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Revista latinoamericana de filosofía

versión On-line ISSN 1852-7353

Rev. latinoam. filos. vol.38 no.1 Ciudad Autónoma de Buenos Aires mayo 2012

 

ARTÍCULOS ORIGINALES

Por que Bacon pensa que o ataque cético ao dogmatismo é insuficiente?

 

Plínio Junqueira Smith
Unifesp, CNPq


RESUMO: Há duas interpretações principais a respeito da relação entre Bacon e o ceticismo na parte crítica de sua filosofia. Enquanto a tradicional afirma que Bacon pouco se interessou pelo ceticismo, a mais recente sustenta que a pars destruens é cética. Procuro defender uma interpretação intermediária, em que o ceticismo é um interlocutor privilegiado para a elaboração da recusa baconiana da tradição filosófica, mas que essa recusa não é cética. Para sustentar minha interpretação, primeiro examino os sentidos de ceticismo e sua importância nas obras de Bacon; depois, apresento e avalio os argumentos dessas duas interpretações principais, mostrando suas deficiências; finalmente, exponho as análises de Bacon das proposições "nada é conhecido" e "nada pode ser conhecido" para mostrar as muitas semelhanças e as diferenças cruciais entre Bacon e os céticos.

PALAVRAS-CHAVE: Ceticismo; Bacon; Akatalepsia; Suspensão do juízo; método.

ABSTRACT: There are two mais intepretations concerning Bacon's relation to scepticism in the destructive part of his philosophy. While the traditional one affirms that Bacon didn't pay much attention to scepticism, more recent ones assert that its pars destruens is sceptical. I propose an intermediate interpretation, according to which scepticism is a privileged interlocutor for Bacon to develop his own kind of criticism, but his refusal is not sceptical. In order to defend it, first I examine how Bacon uses the word "scepticism" and its importance throughout his works; then, I offer my criticism of both interpretations; finally, I present an analysis of Bacon's remarks concerning both sceptical propositions "nothing is known" and "nothing can be known", thereby showing many similarities and the crucial differences between Bacon and the sceptics.

KEYWORDS: Scepticism; Bacon; Akatalepsia; Suspension of judgment; Method.


 

"Qualquer coisa sugerida é bem mais eficaz do que qualquer coisa apregoada. Talvez a mente humana tenha uma tendência a negar declarações. Lembrem o que dizia Emerson: argumentos não convencem ninguém. Não convencem ninguém porque são apresentados como argumentos. E então o contemplamos, e refletimos sobre eles, e os ponderamos, e acabamos decidindo contra eles."
Jorge Luis Borges, Esse ofício do verso

 

1. Embora não completamente ignorado, o ceticismo é um assunto que ainda precisa de um tratamento mais aprofundado por parte dos comentadores de Bacon.1 No volume organizado por Peltonen,2 somente poucas observações dispersas aqui e ali mal tocam nele, sem que nenhum artigo lhe seja dedicado. Mesmo aqueles que estudam a história do ceticismo, como Richard Popkin3 e Charles Larmore,4 não despendem muita energia para entender cuidadosamente o que Bacon tinha a dizer sobre os céticos, nem consideram os detalhes de seu uso do ceticismo. Para boa parte dos comentadores, Bacon quase não teria se ocupado com o ceticismo na parte destrutiva e o teria praticamente ignorado na parte positiva, em que apresenta uma nova concepção de ciência. Ele não tinha tempo a perder com os céticos, mesmo em sua recusa da tradição, pois seu interesse residiria no fornecimento de auxílios para os sentidos e intelecto e na reconstrução da ciência, não no seu impedimento. Não haveria razão para desespero, uma vez que outra via para a verdade seria possível. Ao dizer que "Bacon jamais levou a sério o desafio cético como uma filosofia",5 Zagorin resume bem essa posição.
A situação, contudo, progrediu nos últimos anos, pois vemos um número crescente de artigos, que, tomados coletivamente, sugerem uma nova leitura das relações de Bacon com o ceticismo.6 Não somente se argumentou que o ceticismo é fundamental na pars destruens,7 como também se sustentou que mesmo na tarefa positiva e científica o ceticismo seria um ingrediente importante de sua filosofia.8 Assim, enquanto alguns estão inclinados a ver a parte destrutiva como cética, outros caracterizam a parte positiva como uma forma de ceticismo construtivo.9
O que me proponho a fazer aqui é examinar a relação de Bacon com o ceticismo no que diz respeito à parte destrutiva, deixando para outro trabalho o exame do suposto ceticismo ou de sua suposta rejeição na parte positiva. Defenderei uma posição moderada, a meio caminho da interpretação usual e da nova interpretação. Concordo com a nova interpretação de que o ceticismo é um interlocutor privilegiado de Bacon na sua recusa da tradição grega, tanto filosófica como científica. Contudo, veremos que o ataque cético ao dogmatismo, aos olhos de Bacon, é claramente insuficiente para os seus propósitos e a recusa da tradição filosófica.
Para mostrar isso, partirei da concepção de ceticismo apresentada por Bacon, relembrando algumas passagens em que Bacon se refere ao ceticismo, para atestar sua importância. Em seguida, discutirei criticamente algumas das principais interpretações propostas sobre a relação de Bacon com o ceticismo em torno de sua afirmação de que haveria uma semelhança inicial e uma oposição final. Em terceiro lugar, sustentarei minha interpretação à luz de dois pontos: de um lado, a atitude de Bacon e dos céticos com relação à proposição "nada pode ser conhecido" e, de outro, o método de rejeição da tradição ou do dogmatismo. Tecerei, então, algumas considerações sobre que tipo de filosofia é o ceticismo, na terminologia de Bacon. Finalmente, farei uma breve conclusão, resumindo minha interpretação e o que se pode aprender com ela.

2. Pode-se rejeitar rapidamente a ideia de que Bacon jamais levou o ceticismo a sério. Um exame, mesmo que superficial, da quantidade das passagens em que o ceticismo é claramente mencionado atesta sua importância para o pensamento de Bacon. Já no final do século XVI, em The Praise of Knowledge, Bacon aludia aos céticos.10 Encontram-se inúmeras referências em obras da primeira década de 1600 como Valerius Terminus,11 Temporis Partus Masculus,12 Redargutio Philosophiarum,13 Cogitata et Visa14 e Sapientia Veterum.15 Todo um texto, o Scala Intellectus, é dedicado a esse assunto. No Progresso do conhecimento, há referências ao ceticismo tanto no Livro 1 como no Livro 2.16 E após 1620, quando elabora a Instauratio Magna, Bacon continua a referir-se constantemente aos céticos: no prefácio à Instauratio Magna,17 na Distributio Operis,18 no Novum Organum, tanto no prefácio,19 como diversas vezes ao longo desse livro,20 na Historia Vitae et Mortis,21 que compõe a parte 3, na introdução à parte 422 e, mesmo, na parte 5.23 Em muitas obras, ao longo de toda sua vida, Bacon se referiu com constância aos céticos.
Um exame qualitativo dessas passagens mostra de maneira ainda mais clara a importância do ceticismo para Bacon. Embora digam mais ou menos a mesma coisa, de forma que a quantidade de referências explícitas possa parecer indicar poucas ideias sobre o assunto, um exame mais cuidadoso revela não somente que Bacon conhecia diversas facetas do ceticismo, mas também que ele considerou o ceticismo como um interlocutor privilegiado em certos assuntos. Primeiro, vale a pena lembrar os diversos tópicos céticos mencionados por Bacon, como a suspensão do juízo, o método de argumentar a favor e contra uma doutrina, suas dúvidas, a denúncia da precipitação que conduz a erros e, finalmente, a akatalepsia.24 E, como veremos mais adiante, o ceticismo certamente desempenha um papel de destaque na busca de uma forma para recusar a tradição filosófica nos textos de 1603-1608.
Deve-se ressaltar também o lugar estratégico ocupado pelo ceticismo na economia interna de seu pensamento, em particular no Novum Organum, livro I, em que aparece em praticamente todos os tópicos e sempre em momentos cruciais do texto. Por exemplo, o ceticismo é mencionado na introdução à doutrina dos ídolos25 e na passagem dessa doutrina para os signos e causas.26 Além disso, é considerado a principal causa para o desespero e o que mais impediria a busca do conhecimento.27 O ceticismo aparece ainda na passagem da esperança para a preparação da mente28 e, finalmente, perto da conclusão dessa preparação.29 A presença do ceticismo se estende para quase todas as partes da Instauratio Magna, inclusive as mais avançadas, quando a parte positiva já está bem adiantada e temos algums partes da ciência. O texto Escada do entendimento deveria ser incorporado na introdução da parte 4, na qual algumas aplicações preliminares do método baconiano seriam levadas a cabo. E mesmo na parte 5 há uma importante e talvez surpreendente referência ao ceticismo e à suspensão do juízo, pois nela se recolheriam alguns resultados, "coisas que eu mesmo descobri, provei ou acrescentei".30 É curioso notar que Bacon, ao tentar estabelecer uma correlação entre a longevidade e as filosofias, afirma que "as seitas de Carnéades e dos acadêmicos" contribuem para uma vida longa, enquanto "filosofias que lidam com sutilezas, dogmáticas," tendem a diminuí-la.31
À luz da quantidade, qualidade, diversidade e importância estratégica dessas passagens sobre o ceticismo, pode-se concluir que o ceticismo não pode ser negligenciado numa interpretação mais cuidadosa e abrangente da filosofia de Bacon, em particular da pars destruens. Como, então, Bacon concebe o ceticismo? E de que modo deveremos proceder para explicar essa relação que parece tão importante?
Bacon tinha, ao menos, duas concepções de ceticismo, uma estrita, outra mais ampla. Às vezes, ele concebe o ceticismo de maneira rigorosa, porque parece ter se restringido ao ceticismo antigo, em particular ao ceticismo acadêmico, e mais especificamente ainda a Carnéades. Nesse sentido estrito, Bacon identifica a akatalepsia e o probabilismo como as duas principais doutrinas céticas.
Bacon tece alguns comentários sobre a akatalepsia. Primeiro, a akatalepsia está associada à suspensão do juízo.32 O cético suspenderia o juízo quando sustenta "simplesmente que nada pode ser conhecido",33 terminando por afirmar que as coisas não podem ser apreendidas, seja pelos sentidos, seja pelo intelecto. Com efeito, no Sala Intellectus, Bacon atribui aos céticos a "opinião rígida" (decretum durum) de que "nada é conhecido"34 e, logo a seguir, diz que os céticos afirmam "absolutamente" (prorsus) que "nada pode ser conhecido".35 Assim, a akatalepsia é formulada de duas maneiras: uma mais branda, afirmando somente o fato de que "nada é conhecido", mas também, de maneira mais forte, introduzindo a impossibilidade completamente geral de que "nada pode ser conhecido". Para Bacon, os céticos "afirmaram que absolutamente nada pode ser conhecido".36
Portanto, para uma compreensão adequada das relações entre Bacon e o ceticismo, deve-se focalizar principalmente a proposição "nada pode ser conhecido". Toda a questão reside em comparar as posições de Bacon e dos céticos (como Bacon a entende) diante dela. Segundo Bacon, os céticos, ao suspenderem o juízo, foram levados a sustentar de maneira completamente geral a tese de que o conhecimento é impossível, de que o conhecimento não pode ser alcançado. A respeito dessa proposição, os céticos não teriam suspendido o juízo, mas a teriam endossado plenamente. Assim, parece que Bacon interpreta a akatalepsia de maneira similar à maneira como Sexto interpretava a Nova Academia, como uma espécie de dogmatismo negativo.
Confirma-se a ideia de que a akatalepsia cética é um dogma por um comentário de Bacon sobre seu desenvolvimento histórico. Esta foi introduzida, num primeiro momento, como uma espécie de ironia e, depois, foi transformada num dogma.37 Assim, no período especificamente cético da Academia platônica, a akatalepsia é considerada por Bacon uma doutrina, uma tese, uma afirmação ou um dogma.38 Há, naturalmente, uma ironia do próprio Bacon ao caracterizar o seu emprego cético dessa maneira, pois faz voltar contra os céticos a crítica que estes dirigem contra os dogmáticos. Percebe- se, portanto, que Bacon acusará os céticos de preservarem o que gostariam de rejeitar.
Segundo, Bacon está consciente de que os céticos falam de probabilidade, concebem a ciência como um empreendimento provável e entendem a ação como baseada em probabilidades que permitem fazer escolhas. A esse respeito, uma consequência importante (a ser analisada em outra oportunidade) é o divórcio entre verdade e probabilidade. Se não há absolutamente nenhum critério de verdade, se absolutamente nada pode ser conhecido, então a probabilidade diz respeito somente à ação e ao uso da ciência. Nesse sentido, Bacon parece seguir a interpretação de Carnéades oferecida por Cícero: a suspensão do juízo é compatível com a probabilidade.39 Noutra passagem,40 Bacon distingue entre o ceticismo acadêmico e o pirronismo porque o último aboliria "toda investigação", enquanto o primeiro aceitaria o resultado da investigação como provável. Assim, num sentido estrito, "ceticismo" significa ceticismo acadêmico, especialmente o ceticismo carneadeano.
Há, ainda, um sentido mais amplo de ceticismo. Às vezes, Bacon assimila ceticismo acadêmico e pirronismo, pondo-as lado a lado, como se não houvesse diferença significativa entre elas.41 Essas passagens sugerem que, no fundo, a antiga controvérsia sobre pirrônicos e acadêmicos, de saber se eram duas correntes ou uma só, não lhe interessava muito, ora confundindo-as, ora distinguindo- as. Além disso, ele às vezes incluía na seita dos céticos, não somente essas duas correntes, mas também muitos outros filósofos que comumente não são vistos como céticos. Assim, Bacon inclui na categoria de céticos: i) aqueles que questionam e objetam da mesma maneira; ii) aqueles que proclamam a obscuridade das coisas; iii) aqueles que confessam-na na sua intimidade em silêncio.42 Quem seriam esses filósofos "céticos", mas que usualmente não são considerados assim? No primeiro grupo, poder-se-ia talvez incluir Sócrates e, mesmo, Platão, já que este teria introduzido a akatalepsia, ainda que de maneira irônica;43 no segundo grupo, Demócrito certamente seria o mais importante de todos, mas também se deve incluir Empédocles;44 no terceiro grupo, aparentemente Bacon incluiria todos os filósofos que "quando voltam a si mesmos, queixam- se da sutileza da natureza, dos esconderijos da verdade, da obscuridade das coisas, das complicações das causas, da fragilidade da mente humana".45 Entendida dessa maneira ampla, a seita dos céticos incluiria "de longe os maiores homens desde os tempos antigos, uma vez que a maioria afirmou sem confiança".46
Assim, quando se discute a relação de Bacon com o ceticismo, deve-se levar em conta não somente os céticos acadêmicos, mas também os pirrônicos (ainda que ele possa não ter conhecido as obras de Sexto Empírico diretamente); não somente os céticos antigos, mas também os céticos renascentistas, como Agrippa, Sanches e, sobretudo, Montaigne;47 e, finalmente, não somente os céticos confessos, mas todos aqueles dogmáticos que, num momento mais consciente e de franqueza, levantam dificuldades sobre suas próprias doutrinas e admitem que nada é certo. Neste último grupo, Demócrito é certamente o filósofo mais admirado por Bacon, mais talvez que os próprios acadêmicos. Com efeito, Bacon diz que Demócrito se queixava com moderação da obscuridade das coisas, enquanto Empédocles o fazia com veemência e os céticos acadêmicos teriam ido "longe demais nessa direção".48

3. Uma vez estabelecida a importância do ceticismo, tanto antigo como moderno, para a filosofia de Bacon, passemos para a discussão de algumas das principais interpretações oferecidas sobre o sentido mais geral da posição de Bacon em face do ceticismo.
O próprio Bacon indica quais são essas relações. De um modo geral, Bacon simultaneamente aponta semelhanças e restrições ao ceticismo, sugerindo que essa relação tem, ao menos, dois momentos. A esse respeito, uma passagem crucial é NO I, 37, na qual Bacon reconhece haver algum acordo no início, mas uma oposição no final. Como a passagem é extremamente importante para o tema em pauta, vale a pena citar esse aforisma na íntegra.

O método dos que sustentaram a tese da acatalepsia segue, no início, em certa medida, uma via paralela ao nosso, mas se separa no fim e se opõe inteiramente. Com efeito, esses filósofos afirmaram sem restrição que não se pode saber nada, enquanto, de nossa parte, afirmamos que não se pode saber muita coisa sobre a natureza pela via ora em uso. Mas eles terminam por arruinar a autoridade dos sentidos e do entendimento, ao passo que nós elaboramos e fornecemos auxílios a essas faculdades.

É bastante evidente, de um lado, que Bacon assume uma posição relativamente ambígua em face da posição cética: se, de um lado, ele se aproxima dos céticos, não será sem a qualificação "em certa medida"; e se, de outro, há alguma aproximação inicial, não será sem uma oposição final. Duas questões, então, surgem imediatamente. Primeiro, no que exatamente Bacon concorda e discorda dos céticos? Segundo, o que se deve entender por "início" e por "no fim"? Naturalmente, as duas perguntas estão associadas.
Uma interpretação é a de que o contraste entre início e fim corresponde ao contraste entre uma primeira leitura e uma leitura mais atenta e cuidadosa. Assim, se no início há semelhança e no fim, oposição, isso significaria que, aparentemente, haveria similaridades entre a recusa baconiana da filosofia e o ataque cético ao dogmatismo, mas, no fundo, haveria somente oposição. Poderia parecer que a doutrina dos ídolos, por exemplo, é similar aos argumentos céticos ou, mesmo, uma reelaboração desses argumentos, mas, na verdade, a doutrina dos ídolos não teria nenhuma relação com a argumentação cética. Essa é, aproximadamente, a interpretação tradicional, que rejeita qualquer comparação mais detalhada entre Bacon e o ceticismo. Assim, o ceticismo não seria relevante para a doutrina dos ídolos e esta teria sido elaborada por Bacon de maneira independente dele.49
Essa interpretação não parece correta. Não somente pelo que já vimos acima, quando chamamos a atenção para a presença de temas céticos no pensamento de Bacon, mas também porque o próprio Bacon parece indicar, noutro texto bastante similar a NO I, 37, que, no "início", as semelhanças com o ceticismo são muito extensas.

Mas, de outra parte, retornando àquela sociedade de que falamos [entre Bacon e os céticos], ver-se-ia com clareza, facilmente, que nós, em relação a esses homens, estamos unidos inicialmente em nossas opiniões, mas no final estamos imensamente separados. Pois, ainda que primeiramente não parecêssemos muito dissentir — porque eles sustentam a incompetência do intelecto humano de modo absoluto e nós a sustentamos condicionalmente —, este é, por fim, o resultado: eles, não descobrindo nem esperando nenhum remédio a esse mal, desistem da empresa e, uma vez assediada a certeza dos sentidos, despojam a ciência dos seus fundamentos mais básicos; nós, trazendo uma nova via, esforçamonos por controlar e corrigir os erros, ora da mente, ora dos sentidos.50

O exame dessa "sociedade" com os céticos, cuja companhia não o envergonha (muito ao contrário, está ao lado daqueles que são "de longe os maiores homens desde os antigos"), permite explicar melhor o que, no início, Bacon compartilha com os céticos. Com efeito, diz Bacon,

não podemos de todo negar que, se pudesse ocorrer uma associação entre nós e os antigos, é com este gênero de filosofia [o ceticismo] que estaríamos mais ligados, pois estaríamos de acordo com muitos dizeres e observações prudentes feitos por eles acerca das variações dos sentidos, da falta de firmeza do julgamento humano e acerca da necessidade de conter e suspender o assentimento.51

Nesse texto crucial para nosso assunto, Bacon fornece uma lista dessas similaridades. Haveria ainda, no entender de Bacon, muitos outros pontos de contato, pois "a estes poderíamos ainda acrescentar diversos outros também pertinentes".52 Encontramos em diversos textos, como já vimos, inúmeras passagens em que Bacon endossa a suspensão do juízo e a atitude dubitativa, bem como critica a precipitação e parcialidade dogmática, que são tópicos céticos recorrentes. Não é o caso de insistirmos em todas essas possíveis semelhanças, pois, de maneira muito significativa, Bacon concede que, entre sua recusa da tradição e o ataque cético ao dogmatismo, haveria somente uma diferença, coincidindo em tudo o mais.

Entre nós e eles resta apenas essa diferença: eles afirmam, sem mais, que verdadeiramente nada pode ser conhecido e nós afirmamos que verdadeiramente nada pode ser conhecido pela via que até aqui percorreu a raça humana.53

A meu ver, essa é uma declaração de uma afinidade entre seu pensamento e o dos céticos que vai além da formulação de NO I, 37: não se trataria somente de uma coincidência "em alguma medida", mas de uma grande aproximação em muitos pontos importantes, ainda que, é claro, não haja uma identidade, pois sempre resta alguma diferença. Assim, parece seguro dizer que no "início" não significa "aparentemente" ou "superficialmente", mas indica que há efetivamente grandes semelhanças e mesmo companhia entre eles.
Uma segunda interpretação, mais natural e espontânea, é a de que Bacon comparte com os céticos a rejeição do passado, mas se opõe a eles no que diz respeito ao futuro, pois, enquanto os céticos acham que jamais teremos um conhecimento, Bacon tem a esperança de construir uma nova ciência com a adoção de um novo método. Dessa forma, por "início", Bacon se referiria à pars destruens e, por "fim", ao seu novo método e à pars construens. Se essa interpretação estiver correta, então a grande similaridade apontada implicaria, na verdade, uma quase total identificação entre a doutrina dos ídolos (junto com os signos e as causas) e o ceticismo, a ponto de se poder dizer que a doutrina dos ídolos seria uma doutrina cética.
A interpretação mais recente revelou o uso extenso do material legado pelos céticos, tanto antigos como modernos, por parte de Bacon. Nesse sentido, as referências explícitas, ainda que muitas,54 não exaurem as similaridades que se podem descobrir entre a recusa baconiana da tradição e o ataque cético ao dogmatismo. O primeiro a sugerir essa interpretação foi Wolf, que teria se limitado às referências explícitas de Bacon aos céticos antigos.55 Villey mostrou, posteriormente, os débitos de Bacon com Montaigne.56 Granada,57 bem mais recentemente, ampliou essa comparação, incluindo todos céticos modernos, não somente Montaigne, mas não desenvolveu o ponto. Os trabalhos de Luiz Eva58 examinam em detalhe, considerando ídolo por ídolo, como Bacon teria retomado os modos céticos e os argumentos presentes em Cícero, Sexto Empírico, Agrippa, Sanches e Montaigne. Trata-se da contribuição mais significativa nessa direção, ao mostrar como o conhecimento de Bacon era extenso e como o uso foi amplo. Oliveira afirma que, "além da aceitação parcial e histórica da crítica cética, há por parte de Bacon uma utilização não explícita de alguns de seus argumentos".59
Vale a pena insistir nesse ponto estabelecido pelos intérpretes mais recentes, segundo o qual haveria um uso implícito de diversas ideias céticas. Indicarei alguns dos modos pelos quais Bacon as teria empregado. Por exemplo, Bacon mostra que as doutrinas filosóficas são problemáticas por meio de certos signos e um desses signos é o grande desacordo entre os filósofos e a diversidade das escolas filosóficas. A conclusão desse signo é que "aparece claramente que nem nos próprios sistemas, nem nos modos de demonstração existe alguma coisa certa ou sólida".60 Esse é um tipo de observação recorrente em sua obra. Obviamente, Bacon está se apoiando na ideia cética de que existe um conflito insuperável entre os dogmáticos. Neste caso, temos uma incorporação consciente, embora implícita, da mesma ideia, tal como foi usada pelos céticos.
Outro exemplo de incorporação implícita diz respeito ao sentido mais amplo de ceticismo empregado por Bacon. Antes de tudo, cabe notar que também Montaigne considera acadêmicos e pirrônicos como pertencendo igualmente à seita dos céticos. De acordo com Montaigne, das três seitas da filosofia duas (pirronismo e ceticismo acadêmico) "fazem profissão expressa de dúvida e de ignorância".61 E, sobretudo, vimos como Bacon admitia que muitos filósofos, aparentemente dogmáticos, poderiam ser considerados céticos. Nesse ponto, Bacon está seguindo uma ideia já presente em Cícero62 e que será retomada por Montaigne na "Apologia de Raimond Sebond", a de que a história da filosofia estaria repleta de céticos não confessos e mesmo os dogmáticos seriam, no fundo, céticos disfarçados, já que não teriam confiado plenamente em suas próprias doutrinas ou não as teriam afirmado com certeza e segurança.63
Para mostrar esse ponto, sigamos a mesma ordem de inclusão na seita dos céticos apresentada por Bacon mais acima. Primeiro, Montaigne também incluiu Sócrates e Platão na seita dos céticos, quando diz, por exemplo, que "o condutor de seus diálogos [de Platão], Sócrates, está sempre perguntando e agitando a discussão, nunca decidindo, nunca satisfazendo, e diz não ter outra ciência além da ciência de opor objeções".64 Montaigne refere-se a Empédocles como sustentando que "todas as coisas nos são ocultas"65 e a Demócrito como um exemplo de alguém que tem uma "paixão diligente que nos ocupa em perseguir coisas que estamos desesperançados de alcançar",66 com "intenção mais de indagar do que de instruir".67 A ideia baconiana de que os filósofos são sensatos em seus momentos de dúvida e insensatos em suas afirmações dogmáticas também pode ter sido extraída de Montaigne. Por exemplo, Montaigne diz que "não me convenço facilmente de que Epicuro, Platão e Pitágoras nos tenham oferecidos como moeda sonante seus átomos, suas ideias e seus números. Eles eram sensatos demais para fundamentar seus artigos de fé em algo tão incerto e tão discutível".68 Igualmente, lemos que os dogmáticos "amiúde eram forçados a forjar conjecturas frágeis e loucas - não que eles mesmos as tomassem como fundamento, nem para estabelecer alguma verdade, mas como exercício de reflexão".69 Assim, ponto por ponto, o sentido mais amplo de ceticismo empregado por Bacon encontra-se claramente na passagem mais importante da "Apologia" de Montaigne sobre o ceticismo.
Um terceiro exemplo de uso implícito de material cético diz respeito ao valor do conhecimento. Bacon, em diversos textos, procura defender o conhecimento contra algumas críticas. Numa passagem,70 ele endossa a ideia de que, para obter conhecimento, devemos ser cuidadosos, de que deveríamos suspender o juízo antes de seguir adiante. É óbvio que Bacon está implicitamente se referindo aos céticos, uma vez que fala da suspensão do juízo. Neste caso, contudo, seu objetivo é completamente diferente do objetivo dos céticos, quando estes suspendem o juízo e acusam os dogmáticos de precipitação. Enquanto os céticos desesperariam da possibilidade de alcançar o conhecimento, Bacon pretende alcançá- -lo numa investigação mais árdua e diligente. Nessa investigação em busca da verdade, resultados provisórios e sujeitos a correções e melhorias seriam aceitos desde que acompanhados com suspensão do juízo.71 Essa é uma incorporação que se poderia chamar de inovadora, uma incorporação em que Bacon está consciente da novidade que introduz na ideia cética.
À luz dessas análises, dizer que há somente algum acordo, como às vezes faz Bacon,72 é uma admissão muito modesta de seus débitos. O exame detalhado dos comentadores mais recente estabeleceu, a meu ver, uma ampla presença do ceticismo no pensamento de Bacon, em particular na pars destruens. No entanto, a questão é saber se essa presença permite afirmar que a doutrina dos ídolos (junto com os signos e as causas) é uma doutrina cética. A afirmação de Bacon, no Scala Intellectus,73 em que ele admite somente uma diferença entre sua parte destrutiva e o ceticismo estará mais perto da verdade? Não se deve ignorar, por outro lado, de que, apesar dessas semelhanças todas, Bacon nunca se esquece de manter certa distância dos céticos. O acordo, no entender de Bacon, nunca é total, sempre há acordo numa certa medida ou com uma ressalva. Assim, não parece correto qualificar, sem mais, a doutrina dos ídolos como uma doutrina cética. Mesmo com grandes semelhanças, é preciso explicar cuidadosamente a diferença existente entre a recusa baconiana da tradição e o ataque cético ao dogmatismo. Quais são, de fato, as diferenças entre eles? E qual é, exatamente, sua importância?
Eva, em distintos artigos, ofereceu interpretações bastante sofisticadas das semelhanças e diferenças entre a recusa baconiana da tradição, em particular a doutrina dos ídolos, e o ataque cético ao dogmatismo. Numa dessas interpretações,74 Eva sugere que por "início" Bacon entende os dois primeiros tipos de ídolos e por "fim" ele entende o último ídolo. Assim, quando diz que, no início, há semelhanças, Bacon estaria dizendo que os dois primeiros tipos de ídolos são muito próximos dos modos céticos e, quando diz que, no fim, há oposição, é porque ele criticaria os céticos no último tipo de ídolo. A interpretação de Eva é sustentada por uma longa análise de cada um dos tipos de ídolo e uma comparação com os céticos antigos e modernos, de forma que é impossível discuti-la em detalhe aqui. No entanto, levantarei algumas dificuldades que, a meu ver, tornam difícil sustentá-la.75
Se essa interpretação de Eva é correta, então deveríamos encontrar, no início, algumas semelhanças explícitas indicadas por Bacon. Além disso, deveríamos observar, no último tipo de ídolo, críticas ao ceticismo que não se encontrariam no início da doutrina dos ídolos. No entanto, não vemos nenhuma dessas duas coisas. Primeiro, Bacon não mostra semelhanças entre seus dois primeiros tipos de ídolo e o ceticismo, mas, ao contrário, já indica em NO I, 37 tanto semelhanças como diferenças, de tal modo que, desde o início, as diferenças já estão claramente apresentadas ao leitor. Segundo, embora seja verdade que em NO I, 67 Bacon é mais explícito em suas críticas aos céticos, também é certo que ele mesmo alude à NO I, 37, indicando que essa crítica já tinha sido feita na abertura da doutrina dos ídolos. A meu ver, isso sugere que Bacon está somente ampliando um pouco a mesma crítica, isto é, não há progressão de um acordo para uma oposição, mas somente maior explicitação de uma crítica já formulada.
Além disso, deveríamos observar um contínuo afastamento do ceticismo, ídolo após ídolo, de forma que o primeiro tipo de ídolo seria o mais cético de todos, o segundo um pouco menos cético, o terceiro bem pouco cético e o quarto nada cético. Mas não é isso o que acontece. De fato, como o próprio Eva reconhece,76 o segundo tipo de ídolo é mais próximo do ceticismo do que o primeiro. Isso faz com que Eva altere, em suas análises, a ordem dos ídolos, começando pelos ídolos da caverna, e passe, em seguida, para os da raça. Ora, a ordem de Bacon não obedece a esse princípio, mas a outro princípio, o seu enraizamento no intelecto humano, indo do mais inato ao mais adquirido. Assim, "início" e "fim" não correspondem ao progressivo afastamento do ceticismo, mas ao progressivo afastamento do mais interno à mente ao mais externo. Eva é obrigado a reordenar os ídolos para que estes se adaptem à sua interpretação, e não o contrário. Por essas razões, creio que se deve rejeitar a primeira interpretação de Eva.
Uma segunda interpretação oferecida por Eva77 também procura mostrar como, no interior da doutrina dos ídolos, Bacon no início se aproxima e no fim se afasta do ceticismo. Agora, entretanto, Eva não atribui um afastamento progressivo da argumentação cética ao longo dos ídolos, mas enxerga um aprofundamento da crítica cética, que seria, aos olhos de Bacon, insuficiente e demandaria uma radicalização de sua postura. A ideia principal de Eva é que os céticos teriam atacado o dogmatismo somente por meio dos ídolos adquiridos, o que conduziria a uma crítica superficial do conhecimento, ao passo que Bacon teria ido até os ídolos inatos: como estes não poderiam ser erradicados, sua recusa da tradição seria mais contundente do que o ataque cético. Seria preciso seguir na mesma direção dos céticos, mas ir mais longe do que os próprios céticos foram78. Deste novo ponto de vista, Eva inverte sua interpretação: agora, os dois primeiros ídolos apresentariam a inovação de Bacon, enquanto os dois últimos guardariam mais semelhanças com o ceticismo. O que pensar dessa interpretação que atribui um aprofundamento ou radicalização do ceticismo na doutrina dos ídolos?
É verdade que os céticos estavam certos em mostrar o fracasso do dogmatismo por meio de argumentos "que não devem ser desprezados".79 Deveria Bacon, então, dar continuidade a esses argumentos, radicalizando-os? Embora talvez seja verdade que Bacon aproxime os ídolos adquiridos à argumentação cética e descubra os ídolos inatos à mente que não teriam correspondentes no ceticismo, ainda assim há um sentido em que a ideia de aprofundamento ou radicalização do ceticismo é enganosa. Bacon não estava buscando impedimentos cada vez mais enraízados na mente como os céticos, que teriam descobertos somente ídolos que se implantam na mente durante a vida. Bacon não enxergava, no procedimento cético, um caminho a ser seguido e continuado. Essa crítica cética, para Bacon, era um "excesso" que "não leva a nada".80 A seus olhos, os céticos foram longe demais, levados por zelo e inclinação81 e por não se moderarem.82 Se seguisse na mesma direção dos céticos, Bacon não iria tão longe, já que o caminho cético destrói tudo. Assim, há um sentido em que a recusa da tradição por parte de Bacon é menos radical do que o ataque cético. Nesse sentido, é significativo que Bacon preserva algum conhecimento e tenta aprender com as falhas da tradição,83 enquanto o cético demole todo o edifício do suposto conhecimento dogmático, sem deixar pedra sobre pedra. Com efeito, para Bacon, a disposição cética conduziria o cético a destruir tudo, indo muito além do que deveriam. Por essa razão, parece-me incorreto afirmar, como o faz Eva, que Bacon precisa de uma "crítica mais profunda".84 Como veremos adiante, não se deve esperar nenhuma crítica mais profunda que a dos céticos, uma vez que se aceitam os primeiros princípios e as regras da demonstração postos pelos dogmáticos. Dados os pressupostos da tradição, os céticos foram tão longe quanto se poderia ter ido. Menos ainda pretende Bacon trilhar na mesma direção, mas parando no meio do caminho. Bacon não aprofundou a crítica cética, nem seguiu-a parcialmente, mas propôs uma crítica de tipo diferente.

4. Devemos investigar agora o núcleo central da questão, que gira em torno das proposições "nada é conhecido" e, sobretudo, "nada pode ser conhecido". Considerando suas respectivas atitudes diante delas, podemos ver em que medida a perspectiva de Bacon é próxima da perspectiva cética e em que medida, embora possa haver pouca diferença, essa diferença é notável.
Eles concordam em grande parte, como acabamos de ver, porque ambos assentem à proposição "nada pode ser conhecido". Bacon não se cansa de repetir os méritos dos céticos quando denunciam a ciência grega, mostrando as deficiências dos sentidos e a limitação da razão humana, ressaltando a obscuridade das coisas. Creio que se pode afirmar, à luz dos itens precedentes, que há um grande acordo de Bacon com os céticos no início, isto é, em alguma forma de adesão à proposição "nada pode ser conhecido".
No entanto, eles assentem a essa proposição de maneiras muito diferentes, já que o acordo entre eles não é completo, mas parcial. Enquanto os céticos assentem a ela "sem qualificação", Bacon qualifica-a acrescentando "pela via que está em uso".85 Os céticos enunciam uma opinião rígida, afirmando-a de modo absoluto. Dizer que eles simplesmente a afirmam, ou que a afirmam absolutamente ou sem qualificação é dizer que os céticos aceitam a proposição em sua forma declarativa simples: "nada pode ser conhecido". Por essa razão, transformaram a akatalepsia num dogma. Bacon é mais prudente, não somente porque não fecha as portas para investigações futuras sobre a natureza das coisas, mas também porque seu endosso da proposição é meramente condicional, isto é, sua adesão se dá no interior de uma frase condicional: "se nos confinarmos ao método em uso, então nada pode ser conhecido". Assim, nada é dito sobre o conhecimento se usarmos outro método. Ao contrário, o assentimento à frase condicional traz esperança para o futuro, não desespero.
Além disso, não é exatamente verdade que Bacon aceita que "nada é conhecido". Não somente podemos vir a conhecer muita coisa no futuro, se usarmos uma via nova para o conhecimento, mas também com relação ao passado, mesmo usando um método inadequada, alguma coisa se tornou conhecida. O que Bacon realmente pensa é que pouca coisa foi descoberta e o que foi descoberto deveu-se mais ao acaso e sem nenhuma articulação numa ciência integrada. O Advancement of Learning, por exemplo, não é simplesmente uma recusa do conhecimento passado, mas um exame completo com o propósito de corrigir e melhorar as ciências que nos foram legadas. "Com efeito, eu pensei que fosse bom demorar-me sobre o que recebemos, para que o velho possa ser mais facilmente aperfeiçoado e o novo mais facilmente abordado".86 Algum conhecimento foi adquirido e até as deficiências do passado podem nos ajudar no futuro.87
Portanto, em pelo menos dois pontos Bacon não partilha das opiniões céticas: a adesão de Bacon à proposição "nada pode ser conhecido" é condicional, não absoluta, e Bacon nem sequer pensa que "nada é conhecido" por meio da via agora em uso, já que o que ele realmente quer dizer é: pouco conhecimento foi adquirido por essa via. Enquanto o cético assente à proposição "nada pode ser conhecido", Bacon assente à seguinte proposição: "se nos confinarmos ao método em uso, então muito pouco foi e pode ser conhecido". Explica-se, assim, a meu ver, por que Bacon vê tantas semelhanças iniciais entre sua recusa da filosofia e o ataque cético ao dogmatismo, indicando somente uma ou duas diferenças.
É preciso, agora, explicar o afastamento e, mesmo, a oposição final entre Bacon e os céticos. Seja-me permitido fazer mais uma longa citação, que articula explicitamente a passagem das semelhanças iniciais para a oposição final, que servirá como fio condutor para entendermos melhor o afastamento de Bacon em relação aos céticos.

Pois, ainda que primeiramente não parecêssemos muito dissentir — porque eles sustentam a incompetência do intelecto humano de modo absoluto e nós a sustentamos condicionalmente —, este é, por fim, o resultado: eles, não descobrindo nem esperando nenhum remédio a esse mal, desistem da empresa e, uma vez assediada a certeza dos sentidos, despojam a ciência dos seus fundamentos mais básicos; nós, trazendo uma nova via, esforçamo-nos por controlar e corrigir os erros, ora da mente, ora dos sentidos.88

As diferenças acima apontadas, embora poucas, parecem conduzir a conclusões muito diferentes. Se uma pessoa sustenta de maneira absoluta, sem qualificação ou restrição a proposição "nada pode ser conhecido", então a conclusão natural é que ela desista de buscar o conhecimento; no entanto, se essa pessoa sustenta de maneira qualificada ou condicional essa proposição, então a conclusão natural é que ainda se pode buscar o conhecimento, mas de outra forma, e toda a questão gira em torno de uma nova via para o conhecimento. Ao atribuir um caráter condicional e limitado, o resultado das considerações sobre a proposição acaba sendo o inverso: o cético desespera do conhecimento, Bacon mantem a esperança; o cético apenas critica os sentidos e o intelecto, Bacon busca auxílios para eles.
Assim, a meu ver, a relação entre o início e o fim é a seguinte. Por "início", Bacon entende as reflexões sobre as dificuldades dos sentidos e do intelecto humano, sobre a obscuridade das coisas etc., que nos levam a sentir a força das proposições "nada é conhecido" e "nada pode ser conhecido"; por "fim", ele entende a consequência filosófica que se deve extrair dessas proposições, quando devidamente qualificadas e moderadas. Creio que a relação entre o início e o fim é uma relação de inferência, uma espécie de conclusão que se deve extrair de premissas.89 De afirmações similares, mas não idênticas, chega-se a conclusões opostas. O que fazer diante da proposição "nada pode ser conhecido"? Deseperar do conhecimento, abandonar a sua busca, continuar a argumentar contra os dogmáticos que pretendem ter desvendado a verdade. E o que fazer diante da proposição "se nos confinarmos ao método em uso, então muito pouco pode ser conhecido"? Buscar outro método, propor auxílios para remediar os defeitos dos sentidos e do intelecto, para que se possa, finalmente, alcançar o desejado conhecimento.
Essa oposição final confere um sentido muito diferente para aquilo que, no início, parecia muito semelhante. Cabe, então, considerar um terceiro ponto a ser investigado, talvez o mais importante de todos. De acordo com esse ponto, não se pode dizer que a pars destruens de Bacon está no mesmo barco dos céticos, que Bacon pertence à mesma sociedade que os céticos. A pergunta que se deve colocar é: está correto dizer que Bacon faz o mesmo tipo de crítica que os céticos?90 Quais as características da recusa baconiana da tradição e as do ataque cético ao dogmatismo? Responder a essas perguntas nos levaria longe demais e não é possível tratá-las neste artigo. No entanto, é possível indicar por que o tipo de crítica levado a cabo pelos céticos é insuficiente para Bacon.
Os céticos têm um método dialético de refutação.91 De acordo com esse método, eles argumentam dos dois lados de uma questão para suspender o juízo e mostrar que os dogmáticos não sabem o que dizem saber. Se os dogmáticos argumentam a favor de uma tese, os céticos argumentam contra ela, mesmo que somente para mostrar que a posição oposta é igualmente persuasiva. Assim, se os dogmáticos argumentam que podemos conhecer as coisas, os céticos argumentam que não podemos conhecer as coisas. Para isso, os céticos lançarão mão de uma diversidade de argumentos, que pretendem estabelecer, por exemplo, as deficiências dos sentidos, a fragilidade da razão humana ou a obscuridade das coisas. O ataque cético está repleto de argumentos, argumentos do mesmo tipo que os argumentos dogmáticos, só que em sentido contrário. De fato, os céticos fazem os argumentos dogmáticos conflitarem uns com os outros de modo que eles se destruirão mutuamente. Dessa forma, enquanto os dogmáticos oferecem argumentos para sustentar uma opinião, os céticos oferecem argumentos conflitantes justamente para não ter nenhuma opinião.
Embora, aparentemente, Bacon não faça nenhuma referência ao caráter dialético da argumentação cética, não há dúvida de que ele o tinha em vista. Primeiro, Bacon conhecia bem o procedimento cético de argumentar dos dois lados de uma questão.92 Ora, esse procedimento é precisamente o procedimento do método dialético. É dessa forma que Bacon descreve a filosofia de Carnéades e dos acadêmicos: eles "disputavam tranquilamente em todas as direções".93 Além disso, as considerações de Bacon sobre o tipo de rejeição da tradição tratam exatamente das características do método dialético. O ponto fundamental para pensar o tipo de rejeição gira em torno da aceitação ou não aceitação de princípios primeiros e regras de demonstração, de modo que, caso os aceitemos, a rejeição se fará de maneira argumentada a partir de dentro da própria tradição (esse é o ataque cético) e, caso não os aceitemos, teremos de buscar outro tipo de rejeição da tradição (será a recusa baconiana).94
Para Bacon, os céticos compartilham primeiros princípios e regras de demonstração com os dogmáticos. Isso está obviamente presente em sua concepção de um método dialético, de acordo com o qual eles podem usar somente o que seus adversários aceitam. Embora não a explorem a fundo, essa interpretação já foi apontada antes por Oliveira e Maia Neto, quando sustentam que "os céticos apresentaram suas objeções dentro da própria tradição filosófica, isto é, eles usaram os mesmos tipos de raciocínio e instrumentos conceituais empregados pelos filósofos dogmáticos que tentavam refutar para mostrar as inconsistências de seus sistemas filosóficos".95 Também Eva apontou nesse direção, explorando-a mais longamente.96 Com efeito, Bacon parece atribuir aos céticos muitas, se não a maioria, das características presentes na filosofia e na ciência gregas. Prior97 e Granada98 afirmam, por exemplo, que os céticos partilham da mesma concepção individualista do conhecimento que os dogmáticos e, por isso, o aforismo "a vida é breve, a arte é longa" pode ser um argumento a favor do ceticismo. Numa concepção como a de Bacon, em que o conhecimento é construído coletivamente por muitos cientistas e ao longo de muitas gerações, esse aforismo perde sua força cética.
Os elementos dialéticos presentes no método cético não são somente epistêmicos, mas também incluem valores. Para Bacon, os céticos realizam seu ataque ao dogmatismo de maneira similar ao que criticam, isto é, os céticos também são levados por "zelo e inclinação",99 mantêm a maneira contenciosa de fazer filosofia,100 sendo tão beligerantes quanto os dogmáticos. O ataque cético ao dogmatismo deve ser entendido nesse sentido retórico em que a filosofia é um campo no qual uma batalha é travada e os argumentos são como armas.101
Bacon pensa que, em função de suas características, há uma grande limitação no método cético de argumentação. O máximo que uma refutação dialética consegue é mostrar que os dogmáticos não alcançam o que pensavam que poderiam alcançar. Mesmo se, logicamente falando, não haja nada errado com uma redução ao absurdo, esse método pode ser problemático de outro ponto de vista. Bacon parece pensar que os céticos se enredam nessa concepção e jamais conseguem sair dela, condenando os homens às trevas eternas.102 Declarando o conhecimento impossível, eles fecham as portas a qualquer outra tentativa.103 Portanto, o ceticismo se torna tão estéril como o dogmatismo que tenta refutar.
Por essa razão, não encontramos na recusa baconiana da tradição nenhum argumento contra a tradição. Esta é uma característica notável de sua recusa que merece cuidadosa reflexão, já que é muito diferente do ataque cético ao dogmatismo. Com base em sua análise detalhada da doutrina dos ídolos e sua suposta origem nos modos céticos, tanto antigos como modernos, Eva conclui que existe uma "ausência de argumentos céticos na doutrina de Bacon".104 Parece-me que esse fato, se for um fato, da ausência de argumentos na recusa de Bacon é crucial para determinar a relação entre sua redargutio (das filosofias, das demonstrações e da razão humana) e o ataque cético ao dogmatismo.
Não somente não há nenhum argumento em sua recusa como não poderia haver nenhum. Não pode haver argumentos na recusa baconiana da tradição simplesmente porque, se você não compartilha primeiros princípios e as regras da demonstração, não há uma base comum na qual se pudessem avaliar a validade e força dos argumentos. Bacon pensa que, se você compartilha primeiros princípios e regras da demonstração, então você pode entrar numa espécie de discussão em que argumentos podem ser formulados de ambos os lados de uma questão. Contudo, se você não os compartilha, então uma discussão racional, no sentido de propor e avaliar argumentos oferecidos pelos dois lados, está excluída ou é impossível. "É certo que não há regra de discussão, uma vez que não compartilhamos a mesma opinião que você sobre princípios. Mesmo a esperança de discussão nos é roubada, pois demonstrações em uso foram postas em dúvida e acusadas".105 Portanto, se alguém quiser rejeitar uma posição com relação à qual não compartilha primeiros princípios e regras de demonstração, então sua refutação não estará baseada em argumentos, mas em outra coisa. Assim, a recusa de Bacon não pode ser do mesmo tipo que o ataque cético, não pode ser uma refutação dialética na qual argumentos positivos e negativos são opostos.106
Essa é, obviamente, uma rua de mão dupla. Assim como Bacon não pode condenar a filosofia baseado em argumentos, "nenhum julgamento pode ser corretamente formado seja do meu método ou das descobertas a que ele leva, por meio das antecipações (quer dizer, do raciocínio que está agora em uso), já que eu não posso aceitar uma sentença de um tribunal que está ele próprio sob julgamento".107 Seria uma discussão entre surdos. Deve-se tentar a nova via proposta por Bacon e realizar o trabalho que ela propõe: se este tem êxito, muito bem; se não, pode-se rejeitá-la. A questão não deve ser decidido por argumentação, não se devem ter opiniões apoiadas em raciocínios a respeito da nova via, o que seria precipitado e prematuro.108 Assim, torna-se um problema premente para Bacon encontrar um método de rejeição das ciências legadas pelos gregos, já que o método cético não está mais disponível para ele. "Que meios, que método apropriado usaremos para levar adiante essa tarefa?".109 Não é o caso de investigarmos as respostas dadas por Bacon,110 mas somente de indicar a ruptura radical entre sua recusa da tradição e o ataque cético ao dogmatismo.
O ataque cético ao dogmatismo, portanto, é feito de dentro da própria filosófia. Correspondentemente, Bacon entende o ceticismo como uma filosofia, seu ataque sendo dirigido somente às filosofias dogmáticas, e não à filosofia como um todo. Quando menciona Arcesilau ou Carnéades, os dois grandes expoentes do ceticismo acadêmico, Bacon os inclui ao lado de filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, entre outros.111 Enquanto os céticos pretendem traçar uma distinção fundamental entre eles e os dogmáticos,112 Bacon traça uma distinção original entre três gêneros de filosofia: a sofística, a empírica e a supersticiosa,113 sem que o ceticismo seja um gênero autônomo, mas, ao contrário, integra-os com as demais seitas filosóficas.114 Para Bacon, ainda que com inegáveis méritos, os céticos não passam de mais uma seita filosófica entre tantas outras.
Se assim é, a que gênero de filosofia, na tipologia de Bacon, pertence o ceticismo? A questão não se deixa responder muito facilmente. O cético Carnéades foi um dos chefes da Academia, escola fundada por Platão, e Bacon sabia disso muito bem.115 Ora, Platão e sua escola eram, para Bacon, o exemplo mais sutil e perigoso de filosofia supersticiosa.116 Seriam os céticos acadêmicos, então, filósofos supersticiosos? É difícil, contudo, pensar que os céticos, acadêmicos ou pirrônicos, poderiam ser considerados filósofos supersticiosos. A própria descrição das características desse gênero de filosofia, que inclui, por exemplo, o deixar-se levar pelas fantasias e a mistura com a teologia, parece excluir que o ceticismo possa ser uma filosofia supersticiosa. Além disso, Bacon parece distinguir entre a escola de Platão, limitando-a ao platonismo, e a Nova Academia, o período cético da Academia de Platão, já que esta deu uma guinada na doutrina da akatalepsia.117 Isso sugere que a Nova Academia, para Bacon, não faz parte da escola de Platão. Aliás, é usual distinguir entra o platonismo da Velha Academia e o ceticismo da Nova Academia. Bacon parece seguir essa distinção tradicional. Outro indício claro dessa distinção é que Bacon, em Historia Vitae et Mortis, após dizer que a filosofia supersticiosa de Platão (e Pitágoras) favorece a vida longa, trata daqueles que investigavam o mundo e as coisas naturais, como Demócrito e os estoicos. Só então Bacon menciona Carnéades e os acadêmicos, mas claramente afastando- os da filosofia supersticiosas com suas sublimes contemplações.118
Teria Bacon julgado que os céticos pertenciam à seita dos filósofos empiristas, na sua classificação? Talvez os pirrônicos, ao menos, pertenceriam a esse gênero filosófico, pois Sexto Empírico, como o próprio nome diz, era um empirista.119 No entanto, ao discutir os filósofos empiristas, Bacon não faz nenhuma alusão aos céticos antigos, o que seria natural se ele pensasse os céticos como filósofos empiristas, já que, nesse contexto, Bacon menciona principalmente os filósofos antigos. Entre os empiristas, vemos referência somente a Gilbert e aos alquimistas.120 Nas críticas endereçadas ao ceticismo, nunca aparece a objeção de que o ceticismo estaria baseado em poucas experiências. Nem mesmo a doutrina do provável é criticada por uma insuficiência empírica. Por outro lado, Bacon sempre enfatiza que a investigação cética é uma argumentação dos dois lados de uma questão, não uma experimentação, ainda que repetitiva e limitada. Portanto, nada indica que, para Bacon, os céticos antigos, pirrônicos ou acadêmicos, seriam filósofos empiristas.
Resta, portanto, o gênero da filosofia sofística. Mas também não é fácil ver que os céticos antigos pudessem pertencer a esse gênero de filosofia. Entre os sofistas, Bacon menciona, por exemplo, Aristóteles, Anaxágoras, Leucipo, Demócrito, Parmênides, Empédocles, Heráclito e os escolásticos.121 Bacon a introduz como o gênero racional do filosofar (rationale genus philosophantium). Essa identificação da filosofia sofística com o racionalismo não é gratuita, pois esses filósofos abandonam a experiência em suas especulações em favor da mera reflexão. Bacon parece retomar, do pensamento antigo, a tradicional oposição entre racionalistas e empiristas. Ora, os próprios céticos recorriam a essa divisão e, como se sabe, Sexto escreveu diversos livros contra os racionalistas (dogmatikói). Parece, portanto, que os céticos não seriam filósofos sofísticos ou racionalistas.
No entanto, por tudo o que vimos aqui, os céticos antigos preservavam as características da filosofia sofística. De um lado, como acabamos de ver, eles não baseavam sua filosofia na experiência e observação, mas num método argumentativo que examina os dois lados de uma questão. Ora, é precisamente assim que Bacon caracteriza os céticos. Para Bacon, a investigação cética é, essencialmente, uma forma de argumentar em favor de todas as doutrinas. O que diferiria os céticos dos demais filósofos sofísticos? Enquanto filósofos como Demócrito e os estoicos, por exemplo, realizariam uma reflexão profunda122 e produziriam uma teoria que seria imposta ao mundo, sem consultar a experiência,123 os céticos disputavam tranquilamente em todas as direções.124 A ideia de uma disputa tranquila ou amena, distante da realidade, sem o rigor exigido para conhecer a verdade sobre as coisas, aparece constantemente nas referências de Bacon ao ceticismo.125 Finalmente, Bacon pensava que os dogmáticos, em seus momentos mais lúcidos, "quando voltavam a si mesmos",126 "confessam na intimidade e no silêncio"127 que não sabem com certeza aquilo que afirmam. No sentido amplo de ceticismo, este não é senão o lado sincero das filosofias dogmáticas (na terminologia de Montaigne e Sexto),128 em particular das filosofias sofísticas (na terminologia de Bacon). Portanto, concluo que, para Bacon, o ceticismo é uma espécie particular do gênero sofístico da filosofia.

Pode-se, talvez, aprender alguma coisa dessa longa confrontação que Bacon mantém com o ceticismo. O método dialético é simultaneamente forte e fraco. De um lado, é forte, pois mostra a fragilidade dos dogmatismos à luz dos pressupostos aceitos pelos próprios dogmáticos: por estar baseada em seus primeiros princípios e regras de demonstração, não lhes resta alternativa senão aceitá-la. De outro lado, é fraca, pois jamais nos levará a outra concepção de conhecimento, o que pode explicar por que os céticos permanecem refutando os dogmáticos ad nauseam, em sua investigação infindável, isto é, em sua disputa eterna com o dogmatismo. Se alguém realmente quiser romper com esse compromisso entre céticos e dogmáticos, com sua discussão permanente, deve recusar os pressupostos por eles compartilhados e propor um novo tipo de rejeição. Bacon meditou profundamente, durante muitos anos, sobre esse tipo de rejeição, polindo sua forma, refinando seus ídolos, elaborando os signos, identificando as causas. E nessa longa elaboração e refinamento, a confrontação com os céticos foi absolutamente indispensável: seus argumentos, suas armas e sua estratégia dialética foram ingredientes importantes para a formulação de sua recusa, seja no momento de incorporação do ceticismo, seja no momento em que Bacon percebia claramente que deveria dele se separar e, mesmo, se opor. Talvez Bacon jamais tivesse chegado à sua forma específica de recusar da tradição não fosse esse movimento de se aproximar e se distanciar do ataque cético ao dogmatismo. Qual é, exatamente, a recusa baconiana da tradição é tarefa para outro estudo.

NOTAS

1. Agradeço ao parecerista anônimo que me permitiu rever e melhorar alguns pontos deste artigo.
2. Peltonen (1996).
3. Popkin (2000).
4. Larmore (1998).
5. Zagorin (1999), p. 36.
6. O artigo de Prior (1968), originalmente publicado em 1954, já chamava a atenção para a importância do ceticismo em Bacon.
7. Entre os artigos mais recentes, ver Granada (2006), Eva (2008) e Eva (2011).
8. Manzo (2009) e Oliveira e Maia Neto (2009).
9. Ver Jardine (1985) para a ideia de que a interpretação da ciência baconiana como um cético é bastante antiga.
10. Cf. Granada (2006), p. 3.
11. VT, VI, p. 65-66.
12. TPM, VII, p. 30.
13. RP, VII, p. 88.
14. CV, VII, p. 111-112.
15. DSV, XIII, p. 47.
16. Ver as referências na nota 24 abaixo.
17. IM, I, p. 202 (VIII, p. 29).
18. IM, I, p. 226 (VIII, p. 52).
19. NO, I, pref., p. 233 (V, p. 59).
20. NO, I, 37, 46, 67, 75, 92, 115, 126.
21. HVM, III, p. 376 e p. 401.
22. SI, V.
23. IM, I, p. 226 (VIII, p. 52).
24. O número de vezes que esses tópicos céticos ocorrem somente no Advancement of Learning nos dá uma ideia da recorrência do ceticismo em suas obras: i) a suspensão do juízo é mencionada em ADV, VI, p. 129 e, talvez, em ADV, VI, p. 302; ii) a argumentação dos dois lados de uma questão é mencionada em ADV, VI, p. 156 e p. 163; iii) as dúvidas são mencionadas em ADV, VI, p. 163, p. 232-235 e p. 292; iv) a menção à precipitação ocorre em ADV, VI, p. 265; v) o elogio à akatalepsia em ADV, VI, p. 266-268.
25. NO, I, 37.
26. NO, I, 67; ver também NO, I, 46.
27. NO, I, 92.
28. NO, I, 115.
29. NO, I, 126.
30. IM, I, p. 226 (VIII, p. 51-52). As traduções para o português são minhas, exceto Bacon (SI).
31. Bacon (HVM, III, III), p. 401.
32. Cf. NO, I, 126.
33. IM, I, p. 226 (VIII, p.52).
34. SI, V, p. 177 (p. 197).
35. SI, V, p. 178 (p. 199).
36. NO, I, pref., p. 233 (V, p. 59).
37. NO, I, 67; NO, I, pref., p. 233 (V, p. 59).
38. NO, I, 37, 75; RP, VII, p. 88.
39. Com efeito, Bacon explicita suas fontes a respeito da filosofia grega. Para nossos propósitos, é interessante notar que ele cita Cícero e Diógenes Laércio; cf. CV, VII, p. 117.
40. NO, I, 67.
41. TPM, VII, p. 30; NO, I, 67; ADV, VI, p. 266-268.
42. SI, V, p. 178-179 (p. 199).
43. NO, I, 67.
44. DSV, XIII, p. 47.
45. IM, I, p. 202 (VIII, p. 29).
46. SI, V, p. 178 (p. 199).
47. Cf. Villey (1973), Granada (2006), p. 2, Eva (2008) e Eva (2011).
48. DSV, XIII, p. 47. 49. Por exemplo, Deleule (2009, p. 36) rejeita explicitamente a origem cética da doutrina dos ídolos e prefere referi-la a Platão e Epicuro.
50. SI, V, p. 179 (p. 199).
51. SI, V, p. 178 (p. 198-199).
52. SI, V, p. 178 (p. 199).
53. SI, V, p. 178 (p. 199).
54. Essas referências foram indicadas no item anterior.
55. Cf. Granada (2006), p. 1.
56. Villey (1973).
57. Granada (2006).
58. Eva (2008) e Eva (2011).
59. Oliveira (2002), p. 75.
60. NO, I, 76.
61. Montaigne (E), II, 12, p. 260.
62. Cícero (Ac) II, 72-76.
63. Para uma comparação geral entre Bacon e Montaigne, ver Villey (1973).
64. Montaigne (E), II, 12, p. 264. Ver também Montaigne (E), II, 12, p. 261 e p. 265.
65. Montaigne (E), II, 12, p. 266.
66. Montaigne (E), II, 12, p. 267.
67. Montaigne (E), II, 12, p. 264.
68. Montaigne (E), II, 12, p. 268.
69. Montaigne (E), II, 12, p. 269.
70. ADV, VI, p. 129.
71. IM, I, p. 226 (VIII, p. 52).
72. NO, I, 37.
73. SI, V, p. 178 (p. 199).
74. Eva (2008), p. 73: "parece-nos possível descrever o percurso que se inicia no aforismo I, §37 (onde, como vimos, Bacon declara sua concordância "inicial" com os céticos) como o de uma explicitação progressiva da divergência para com esses filósofos, que culmina com uma crítica explícita".
75. Muitas das coisas que sustento neste artigo estão de acordo com boa parte das interpretações de Eva. No entanto, misturados aos pontos que me parecem corretos (e que retomo aqui), estão alguns outros que me parecem menos aceitáveis.
76. Eva (2008), p. 51.
77. Eva (2011), p. 102: "Mas mesmo se compartilha alguns dos problemas epistêmicos dos céticos, ele [Bacon] não compartilha suas conclusões. Essa é a consequência, como argumentarei no final deste artigo, da maneira particular em que os elementos céticos são adaptados dentro de sua nova doutrina [dos ídolos], com a finalidade de alcançar um nível mais profundo de crítica do que o deles [céticos]". A ideia de que a crítica de Bacon é mais profunda que a dos céticos reaparece ao longo do texto, em particular nas páginas 110, 113, 121 e 123.
78. Bacon estaria, assim, antecipando em alguma medida a ideia de Descartes de levar o ceticismo mais longe do que os próprios céticos foram capazes de levar.
79. NO, I, pref., p. 233 (V, p. 59).
80. NO, I, 67. Ver também DSV, XIII, p. 47.
81. NO, I, pref., p. 233 (V, p. 59).
82. SI, V, p. 177 (p. 198).
83. Como veremos a seguir.
84. Eva (2011), p. 102 e p. 123.
85. Ver NO, I, 37 e SI, V, p. 178 (p. 199).
86. IM, I, p. 212 (VIII, p. 38-39).
87. NO, I, 94.
88. SI, V, p. 178 (p. 199).
89. Naturalmente, não se trata de uma inferência lógica.
90. Por exemplo, a ideia de um aprofundamento ou radicalização da crítica cética, defendida por Eva (2011), sugere que a crítica de Bacon seria do mesmo tipo.
91. Talvez seja importante notar que o termo "método" não é empregado por Bacon nesse contexto. Bacon costuma usar "método" quando se refere ao procedimento dos filósofos aristotélicos e reserva o termo "via" para o seu próprio procedimento. No entanto, cabe caracterizar a maneira pela qual os céticos conduzem sua investigação filosófica, isto é, argumentando a favor e contra uma doutrina, como o "método cético". Assim, o termo "método" aplicado para o procedimento cético não tem necesariamente relação com o uso baconiano dos termos "método" e "via", e não deve com eles ser confundido. O mesmo vale para o termo "dialético".
92. Como vimos em nota anterior, Bacon menciona a argumentação dos dois lados de uma questão já em ADV, VI, p. 163.
93. HVM, III, p. 401.
94. Várias são as passagens em que Bacon diz que sua recusa não pode apoiar-se em argumentos que pressupõem os primeiros princípios e as regras de demonstração. Por exemplo: RP, VII, p. 55-56 e NO, I, 115.
95. Oliveira e Maia Neto (2009), p. 250-1.
96. Eva (2011), p. 102: "Também tentarei mostrar que a proximidade dos ídolos de Bacon com os temas céticos é útil para mostrar que sua crítica dos céticos é essencialmente metodológica". Não está claro, porém, qual sentido de "metodológico" Eva tem em mente. Por um lado, Eva parece estar se referindo ao método dialético dos céticos (ver, por exemplo, Eva (2011), p. 122), mas, por outro, ele parece se referir ao método científico, isto é, ao fato de Bacon propor uma nova via em contraposição aos métodos usuais, como a dedução silogística e a indução por enumeração (ver Eva (2011), p. 123).
97. Prior (1968), p. 143.
98. Granada (2006), p. 3.
99. NO, I, pref., p. 233 (V, p. 59).
100. Cf, por exemplo, SI, V, p. 178 (p. 198), e TPM, VII, p. 30.
101. Cf. IM, I, p. 206 (VIII, p. 33).
102. RP, VII, p. 88.
103. NO, I, 92.
104. Eva (2011), p. 121.
105. RP, VII, p. 56.
106. Eva (2011, p. 122) sugere que os ídolos não podem ser desalojados da mente humana por meio de argumento e, por isso, o método cético seria insuficiente. No entanto, se essa explicação fosse aceitável, ela valeria, no melhor dos casos, somente para os ídolos inatos. Como vimos, a razão de Bacon para rejeitar o método dialético dos céticos reside na rejeição dos pressupostos da racionalidade grega.
107. NO, I, 34.
108. Cf. IM, I, p. 210-211 (VIII, p. 36-37), e NO, I, pref., p. 237-238 (V, p. 37).
109. RP, VII, p. 56.
110. A esse respeito, o leitor poderá consultar, por exemplo, Rossi (2006), Deleule (2009) e Eva (2011).
111. HVM, III, p. 401.
112. Sexto Empírico (HP I, 1-4) dividia os filósofos em três tipos: dogmáticos, acadêmicos e pirrônicos. Montaigne (E II, 12, p. 254-269), como vimos, retoma essa distinção, não sem reelaborá-la à sua maneira.
113. Cf. NO, I, 62.
114. Por exemplo, em NO, I, 62. Segundo Bacon, há três tipos de filósofos: sofistas, empiristas e supersticionsos.
115. A ligação entre a escola de Platão e a Nova Academia aparece, por exemplo, em NO, I, 67.
116. NO, I, 65.
117. NO, I, 67.
118. HVM, III, p. 401.
119. A questão sobre o empirismo de Sexto, no entanto, é controversa. Ver HP I, 236-241.
120. Cf. NO, I, 64.
121. NO, I, 63.
122. HVM, III, p. 401.
123. Cf. NO, I, 63.
124. HVM, III, p. 401.
125. Por exemplo, NO, I, 67; SI, V, p. 177-178 (p. 198).
126. IM, I, p. 202 (VIII, p. 29).
127. SI, V, p. 178-179 (p. 199).
128. Esse é um ponto em que, como vimos, Bacon segue Montaigne, afastando-se de Sexto. Ver o segundo exemplo de uso implícito acima.

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Recibido: 11-2011;
aceptado: 04-2012

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