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Revista latinoamericana de filosofía

versión On-line ISSN 1852-7353

Rev. latinoam. filos. vol.38 no.2 Ciudad Autónoma de Buenos Aires nov. 2012

 

ARTÍCULOS ORIGINALES

O estatuto ontológico das pessoas no Ensaio de Locke1

 

Ulysses Pinheiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro


RESUMEN: La teoría de la identidad personal, añadida por Locke a la segunda edición de su Ensayo sobre el entendimiento humano, presenta una caracterización ontológica ambigua de la naturaleza de las personas. Por un lado, pareciera que las personas no pueden ser caracterizadas como sustancias. Por otro, sin embargo, la única alternativa disponible -es decir, la que las caracteriza como modos- no es totalmente satisfactoria. Se podría considerar a las personas como correspondientes a una simple actitud pragmática de los hombres en relación con ellos mismos, pero esta alternativa tampoco está exenta de problemas. Este artículo propone que el mejor abordaje del texto no es intentar determinar lo que Locke realmente quiso decir, corrigiendo de alguna manera lo que escribió, sino considerar estas ambigüedades como un índice de una posición filosófica positiva.

PALABRAS CLAVE: Locke; Identidad personal; Sustancia; Modificación; Tipos naturales; Entidades convencionales.

ABSTRACT: The theory on personal identity, added by Locke in the second edition of his Essay on Human Understanding, displays a dubious characterization on the nature of persons. In the one hand, it seems that persons can not be characterized as substances. But, on the other hand, the only available alternative - viz., to characterize them as modes - is not entirely satisfactory either. One could say that there is a possibility left, that of considering persons as the correspondents of a mere pragmatic attitude men take in relation to themselves, but unfortunately this alternative is also subjected to some serious problems. Taking into consideration these difficulties, this paper proposes that the best account of the text is not to undertake a determination of what Locke really wanted to say, emending in some way his writing, but rather to consider these ambiguities as the sign of a positive philosophical position.

KEYWORDS: Locke; Personal identity; Substance; Mode; Natural kinds; Conventional entities.


 

Ao resumir seu tratamento sobre a natureza das pessoas e dos critérios de identidade pessoal ao final do Capítulo 27 do Livro II de seu Ensaio sobre o entendimento humano,2 Locke, de forma surpreendente, faz uso de uma expressão que à primeira vista introduz um elemento não mencionado antes nesse Capítulo, afirmando que "pessoa" é "um termo forense" (II, §26). Esse novo elemento é apresentado não somente como uma informação sobre o domínio no qual a expressão "pessoa" é mais útil e usualmente aplicada, mas parece ter uma função explicativa, viz., estabelecer o quadro de referências conceitual a partir do qual o conceito de pessoa deriva seu significado.3 Uma vez que a explicação precedente sobre a natureza das pessoas foi feita em termos de memória, reflexão e outros atos mentais, no que poderíamos chamar de um quadro de referências psicológico.4 esse novo contexto semântico parece injustificado pelo que foi dito antes. É verdade que, em Seções anteriores, Locke já havia mencionado atitudes de auto-interesse como parte do conceito de pessoa (§17), indicando, assim, que ele tinha uma dimensão prática, mas tudo o que ele queria fazer lá era, ou assim o parece, apontar para um fato psicológico que, ao lado da memória, explicaria a identidade pessoal, mais do que para o conteúdo institucional e social dado ao conceito pela expressão "termo forense".
Mas temos de levar a sério esse novo quadro de referências conceitual se quisermos entender o conceito de pessoa proposto por Locke; de fato, veremos que, em certo sentido, essa virada semântica está conectada à análise psicológica que a precedeu. Temos, portanto, de entender essa última para apreender o que é significado pelo aspecto institucional do "eu". Como principal resultado dessa análise psicológica, Locke nega que a identidade de uma pessoa possa ser explicada em termos de continuidade de uma mesma substância, mas o estatuto ontológico das pessoas que emerge de sua abordagem positiva não é claro. Em particular, deve ser explicado como podemos saber algo sobre a natureza das pessoas a partir da tese de que o significado da palavra "pessoa" é estabelecido no contexto da ação moral racional. A primeira resposta óbvia é que o contexto moral e jurídico delineia um conjunto de informações que não é restrito a fatos sobre o significado de palavras, indicando antes a determinação de um conceito sortal, que circunscreve uma espécie ou tipo [sort] de coisa,5 e com ele as pressuposições ontológicas sobre seu modo de ser último (quer como substâncias ou modos, uma vez que para Locke, não há outras categorias designando entidades que existem na realidade - a única outra categoria reconhecida por Locke é a relação, mas ela se refere a uma entidade mental que não existe nem pode existir na realidade, pois, como ele afirma no capítulo do Ensaio sobre a ideia de relação, essa última "não está contida na existência real das coisas, mas é algo extrínseco e superposto"6). Logo, o quadro de referências geral no qual a espécie é fixada é relevante para a compreensão de qual tipo de entidade instancia esse conceito. Mas, ainda uma vez, como o contexto "forense" pode ser elucidativo nesse caso particular? Locke estaria afirmando, como alguns intérpretes recentes propuseram,7 que "pessoa" não é um conceito teórico, mas antes (se pudermos nos expressar assim) um conceito prático, isto é, um conceito válido não porque descreve uma realidade, mas sim porque permite atribuições morais e jurídicas a agentes racionais? Se isso fosse verdade, o sentido no qual uma pessoa "possui" uma propriedade ("propriedade" referindo-se aqui também a suas próprias ações) seria um sentido não-natural de "ter uma propriedade" - ela a "possuiria" moral ou legalmente. À primeira vista, essa interpretação não encontra evidências suficientes no texto de Locke, visto que o Capítulo 27 aparentemente insere-se no interior de uma teoria sobre um ente, denominado "pessoa", que parece ser, pelo menos em certa medida, um tipo natural, distinto, mas dependente e derivado de outros tipos naturais, tal como "homem".8 Em que sentido, então, o contexto moral é informativo? E haveria algum sentido em que ele poderia introduzir um elemento convencional no seio de uma espécie natural?9
Uma primeira resposta aproximativa para a primeira dessas questões é que o contexto moral a partir do qual o conteúdo da palavra "pessoa" deve ser derivado torna possível uma abordagem teórica da natureza das pessoas na medida em que aponta para as pressuposições (causais e ontológicas) de nossa ação moral.10 Somos agentes morais porque temos uma natureza específica como seres racionais. Para entender o que constitui a natureza das pessoas e sob qual categoria geral devemos classificá-las, temos, antes de mais nada, de notar que a teoria da identidade pessoal que a analisa em termos de memória, segundo a qual um indivíduo é uma só e mesma pessoa durante um certo período de tempo e em diferentes locais se e somente se esse indivíduo é capaz de se lembrar de suas ações e experiências passadas (335: 25), é ela mesma fundada na definição sincrônica de "pessoa" como sendo o nome de uma classe de entidades capaz de auto-reflexão consciente e racional. Nas palavras do próprio Locke, uma pessoa é "um ser pensante e inteligente, que tem razão e reflexão, e pode considerar-se a si mesmo como o mesmo [can consider it self as it self]", e a identidade pessoal consiste na "identidade [sameness] de um ser racional" (§9). A natureza da razão é o tema de um dos últimos Capítulos do Ensaio (IV, 17), e voltaremos a ele mais abaixo. O que é importante notar neste momento é que, na passagem onde a palavra "pessoa" é definida pela primeira vez, uma pessoa é caracterizada pelo atributo da razão: somente um ser racional pode "considerar-se a si mesmo como o mesmo" (i.e., pode dizer de modo significativo a palavra "eu"), e só ao fazer isso é capaz de ter uma vida moral, incluindo as obrigações jurídicas de seu pertencimento a uma sociedade civil. Se é verdade que, no Capítulo 27, uma analogia entre vida e consciência é proposta (i.e., uma analogia entre as condições de identidade de organismos vivos e de pessoas), como muitos comentadores observaram, isso se deve não somente ao fato de que a identidade de ambos depende da permanência de processos e não de substâncias, mas também ao fato de que temos, como pessoas, uma vida racional, similar a, mas distinta de (e não necessariamente coincidente no espaço e no tempo com) nossa vida animal. A vida de um ser racional é o quadro de referências conceitual que dá o conteúdo do conceito de pessoa.
Temos, portanto, de explorar os limites da analogia entre vida racional e orgânica (no caso do homem, animal11) para esclarecer o estatuto ontológico de pessoas (nesse contexto, a comparação entre a "história de vida" de artefatos também seria útil). Locke estabelece o princípio de individuação para homens (e, portanto, seu estatuto ontológico e seus critérios de identidade) a partir da consideração da unidade promovida por uma vida orgânica singular. O que esse tipo de vida individua é um tipo substancial de coisa; concluímos isso não pela leitura do próprio Capítulo 27, mas pelo Capítulo 23, onde Locke repetidamente coloca o homem na lista das substâncias naturais. Mas a terminologia de Locke parece ser confusa ao longo desses textos, pois enquanto, no Capítulo 23, o homemé dito ser uma substância, no Capítulo 27 ele afirma que a identidade do mesmo homem não depende da e não deve ser confundida com a persistência de uma única substância individual. Poderíamos explicar essa variação terminológica através da suposição de que a palavra "substância" está sendo usada de maneira propositalmente ambígua nessas passagens,12 e de que, ao eliminar a ambigüidade, podemos isolar um sentido preciso para a tese segundo a qual uma vida, individuando uma coisa, individua uma substância. Seria natural, então, estender a analogia a pessoas, propondo que a teoria que Locke elabora sobre elas implica que pessoas são, em certo sentido, substâncias de algum tipo. Que isso seja problemático, veremos na seqüência.
Antes de mostrar que pessoas não são substâncias, em nenhum sentido do termo, é importante notar que há outro tipo de consideração, além da ontológica, concernindo à relação entre, de um lado, as propriedades de "ser um organismo vivo" e "ser consciente" e, de outro lado, a propriedade de "ser uma substância" (ou, no caso de pessoas, de maneira a não antecipar uma opção teórica, "ser uma substância ou um modo"), que dá ao vocabulário "forense" sua relevância para a compreensão do conceito de pessoa. Trata-se do estatuto epistêmico privilegiado que Locke atribui à ciência da moralidade, em contraste com as ciências naturais. Comoé bem sabido, Locke situa a moralidade entre as ciências capazes de demonstração (IV, 3, §§18-19), i.e., como uma ciência que, a partir de proposições auto-evidentes, deriva outras proposições por meio de conexões necessárias entre ideias ordenadas pela razão.13 As conclusões do raciocínio moral, para Locke, são tão certas quanto aquelas da matemática pura,14 e, portanto, mais certas do que as das ciências naturais. A ideia de pessoa, compreendida como um ser racional, também é introduzida em IV, 3, de um modo paralelo ao papel que ela desempenha na teoria ontológica da ação moral, como uma pressuposição na teoria epistemológica sobre a certeza da ciência moral - ou, uma vez que se trata de um contexto epistemológico, como um fundamento da moralidade. Locke diz aí então:

A ideia de um Ser supremo, infinito em poder, bondade e sabedoria, cuja obra nós somos, e de quem dependemos, e a ideia de nós mesmos como seres racionais dotados de entendimento, sendo tais como são claras em nós, forneceriam, suponho, se devidamente consideradas e desenvolvidas, tais fundamentos da obrigação e das regras de ação (549: 12-16).

Isso significa não somente que a faculdade da razão tem seu uso próprio na matemática e na ética, a existência de um ser racional sendo então pressuposta pelo exercício dessas ciências, mas também que as ideias claras de Deus e de pessoa15 são os fundamentos últimos da ética.
Nessa mesma passagem, Locke diz que a certeza tanto da matemática quanto da moralidade é derivada do fato de que elas lidam com modos, e não com substâncias - ou, mais precisamente, com modos e relações, ou com a relação entre modos: "A relação de outros modos", diz ele, referindo-se aos modos relevantes no domínio moral, "pode certamente ser percebida tanto quanto as de número e extensão" (549: 22-24; 643: 3-25). Isso, por contraste, também explica o fracasso das ciências naturais para alcançar a certeza: porque essas últimas pretendem dar conta dos "arquétipos" reais das coisas (II, 23), e porque nós não conhecemos as essências reais das substâncias e não podemos conhecer seus substratos,16 a certeza das ciências naturais não é perfeita - ou, em outras palavras, elas não podem nos fornecer ideias adequadas e, portanto, nenhuma certeza.17 Certamente, os modos envolvidos na ética são menos claros do que os modos envolvidos na matemática, uma vez que os primeiros são modos complexos e os últimos, simples. Mas a única conseqüência disso é causar em nós uma maior propensão a erros em moral do que em matemática, não afetando seu grau de certeza: nos modos, as essências real e nominal coincidem uma com a outra, o que faz com que suas ideias sejam sempre adequadas (643: 28-30).
Ora, é verdade que Locke não diz explicitamente nessas passagens que a ideia de pessoa, sendo o fundamento da moralidade, é ela mesma a ideia de um modo, e não a ideia de uma substância. Ao contrário, que isso não seja necessariamente assim é mostrado pelo fato de que a outra ideia apresentada aí como o fundamento da moralidade, viz. a ideia de Deus, é a ideia de uma substância infinita. Além disso, os modos que Locke tem em mente em sua tese epistemológica sobre a moralidade são as ações das pessoas, e não as próprias pessoas - as próprias ações, não os agentes, são concebidas como modos mistos. Assim como os modos simples da extensão, tais como figuras e números, podem ser abstraídos de ideias de substâncias corporais nas quais eles podem existir, e ser tratados como puros modos sem referência a sua existência externa, da mesma maneira as ações de pessoas, consideradas como modos mistos, poderiam ser abstraídas da ideia do agente que as realiza, e sua relação examinada em uma ciência dedutiva. As ideias de Deus e de pessoa são os fundamentos da moralidade no sentido em que temos ideias claras do que eles são, i.e., de algumas de suas propriedades e relações (devemos lembrar que podemos ter ideias claras tanto de substâncias quanto de modos (II, §29), e que estamos certos da existência de Deus e de nós mesmos (demonstrativamente certos, no caso de Deus, e intuitivamente certos, no caso de nós mesmos (IV, 9 e 10)). A moralidade seria impossível se Deus não existisse, pois Sua vontade é o fundamento de nossas obrigações, sendo Ele o responsável pela distribuição final de recompensas e castigos no final dos tempos (622: 21-22); a moralidade também seria impossível se sujeitos racionais finitos não existissem, pois eles são aqueles para quem a noção mesma de obrigação tem um sentido. Portanto, o fundamento da moralidade é uma proposição sobre a relação entre Deus e os sujeitos finitos: "o inferior, finito, dependente está sob uma obrigação de obedecer o supremo e infinito" (651: 28-29); o caráter absoluto da moralidade, exprimindo obrigações morais não-relativistas, é dado pelo entendimento de que "estamos submetidos a obrigações anteriores a todas as constituições humanas" (i.e., anteriores a todas as leis civis positivas) (642: 18-19).
Apesar dessas ressalvas, veremos que o estatuto epistemológico da ciência moral implica uma concepção sobre a natureza das pessoas que exclui que elas mesmas, e não apenas suas ações, sejam concebidas como substâncias. Uma vez que tudo que existe é ou uma substância ou um modo,18 à primeira vista seríamos necessariamente levados a concluir, a partir dessas reflexões epistemológicas, que, para Locke, pessoas são modos de substâncias - um tipo especial de modo, que é capaz de ser individuado (que um indivíduo possa ser concebido como o modo de uma substância, e não como a própria substância, não é nem logicamente impossível nem estranho ao mundo filosófico do século XVII,19 embora isso não se adéque à lógica aristotélica adotada por Locke20). Essa não é uma interpretação nova da doutrina lockiana - de fato, ela é bem antiga, pois o editor da obra de Locke no século XVIII, Edmund Law, interpretava o conceito de pessoa, tal qual ele aparece no Ensaio, como designando um modo misto (ou talvez uma relação, mas, de qualquer forma, não uma substância), embora retirasse do conceito de modo qualquer conotação ontológica, limitando-o à esfera das coisas que só têm existência na mente.21 Segundo Law, a palavra "pessoa", tal como usada no Ensaio, designa um aspecto abstrato dos homens (a "pessoa do homem" (LAW, 1823, p. 200)), e, por essa razão, não carrega consigo nenhuma pressuposição existencial - i.e., não nomeia um tipo natural. Portanto, diz ele, o fato de que a consciência é intermitente não implica que haja uma entidade cuja existência seja intermitente, uma vez que não há nenhuma entidade envolvida nesse caso (LAW, 1823, p. 195).22 Mas a exegese de Law não pode ser inteiramente aceita, uma vez que a tese de que não há compromissos ontológicos no conceito de pessoa é aparentemente insustentável frente aos textos de Locke, nos quais uma pessoa parece ser um tipo natural. Em que sentido, então, um modo poderia individuar um tipo de ser? Se dissermos que um modo individua uma coisa, mas não uma substância, pareceria que estamos engajados em uma disputa puramente verbal, escolhendo denominar essa coisa um "indivíduo" e não uma "substância". Talvez, afinal de contas, o raciocínio que nos levou a concluir, de modo aparentemente necessário, que uma pessoa, não sendo uma substância, deve ser necessariamente um modo, contenha algum erro. Para esclarecer esses problemas, examinemos diretamente a analogia entre vida animal e vida consciente, que estrutura o Capítulo 27.
A unidade de uma vida é definida por Locke como "uma organização das partes em um corpo coerente, partilhando uma vida comum" (II, 27, §4), o que é apenas aparentemente uma definição circular: o que Locke estabelece nessa passagem é que os limites físicos de um corpo (determinados pela "coerência" de suas partes) determinam a individuação de um objeto no qual reconhecemos uma sucessão contínua de estados (pelo acréscimo ou supressão de suas partes), sucessão essa que constitui, precisamente, a "unidade de uma vida". Mas, para além da aparente circularidade dessa definição, há uma característica notável que escapou à maioria dos comentadores. Essa característica está relacionada à determinação de seu "principium Individuationis". De acordo com esse princípio, a individualidade de uma coisa é "a própria existência" [existence it self], "a qual determina um ser de qualquer tipo [sort] a um tempo e lugar particulares, incomunicáveis a dois seres do mesmo tipo [kind]" (330: 2). Mas essa formulação abstrata tem de ser complementada por critérios empíricos que nos permitam aplicar, em casos concretos, os conceitos de identidade e de diversidade.23 Esses critérios, por sua vez, devem ser entendidos como a aplicação, para cada tipo de ser, das três restrições gerais sobre a identidade temporal formuladas no começo do Capítulo 27, viz. o princípio da exclusão, o princípio da unicidade de lugar e o princípio da origem.24 O conteúdo desses princípios é o seguinte:

o primeiro [....] afirma que dois objetos quaisquer do mesmo tipo não podem ocupar a mesma região do espaço ao mesmo tempo. O segundo afirma que nenhum objeto pode ocupar mais do que uma região do espaço em qualquer tempo. E o terceiro afirma que há um espaço e um tempo únicos, determinados, no qual cada objeto primeiramente começou a existir.25

Dos primeiros dois princípios, Locke deriva o terceiro (o princípio da origem26), o qual é seu critério geral de identidade, aplicado a todos os tipos de coisas, mesmo a substâncias imateriais. O princípio de origem implica que cada objeto individual tem uma trajetória espaço-temporal única, empiricamente observável (quer ela seja continua ou descontínua), uma vez que o que é válido para seu começo o é também para cada posição sucessiva que ele ocupa. Ora, a aplicação dessas restrições características da identidade temporal em geral ao caso da identidade de substâncias materiais em particular inclui um aspecto importante (ou uma restrição adicional) que, como vimos acima, tende a ser desprezada pelos comentadores de Locke, viz. que, além da continuidade espaço-temporal singularizando uma trajetória, uma substância material deve exibir coerência entre suas partes constitutivas, e que a coerência entre suas partes deve ser derivada do poder interno da substância.27
Isso é claro no caso de um átomo, o qual é definido como "um corpo contínuo sob uma superfície imutável, existindo em um tempo e lugar determinados" (330: 8-9; grifo meu); a expressão "sob uma superfície imutável" indica claramente que a integridade de sua superfície é uma condição necessária e suficiente de sua identidade através do tempo. A identidade transtemporal de corpos inanimados (denominados por Locke nesse Capítulo 27 simplesmente "corpos"), por sua vez, depende da existência de todos os átomos que os compõem (em qualquer ordem de composição) "conjugados na mesma massa"; também nesse caso, portanto, a coesão das partes é uma condição necessária (embora não suficiente) da identidade da substância, uma vez que a ideia de uma "mesma massa" é inseparável da ideia de continuidade de sua superfície. E isso é verdade até mesmo dos tipos mais complexos de substância, tais como os organismos: é a substância extensa sólida que é a "causa inteligível da coesão das partes sólidas da matéria" (II, 23, §24; grifo meu).28 A ideia mesma de substância material, seja ela inanimada ou um corpo vivo,29 é "a união e a coesão de suas partes sólidas" (309: 25-26). No caso de organismos, sua identidade também é definida como "uma organização de partes em um corpo coerente, partilhando uma vida comum" (331: 4-5; grifo meu); as causas da coesão de suas partes constituintes são extremamente complexas, uma vez que há neles um fluxo constante de átomos, mas remete, em última análise, para o substrato das propriedades corporais. Mesmo que haja diferenças significativas entre corpos complexos inanimados e organismos (por exemplo, os primeiros, mas não os segundos, têm suas partes essencialmente; os segundos, mas não os primeiros, têm uma ordem essencial de composição30), e mesmo que a maneira como átomos e corpos inanimados compõem os organismos seja diferente (corpos têm uma existência instantânea em organismos, enquanto átomos podem persistir), todas as substâncias materiais devem exibir continuidade e coesão espaço-temporal de suas superfícies, não importando se elas são substâncias simples ou compostas. Portanto, Locke faz depender a individuação dos organismos da individuação das massas de matéria que os compõem (embora não identifique os dois critérios de individuação): o conceito de "vida individual" só pode ser determinado pela presença da vida em uma massa de matéria em particular (dada pela coesão de suas partes). Um organismo é um composto de várias substâncias materiais (átomos e massas de matéria) se sucedendo umas às outras.
Após a determinação mais precisa do conceito de organismo, podemos agora voltar a examinar a analogia entre organismos e pessoas. Vimos que uma pessoa é definida como um "ser inteligente pensante, que tem razão e de reflexão, e que pode considerar-se a si mesmo como o mesmo, a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares" (II, 27, §9). Como também já foi dito, a unidade e a identidade das pessoas são estabelecidas pela consciência, que une, principalmente através da memória,31 diversas ideias em uma só pessoa. O que é unificado pela memória, entretanto, é não apenas um conjunto de pensamentos, mas também de ações corporais (II, 27, §9) e até mesmo de partes do corpo, na medida em que temos consciência delas (II, 27, §25).32
Dependendo do modo como compreendermos a união promovida pela consciência, poderemos determinar a validade de sua analogia com o modo de unidade dos organismos. À primeira vista, porém, a analogia é perfeita: do mesmo modo que a vida é o princípio de unidade de várias propriedades e substâncias materiais, a consciência também teria essa mesma função, não importando se estamos lidando ou não com a "mesma substância idêntica" (335: 29-30) - onde essa última expressão significa as substâncias simples que são unificadas pela mesma vida ou pela mesma consciência (com a diferença de que a unidade da consciência que caracteriza a identidade pessoal incluiria coisas imateriais). O que Locke diz nesse momento do texto parece confirmar a analogia: "Diferentes substâncias, pela mesma consciência [....] sendo unidas em uma pessoa; assim como corpos diferentes pela mesma vida são unidos em um animal, cuja identidade é preservada, nessa mudança de substâncias, pela unidade de uma vida contínua" (336: 14-18). Isso é, entretanto, apenas parte da verdade. De fato, é verdade que a consciência tem essa função unificadora com relação às diferentes substâncias que constituem uma única pessoa, do mesmo modo que a propriedade de "ser vivo" unifica átomos e corpos em um único organismo. Portanto, na explicação da unidade e da identidade pessoais, a única coisa a ser considerada é se "a mesma consciência contínua, na qual muitas substâncias podem ter sido unidas e, em seguida, separadas dela, enquanto continuaram em uma união vital com isso onde a consciência então residia, fazia parte do mesmo eu" (346: 1-6). Há muitas substâncias materiais (átomos e corpos) que são partes de uma pessoa, e poderia haver vários animais e espíritos que fossem também partes dela. Entretanto, a analogia se rompe em um ponto importante: como vimos acima, especialmente a partir de uma leitura do Capítulo 27 à luz do que é dito no Capítulo 23, organismos são não apenas compostos por substâncias simples, substituídas por substâncias simples similares ao longo de uma mesma vida, mas são eles mesmos substâncias complexas, isto é, entidades que unificam em uma unidade auto-subsistente as diversas propriedades e ações desses organismos. Já no caso de pessoas, veremos, a categoria de substância complexa não se aplica.33
Mas esse confronto entre os Capítulos 23 e 27 não se dá sem uma tensão conceitual no interior da própria teoria lockiana dos organismos, mesmo sem levarmos em conta sua teoria sobre as pessoas: de fato, como Locke pode afirmar, ao mesmo tempo, que a identidade dos organismos não depende da continuidade de uma só e mesma substância e afirmar que organismos são substâncias? Isso parece ser contraditório, pois, a princípio, aquilo que uma coisa é (caracterizado por sua unidade sincrônica) determina o modo pelo qual ela continua sendo o que é (caracterizado por sua identidade diacrônica). Ao responder a essa questão, poderemos também entender por que não há uma analogia perfeita entre as condições de identidade de organismos e pessoas.
Antes de apresentar os argumentos, porém, façamos uma observação textual: nos Capítulos sobre a substância (II, 23 e III, 6), Locke menciona átomos, corpos, organismos e espíritos, mas nunca pessoas, como tipos de substância. Para começar, há uma clara assimetria no caso de espíritos e corpos, uma vez que, no primeiro caso, os "átomos espirituais" não figuram como partes componentes de qualquer substância espiritual complexa.34 Além disso, a maneira como uma pessoa é dependente das substâncias que são suas "partes" compartilha somente algumas das características com a maneira como animais dependem de suas partes substanciais. A propriedade da consciência certamente demanda, assim como qualquer outra propriedade, um sujeito de inerência e uma causa de sua existência, que é precisamente o conjunto de substâncias (quer materiais ou imateriais) nas quais a consciência é inere.35 Mas não há nenhum equivalente, no caso das pessoas, à função unificadora atribuída à substância dos organismos. Poder-se-ia objetar que pensar é uma ação, viz. o exercício do poder do pensamento, e que Locke explicitamente atribui poderes somente a substâncias.36 Isso é verdade, mas, lendo atentamente o texto, vemos que o que Locke atribui a pessoas não é um poder de pensar (que é certamente o atributo de substâncias materiais ou (mais provavelmente) imateriais nas quais o pensamento é inerente), mas somente atos de pensamento determinados e particulares, i.e. ações individuais.37
Voltemos agora à analogia entre as condições de identidade de organismos e de pessoas e ao argumento que mostra que essa analogia não é completa. Notemos, primeiramente, que é possível compatibilizar os Capítulos 23 e 27, relativamente à substancialidade dos organismos vivos, através da distinção entre, por um lado, substâncias simples e compostas e, por outro lado, substâncias primeiras e segundas.38 Considerando as substâncias simples que são o substrato último da vida animal (os átomos), organismos não são substâncias, nem dependem, para a preservação de sua identidade ao longo do tempo, da permanência de uma só e mesma substância (é antes o contrário o que acontece). Considerando, porém, as substâncias compostas, animais e vegetais podem ser ditos substâncias. Além disso, há uma outra maneira de caracterizar as substâncias, distinta da sua categorização como "simples" ou "compostas": trata-se da disitinção entre substâncias "primeiras" ou "segundas". Substâncias individuais, quer sejam"simples" ou "compostas", são, justamente porque são individuais, substâncias "primeiras". Já os conceitos gerais de substâncias individuais são ideias de "substâncias segundas" (é importante observar que Locke não usa de forma totalmente explícita essa disitnção entre substâncias primeiras e segundas, mas que ela parece operar implicitamente ao longo de todo o Capítulo 23 do Livro II do Ensaio). Ora, como formamos das substâncias individuais ideias gerais e abstratas, chegando com isso a sua essência nominal, tal procedimento intelectual nos permite categorizá-los como tipos de coisas, isto é, como substâncias segundas, que é justamente o que é afirmado no Capítulo 23. Nesse caso, a função unificadora dos atributos e o exercício de um poder causal que explica as diversas faculdades das substâncias complexas são reduzidos à função unificadora e ao poder causal do conjunto das substâncias simples que constituem essas substâncias compostas. Se o Capítulo 27, por sua vez, restringe o escopo da questão "Organismos e pessoas são substâncias?" à noção de substrato último, simples e individual, então a questão: "A mesma pessoa tem de ser compreendida como sendo a mesma substância?" tem uma dupla resposta: se, por um lado, pessoas são identificadas a animais humanos, a resposta é "não", pois uma sucessão de átomos em todos os organismos vivos; se, por outro lado, pessoas são identificadas a espíritos, a resposta continua sendo "não", pois é possível haver uma sucessão de almas sem que a identidade pessoal seja alterada. Sob a aparente identidade dessas duas respostas negativas, há uma distinção sutil nas razões apresentadas para cada uma delas, envolvendo as modalidades do atual e do possível. Aparentemente, porém, os argumentos que sustentam as duas respostas negativas são bastante semelhantes. Essa semelhança inicial ocorre porque nenhum desses argumentos envolve, à primeira vista, a tese da incognoscibilidade das substâncias (entendidas como substratos simples dotados de uma essência real). A primeira resposta negativa não se baseia nessa tese, mas apenas na tese empiricamente estabelecida que afirma a existência de uma sucessão de átomos em um mesmo organismo - o que, como vimos, é parte da definição empírica de "corpo vivo" (ou seja, essa primeira resposta não se baseia em algo que não sabemos - a natureza última do substrato -, mas antes em algo que sabemos - que organismos são compostos por átomos).
Mas a segunda resposta negativa parece basear-se nas mesmas razões que fundamentam a primeira resposta, considerando não uma tese sobre a atualidade da sucessão de "átomos espirituais", mas apenas sobre sua possibilidade. Locke parece, à primeira vista, estabelecer uma perfeita simetria entre substâncias espirituais e materiais, repetindo assim uma tese já exposta no capítulo sobre a ideia de substância (II, 23), segundo a qual a substância espiritual não é mais incognoscível do que a substância material, ambas sendo conhecidas apenas por qualidades primárias das coisas diretamente percebidas, respectivamente, pela reflexão e pela sensação. Mas não deixa de ser curioso notar que, nessa passagem (que é uma das únicas em que Locke aplica a expressão "qualidades primárias" a algo que não é um corpo, mas um espírito), o modo como ele se refere a tais qualidades primárias do corpo (principalmente a solidez) e do espírito (principalmente o pensamento) elude uma certa assimetria entre eles: por um lado, podemos ter, dos corpos, tanto ideias "claras e distintas" de suas qualidades primárias quanto ideias "obscuras e confusas" de suas qualidades secundárias (cores, sons, etc.), ao passo que, do espírito, só podemos conhecer, aparentemente, suas qualidades primárias. É verdade que essa ambiguidade ainda não é suficiente para introduzir qualquer assimetria no nível da incognoscibilidade essencial de seus respectivos substratos, mas ela começa a indicar, ao menos, que nem sempre o que pode ser dito de um pode igualmente ser dito do outro. Ainda assim, é forçoso admitir que tal distinção não parece introduzir nenhuma diferenciação epistemológica relevante quanto ao grau de clareza atribuído ao conhecimento dos espírirtos e dos corpos: ambos conduzem a grandes "dificuldades" (ou até mesmo a coisas "impossíveis de ser explicadas" (II, 23, § 31)), tal como a divisibilidade ao infinito da matéria, o que indica que temos, através das referidas propriedades primárias, apenas "algumas poucas ideias superficiais das coisas" (II, 23, § 32). Ou seja, os dois tipos de substrato (átomos e almas) envolvidos nas duas respostas negativas são igualmente incognoscíveis por nós, não desempenhando, aparentemente, qualquer função no interior dos argumentos que chegam à dupla resposta negativa enunciada acima, nem muito menos em uma suposta distinção entre eles. Como o sentido de "substância" em jogo no Capítulo 27 é apenas o de "substrato simples", os argumentos que sustentam ambas as repostas parecem ser idênticos na medida mesma em que não recorrem à sua incognoscibilidade, quer seja ela tomada como essencial ou contingente.39
Entretanto, contrariamente a essa primeira impressão, o argumento que sustenta as duas respostas negativas não é simétrico (e, portanto, tampouco é simétrica a analogia que ele parecia sustentar entre organismos e pessoas). De fato, contrariamente às aparências, a segunda resposta, diferentemente da primeira, baseia-se na tese da incognoscibilidade do substrato simples - e, ao fazer isso, mostra justamente que, porque o princípio de unidade de pessoas não é a vida orgânica, mas a consciência, então pessoas não podem ser substâncias, quer tomemos essas últimas como substâncias compostas, quer as tomemos como substâncias segundas (enquanto, como vimos acima, os organismos podem ser entendidos tanto como substâncias compostas quanto como substâncias segundas). Ou seja, o segundo argumento retira, da incognoscibilidade do substrato, uma razão para afirmar que uma pessoa não pode ser, em nenhum sentido, uma substância. O argumento para a segunda resposta procede da seguinte forma: se a identidade pessoal fosse assimilada à identidade de uma alma, a resposta à questão "A mesma pessoa tem de ser compreendida como sendo a mesma substância?" seria negativa apenas em parte pelas mesmas razões que fundamentaram a resposta negativa no caso de sua assimilação a organismos: enquanto os fundamentos da primeira resposta negativa são as evidências dadas pela ciência dos corpos (ou seja, da física40), que mostram que organismos são compostos por uma sucessão de átomos, o fundamento da segunda resposta negativa, dado o atual estado precário da ciência das almas (ou seja, da psicologia41), é a constatação da possibilidade de uma sucessão de espíritos sob a continuidade de uma só pessoa. Mas o que sustenta essa semelhança entre as respostas é apenas uma ignorância contingente- afinal, a psicologia poderia se desenvolver tanto quanto a física, de tal modo a termos uma resposta determinada para a questão acima enunciada. A contingência dessa razão para a segunda resposta negativa mostra, portanto, que não é ela que fundamenta a resposta categórica de Locke - e, mais do que isso, mostra que a segunda resposta negativa não é essencialmente idêntica à primeira resposta. Seria possível, por exemplo, chegar a um nível de conhecimento psicológico tal que pudéssemos estabelecer positivamente que uma pessoa deve necessariamente ter como suporte ontológioco uma única alma - o que tornaria a segunda resposta positiva, e não negativa.
Entretanto, a verdadeira base da segunda resposta diz respeito a um estado de coisas necessário: dado que não sei se há um ou mais substratos espirituais (dentre outras razões, devido à ignorância contingente acerca de sua essência real, mas também devido à ignorância necessária comum a nossa relação com todo e qualquer substrato, inclusive o das substâncias materiais), e dado que, no entanto, sei que sou uma só e mesma pessoa apesar da ignorância total a respeito de sua substância (335: 29-35), posso afirmar categoricamente, independentemente de qualquer avanço posterior da psicologia (ou seja, posso concluir de forma a priori), que não sou (não posso ser) uma substância. Enquanto, no caso dos organismos, a questão do substrato não desempenha nenhuma função no argumento que conduz à resposta negativa, na medida em que o conceito físico de átomo é identificado aí à substância simples, conhecida por sua essência nominal, de tal modo que sua união em um corpo complexo não impede que os organismos sejam caracterizados como substâncias compostas, no caso das pessoas o que está em questão é precisamente a incognoscibilidade do substrato (e, em menor grau, a ignorância da essência real42): sendo o substrato incognoscível, e sendo dado, por outro lado, que conhecemos de forma indubitável nossa própria identidade pessoal, podemos concluir que o conceito de pessoa não pode incluir o conceito de substância em nenhum sentido do termo "substância". Ou seja, é justamente ao relacionar (1) a constatação de nossa ignorância acerca da substância (tanto a ignorância contingente, ligada à essência real, quanto a necessária, ligada ao substrato, e mesmo admitindo que conhecemos a essência nominal da alma tanto quanto conhecemos a do corpo) a (2) o conhecimento imediato dado pelo atributo unificador da consciência, que concluímos (3) a resposta negativa determinada e necessária no segundo caso: se uma pessoa fosse concebida como uma substância composta (provavelmente de modo diacrônico, e não sincrônico, como no caso dos átomos que compõem os animais43) por diversas almas e conhecida por sua essência nominal (isto é, se pudéssemos dizer, ainda que nesse sentido mais fraco, que pessoas são substâncias), então nós poderíamos saber, de forma determinada, que pessoas são substâncias, ainda que diversas almas se sucedam nela, assim como o atributo unificador da vida é compatível com a compreensão dos organismos formados por substâncias simples (átomos) como sendo substâncias complexas. De fato, se disséssemos que, analogamente ao que ocorre no caso dos animais, a identidade pessoal não envolve a permanência de um substrato simples, mas é compatível com sua caracterização a partir da noção de substância composta ou segunda, teríamos de dizer também que nossa consciência de nós mesmos como substâncias (simples ou compostas) é contínua; ora, nossa consciência não é contínua, mas sim interrompida (pelo sono, pelo esquecimento, etc.). Logo, não somos uma substância (simples ou composta).
Esse argumento44 é desenvolvido por Locke no §10 do Capítulo 27: porque perdemos de vista

nossos eus [selves] passados, dúvidas são levantadas sobre se somos a mesma coisa pensante, i.e. a mesma substância ou não. O que, sendo razoável ou não, não concerne absolutamente à identidade pessoal. A questão é o que faz a mesma pessoa, e não se ela é a mesma substância idêntica, que pensa sempre na mesma pessoa [in the same Person], o que nesse caso não importa absolutamente.

Deve-se notar que, visando primariamente o caso de substâncias espirituais simples, o argumento vale também caso as pessoas fossem substâncias compostas. É verdade que, novamente aqui, o argumento de Locke é ambíguo, pois, logo em seguida ao trecho citado, ele faz uma analogia entre o caso das pessoas e o dos animais: "Diferentes substâncias, pela mesma consciência [....], sendo unidas em uma pessoa, assim como diferentes corpos, pela mesma vida, são unidos em um animal, cuja identidade é preservada nessa mudança de substâncias, pela unidade de uma vida contínua". Esse trecho, porém, não pode ser usado como uma objeção fatal para nossa interpretação, pois, como vimos acima, a analogia de fato funciona até um certo ponto. Entretanto, se nossa reconstrução do pensamento de Locke estiver correta, ela falha em um momento decisivo, justamente devido à distinção entre os diferentes tipos de unidade promovidas pela vida e pela consciência.
A diferença entre os atributos da vida e da consciência torna-se clara quando constatamos que animais são entidades contínuas e coesas (sua vida não pode ser interrompida sem que haja destruição total) e, portanto, podem ser ditas substâncias (compostas e segundas). Já pessoas são entidades descontínuas no espaço e no tempo e não podem, por isso, ser substâncias compostas. Haveria algum sentido, porém, em afirmar que elas são substâncias segundas? Vimos acima que não é pela mesma razão, ao contrário do que parecia à primeira vista, que respondemos negativamente as duas questões sobre a substancialidade das pessoas; vimos também que, justamente por causa desses fundamentos distintos, é possível concluir que animais são substâncias compostas, mas que pessoas não são, em nenhum sentido, substâncias. Ou seja, mostramos que pessoas não podem ser substâncias simples pela mesma razão que mostramos que elas não podem ser substâncias compostas. Ora, toda substância é ou bem simples ou composta, o que exclui do conceito de pessoa qualquer uma dessas duas acepções do termo "substância". Além disso, como a ideia de substância segunda é apenas uma ideia geral obtida por abstração a partir das substâncias simples ou compostas, as pessoas tampouco podem ser substâncias segundas.
Dada essa interpretação sobre as relações entre identidade pessoal e substância, poderíamos retirar pelo menos três características envolvidas na compreensão positiva da natureza das pessoas segundo Locke: a primeira delas diz respeito à indistinção, peculiar apenas a esse tipo de coisa, entre os critérios de unidade e de identidade (saber que sou uma pessoa é a mesma coisa que saber que sou a mesma pessoa ao longo do tempo45); a segunda diz respeito à função que a razão desempenha na determinação da identidade pessoal;46 finalmente, a terceira diz respeito ao caráter intermitente da existência de pessoas. Todas essas conseqüências apontam para o ceticismo moderado de Locke e antecipam formas mais radicais de ceticismo relativamente à natureza e à própria existência de pessoas. Não tratarei, entretanto, dessas conseqüências neste artigo. Passo a considerar apenas um ponto inicial já mencionado acima, segundo o qual a teoria de Locke pode ser vista como envolvendo elementos convencionais, bem como em que sentido esses elementos são implicados por sua epistemologia da moral.
É importante ter em mente a distinção entre substâncias, modos e relações proposta no Ensaio, pois é uma compreensão dessa distinção que nos permitirá formular a pergunta sobre a categoria ontológica à qual pertencem as pessoas. A única ideia que temos de substância, diz Locke no Capítulo 23, é uma ideia obscura e confusa de um substrato de propriedades. A suposição da existência desse substrato explicaria a conjunção constante que constatamos haver entre essas propriedades, uma vez que tal substância seria concebida (muitas vezes contrafactualmente) como a causa dessa conjunção, ou seja, como sendo dotada de um certo poder causal. Tal ideia é formada da seguinte maneira: temos a percepção de uma conjunção constante de ideias simples, à qual atribuímos um nome (comum ou próprio); por inadvertência, consideramos, em um momento posterior a esse "batismo", que tal nome designa uma ideia simples. Por outro lado, a única distinção entre as ideias que fazemos de substância e de modos mistos é que, nas primeiras, supomos que elas correspondem a algo real fora da mente, enquanto os modos mistos (tais como nossas ideias de beleza ou de assassinato) só existem na mente, sem nenhuma suposição de um substrato existente unificador dessas qualidades - ao contrário, sabemos que nós unificamos esses modos por uma atividade deliberada de formação de conceitos. Mas, se o fundamento da ideia de substância é o esquecimento, a inadvertência, o caráter simplificador da linguagem, a limitação de nossas faculdades e o hábito, em que sentido a ideia de substância designa algo real? E o que significaria dizer, por contraste, que as ideias de modos mistos são irreais?
A ideia de substrato é obscura e confusa porque não pensamos, através dela, um objeto de nenhum tipo - e, por isso mesmo, de nenhum tipo empírico. Locke parece estar considerando aqui uma relação especial que poderíamos chamar de "relação de inerência", que teria substâncias e propriedades como seus relata: tal relação implicaria poder pensar a substância sem pensá-la a partir de qualquer propriedade, uma vez que, para qualquer propriedade dada, ela teria de ser relacionada à substância pela relação de inerência. Ora, não é claro qual seria o conteúdo desse pensamento: tudo o que parece restar como pensamento de substâncias é uma ideia vaga de um poder unificador e de uma instância de propriedades.47 São esse poder e esse substrato que supomos existir fora da mente quando pensamos em substâncias: é por isso que a ideia de substância é a ideia de uma "espécie natural", que subsume indivíduos aristotélicos, existentes fora da mente e dotados de poder causal, enquanto a ideia de modos mistos é a ideia de uma "espécie convencional", construída em parte pela observação e em parte pela vontade. Nesse último caso, teríamos a conjunção de ideias simples em um todo complexo existente na mente.
Sendo assim, que tipo de entidade é uma pessoa? Como vimos, Locke nega, no Capítulo 27, que pessoas sejam substâncias e que a identidade pessoal possa ser explicada pela continuidade temporal de uma substância. Essa parece ser, aliás, a principal conclusão negativa desse Capítulo, e uma das principais novidades que ele trouxe à discussão filosófica de seu tempo. Bennett e Alston negam esse aparente truísmo da interpretação do Capítulo 27, afirmando que, para Locke, pessoas são substâncias (uma vez que não seriam nem modos nem relações).48 Vimos também que Locke afirma, no §10 desse Capítulo, que há uma limitação epistêmica envolvida na afirmação de que uma pessoa é uma substância: tal afirmação só seria dotada de certeza se tivéssemos uma consciência não interrompida de nossa vida mental, de modo a apreender o mesmo indivíduo ao longo do tempo sem interrupções; ainda segundo esse trecho, o fato de que temos uma percepção interrompida de nós mesmos não afeta em nada a formulação de juízos verdadeiros de identidade pessoal, o que pareceria contar contra a interpretação de Bennett e Alston. À luz do que foi dito sobre a ideia de substância mais acima, porém, parece que a atribuição da categoria de substância a entidades em geral, e não apenas no caso das pessoas, e mesmo supondo uma consciência não interrompida, é problemática, uma vez que se trata sempre de uma noção obscura e confusa à qual só temos acesso indiretamente, através de uma série de suposições. Dessa forma, a interpretação de Bennett e Alston ganha uma certa plausibilidade, uma vez que interpretar pessoas como substâncias parece ser tão problemático quanto interpretar qualquer outra entidade como substância, e uma vez que há razões que nos levam a negar que pessoas sejam relações ou modos. Vimos, porém, a partir da recusa da aparente analogia entre organismos e pessoas, que Locke deve negar categoricamente que pessoas sejam substâncias. Essa conclusão pode ser fundamentada através da demonstração de que o problema epistêmico apontado no §10 é, como vimos, diferente e mais grave do que a tese geral sobre a obscuridade da noção de substância. Aparentemente, a única alternativa, pois, seria caracterizá-las como modos. Ora, a palavra "modo", tal como usada no Ensaio, pode designar dois tipos de afecções de substâncias:49 ou bem as ações e paixões das substâncias, ou bem as ideias complexas de suas modificações (quer essas últimas sejam ideias de modos simples, obtidos pela variação da mesma ideia simples, quer sejam ideias de modos mistos, que são composições de ideias simples de vários tipos (II, 12, §§4-5)). Nenhuma dessas afecções subsiste por si mesma, mas são todas elas modificações de substâncias.
Abre-se, pois, um campo indeterminado para a caracterização da natureza das pessoas, constituído pelas três possibilidades assinaladas acima. Mantenhamos, por ora, silencio sobre a primeira possibilidade, segundo a qual pessoas são ações ou paixões das substâncias, pois ela reaparecerá na formulação da segunda possibilidade, segundo a qual pessoas são modos simples. Consideremos, pois, primeiramente, essa hipótese. Ora, aparentemente pessoas não podem ser caracterizadas como modos simples, dada a variedade das experiências que as compõem: nossa memória recolhe um conjunto variado de emoções, qualidades sensíveis, ideias abstratas, etc., que não podem ser explicadas a partir da repetição de uma mesma ideia simples. Entretanto, essa variedade de experiências pode referir-se não ao conteúdo das ideias (sua "realidade objetiva", para empregar a linguagem cartesiana), mas apenas ao fato de serem atos mentais "recolhidos" pela memória (sua "realidade formal"). É precisamente nesse sentido que a primeira possibilidade de interpretar o estatuto ontológico das pessoas ressurge no centro da segunda possibilidade: o que é unificado pela memória pode ser o conjunto das ideias entendidas a partir de sua realidade formal, obtidas através de um ato de reflexão; considerando-as desse ponto de vista (abstrato), todas elas são a repetição da mesma ideia simples, a saber: da ideia de uma ação ou paixão da mente. Uma objeção possível contra essa possibilidade interpretativa seria chamar a atenção para o fato de que as realidades formais das ideias não parecem ser suficientes para constituir um critério de individuação de pessoas, já que tais realidades são qualitativamente as mesmas nas mentes de todos os homens. Locke poderia, porém, evitar essa objeção assinalando um fato primitivo obtido pelo exame introspectivo da mente, a saber: o fato de que apenas algumas percepções e paixões são co-conscientes (isto é, as percepções de um homem são todas aquelas que são co-conscientes entre si, e nenhuma percepção de outro homem é co-consciente com qualquer uma das percepções do primeiro).
Dado o silêncio de Locke a respeito do estatuto ontológico das pessoas, porém, não podemos nos eximir de examinar a terceira possibilidade interpretativa, segundo a qual pessoas são modos mistos. Essa possibilidade emerge da anterior na medida mesmo em que o critério da co-consciência parece depender da possibilidade de discriminar as ideias a partir de seu conteúdo (já que, a partir de sua forma, elas são indistinguíveis). Nesse sentido, a hipótese segundo a qual pessoas seriam, para Locke, o resultado da união de diversos atos de consciência parece introduzir a necessidade de caracterizá-las não a partir da categoria de modos simples, mas sim da de modos mistos. No entanto, modos mistos são, para Locke (II, 22), (1)- composições abstratas (2)- que só existem na mente. Quanto à característica (2), a saber, a de terem uma existência puramente mental, isso é compatível com a maneira de ser de pessoas; entretanto, no que diz respeito à característica (1), há aparentemente uma impossibilidade de aplicar a categoria de modos mistos a pessoas, pois essas últimas são entidades particulares e concretas. Devemos notar, porém, em primeiro lugar, que modos podem ser reais mesmo que não designem entidades existentes fora da mente: ao opor as ideias segundo as caracterizações de Reais e Ficcionais,50 Locke afirma que uma ideia é real se de fato representa a coisa real que ela supostamente representa; ora, por esse critério, os modos mistos são reais, pois sua realidade se esgota no que se apresenta à mente, i.e., seu ser é ser representado (embora eles possam explicar certos fenômenos extramentais: pensemos nas ideias de beleza ou de assassinato): se eles são consistentes, eles são reais (já as ficções, por pretenderem representar substâncias extramentais, não representam de fato o que elas supostamente representam). Em segundo lugar, apesar de não considerar essa possibilidade explicitamente, Locke poderia aceitar que pessoas seriam modos mistos especiais, dotados da qualidade de serem entidades particulares e concretas. As ideias conectadas nesse caso, diferentemente das que compõem outros modos mistos, seriam, não ideias abstratas complexas, mas os próprios atos de percepção particulares ligados reflexivamente pela relação de memória ostensiva em uma mente particular,51 justamente porque a entidade que elas caracterizam não pode ter nenhuma existência extramental, ao contrário de outras ideias de modos, e porque elas visam reflexivamente os atos de pensamento, mais do que os conteúdos pensados, o que faria das pessoas, devido a esse modo de conexão das ideias que lhes é peculiar e exclusivo, a única exceção concreta dos modos mistos, que são geralmente abstratos.52 Mas, se for assim, e se modos mistos são em parte frutos de convenções, pessoas são, ao menos em parte, entidades convencionais. Examinemos essa hipótese mais de perto.
No Livro II, 6, §§39-45, Locke compara as ideias de espécies artificiais (como relógios, navios, sapatos) às ideias de modos mistos (como a traição), opondo ambas às ideias de espécies naturais; segundo ele, essas últimas, ao visarem substâncias extramentais, seriam mais obscuras e confusas do que as primeiras, as quais, justamente por serem ideias de realidades forjadas pelo arbítrio e pelo intelecto humanos, esgotam sua realidade em convenções e práticas inteiramente evidentes para o autor de sua fabricação. Esse trecho ilumina a passagem do Capítulo 27, na qual Locke afirma que "pessoa" é um "termo forense" - i.e., uma realidade que é construída por necessidades ligadas a nossa vida prática. Vimos acima que um dos principais comentadores de Locke no século XVIII, Edmund Law, cujo texto A Defense of Mr. Locke's Opinion concerning Personal Identity fez parte de várias edições da obra de Locke a partir de 1777, propunha uma interpretação similar a essa; segundo Law, "A personalidade [é] apenas uma criação da sociedade, [...] necessária para o benefício mútuo [dos homens]; i.e., um mero termo forense"; "Trata-se de uma distinção artificial, ainda assim fundada na natureza, mas não na natureza integral do homem".53 É essa interpretação ciceroniana de pessoa como sendo uma qualidade, uma personagem, de seres inteligentes que desempenha um papel fundamental na teoria lockiana da moral (ao menos tal como ela é formulada no Ensaio): só através dela é possível mostrar que um agente capaz de ser imputado moral e juridicamente tem acesso a suas próprias intenções e decisões de modo claro e distinto. Além de considerar as ações humanas como modos mistos capazes de integrar uma ciência dedutiva da moralidade, Locke tem de pressupor o acesso das pessoas a sua essência própria para que a moral possa ter fundamentos certos, pois só através desse acesso, as intenções das ações podem ser determinadas. Se isso for correto, a teoria de Locke poderia ser caracterizada como envolvendo, ao mesmo tempo, elementos convencionais e tipos naturais com relação à determinação da natureza das pessoas. Tipos naturais, porque pessoas envolvem necessariamente atos de pensamento de substâncias (as quais, quer sejam elas espirituais ou materiais, são seres vivos pertencentes ao mundo natural), apreendidos reflexivamente. Elementos convencionais, porque há um interesse em nós mesmos que explica por que queremos nos ver como pessoas, interesse que só pode ser realizado por meio de uma atitude com relação a nosso próprio "eu" mediada por convenções (na medida mesma em que faz parte da natureza humana estabelecer convenções e leis que, ao regular, constituem sua vida prática). Mas agora surge um novo problema (na verdade, ressurge um velho problema, já aparentemente descartado no início deste texto): em que sentido Locke estaria fazendo uma ontologia das pessoas, na medida em que elas parecem ser reduzidas, em um momento essencial, a "entidades" criadas convencionalmente, meros seres de razão úteis em certos contextos da vida prática? É certo que seres convencionais (como obras de arte) têm um tipo peculiar de existência, mas poderíamos suspeitar que essa "existência" é redutível ao ser das coisas materiais que as compõem. Entretanto, se pessoas são modos complexos, elas são por isso mesmo meros seres de razão, só existindo no intelecto - ora, poder-se-ia dizer, trata-se justamente de caracterizar um tipo de existência intelectual que, não sendo uma substância, é, porém, um indivíduo. Ou então trata-se de algo que é apenas pensado como existente no intelecto por uma "distinção de razão" e, portanto, desprovido de qualquer estatuto existencial. Como decidir entre essas duas opções?
Essas questões nos forçam a concluir voltando a um problema que parecia ter sido já descartado no início deste artigo, a saber, à aparente indeterminação conceitual presente no texto de Locke. Não há evidências textuais suficientes para determinar o que Locke queria dizer, teria dito (se fosse perguntado) ou deveria ter dito. De um modo geral, colocar esse tipo de questão a um texto nos conduz inevitavelmente a arbitrariedades e suposições infundadas. Ao invés disso, talvez seja mais proveitoso tentar escutar o silêncio de Locke sobre esse tema, indicando positivamente sua procedência e seu significado enquanto silêncio, sem querer preenchê-lo povoando-o com vozes estranhas. Essa atitude hermenêutica não tem nada a ver com o respeito a um suposto purismo que se desejaria fiel ao "sentido literal" do texto - pela simples razão que esse último não existe. Trata-se, antes, de adotar a única alternativa rigorosa em um texto sobre outro texto. Isso não significa tampouco que não possamos remeter esse silêncio a teses mais gerais presentes no próprio Ensaio. Nesse sentido, podemos afirmar que a moralidade e a religião pareciam ter sido ameaçadas pela tese da incognoscibilidade das substâncias (agentes); recuperar a possibilidade de responsabilidade moral demandava, pois, que pessoas fossem tomadas como entidades reais, dotadas de uma perfeita transparência em relação a seus próprios atos,54 embora nenhuma categoria ontológica seja exatamente adequada para dar conta dessa realidade. O fato de que Locke parece tomar pessoas como tipos naturais, mas, ao mesmo tempo, recusa às pessoas o estatuto de substâncias, e o fato complementar de que a única alternativa que lhe restaria seria caracterizá-las como modos não são evidências suficientes para atribuir-lhe essa tese, diante das dificuldades envolvidas nessa última opção. Ao contrário, sua hesitação em determinar de modo explícito a alternativa correta entre duas teses contrárias (a primeira delas, a de que pessoas possuem o estatuto de modos, e a segunda, a de que não o possuem), bem como entre duas teses correlatas (a primeira, a de que pessoas são entidades que existem, criadas em parte por convenções, e a segunda, a de que pessoas são apenas maneiras pragmaticamente úteis de nos referirmos a nós mesmos na nossa vida prática), ao invés de ser vista meramente como um defeito, ou como a ausência de uma posição teórica sobre o assunto, indica uma perspectiva bem determinada - ou, se quisermos, uma indeterminação bastante significativa e importante para o desenvolvimento do conceito de pessoa no pensamento filosófico posterior. Uma conclusão tentadora seria afirmar que Locke teria antecipado, sob a forma de um paradoxo não resolvido, e ainda que de forma não intencional, certas teses que, à falta de melhor nome, poderíamos denominar céticas, acerca da existência de entidades reais que seriam pessoas. Mas uma conclusão mais modesta, e possivelmente mais correta, seria simplesmente afirmar que, em meio a suspeitas acerca do estatuto ontológico das pessoas - e, mais grave ainda, a suspeitas de que talvez pessoas não sejam realidades de nenhum tipo -, Locke não pôde ou não quis deixar-se levar até o fim por essa derivação cética, assegurando nossa identidade, em meio a lapsos, descontinuidades e esquecimentos, graças à evidência inquestionável da memória, o que lhe garantiria um "fundamento", por mais problemático que fosse, em espécies naturais. Muito tempo teria ainda de passar antes que uma dúvida mais radical acerca de nossa pretensa unidade como pessoas pudesse ser formulada e que a "suspeita" lockiana fosse confirmada.

NOTAS

1. Este texto foi escrito graças ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), através do Programa de Apoio a Humanidades 2008 e do Pronex Predicação e existência (E-26/110.565/2010). O autor também conta com uma bolsa de Produtividade em Pesquisa concedida pelo CNPq.
2. Todas as referências ao livro An Essay Concerning Human Understanding de Locke são da edição de Peter H. Nidditch (Oxford and New York: The Clarendon Press and Oxford University Press, 1975). Todas as passagens citadas foram traduzidas por mim. Referências entre parênteses, contendo somente o símbolo §, seguidas pelos números da Seção, remetem ao Capítulo 'Of Identity and Diversity' (II, 27); outros Livros, Capítulos e Seções do Ensaio serão referidos integralmente, da seguinte forma: IV, 16, §1. Eventualmente, será acrescentado o número da linha.
3. Cf. W. P. ALSTON e J. BENNETT, 1988, p. 43. Isso também é notado por H. E. ALLISON, 1977, p. 111.
4. Admitir que essas passagens precedentes são desenvolvidas em um quadro de referências psicológico não significa dizer que o objetivo de Locke nesse Capítulo é desenvolver uma teoria psicológica. A veia do Capítulo é metafísica, seu principal objetivo sendo apresentar uma teoria ontológica da individuação e da identidade. Sua análise é "psicológica" no sentido em que os itens da realidade que servem como analisans são atos mentais, especialmente ideias da memória. Uma vez que preocupações epistemológicas fornecem o princípio diretor do Ensaio, os critérios de unidade e de identidade propostos são, certamente, seguindo a concepção lockiana de uma epistemologia realizada pela "via das ideias", psicológicos. Na teoria da identidade pessoal de Locke, a epistemologia se encontra com a ontologia de um tal modo que as torna inextricavelmente unificadas.
5. Cf. II, 25, § 8. À primeira vista, conceitos sortais classificam apenas substâncias; voltaremos a esse ponto adiante. Desde agora, porém, é preciso ter em mente que, para Locke, as espécies que classificam substâncias são estabelecidas através de suas essências nominais, isto é, através de um conjunto de ideias simples associadas a um nome geral. Embora não possamos conhecer as essências reais das substâncias, não estamos lidando com questões puramente semânticas ao representar suas essências nominais, mas antes com um sistema (relativo a um esquema conceitual) para classificar (ainda que imperfeitamente) coisas. Para prevenir aproximações indevidas de sua teoria com as teses escolásticas e aristotélicas, Locke evita o uso do termo filosófico "Species", preferindo os termos da linguagem comum "sort" ou "kind".
6. Como nota Vere Chappell (CHAPPELL, 1990), modos mistos não existem fora da mente, mas não é claro se modos simples existem ou não existem da mesma maneira. Ele sugere também que, no Capítulo 27, a palavra "modo" não é usada no sentido oficial definido por Locke em II, 12, §4, mas antes como um sinônimo para "modificação" ou "afecção" de substâncias, que existem na realidade. Retornarei a essa nomenclatura mais adiante; por ora, continuarei a usar de maneira vaga a palavra "modo" como a única alternativa para designar coisas existentes que não são substâncias. Devemos notar desde já, porém, que não podemos aceitar de antemão, como propõe Chappell, que os "modos mistos" sejam excluídos da lista dos possíveis candidatos de entidades que explicariam a natureza das pessoas, pois, como veremos a seguir, apesar de não existirem fora da mente, eles são, segundo Locke, em certo sentido, reais.
7. Por exemplo, D. P. BEHAN, 1979 e E. MATTHEWS, 1977, citados por M. Ayers (AYERS, 1991, Vol. II, p. 266).
8. Afirmar que pessoas são dependentes de outros tipos naturais não significa afirmar que pessoas dependem necessariamente de um tipo específico, tal como homem - o que isso significa é que pessoas dependem de substâncias de um tipo ou outro (novamente, não de qualquer tipo, uma vez que presumivelmente há condições restritivas pertencentes às essências reais das substâncias que se aplicam a tais atribuições de inerência - entretanto, que mesmo essas restrições possam não ser aplicadas é mostrado pelo exemplo de Locke da consciência atribuída ao dedo em II, 27, §17). Como quer que essas relações de superveniência possam ser caracterizadas, Ayers mostrou (AYERS, 1990, Vol. II, Cap. 23, pp. 266-267), que a consciência, que define a unidade de pessoas, é, para Locke, um atributo natural. Ayers discute na seqüência de seu texto o contexto histórico que informou a tese de Locke de que "o corpo e as ações de alguém são 'propriedades' no sentido legal" (AYERS, 1990, p. 267).
9. Como mostra E. Olson (OLSON, 2006), há pelo menos três maneiras de interpretar o convencionalismo e suas conseqüências para uma teoria da identidade pessoal: ou bem (i)- a identidade é um fato intrinsecamente indeterminado, e deve ser estipulada em cada caso por meio de uma convenção; ou bem (ii)- a identidade é um fato determinado, instaurado por uma convenção; ou bem, finalmente, (iii)- a identidade não se aplica a certas entidades, e o que se aplica é simplesmente uma maneira convencional e pragmaticamente útil de nos referirmos a elas como se fossem idênticas (e, a rigor, se o ser é convertível com o uno, como se elas fossem uma entidade). A posição cética mais radical afirma justamente que, dentre essas opções para interpretar o significado da tese convencionalista, é a hipótese (iii) que deve ser adotada. Ou seja, haveria uma outra relação, diferente da relação de identidade, que confundiríamos com essa última, e que atribuiríamos a pessoas para explicar sua persistência. No final deste artigo, tentaremos situar a posição de Locke entre essas alternativas.
10. Para Locke, essas pressuposições não são somente o assunto do filósofo teórico, que deriva implicações ontológicas dos conceitos empregados em nossa vida moral, mas são antes as pressuposições que os próprios agentes morais fazem (devem fazer) de modo a ver si mesmos e outros seres humanos como pessoas.
11. Trataremos mais abaixo da definição de "vida"; por ora, basta notar que a vida animal é distinguida da vida vegetal pela propriedade, possuída apenas pela primeira, de ser capaz de se mover (propriedade essa que é possuída também pelas máquinas, as quais, entretanto, diferentemente dos animais, não a possuem desde o momento em que começaram a existir, precisamente porque, nelas, o princípio do movimento é externo (cf. II, 27, §5)).
12. Seguindo essa possível explicação, em alguns casos Locke empregaria a palavra "homem" para classificar um tipo substancial, enquanto em outros (especialmente no Capítulo 27), ele afirmaria que a identidade dos homens não é a identidade substancial, uma vez que "substância" nesse contexto se referiria ao corpo ou à "massa de matéria", e não ao organismo vivo.
13. Para o papel da razão no estabelecimento dos Princípios e na ordenação das ideias intermediárias de uma dedução, cf. IV, 17.
14. Isso não significa, evidentemente, que os agentes morais não fazem erros em suas deliberações morais. Os matemáticos também fazem erros em suas provas, mas as ideias morais são mais suscetíveis de erro do que as matemáticas, por razões que Locke explica nesse Capítulo. Para um desenvolvimento das ideias de Locke sobre a certeza tanto da matemática quanto da ética, e especialmente o abandono do projeto de uma ciência dedutiva da moralidade depois do Ensaio, cf. R. MATTERN, 1980.
15. Deve ser observado que o próprio Deus é uma pessoa - uma pessoa infinita e onipotente. Como veremos abaixo, é somente a noção de pessoa finita que envolve a negação de substancialidade, na medida em que está sujeita ao esquecimento e à falta de continuidade.
16. Voltaremos abaixo a essa distinção modal entre o conhecimento das essências reais e o dos substratos.
17. MATTERN, 1980, p. 44, nota 41, chama nossa atenção para a função epistemológica que o conceito de pessoa desempenha na fundamentação da ciência demonstrativa da ética no Ensaio, uma função derivada do fato de que conhecemos a essência real de pessoas (ao menos da pessoa que cada um de nós é), enquanto as essências reais dos tipos substanciais naturais nos são desconhecidas. Mas ela não explora em seu artigo as dificuldades que se seguem das propostas para determinar o estatuto ontológico das pessoas.
18. Cf. supra, notas 6 e 17: não determinamos ainda se a palavra "modo" designa, no contexto da individuação de conceitos, os "modos simples" do pensamento e da extensão, os "modos mistos" forjados pela mente ou as afecções de substâncias.
19. Para um antecedente histórico dessa tese, cf., por exemplo, a Ética de Espinosa, Parte II. Para uma dificuldade textual da interpretação proposta, cf. III, 6, §42, onde Locke parece identificar os conceitos de indivíduo e substância, i.e., onde ele parece propor que o único princípio de individuação é a existência de uma substância.
20. A consciência implícita dessa ruptura é talvez a razão do tratamento elusivo dispensado por Locke à categoria ontológica das pessoas no Capítulo 27, embora, na conclusão deste artigo, seja enfatizada sobretudo uma ruptura de outra ordem, moral e teológica. Como veremos adiante, a questão de saber o quanto Locke está comprometido com um quadro de referências aristotélico será decisiva para elucidar algumas de suas teses ontológicas mais centrais, tais como a teoria sobre a natureza das substâncias. Assim, Ayers (AYERS, 1991, Vol. II, p. 78) afirma que Locke não deve ser entendido como o proponente da tese segundo a qual a substância é um puro substrato, um "pure thisness" (para usar uma expressão de Robert Adams), precisamente porque ele é "um anti-aristotélico corpuscularista da escola de Boyle".
21. A ideia de relação, como vimos acima na p. 2, é excluída explicitamente pelo próprio Locke do conjunto das ideias que representam coisas reais. Poder-se-ia pensar que tudo o que Locke exclui, na passagem sobre relações (II, 25, §8) citada na mesma p. 2 acima, é que relações sejam coisas reais fora da mente; ora, se pessoas existem, em qualquer sentido do termo "existência," elas existem na mente, ainda que não se identifiquem com uma substância espirirtual; logo, pessoas poderiam ser relações. Que esse raciocínio seja incompatível, porém, com as evidências textuais presentes no Ensaio fica claro quando lemos a sequência da referida passagem e entendemos por que toda relação implica (o termo é de Locke) a inexistência da existência das coisas relacionadas: a saber, se relações fossem coisas, seria preciso acrescentar uma relação mental entre ela e as coisas relacionadas, de modo q podermos compará-las, o que geraria um regresso ao infinito. Cf. II, 25, § 10: os nomes das relações "are Words, which, together with the thing they denominate, imply also something else separate, and exterior to the existence of that thing" (no presente artigo, por razões de espaço, nos contentaremos com essa evidência textual sobre o estatuto ontológico das relações para Locke, sem questionar a validade filosófica de seus argumentos). Cf. Edmund Law (1823); para comentadores contemporâneos que assumem uma posição similar à de Law, cf. H. Allison (1977), p. 111, e W. Uzgalis (Chappell (CHAPPELL, 1990, p. 28) menciona o texto de Uzgalis (uma comunicação lida no encontro de 1990 da American Philosophical Association - Pacific Division). Cf. também UZGALIS (1998).
22. Em um certo sentido, porém, para Law, o eu é contínuo precisamente porque não há nenhum ser real associado a sua percepção de tempo, e porque "o tempo não percebido não é tempo" (LAW, 1823, p. 196, nota).
23. Cf. G. WEDEKING, 1987, p. 19.
24. Estou adaptando aqui a terminologia de G. Wedeking e C.H. Conn. Cf. WEDEKING, 1987, p. 19; pp. 21-23; CONN, 2003, p. 63.
25. CONN, op. cit., p. 63. A formulação que o próprio Locke dá do terceiro princípio é a seguinte: "That therefore that had one beginning is the same thing, and that which had a different beginning in time and place from that, is not the same but divers" (328: 25-27).
26. Como nota Wedeking, o princípio da origem não implica diretamente que uma coisa não possa ter vários começos na existência, mas somente a tese mais fraca, segundo a qual ele deve ter "one earliest beginning in time" (WEDEKING, op. cit., p. 22) - i.e., esse princípio não exclui apenas por si mesmo a possibilidade de existências intermitentes. Wedeking acrescenta outras considerações para excluir a tese mais fraca e conclui que, uma vez que pessoas têm existências interrompidas, isso coloca um problema para a teoria da identidade pessoal de Locke.
27. Como mostra James Hill, Locke distingue extensão corporal e espacial; apenas a primeira é caracterizada como a coesão de partes sólidas; sendo assim, a noção de extensão não é caracterizada como solidez e coesão (contra Descartes), e a noção de coesão se revela, assim, obscura. Nesse sentido, o problema da coesão explica a incognoscibilidade da essência do corpo (HILL, 2004, p. 622). A coesão das partes dos átomos é necessária para a própria existência dos átomos, já que os corpos são definidos como partes extra partes; se não houvesse coesão, não existiriam partes (HILL, 2004, p. 624).
28. Não deixa de ser estranho que Locke nomeie essa causa de "inteligível", dada sua tese sobre a incognoscibilidade da substância.
29. O contexto torna claro que, nessa passagem, Locke não está falando apenas de corpos inanimados, mas também de corpos vivos, uma vez que o exemplo apresentado no começo dessas considerações é o de um cisne (II, 23, §14).
30. Cf. CONN, op. cit., pp. 103-104.
31. Mas não apenas através dela: enquanto a memória visa o passado, a consciência de diversas ideias simultâneas no presente e as relações de preocupação com ações e estados futuros são outras modalidades conscientes que integram o pensamento em uma unidade.
32. A teoria de Locke poderia parecer, à primeira vista, se encaminhar para uma distinção cartesiana entre corpos (átomos, massas de matéria e organismos) e almas (pessoas e substâncias espirituais); entretanto, animais têm sua força motriz interna explicada pelo fato de eles possuírem uma alma (cf. II, 23), enquanto pessoas incluem partes de nosso próprio corpo na medida em que somos conscientes delas. Nada mais distante, pois, do cartesianismo, do que essa teoria. Cf. 346: 20-21: "Qualquer substância unida vitalmente ao ser pensante presente é uma parte desse mesmo eu que existe agora". A expressão "união vital" tem um sentido análogo ao da vida orgânica, constituindo o meio "pelo qual essa consciência é comunicada" (346: 9). É essa última função que importa para a identidade pessoal: uma coisa é parte de meu eu em um certo momento do tempo se e somente se ela é (ou poderia ser) o objeto intencional de meus pensamentos nesse momento (quando Locke afirma que todas as substâncias "unidas vitalmente" por uma única consciência são partes do mesmo eu, isso não implica que conhecemos claramente cada átomo que constitui nossos corpos vivos em um dado momento, mas somente que, tendo uma consciência confusa de uma afecção de nossos corpos, temos ipso facto uma consciência confusa dos átomos dos quais eles são compostos).
33. Para uma interpretação contrária a essa, cf. o interessante artigo de J. Bennett e W.P. Alston (ALSTON e BENNETT, 1988).
34. Mas Locke insiste, ao longo desses Capítulos, que a substância imaterial não é mais incognoscível do que a substância material - não conhecemos as essências reais de nenhuma delas, nem podemos representar seus substratos.
35. Aqui surge uma aparente dificuldade para Locke: como seria possível que uma só consciência unificada pudesse ter simultaneamente como sujeito de inerência várias substâncias discretas? O mais provável é que ele estivesse pensando em uma única substância espiritual como sujeito de inerência dos atos de consciência, admitindo, porém, que vários espíritos poderiam sucessivamente servir de suporte ontológico à mesma consciência. A alternativa seria dizer que uma substância complexa (um homem) é o sujeito de inerência da consciência. Como se sabe, a posição final de Locke sobre esse ponto não é inteiramente clara (cf. sobre isso sua correspondência com o bispo de Worcester em LOCKE, 2005, p. 179 e seq.).
36. "Poderes pertencem somente a agentes, e são atributos somente de substâncias" (II, 21, §16). Cf. CHAPPELL, 1990, p. 28: ele enuncia essa objeção como "uma razão conclusiva para manter que pessoas são substâncias para Locke". Poderíamos, entretanto, interpretar a conjunção "e" que une as duas partes dessa frase como indicando a conexão de duas relações diferentes: poderes implicam um agente que os exerce e uma substância que é sua origem causal última.
37. Cf. II, 27, §13: a consciência de ações passadas não poderia ser transferida de uma substância pensante para outra se a mesma consciência fosse a mesma ação individual - mas ela é somente "uma representação presente de uma ação passada" (337: 35). Daí se infere que a palavra "consciência" refere-se exclusivamente a atos individuais de pensar. Há um problema na doutrina de Locke sobre a identidade pessoal, relativo à explicação do que seria um ato de consciência possível, o qual parece ser um elemento contrafactual indispensável de sua teoria: ele quer manter que uma pessoa é a mesma não apenas se ela efetivamente se recorda, mas antes se ela pode lembrar-se de algum evento ou experiência passados (i.e. mesmo se ela não está atualmente exercendo seu poder de pensar, como quando durante o sono). Ora, muitas coisas podem ser o objeto de uma consciência possível, de modo que o critério do saber imediato parece perder sua aplicação controlada. Ver sobre esse ponto a interpretação de J. Perry (PERRY, 1975, Introdução).
38. Essa última distinção tem, evidentemente, um sabor aristotélico, e poder-se-ia questionar sua aplicação à teoria de Locke. Entretanto, ela pode ser traduzida pela oposição lockiana entre duas concepções da substância: como substrato e como aquilo que é representado pela ideia abstrata de sua essência nominal. Cf. sobre esses pontos a interpretação de J. Bennett (BENNETT, 1998). Como mostra M. Bolton (BOLTON, 1998), a filosofia de Locke pode ser entendida como uma conciliação do mecanicismo de Boyle com o aristotelismo (que reconhece como exemplos típicos de substância animais e plantas).
39. Cf. AYERS, 1977, p. 84 para uma discussão sobre a tese de Bennett (1998) segundo a qual pessoas são, para Locke, substâncias. Segundo Ayers, o principal problema que Locke tem em mente com sua teoria da substância não é o problema da individuação, mas sim o problema de explicar a essência específica de "substâncias segundas", no sentido aristotélico, tais como "homem" e "árvore", tomadas como termos gerais. Sem dúvida, Ayers não nega que Locke lide com o problema da individuação em outras partes da obra (a saber, em II, 27) nem que haja, para Locke, "substâncias primeiras". Deve-se notar que tanto Bennett quanto Ayers afirmam que "pessoa" é, para Locke, um termo substancial, embora ambos entendam isso em sentidos diferentes: segundo Bennett, há um uso estrito, filosófico ou científico, do termo "substância", no qual ele se refere seja a átomos (materiais ou imateriais), seja a corpos inanimados complexos compostos exatamente pelos mesmos átomos durante toda sua existência (isso significaria que Locke é o proponente de um tipo de "essencialismo mereológico" válido para o caso dos corpos inanimados complexos), e um uso frouxo, popular, no qual organismos e pessoas seriam substâncias - mas nos seus dois usos, o termo "substância" deve ser entendido como "substrato", que é essencialmente incognoscível. Ayers, por sua vez, propõe que substâncias são naturezas específicas contingentemente desconhecidas pelos seres humanos; uma vez que todas as coisas existentes têm essências reais e que nada além de substâncias caracteriza uma classe de seres capazes de ter uma existência contínua, o termo "pessoa" refere-se à classe de seres que, tendo uma certa essência real desconhecida, são "coisas" no sentido próprio da palavra. Portanto, Bennett e Ayers concordam (ainda que por razões diversas) que uma pessoa é uma substância.
40. O fato de não podermos conhecer os substratos últimos e de não conhecermos, ainda que contingentemente, as essências reais das substâncias não impede, segundo Locke, a constituição de uma ciência física (mecanicista), constituída nos limites das essências nominais.
41. Ou, talvez, da pneumologia. Cf. II, 27, § 27: "Mas tomando, como ordinariamente fazemos agora (na escuridão concernente a essas matérias) a alma do homem por uma substância imaterial..." (grifo meu). O tempo atual a que Locke se refere é, quase certamente, o estado de natureza decaída do homem, que pode, entretanto, ser remediado no "grande Dia", quando "os segredos de todos os corações deverão ser expostos" (344: 22).
42. A ignorância necessária a respeito do substrato e a ignorância contingente acerca da essência real da substância exercem funções ligeiramente distintas no argumento, mas servem, ambas, para provar que pessoas não são, em nenhum sentido do termo, "substâncias".
43. Mas talvez haja um modelo teórico no qual a unidade de almas possa ser pensada como sincrônica: assim, Hume, em seu Tratado da natureza humana, define a mente como um feixe de percepções atômicas e simples. É verdade que, no modelo humiano, percepções não são substâncias, mas elas são o que mais se aproxima, segundo o próprio Hume, da noção tradicional de substância, criticada por ele, pois tanto as percepções quanto as substâncias são entidades simples e independentes.
44. O argumento de Locke é um tanto obscurecido por sua própria exposição, entre outras coisas porque ele afirma que a opinião "mais provável" (dada a bondade de Deus) é que uma consciência unificada seja a modificação de uma só substância espiritual. Entretanto, devemos reconhecer que essa é uma constatação factual, como o são todas as que envolvem a vontade de Deus e o mundo criado por Ele. Conceitualmente, devido à identificação entre ser e conhecer no caso das pessoas, a conclusão é de que, dada a possibilidade de pessoas não serem substâncias, pessoas não são, necessariamente, substâncias.
45. No caso dos demais entes, o critério de identidade temporal é derivado do critério de unidade sincrônica: é porque sabemos qual é a natureza de um corpo "fora" do tempo que podemos determinar seu modo peculiar de permanecer o mesmo ao longo do tempo. Já a definição de "pessoa", dada em II, 27, reúne a identidade diacrônica e sincrônica: uma pessoa, diz Locke, é "um ser pensante e inteligente, que tem razão e reflexão, e pode considerar-se a si mesmo como o mesmo" (grifo meu). Ou seja, no caso das pessoas, o que elas são é definido a partir da consciência que elas têm de considerar-se como seres que sabem que são os mesmos ao longo do tempo. Deve-se notar que animais também podem ser dotados de reflexão, mas não de razão. A existência passada (a identidade) do "eu" é colocada como parte de sua definição (de sua unidade): ao enumerar as coisas que ele sabe certamente pertencer a si mesmo, uma das propriedades é a de que ele "has existed in a continued Duration more than one instant" (§25). Novamente aqui, como "ser" e "ser conhecido" coincidem, o conhecimento do que eu sou e o conhecimento de que existo durante um certo tempo são um só e mesmo conhecimento. As ideias de "same self" e "same consciousness" são explicadas pela ideia de identidade, mas a própria ideia de "eu" inclui a ideia de uma mesma consciência: a unidade do "eu" é a unidade dada pela permanência de uma mesma consciência. No presente, um só e mesmo ato reflexivo pode se dirigir a uma multiplicidade de atos co-conscientes, e é nessa unidade do ato reflexivo que se encontra a unidade do "eu". Mas não haveria um problema nessa explicação? Não haveria aqui, afinal de contas, uma circularidade? O que significa "ser co-consciente"? A identidade transtemporal não explica, portanto, a unidade do "eu" em cada momento presente. O que então ela explica, se admitirmos que ela faz parte da definição do "eu"? Uma maneira de entender essa característica do "eu" seria mostrar que se trata de uma entidade que é essencialmente um agente moral, propriedade essa que só pode ser explicada pela identidade numérica ao longo do tempo. Deve-se notar, nesse sentido, que o que é transmitido do passado para o futuro não é apenas um estado cognitivo, mas a razão pela qual o "eu" é feliz ou infeliz agora: a "união vital" é, no caso das pessoas, o meio pelo qual a "consciência é comunicada" de um momento ao outro.
46. Apesar de admitir que animais pensam, Locke mantém a restrição clássica do conceito de pessoas a seres racionais: somente entidades que podem formular racionalmente o significado da palavra "eu" são pessoas. Ora, a razão é, para Locke, a faculdade de derivar conclusões de premissas; logo, temos de interpretar essa tese lockiana como a afirmação de que é esse sentido da racionalidade que faz parte do conceito de pessoa. O argumento para provar essa tese poderia ser resumido da seguinte forma: Premissa 1: o termo "pessoa" designa um ente moral; Premissa 2: todo ente moral é racional; Conclusão: "pessoa" só é aplicada a seres racionais. A Premissa 2 parece ser analítica, mas de onde vem a evidência para a Premissa 1? Trata-se de uma evidência linguística, sobre o modo como usamos a palavra "pessoa"? Nesse momento do Ensaio, Locke provou certas propriedades pertencentes ao conceito de "pessoa": seu conhecimento é indubitável (II, 27, §16) (e, já que "ser" e "ser conhecido" coincidem, uma pessoa é um ser totalmente acessível a si mesmo pela consciência); a consciência une existências distantes em uma unidade inseparável (§17); a identidade pessoal é o fundamento do direito e da justiça (§18), uma vez que a felicidade e a infelicidade são explicadas precisamente por essa relação que cada um tem consigo mesmo. No §19, ele resume os resultados até então alcançados. Logo a seguir, no §20, ele considera, então, uma objeção: sua teoria parece ser anti-intuitiva (e aqui é revelador uma disposição intelectual de Locke: ao mesmo tempo em que ele reconhece que sua teoria está afastada da "ordinary way of speaking" (§15), ele quer assegurar que, na medida do possível, ela se aproxime dos fenômenos tais como são geralmente figurados pelas pessoas comuns. Nesse mesmo §20, ele analisa um certo modo de nos referirmos a nós mesmos, e mostra que sua teoria é de alguma forma "explained by our way of speaking in English". No §21, ele analisa as três alternativas a sua teoria (a lista é exaustiva, na medida em que se refere às três maneiras de conceber as substâncias). A primeira é a maneira cartesiana; Locke mostra, não propriamente que ela é logicamente impossível, mas sim que ela não pode ser conhecida e que, se aceita, ela conduz a posições ao menos tão anti-intuitivas quanto a sua (mesmo homem, duas pessoas); a segunda (materialista) e a terceira (aristotélica) são reduzidas à sua própria posição: considerando a possibilidade lógica da ressurreição, elas têm de admitir que é apenas a unidade da consciência que explica em que sentido Sócrates criança e Sócrates após a ressurreição são o mesmo homem (no sentido em que eles estão usando a palavra "homem", que é o que está em questão desde o §20: parece ser mais intuitivo dizer que somos homens, e não pessoas distintas de nossa humanidade).
47. "...of substance we have no idea of what it is but only a confused obscure one of what it does" (II, 13, §19). Para a relação entre as noções de substrato e essência real, cf. a interpretação de Bennett (BENNETT, 1998). É importante lembrar que, enquanto essências reais são contingentemente desconhecidas, substratos são necessariamente desconhecidos.
48. Cf. BENNETT e ALSTON, 1988.
49. Cf. supra nota 6.
50. II, 30, §1 e §§4-5. Cf. sobre esse ponto BOLTON, 1998, p. 112.
51. Nesse caso, os dois sentidos do termo "modo" distinguidos por Chappell (CHAPPELL, 1990) reunir-se-iam em uma só explicação. Cf. nota 6 acima.
52. Cf. III, 6, §§44 e 45; Locke parece distinguir dois momentos distintos na formação dos modos mistos: em primeiro lugar, ideias simples são "voluntariamente unidas"; em seguida, elas são abstraídas; finalmente elas recebem um nome. Que um modo misto seja objeto de uma ideia geral parece, portanto, um dado acrescido à junção das ideias simples em uma unidade, de tal modo que tem sentido pensar em uma conjunção à parte da abstração. Cf. também Ensaio, III, 6, § 42: só as substâncias, "dentre todos os nossos vários tipos de ideias, têm nomes particulares ou próprios, pelos quais uma só coisa particular é significada". A continuação do texto, porém, parece enfraquecer essa restrição: "Porque nas ideias simples, nos modos e nas relações raramente ocorre que os homens tenham a ocasião de mencionar freqüentemente esta ou aquela particular, quando está ausente" (grifo meu). Quanto aos modos mistos, continua Locke, "a maior parte [....] sendo ações, que perecem em seu nascimento, não são capazes de uma duração duradoura, como as substâncias, que são os atores" (grifo meu). Sobre a distinção entre as ideias abstratas de substâncias e de modos mistos e simples, cf. PINHEIRO, 2009.
53. Como vimos, o próprio Law parece hesitar na caracterização positiva da categoria a ser aplicada a pessoas: "A palavra pessoa [designa] um modo misto, ou relação, e não uma substância" (grifo meu; para essas citações, cf. LAW, 1823, pp. 184-200).
54. Na ausência dessa transparência, podemos (devemos) punir os homens (e não as pessoas), preservando ainda assim a justiça, pois tais punições tomam como critério o conhecimento humano possível. Cf. II, § 22: "Humane Laws punish both with a Justice suitable to their way of Knowledge: Because in these cases, they cannot distinguish certainly what is real, what counterfeit". Em sua correspondência com Locke, William Molyneux sera um dos primeiros a assinalar os problemas dessa tentative de legitimar a justice humana; que tais impasses se manifestem no domínio ético é apenas mais um sinal das ambiguidades ontológicas envolvendo o conceito de pessoa.

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Recibido: 11-2011;
aceptado: 06-2012

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