaterra, o povo detém o predomínio das terras e, portanto, controla a milícia (Harrington 1996, pp. 11-12).
Essa não é a única torção semântica que Harrington opera. Já no emprego do termo "fortuna" havia algo que o distanciava dos republicanos clássicos, por assim dizer. Ao mesmo tempo que reitera o vocabulário humanista, de acordo com o qual a Fortuna seria entendida como sorte, acaso, contingência, Harrington entende "fortuna" como riqueza, bem material produzido por um certo esforço; em suma, propriedade. Sobrepõem-se aqui dois sentidos distintos e talvez até opostos. De um lado, há algo de fortuito na maneira pela qual o homem harringtoniano vem a adquirir riqueza - uma legislação favorável aqui, um confisco de terras acolá, ou simplesmente Deus, agora num registro inteiramente providencial, que decide doar a terra a uns e não a outros –; de outro, o homem livre é necessariamente um produtor mais ou menos exitoso na manutenção da fortuna material que recebeu ao acaso, conforme seja capaz de defender-se portando armas.10 Algo análogo se passa com o termo
"domínio". Para Harrington, exercer domínio equivale a ter domínio territorial. Enquanto Maquiavel via na posse de armas a evidência do domínio, da virtude e da cidadania (Pocock 2003a, pp. 192-1943), Harrington estabelece uma relação causal entre a propriedade e a posse de armas: só pode empunhar a espada quem tem grãos para alimentar o exército ou milícia. Ingênuo Hobbes, então, ao pressupor que o soberano pudesse deter o gládio da justiça a despeito dos proprietários ou mesmo contra eles! Esse pobre soberano teria autoridade ou bens da mente, mas careceria por completo de poder. Seu destino certo seria a ruína (Harrington 1996, p.).
Isso nos leva ao segundo princípio descoberto por Harrington, o de superestrutura. Assim como o de fundação é derivado de domínio ou poder, e equivale à matéria do governo, o de superestrutura deriva de bens da mente ou de autoridade, equivalendo à forma de governo. Tem semelhança, portanto, com a razão, a virtude, as leis, as instituições que os homens erigem sobre os fundamentos. De acordo com a bela metáfora de Harrington, "vagamos pela terra para descobrir o equilíbrio de poder, mas para descobrir o de autoridade devemos ascender (...) para perto do céu" (Harrington 1996, p. 19). Não obstante, a essa característica quase sagrada das leis e instituições sobrepõe-se uma outra menos elevada: o interesse."Todo governo é interesse", decreta Harrington (1996, p. 270) em viés hobbesiano, porque quem faz as leis nas diferentes constituições são homens, "cuja alma é amante de dois potentes rivais," a razão e a paixão (Harrington 1996, p. 19). A razão é ao mesmo tempo virtude e interesse, dedicação à república e cálculo de sobrevivência. Retomando suas fontes antigas e modernas, Harrington primeiro infere que, quanto mais o interesse privado se aproximar do interesse comum, mais virtuoso será o governo e a própria república. A conclusão, inspirada nos defensores da prudência antiga, mas embebida nos pressupostos do mundo moderno, é a de que o regime no qual a razão privada mais se aproxima da razão comum ou do interesse da humanidade é o governo popular (Harrington 1996, p. 22).
Não há forma de governo sem relações de poder, tampouco há relações de poder que não resultem em formas de governo. Da interseção entre os dois princípios, Harrington deduz então uma série de regimes políticos, subdivididos entre naturais e corrompidos, agora à maneira de Políbio. Os naturais - monarquia absoluta (modelo turco), monarquia mista (ou equilíbrio gótico) e república– recebem esse nome porque há perfeita conformidade entre os fundamentos e as superestruturas (Harrington 1986, p. 398). Nesses regimes, detém a autoridade quem possui poder, isto é, o homem ou o grupo que possui a maior porção de terras (o predomínio de terras) governa segundo seus interesses, de tal modo que não há nenhuma necessidade de interpor violência para reduzir as superestruturas ao equilíbrio adequado ou vice versa. Os regimes corrompidos ou arbitrários, ao contrário – tirania, oligarquia e anarquia–, são imperfeitos no equilíbrio ou na corrupção dos legisladores, dependendo sempre da interposição de violência. Não raro os governantes, para se manterem, precisam recrutar um exército, situação na qual o país se encontra em estado de guerra civil. Quando nem sequer têm meios para isso, o país se encontra destituído de todo governo, e pouco tempo faltará para "desmoronar por falta de fundação ou ser mandado aos ares por algum tumulto" (Harrington 1996, p. 273).

IV

A esta altura, dispomos dos elementos necessários para compreender o diagnóstico de Harrington a respeito da crise política em seu país. Apoiando-se na legislação e na sabedoria de Lorde Verulâmio, de acordo com o qual "em países onde houver muitos fidalgos os comuns estarão degradados" (Bacon 2008, p. 399), Harrington observa que na Inglaterra um fenômeno inverso acontece desde o século XV. Data daí o movimento, sempre crescente, de transferência de terras das mãos da nobreza para os comuns. Esse fenômeno coincidiu, de um lado, com a emancipação dos rendeiros, que em tempos de paz seguravam o arado e nos de guerra, a espada. Sem terras e sem dependentes, parte considerável da aristocracia foi forçada a migrar para Bridewell, onde o parasitismo da vida cortesã acabou por consumir em plumas e pompas os últimos latifúndios desse grupo social (Harrington 1986, p. 400). De outro lado, a fragmentação dessas propriedades rurais fez proliferarem terras de pequenos agricultores e de gente de categoria mediana, já habituada à milícia e às durezas da vida no campo (Harrington 1986, pp. 399-400). Eis aí a origem da força que dois séculos depois comporá o Exército de Novo Tipo, o exército do povo compreendido como o conjunto dos homens livres ou proprietários.
Um século antes de eclodirem as guerras civis, já haveria um desajuste crucial entre o equilíbrio de propriedades na Inglaterra, que tendia para o governo popular, e uma monarquia aferrada as suas antigas instituições. A exceção foi a rainha Elizabeth I, que teria intuído vagamente a necessidade de se apoiar no amor de seu povo. Mas, para evitar o desastre que viria a acontecer meio século depois, ela deveria, primeiro, ter atentado para o equilíbrio de terras então vigente e, segundo, ter o desprendimento para reformar seu governo ao ponto de depor a si mesma11! Seu sucessor, o rei Jaime, nutria verdadeiro horror pelos parlamentos e tentou reduzilos a um papel insignificante na constituição. Com isso, só fez precipitar ("como uma bola morro abaixo") o governo popular (Harrington 1986, p. 402), na medida em que forneceu razões para descontentamento. Carlos I, não bastando já ter pela frente um governo difícil, nutria os mesmos sentimentos pelo povo e se apoiava numa classe em franco declínio – o clero. Além disso, a seu exército faltava virtude, porque havia sido recrutado entre uma classe que havia perdido a relação viril com a terra. No plano da legalidade, o direito indubitável de sucessão pelo qual Carlos I ascendeu ao trono nunca significou nada, porque esse trono era desprovido de toda a fundação (Harrington 1986, p. 402). O fim de Carlos I marcaria o fim da monarquia na Inglaterra.
Como se vê, a experiência de facto do colapso da monarquia de algum modo impele Harrington a reconstituir a história no interior de um quadro analítico em que as relações materiais parecem adquirir um peso determinante. Dessa história, o autor extrai uma lição muito diferente da que circulava em seu tempo, a saber: "a dissolução desse governo causou a guerra, não a guerra a dissolução desse governo" (Harrington 1996, p. 56). Conforme essa interpretação, muito antes de 1642 a Inglaterra já viveria uma guerra civil, embora a violência ainda fosse latente, isto é, nem os meios coercitivos empregados pelos monarcas para manterem os súditos em obediência eram ostensivos, nem os súditos resistiam pelas armas. Havia, porém, um desajuste, um desequilíbrio. Ao longo de um século, a guerra civil latente viria a se transformar naquela situação de anarquia em que um governo, carecido de sua fundação própria, ou desmorona ou vai pelos ares. Em 1642, quando dois exércitos ingleses se enfrentam nos campos de batalha do país e há duas reivindicações à soberania, a base material da monarquia deixou de existir. Em lugar dela, havia uma fundação igualitária, em que o povo detinha a maior proporção de terras do reino. Mais dia, menos dia, as instituições monárquicas viriam a desaparecer por conta de fatores que talvez estivessem além do controle humano.
Em face dessa análise, parece lógico inferir que apenas o regime republicano, em que há participação ativa de todos os cidadãos, seria capaz de estancar o fluxo revolucionário e promover a paz pública na Inglaterra. No entanto, ao contrário do que se poderia supor, as superestruturas compatíveis com esse equilíbrio de propriedades não emanam diretamente dele. É preciso empreender o esforço de criá-las, ou então a anarquia permanecerá indefinidamente. Apresentando-se como o cidadão mais confiável para desempenhar essa grandiosa tarefa, Harrington agora deve se converter de historiador em arquiteto e anatomista (Harringon 1986, p. 403, p. 410), fazendo uso de sua perícia para instituir um novo corpo político e projetar todo o edifício das leis. Enfim, Harrington assume duas imensas responsabilidades perante seus concidadãos: criar – mais como Licurgo do que como os Graco - a lei agrária que deverá fixar o equilíbrio de propriedades na situação em que se encontra naquela altura da história a fim de impedir a corrupção da base material12 e elaborar toda a superestrutura da nova constituição.

V

O momento em que Harrington escreve é de trágica urgência. Os governantes e legisladores inclinam-se fortemente a buscar em teorias monárquicas o arcabouço institucional do novo regime, solução que só tende, de acordo com o diagnóstico de Harrington, a aumentar a fratura social. Como anatomista e arquiteto político, é seu dever esclarecer a nação sobre as medidas que precisam ser adotadas sem demora para alcançar a harmonia e a estabilidade. A epígrafe de The Art of Lawgiving extraída dos Salmos é instrutiva: "Na verdade que já os fundamentos se transtornam, o que pode fazer o justo?". Harrington, o justo, não pode fazer outra coisa senão escrever. A alternativa de se omitir está fora de questão: ele seria um pária e um ímpio caso se resignasse a assistir sentado às reviravoltas que sofre o seu país. Mesmo o mais humilde cidadão comete "um crime hediondo contra Deus e seu país" se não informar à república "aquilo que ele sabe ou concebe ter importância para a segurança dela" (Harrington 1986, p. 403). O escritor político já sentiu a dolorosa experiência de ter sua voz completamente ignorada e sabe, pior, que toda a gente poderá desprezá-lo e até destrui-lo (tal é o "humor dos tempos"...), mas apesar disso é imprescindível escrever/agir: "a Inglaterra agora depende claramente da perícia ou suficiência em arquitetura política" (Harrington 1986, p. 403).
Mas o momento também é de rara oportunidade, porque "a matéria ou fundação de um governo bem ordenado está pronta (...) e para que seja perfeito nada mais falta além de superestruturas próprias ou forma" (Harrington 1996, p. 273). Matéria, forma e, poderíamos acrescentar, ocasião: termos idênticos aos que emprega o mestre Maquiavel no capítulo "Exortação a tomar a Itália e libertá-la das mãos dos bárbaros", do Príncipe (Maquiavel 2004, p. 123). Essa alusão não é gratuita: as guerras civis haviam permitido que a Inglaterra se tornasse o lugar onde finalmente se aplicariam alguns dos mais sábios ensinamentos de Maquiavel. A ocasião estava dada: uma matéria sem forma, um povo "numa condição de total anomia" – ou anarquia, no vocabulário harringtoniano -, em que a matéria não tinha mais nenhum vestígio de uma forma anterior (Pocock 2003a, p. 169).
Daí por que Harrington recomenda sua perícia como arquiteto político ao Parlamento e ao Exército, arenas onde o povo se apresenta e representa (Harrington 1986, p. 413). Essa perícia não fica evidente apenas no discernimento com que compreende a história e teoriza sobre as relações de poder subjacentes aos regimes de governo, mas também no que ele tem a oferecer para sua república: uma constituição, projetada nas suas minúcias, na qual se assegure a participação efetiva a todos os cidadãos. Como se trata de uma república moderna, com grande território e população, Harrington cria um complexo sistema, provavelmente inspirado em Veneza (Harrington 1996, p. 33), em que os cidadãos vão se alternando, por sorteio ou eleição, nas várias assembleias e conselhos. Esse elaborado mecanismo de alternância no governo, que Harrington intitula "rotação", evita a perpetuação nos cargos, ao mesmo tempo que "mecaniza" a virtude, isto é, torna o comportamento dos cidadãos inteligente e desinteressado (Pocock 2003a, p. 393). Só assim eles agem como homens livres, que não dependem de outros para viver e obedecem às leis instituídas por eles próprios (Harrington 1996, p. 230).
Mas todas essas diferentes instâncias, esferas ou orbes (Harrington 1996, p. 244) de poder são inúteis se não se implantar uma medida prévia relativa à fundação. Ao se voltar para o modelo romano, Harrington decifra sua falha constitutiva, observando que o tenso equilíbrio político entre patrícios e plebeus nunca esteve fundado sobre um equilíbrio de propriedades. Pelo contrário, os patrícios detinham o predomínio de terras e os plebeus, a posse das armas. Além disso, como os plebeus tinham autoridade para fazer leis, mas sem poder para tanto, em várias ocasiões procuraram confiscar as propriedades dos patrícios e foram violentamente rechaçados (Harrington 1996, p. 15). O caso mais emblemático foi o da crise fomentada pelos irmãos Graco, quando principia, segundo o próprio Maquiavel reconhece, a ruína de um modo livre de vida (Maquiavel I, 6, p. 20). Harrington ecoa Maquiavel, afirmando que, se desde o início uma lei agrária houvesse fixado o equilíbrio igualitário de terras, a república romana teria alcançado a perfeição (Maquiavel I, 37, p. 79). Sem isso, a república não passou de um governo oligárquico altamente conflituoso (Harrington 1996, p. 61). Portanto, se Oceana quiser se tornar uma república perfeita, quase imortal e vitoriosa sobre o tempo (a Fortuna), é imprescindível fixar por meio de uma lei agrária o equilíbrio de propriedades nesse momento em que o povo detém o poder. O que Harrington
está propondo, em suma, é uma constituição, entendida com legislação e forma de governo, que impeça a acumulação de propriedade fundiária (Harrington 1986, p. 12).
Não basta, por fim, dispor de uma elaborada constituição ou corpo político se não houver meios de implantá-la. Para isso, seria necessário surgir na Inglaterra, como se esperava n'O Príncipe, um legislador dotado da mesma virtù de Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu, príncipes "que não receberam da fortuna mais do que a ocasião", isto é, "a matéria para introduzirem a forma que lhes aprouvesse"(Maquiavel 2004, cap. VI, p. 24). Ou talvez o Licurgo descrito em Discurso sobre a Década de Tito Lívio, o legislador prudente e solitário, cuja virtude era tal que criou leis garantindo a estabilidade de Esparta por mais de 800 anos (Maquiavel 1996, I, 2, p. 10). O modelo romano, em que a república foi se construindo gradualmente, corrigindo suas imperfeições no decorrer de séculos e por meio de legisladores variados, não parece uma alternativa viável, uma vez que abre perigosas brechas para "mudanças e perturbações" (Harrington 1986, p. 17).
É na razão de um só homem que Harrington confia para se instituir uma república duradoura, imune tanto quanto possível aos ataques do tempo. O povo em armas, matéria da república, mostrase inábil para introduzir essa nova ordem – a natureza das assembleias vultosas é turbulenta; as divergências constantes, a proliferação dos discursos, a imprudência, as paixões fomentadas nas multidões não só acarretariam a perda da oportunidade histórica, mas sobretudo poderiam abrir caminho para um monarca/tirano que impusesse, sob a aparência de ordem, sua vontade arbitrária como lei13. Ora, quem poderia se apresentar como legislador? Cromwell, como vimos, provavelmente é corrupto demais para essa tarefa. Esse talvez seja o grande problema da Inglaterra, como havia sido o da Itália de Maquiavel. No que se refere à criação de uma legislação e constituição da república, os homens de virtude parecem escassos, embora coletivamente o exército manifeste extrema virtude, sendo o melhor guardião da liberdade (Harrington
1986, p. 411). De qualquer modo, a criação da república exige mais do que indivíduos bem-intencionados.
Uma alternativa seria contar com os legisladores reais à mão. Como conselheiro deles, Harrington se mostra preocupado em orientar suas ações quanto às modificações a serem feitas no Parlamento, de modo que todos os interesses heterogêneos da república fossem contemplados. Tudo o que esses legisladores deveriam fazer seria seguir, se não a letra da constituição harringtoniana, pelo menos seu espírito: promover leis restringindo o acúmulo e transferência de propriedades; subdividir os cargos públicos em diferentes e convergentes esferas de deliberação e decisão. Essa é uma alternativa – imperfeita, é verdade - para implementar sem demora o projeto político da república. Mas possivelmente não é a única, nem a principal. De fato, se Cromwell é inconfiável, tampouco se pode esperar muito das assembleias populares (Harrington 1986, pp. 409-10).
Por outro lado, temos razões para supor que Harrington não esteja esperando o surgimento de uma figura mítica – o novo Moisés. Na ausência de homens de carne e osso capazes de levar adiante a tarefa de instituir a república perfeita, ele próprio, sim, Harrington, o historiador e teórico político, apresenta-se como legislador14. Quem mais, afinal, foi "revirar os arquivos da prudência antiga" em busca de modelos de governo, para evitar que se seguisse a fantasia na "edificação de uma república" (Harrington 1996, p. 69)? Não são poucas as passagens em que Harrington fala pela boca de Lorde Archon. É bem verdade que, no início do capítulo de Oceana intitulado "The Model of the Commonwealth of Oceana", há uma dissociação entre o legislador Lorde Archon, que já teria promulgado o modelo de república, e o narrador que testemunhou todas as etapas de elaboração desse modelo e as descreve no presente (Harrington 1996, p. 72). Também deve-se levar em conta que Lorde Archon, no passado recente um militar, não é mero um alter ego de Harrington. Não obstante, o criador dessa ordem que imita a natureza em Oceana (Harrington 1996, p. 244) é o mesmo arquiteto ou anatomista de The Art of Lawgiving. As duas
(ou três) figuras dispõem dos meios adequados de criar uma república. No primeiro caso, o legislador é um homem de virtudes extraordinárias; no segundo, o arquiteto ou anatomista é um homem de conhecimento extraordinário.
Uma vez concluídas as tarefas sob seu encargo, o legisladorarquiteto haverá de retirar-se da cena política para evitar as tentações da perpetuação no poder. "Aquele que manda nas leis", dirá Rousseau mais tarde, "não deve mandar nos homens. O contrário também é verdadeiro: quem manda nos homens não pode mandar nas leis (Rousseau 2003, p. 51). O legislador, portanto, não é governante, nem o governante deve ser legislador. Era isso que o pobre Wren não conseguia entender.

VI

Durante algumas décadas, parte importante da historiografia tendeu a ver na obra de Harrington uma exposição avant la lettre de algumas das principais teses de Marx sobre a história15. Em síntese, historiadores tão diferentes como Tawney e Trevor-Roper consideraram que uma teoria como a de Harrington estabeleceria uma relação de causalidade entre a fundação ou base material e as superestruturas. Mais recentemente, Jonathan Scott parece ter retomado essa interpretação, ao afirmar que, na teoria política harringtoniana, todos os problemas políticos seriam solucionados pela redução das superestruturas à base material (Scott 1997, p. 152). Entre as diferentes razões aduzidas por Scott para demonstrar sua hipótese, uma das mais relevantes se refere à abolição da Fortuna na obra de Harrington, elemento de contingência que permitia ao homem, e em particular o cidadão, fazer escolhas e arcar com o benefícios e prejuízos de tais escolhas.
Se for assim, isto é, se houver na obra de Harrington uma concepção de história para a qual as transformações sociais são independentes, em sua maioria, de agentes dotados de arbítrio, haverá pouquíssima brecha para a ação política. Ora, parece claro que republicanismo sem possibilidade de participação ativa
dos cidadãos não é verdadeiramente republicanismo. Pior, representa um golpe certeiro nas aspirações mais elevadas do republicanismo16.
Não foi essa a hipótese que norteou este texto. O que se tentou defender aqui foram duas ideias aparentemente distintas, mas convergentes. A primeira delas se refere à relação mais ampla entre teoria e história política. Como se espera ter mostrado, na explicação harringtoniana dos processos históricos, a superestrutura, plano no qual se estabelecem as relações de autoridade, não emana diretamente da fundação, plano no qual vigoram as relações de poder. Se conceitualmente há uma clara dissociação entre os princípios de autoridade e os de poder, historicamente esses princípios estão vinculados, porém não por meio de relações de determinação ou necessidade. Assim, ao contrário do que uma teoria histórica baseada numa ideia de causalidade permitiria supor, a teoria harringtoniana não depende de uma lógica transparente entre diferentes eventos, culminando numa fatalidade prevista desde o início. Os regimes políticos corrompidos são a prova mais evidente de que não há essa relação de determinação (ou causalidade) entre o plano da estrutura e o da superestrutura. Abre-se aí um bom espaço para a contingência.
Aliás, o mesmo desajuste histórico abre espaço para a ação política. Essa foi a segunda ideia que este texto procurou defender, ao apresentar Harrington como historiador, teórico, anatomista e arquiteto político; conselheiro e legislador. Todos esses apostos nos indicam que havia múltiplas possibilidades de ação que o discurso político de Harrington descrevia e tinha a intenção de realizar. Harrington era um verdadeiro agente político, participando com seus escritos ativamente da vida pública de seu país. Sua finalidade, como escritor, era intervir num debate público a fim de derrotar posições teóricas que procuravam legitimar, por sua vez, uma certa conduta política. Não era apenas uma questão de refutar ou destituir os argumentos dos adversários, mas também de oferecer uma
alternativa viável e convincente, que pudesse se converter num discurso de autoridade (Pocock 2003b, p. 79), num discurso a ser seguido e aplicado. O que Harrington pretendeu realizar ao se tornar um escritor político foi uma ação política (Skinner 2008, p. xvi), ação esta que só faria sentido se esse ator fosse considerado portador de uma vontade livre.
Esse ator político não pretendia se converter em príncipe ou magistrado. Se suas obras foram alvo de censura, como tentou fazer Cromwell com Oceana, se o próprio escritor foi perseguido e preso, como aconteceu no início da Restauração, é porque os príncipes e seus aduladores ignoram as belezas da política. Tampouco há motivo para zombar dos projetos divisados pelo escritor. Risíveis podem ser, se houver alguma graça nisso, os príncipes ou magistrados que sem nenhum plano, entregues apenas as suas próprias ambições e às mesquinhas negociações do dia-a-dia, reivindicam-se como homens públicos.

NOTAS

1. Agradeço a Cícero Araújo, Marcelo Jasmin e Modesto Florenzano os comentários e sugestões acerca da primeira versão deste texto, apresentada durante o I Colóquio Internacional de Teoria, Discurso e Ação Política.
2. A respeito dessa dificuldade, veja-se Worden 1994, p. 124, n. 40, e Scott 2004, pp. 285-289.
3. Ver, quanto à recomposição do contexto politico da época e a origem de Oceana, Worden 1994; a esse respeito ainda, embora com uma interpretação bastante distinta sobre o papel de Oceana, Scott 2004, pp. 273- 293.
4. "Tantalus a labris sitiens fugientia captat flumina. Quid rides? Mutato nomine de te fabula narratur". Em tradução para o francês: "Tantale altéré veut saisir l'eau qui, à flots, fuit ses lèvres. Tu ris? Change le nom, cette fable est ton histoire" (Horace, Satires, I, 69).
5. Nelson 2004, p. 88, fornece uma interpretação diferente dessa fábula.
6.Worden sustenta que Harrington nutria um profundo desprezo por Cromwell e comprova sua hipótese analisando diversos casos em que Lorde Archon seria um Anti-Cromwell (verWorden 1994, em especial p. 124).
7. Para uma análise divergente desta, veja-se Scott 1997, para quem.
8. Scott (2004) defende que Harrington escreve Oceana para aconselhar Cromwell e que esse tom de aconselhamento da obra tem recebido pouca atenção dos intérpretes (pp. 286-287).
9. Harrington apresenta, nas palavras de Pocock, "uma importante revisão na teoria e na história política inglesa, à luz de conceitos extraídos do humanismo cívico e do republicanismo maquiaveliano" (Pocock 2003a, p. 384).
10. Embora mencione a riqueza produzida pelo comércio ou propriedade imóvel, Harrington volta quase toda a sua atenção para a riqueza consolidada pela propriedade fundiária ou imóvel (Harrington 1996, p. 11). Afinal, é muito mais estreito o vínculo entre o interesse do proprietário de terras e o interesse do país no qual sua terra está.
11. É isso o que aconselha Maquiavel em Discurso sobre a Década de Tito Lívio, I, 10.
12. Um importante estudo sobre o papel da lei agrária se encontra em Nelson 2004, pp. 94-96.
13. "... agradar o povo com a opinião da sua própria suficiência nesses assuntos não é ser amigo dele, e sim alimentar de todas as esperanças de liberdade o morticínio" (Harrington 1986 p. 413).
14. Essa é uma hipótese secundária que Scott também defende (ver Scott 2004, p. 285).
15. Para um recenseamento dessa bibliografia, ver Schklar 1977.
16. O republicanismo de Harrington não passaria, portanto, de um disfarce até canhestro da teoria hobbesiana, segundo a qual o republicanismo clássico seria a receita mais certa para as guerras civis (Scott 1997, p. 160).

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Recibido: 11-2011;
aceptado: 12-2011

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