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Revista latinoamericana de filosofía

versión On-line ISSN 1852-7353

Rev. latinoam. filos. vol.40 no.1 Ciudad Autónoma de Buenos Aires mayo 2014

 

ARTÍCULOS ORIGINALES

Gödel, percepção racional e compreensão de conceitos

Gödel, Rational Perception and Comprehension of Concepts

 

Sérgio Schultz
Pontificia Universidade Católica de Rio de Janeiro


RESUMEN: Nosso objetivo neste artigo é o de lançar luz sobre alguns aspectos das concepções de Gödel acerca da percepção de conceitos. Começamos investigando a natureza e o papel da analogia entre percepção sensível e percepção de conceitos. A seguir, examinamos as conexões entre percepção de conceitos, razão e compreensão, tentando mostrar que a percepção de conceitos é compreensão de conceitos. Por fim, examinamos aqueles aspectos da concepção de Gödel em que a percepção de conceitos de fato se aproxima perigosamente da ideia de um "olho da mente". Contudo, argumentamos que esses aspectos problemáticos não são intrínsecos à noção de percepção de conceitos, mas sim resultam de uma má compreensão da distinção entre conceito e objeto.

PALABRAS CLAVE: Percepção de conceitos; Percepção; Compreensão; Gödel; Platonismo.

ABSTRACT: Our goal in this article is to illuminate some aspects of Gödel's conception of the perception of concepts. We begin by investigating the nature and function of Gödel's analogy between sense perception and perception of concepts. After that, we examine the connections between perception of concepts, reason, and understanding, trying to show that the perception of concepts consists in the understanding of concepts. Finally, we examine those aspects of Gödel's conception where the perception of concepts actually comes dangerously close to the idea of a "mind's eye". However, we argue that these problematic aspects are not intrinsic to the notion of perception of concepts, but result from a misunderstanding of the distinction between concept and object.

KEYWORDS: Perception of concepts; Perception; Understanding; Gödel; Platonism.


 

1. Introducción

O platonismo metafísico é a tese de que existem entidades abstratas, i. e., entidades sem localização espaço-temporal e inacessíveis à percepção sensível. Esta tese metafísica frequentemente vem acompanhada por uma tese semântica de acordo com a qual a verdade ou falsidade de um enunciado dependa da referência de suas partes. Desta forma, bem como a verdade ou falsidade de "o Maracanã é um estádio de futebol" depende de se o objeto concreto referido pelo nome "Maracanã" é um estádio de futebol, a verdade de "a sabedoria é uma virtude" e "3 é um número primo" dependeria de se as entidades abstratas referidas por "a sabedoria" e pelo numeral "3" são, respectivamente, uma virtude e um numero primo.
Enquanto que o platonismo metafísico permite oferecer uma semântica para enunciados não empíricos uniforme com a semântica dos enunciados empíricos, como argumenta Benacerraf (1973), ele também dá surgimento a um problema epistemológico. Se a verdade dos enunciados depende da referência a entes, então nosso conhecimento da verdade também depende de nosso conhecimento dos entes referidos. Isto não é problemático no caso empírico, onde é inegável que dispomos de um meio de acesso a objetos concretos através percepção sensível. Porém, onde há referência a entes abstratos que, como tais, são inacessíveis aos sentidos, surge o problema: dado que entes abstratos não podem ser conhecidos pela percepção sensível, como então podemos conhecê-los?
Uma resposta para o problema apontado acima seria alegar que, assim como temos uma relação com objetos concretos -a percepção sensível- que nos dá a conhecê-los, também temos uma relação com entes abstratos, a intuição ou percepção racional. Esta era a resposta de Gödel. No entanto, simplesmente dizer que possuímos intuição de entes abstratos em nada resolve o problema a não ser que seja oferecida também uma concepção do que seria este tipo de intuição. Enquanto não possuía uma concepção desenvolvida de intuição racional, Gödel possui uma série de observações sobre o tema comparando percepção sensível e percepção racional e relacionando esta última com as noções de compreensão e de conceito. Meu objetivo neste artigo é lançar luz sobre estes aspectos da concepção gödeliana de percepção racional entendida como uma possível resposta à dificuldade epistemológica enfrentada pelo platonismo metafísico.
Como primeiro passo, examinamos mais detidamente o papel e a natureza da analogia proposta entre percepção (ou intuição) de conceitos e percepção sensível, salientando que a analogia se dá em termos das características que fariam da percepção uma relação de acesso. Em um segundo momento, argumentamos que a percepção de conceitos nada mais é do que compreensão de conceitos e que na base da distinção epistemológica entre percepção intelectual e sensível encontra-se a distinção ontológica entre conceito e objeto. Na terceira seção, abordamos alguns aspectos problemáticos da concepção de Gödel, nos quais ela se aproxima perigosamente da idéia da percepção de conceitos como uma obscura faculdade de percepção imediata similar a um 'olhar com o olho da mente'. Argumentamos que os aspectos problemáticos não são intrínsecos à noção de percepção de conceitos, mas sim resultam de uma má compreensão da distinção entre objeto e conceito e da natureza deste último.
A filosofia de Gödel tem recebido renovado interesse nas últimas décadas, sendo frequentemente interpretada em conexão com a fenomenologia husserliana.1 Não negamos os pontos de contato (ou possíveis influências) entre Husserl e Gödel. Contudo, não trataremos das relações entre os dois autores neste artigo, preferindo, em lugar disto, salientar outros aspectos que consideramos relevantes das concepções gödelianas. A interpretação de Gödel que propomos aqui se beneficia de algumas idéias e temas presentes em Parsons (1995), em especial, referentes às relações entre percepção de conceitos e razão. Por fim, vale ressaltar que Gödel não possui uma teoria sistemática acerca destes temas e também que suas observações apresentam ambigüidades e flutuações terminológicas e, em alguns casos, aparentes inconsistências.2 O que faremos aqui, portanto, será mais propriamente uma tentativa de reconstruir a posição de Gödel acerca do platonismo e da intuição intelectual do que oferecer uma interpretação das mesmas.

2. Percepção sensível, percepção racional3

Em seu artigo sobre a hipótese do contínuo, Gödel afirma:

Mas independentemente de estarem afastados da experiência sensível, também temos algo como uma percepção dos objetos da teoria de conjuntos, como se vê a partir do fato de que os axiomas se forçam sobre nós como verdadeiros. Não vejo nenhuma razão para termos menos confiança neste tipo de percepção, i. e., intuição matemática, do que na percepção sensível que nos induz a construir teorias físicas, a esperar que percepções sensíveis futuras concordem com elas e, além disto, a crer que uma questão que agora não é decidível tenha sentido e que possa ser decidida no futuro. Deve-se notar que não é necessário conceber a intuição matemática como uma faculdade fornecendo um conhecimento imediato dos objetos concernidos. Antes, como no caso da experiência física, parece que formamos nossas idéias daqueles objetos também com base em algo mais que é imediatamente dado. Somente que este algo mais não é, ou não é primariamente, sensações. [...] Eles [os dados da percepção intelectual] também podem representar um aspecto da realidade objetiva, porém, em contraste com as sensações, sua presença pode se dever a outro tipo de relação entre nós e a realidade. (Gödel 1964: 271-272)4

Embora esta não seja nem a primeira nem a única ocorrência na obra de Gödel das ideias de percepção intelectual e da analogia entre esta e a percepção sensível, ela é, sem dúvida, a mais citada. Além desta passagem, encontramos afirmações sobre intuição intelectual e sobre a analogia entre esta e a percepção sensível também no livro de Wang (1974), em Gödel, *1951, no artigo sobre Carnap (*1953/9) e em The Modern Development of the Foundations of Mathematics in the Light of Philosophy (*1961/?).
Aparentemente, Gödel estaria defendendo apenas que, em primeiro lugar, nós temos intuição matemática (também referida como "percepção/intuição intelectual" ou "percepção/intuição de conceitos" ou, ainda "percepção/intuição racional") que nos permitiria descobrir novos axiomas capazes de provar resultados que, de outro modo, seriam indemonstráveis como, por exemplo, a Hipótese do Contínuo. Porém, um exame mais atento da analogia entre percepção sensível e intuição de conceitos, em especial, dos termos em que a analogia é formulada, revela que, subjazendo a estas afirmações, encontra-se uma tese mais profunda acerca do conceito de percepção.
A percepção sensível e a percepção intelectual são comparadas por Gödel tendo em vista aspectos que são essenciais para que uma relação com entes se constitua em uma relação de acesso. Um deles, e que é o aspecto mais saliente da analogia, é o que poderíamos chamar do caráter não-subjetivo que é compartilhado por ambas as formas de percepção. Tanto percepção intelectual quanto percepção sensível seriam, em grande medida, independentes de nossas crenças ou de nossa vontade. Não é porque queremos acreditar ou acreditamos que o objeto seja vermelho que o percebemos como sendo vermelho, mas sim é porque o objeto é vermelho que nós o percebemos como tal. Outra forma de dizer isto consiste em afirmar que não é nossa crença na verdade de "este objeto é vermelho"- ou nosso desejo de que aquele enunciado seja verdadeiro- que nos faz perceber o objeto como sendo vermelho. Antes, é a percepção do objeto vermelho que força sobre nós aquele enunciado como sendo verdadeiro. Segundo Gödel, de modo análogo à percepção sensível, a percepção racional força sobre nós, como verdadeiros, os axiomas da teoria de conjuntos.5
Pareceria haver aqui uma passagem injustificada da percepção de dicto, ao se falar de a verdade dos axiomas se forçando sobre nós, para a percepção de re, onde os conceitos é que seriam percebidos. Porém, como nota Parsons, na concepção de Gödel a intuição de dicto sempre envolve intuições de re.6 Um enunciado como "isto é vermelho" envolveria não somente a percepção sensível do objeto vermelho mas também a percepção do conceito vermelho e da cópula.7 No caso de proposições matemáticas que, segundo Gödel, são verdadeiras em virtude dos conceitos envolvidos, a percepção de sua verdade dependeria apenas da percepção dos conceitos.8 Dado isto, da mesma forma que a percepção de re de um objeto vermelho - junto com a percepção do conceito - "força sobre nós" a verdade de "isto é vermelho", a percepção racional de re forçaria sobre nós a verdade dos axiomas da teoria de conjuntos. Portanto, estaríamos justificados a passar da percepção de dicto dos axiomas da teoria de conjuntos para a percepção de re, como faz Gödel no início da citação acima.9
Outro aspecto segundo o qual percepção sensível e intuição intelectual seriam análogas diz respeito aos limites e à falibilidade da percepção. Bem como a percepção sensível pode ser indistinta e enganosa, como no caso do bastão parcialmente imerso na água, também a percepção de conceitos pode ser indistinta e enganosa, como seria o caso com os paradoxos da teoria de conjuntos (Gödel *1951: 34). Algo que, de início, parecia ser um único conceito pode acabar se mostrando como sendo, na verdade, dois conceitos distintos. O mesmo pode ocorrer com a percepção de objetos concretos (Wang 1974: 85-86). Inclusive, o modo como descobrimos os enganos ou ilusões seriam similares em ambos os casos, a saber, alcançando uma inconsistência. No caso da percepção de entes abstratos, as ilusões mostram-se através da derivação de uma contradição, e os paradoxos da teoria de conjuntos são mencionados por Gödel nesse contexto. No caso da percepção sensível, as ilusões vêm à tona através de uma inconsistência entre diferentes observações. Como um exemplo, podemos mencionar que a percepção visual de que o bastão semimergulhado está quebrado pode ser concebida como uma ilusão na medida em que contradiz nossa percepção táctil do mesmo bastão.10
Um aspecto adicional da analogia implícito aqui é a possibilidade de descobrirmos a ilusão e de explicar porque ela ocorre. No caso empírico, a ilusão ocorre devido às diferenças no modo como a luz é refratada pelo bastão através da água e através do ar, pela parte do bastão fora da água. Nos casos das ilusões da percepção de conceitos, algumas delas se dariam uma vez que confundimos dois conceitos, pensando se tratar de um só, e a explicação de por que confundimos os conceitos é também a explicação de por que tal ilusão ocorreu. Poderíamos, assim, identificar e explicar aquelas circunstâncias nas quais a percepção de conceitos mostra-se enganosa. Além disso, podemos também ter percepções cada vez mais claras de conceitos, bem como ocorre com a percepção sensível de objetos concretos (Wang 1974: 84ss).
Também, haveria uma quantia ilimitada de percepções, tanto da percepção de objetos sensíveis quanto da percepção de entes abstratos, o quê, neste último caso, seria exemplificado pela série ilimitada de axiomas de infinito em teoria de conjuntos.11 A esse caráter ilimitado da percepção, seja ela sensível ou intelectual, soma-se a possibilidade de percebermos tanto objetos físicos quanto conceitos de diferentes perspectivas. Com respeito a objetos físicos, podemos simplesmente nos mover ao redor do objeto e, assim, enxergá-lo sob diversos ângulos. O análogo disso na percepção de conceitos se daria através de diferentes conceitos logicamente equivalentes (Wang 1974: 85).
Um aspecto onde a percepção sensível claramente se afasta da percepção racional é que a primeira envolve a ação causal de objetos sobre nossos órgãos dos sentidos de modo que poderíamos sustentar que tal ação é uma condição necessária para a percepção dos objetos. Os entes da percepção racional, por sua vez, são causalmente inertes. Consequentemente, a intuição matemática não resulta da interação (causal) dos objetos de intuição com nossos órgãos dos sentidos e, além disto, que parece duvidoso falar de um órgão da percepção racional. Também se ressalta que Gödel não possuía nem uma concepção desenvolvida de percepção sensível nem de percepção racional. Assim, poder-se-ia objetar que fica em aberto a possibilidade de que existam diferenças substanciais o suficiente entre os dois tipos de percepção a ponto de qualquer analogia entre elas ser meramente superficial: perceber sensivelmente um objeto físico seria algo completamente distinto de intuir racionalmente um conceito.12
Gödel, porém, não defende simplesmente que a percepção sensível de um objeto é análoga à intuição racional de um conceito. O que está em jogo na analogia é a possibilidade e os meios disponíveis para conhecermos entes abstratos. Nesse contexto, Gödel argumenta que possuímos uma relação com conceitos -a percepção racional- que tem as mesmas características que tornam a percepção sensível uma fonte confiável de conhecimento, dentre as quais mencionam-se seu caráter objetivo e corrigível, bem como a possibilidade de identificarmos e explicarmos aqueles contextos nos quais a percepção nos engana ou pode nos enganar.13 São esses aspectos de nossa relação com conceitos que são enfatizados na comparação gödeliana entre os paradoxos conjuntistas e as ilusões da percepção sensível, nas discussões filosóficas sobre incompletude e consistência e também na fala de que os axiomas da teoria de conjuntos se forçam sobre nós como verdadeiros. A conclusão que Gödel extrai da analogia, assim, é que temos tanta razão em questionar a confiabilidade da percepção racional quanto temos para questionar a confiabilidade da percepção sensível.14
Sob esta perspectiva, a analogia entre percepção sensível e racional é formal. Ela se estabelece, por um lado, em virtude do papel que percepção sensível e percepção/intuição intelectual desempenhariam, respectivamente, no conhecimento de objetos concretos e de entidades abstratas. Por outro lado, a analogia também envolve certas características comuns à percepção e à intuição intelectual que possibilitam que esta última assuma, com respeito ao conhecimento de entes abstratos, o mesmo papel que a percepção sensível assume com respeito a entes concretos. Assim, bem como o conhecimento empírico provém, em última instância, da percepção sensível, segundo Gödel nosso conhecimento não empírico (a priori) provém, em última instância, da intuição intelectual. Em outras palavras, a intuição intelectual fornece-nos acesso a entidades abstratas e, por conseguinte, conhecimento acerca delas.15
A analogia entre percepção sensível e percepção de conceitos ou intuição intelectual pode ser entendida como salientando que percepção sensível e percepção de conceitos são duas espécies de um mesmo gênero, a saber, o de um conceito amplo de percepção. Esse conceito amplo de percepção seria o de uma relação com entes objetivamente existentes que nos fornece acesso e conhecimento acerca deles e que é independente de nossas crenças ou de nossa vontade, no sentido exposto acima. Desse modo, a afirmação de que possuímos percepção de conceitos remonta, na verdade, a uma análise do conceito de percepção de acordo com a qual enunciados como (1) e (2) abaixo possuem sentido literal e podem ser verdadeiros da mesma forma que (3):
(1) "X percebe/não percebe as relações/diferenças/semelhanças entre tais-e-tais conceitos"
(2) "X percebe/não percebe que p (é o caso)"
(3) "X percebe um objeto vermelho na sua frente"
Tanto em (1) e (2) quanto em (3), o que se afirma é que alguém possui uma relação de acesso a certas entidades (ou verdades), relação esta que em um caso é percepção intelectual, e no outro é percepção sensível.
Poder-se-ia argumentar que em (1) e (2) o verbo "perceber" não está sendo usado em seu sentido literal, mas sim como uma metáfora para compreensão. O mesmo ocorre quando dizemos "vemos que tai-e-tais conceitos se relacionam assim-e-assim", onde é claro que não estamos querendo dizer que enxergamos as relações entre os conceitos. No entanto, é útil considerar aqui como poderíamos justificar a afirmação de que toda percepção é percepção sensível, isto é, de que o conceito de percepção é tal que não possui sentido literal falar de percepção de entes abstratos ou de percepção racional.
Para defender que expressões como "perceber uma verdade" e "perceber um conceito" são metafóricas é necessário, no mínimo, mostrar que a palavra "perceber", nestes contextos, não possui de modo algum o mesmo sentido que possui em contextos nos quais pode ser entendida como percepção sensível. Vale lembrar que o que está em questão é justamente se toda percepção é sensível ou não, e que esta questão é a contraparte da pergunta sobre se os usos abstratos do verbo "perceber" são metafóricos ou se eles possuem sentido literal. Tais usos possuem sentido literal se e somente se a percepção não se restringe à percepção sensível; e a percepção não se restringe à percepção sensível se e somente se tais usos possuem sentido literal. Sendo assim, não poderíamos afirmar que expressões como "perceber que é verdade" ou "perceber um conceito" somente possuem sentido se entendidas metaforicamente porque toda percepção é sensível: isto seria uma petição de princípio.
Nós, de fato, usamos o verbo "perceber" com referência a entes abstratos. Para justificar a afirmação de que tais usos são metafóricos -e que toda percepção é sensível- é necessário mostrar que não há um único conceito de percepção operando tanto em contextos concretos quanto em contextos abstratos. Para mostrar que os usos abstratos do verbo "perceber" não são metafóricos, é necessário mostrar que há um mesmo conceito de percepção operando nos usos abstratos e nos concretos. O que está em jogo é uma análise do conceito de percepção e, a nosso ver, um dos pontos da analogia entre percepção racional e sensível consiste justamente em mostrar que existe um tal conceito de percepção, do qual a percepção racional e a sensível seriam duas espécies. Em outras palavras, ao comparar percepção sensível e racional nos termos descritos na seção anterior -caráter objetivo ou não-subjetivo, corrigibilidade, possibilidade de explicar os enganos de percepção- Gödel não está procurando mostrar somente que a percepção racional é tão confiável quanto a percepção sensível. Ele também está exibindo aquele conceito comum de percepção que nos permite tomar os usos abstratos do verbo "perceber" -(1) e (2) acima- literalmente, a saber, o conceito de uma relação de acesso. Portanto, para falar de percepção de conceitos, não é preciso estender a noção de percepção; basta não a restringir à percepção sensível. Este é o ponto central da analogia gödeliana.

3. Percepção de conceitos, razão e compreensão

Embora Gödel saliente semelhanças entre intuição intelectual e percepção sensível, ele também observa algumas diferenças fundamentais entre ambas. A primeira, é que a intuição de conceitos não envolve ações de entidades sobre nossos sentidos: a relação entre nós e os conceitos é diferente da relação entre nós e os objetos empíricos (Gödel 1964: 271). Perceber um conceito é perceber uma entidade que existe independentemente de nós, mas não devemos conceber esse tipo de percepção como se os conceitos, de algum modo, agissem sobre nós de modo similar ao qual um objeto concreto age sobre nossos órgãos dos sentidos. Relacionado com isso encontra-se também a tese, presente em (Gödel *1951) e em várias versões do artigo sobre Carnap (Gödel *1953/9), de que conceitos são percebidos pela razão e não pelos sentidos: com os sentidos nós percebemos o particular; através da razão, percebemos o geral.16 Gödel, no artigo sobre Carnap, chega a considerar a possibilidade de que a razão seja um sentido adicional, que não costuma ser (ou que simplesmente não é) considerado como tal, na medida em que, dado que seus "objetos" são gerais, se diferenciaria por demais dos sentidos usuais (visão, audição, etc.).
Não é claro se Gödel considerava, de fato, a razão como sendo um sentido adicional ou não. Em uma acepção mais coloquial, os sentidos são caracterizados por enumeração, explicando que eles são a visão, audição, tato, paladar e olfato. Podemos chamar esse conceito de sentido de biológico, dado que é explicado com referência a capacidades e órgãos do corpo humano. Em Kant, por sua vez, encontramos uma concepção mais filosófica e sofisticada de sentido (sensibilidade), que é entendido como a capacidade de receber representações, isto é, como a faculdade através da qual os objetos nos são dados. A sensibilidade é contrastada com o entendimento e com a razão, que apenas são capazes de pensar objetos previamente dados (Kant 1787: A51/B75 - A52/B76). Seria um erro, para Kant, afirmar que conceitos nos são dados pelo entendimento (ou pela razão, considerada em uma acepção ampla e não kantiana), pois conceitos não são concebidos platonicamente como entes existentes independentemente de nós. No entanto, se concebemos conceitos como entes que existem de forma objetiva e que nos são dados através da razão, como defende Gödel, parece natural considerar que a razão seja um sentido, na acepção técnica de Kant.
Mais importante, porém, é a conexão estabelecida por Gödel entre a distinção percepção sensível/percepção intelectual e a distinção objeto /conceito, onde esta última parece ser entendida em termos de particular/universal ou particular/geral. Na terceira versão do artigo sobre Carnap, a distinção é traçada em termos da razão nos fornecer "percepção dos conceitos mais gerais (a saber, o 'formal') e suas inter-relações" (Gödel *1953/9-III, §42). Na segunda versão, porém, o motivo pelo qual a razão não é ou não costuma ser contada como um sentido está diretamente relacionado com a distinção entre objeto (particular) e conceito (geral).

Eu mesmo penso que isso é bastante próximo do verdadeiro estado de coisas (...), exceto que esse sentido adicional (i. e., a razão) não é contado como um sentido, [pois ele é muito diferente dos outros, em particular pelo fato de que a verdade de proposições universais é perceptível diretamente (i. e., sem indução) por ele.] pois seus objetos são muito diferentes daqueles de todos os outros sentidos. Enquanto com os últimos percebemos "o particular", com a razão percebemos o "geral". (Gödel 1953/9-II, §39)

Esclarecendo a última frase dessa passagem, temos a nota 43, na qual se lê:

O que os órgãos dos sentidos nos fornecem é, estritamente falando, somente as impressões dos objetos particulares. Para proposições como "isto é vermelho", nós já necessitamos da razão (embora em um nível primitivo) para compreender o conceito geral "vermelho" e a cópula "é". (Gödel 1953/9-II: 209 n 43)

Como mencionamos, na versão III essa conexão entre as distinções de percepção sensível/percepção intelectual e particular/geral desaparece. O exemplo do enunciado "isto é vermelho" é usado em contextos diferentes nas versões III e V, sem nenhuma menção à distinção particular/geral (Gödel *1953/9-III, n 34 e *1953/9-V: 7). Na quarta versão, porém, reaparece explicitamente a ideia de que, pelos sentidos, percebemos o particular, enquanto pela razão percebemos o geral (Parsons 1995: 63).
Parsons (1995: 63) considera que Gödel se encontra indeciso quanto à exata esfera da razão. No entanto, em suas conversas com Wang, Gödel novamente atribui a percepção de conceitos à razão e a percepção de objetos aos sentidos:

7.3.12 Conjuntos são objetos, mas conceitos não são objetos. Nós percebemos objetos e compreendemos conceitos. Compreensão é um tipo diferente de percepção: ela é um passo na direção da redução à última causa. (Wang 1996: 235)17

A compreensão, nessa passagem, é concebida como um tipo diferente de percepção e, sendo a compreensão algo que tipicamente pertence à razão, o que temos é uma distinção entre conceitos e objetos que, de um ponto de vista epistemológico, expressa-se em termos de uma distinção entre entes percebidos pelos sentidos e entes percebidos pela razão formulada não em termos de concreto/abstrato mas sim em termos de objeto/conceito, i. e., particular/geral ou particular/universal.
O contraste feito por Gödel entre percepção de conjuntos e compreensão de conceitos merece um esclarecimento à parte. Poderíamos pensar, a princípio, que o contraste se dá entre dois tipos de relação com entes abstratos. Um tipo seria a percepção, exemplificada pela percepção de conjuntos; outro tipo seria a compreensão de conceitos. Não obstante, é preciso salientar que, em suas discussões com Wang, Gödel afirma que conjuntos não são entes abstratos, mas são o que ele chama de objetos quase espaciais ou de caso limite de objeto espaçotemporal:

8.2.4 (...) Conjuntos são o caso limite de objetos espaçotemporais - seja como um análogo de construir um corpo físico completo, como determinado inteiramente por suas partes (assim que as interconexões das partes não desempenham papel algum), seja como um análogo de sintetizar vários aspectos para obter um objeto, com a diferença que as interconexões dos aspectos são negligenciadas. Conjuntos são quase espaciais. (Wang 1996: 254)18

A concepção gödeliana de conjuntos seria, então, ao menos em parte, similar a de Maddy, segundo a qual um conjunto de três objetos físicos é ele próprio um objeto espaçotemporal e, portanto, é perceptível pelos sentidos (Maddy 1992, cap. 2). O que Gödel acrescentaria é que não podemos nos limitar à consideração de conjuntos acessíveis pela intuição concreta, é preciso transcender a intuição sensível por meio de um processo que, no livro de Wang, é chamado de idealização:

8.2.9 Tudo o que sabemos sobre conjuntos de inteiros é o que sabemos sobre conjuntos fisicamente existentes; nós conhecemos apenas pequenos segmentos. Se deixarmos de lado a idealização, então a matemática desaparece. (Wang, 1996, 256)19

Parece, então, que quando Gödel fala em percepção de conjuntos ele esta se referindo à percepção de conjuntos entendidos como objetos (quase) concretos e, assim, estaria falando de percepção que ainda seria sensível, em contraposição à percepção intelectual (compreensão).
Se, de fato, Gödel tem em mente essa concepção de conjuntos como objetos quase espaciais que podem, de algum modo, ser conhecidos pelos sentidos, então a passagem acima (7.3.12) contrasta dois modos de acesso a entidades que corresponderiam a duas categorias ontológicas distintas e excludentes. Por um lado, existem objetos aos quais temos acesso por meio da percepção sensível. Por outro lado, existem conceitos aos quais temos acesso através da percepção ou da intuição intelectual. A uma distinção ontológica corresponderia uma distinção epistemológica. Também, a noção de percepção de conceitos é entendida ali em termos que nos remetem diretamente aos usos do conceito de percepção referentes a entes abstratos, onde percepção é entendida como compreensão.
Uma razão para considerarmos a noção de percepção como restrita à percepção sensível é que expressões como "perceber a verdade dos axiomas" e "perceber o conceito de tal-e-tal", que à primeira vista representariam casos de percepção não sensível, podem ser facilmente parafraseadas pelo uso do conceito de compreensão. Tais usos do verbo "perceber" seriam, assim, metafóricos. Que alguém tenha percebido a verdade de um enunciado pode ser facilmente entendido como significando que essa pessoa compreendeu que o enunciado é verdadeiro. Também, perceber claramente um conceito nada mais é do que compreendê-lo claramente. "Perceber um conceito/uma verdade" seria somente uma metáfora para "compreender um conceito/que algo é verdade". Além disso, estaria implícito aqui que os conceitos de compreensão e de percepção sensível seriam suficientemente distintos a ponto de nos recusarmos a subsumir o conceito de compreensão sob o conceito de percepção.
O que Gödel faz, como argumentamos ao fim da seção anterior, é interpretar a noção de percepção em termos de uma relação entre nós e entidades capaz de nos fornecer acesso e conhecimento acerca delas. Assim, a fala sobre perceber verdades e conceitos é entendida literalmente e a percepção de conceitos é entendida como sendo compreensão de conceitos. Objetos concretos, nós percebemos pelos sentidos, nós os enxergamos, ouvimos, cheiramos, etc., conceitos nós percebemos pela razão, i. e., nós os compreendemos. Como a percepção de conceitos é entendida literalmente, a compreensão passa a ser vista como um caso de percepção, assim como a percepção sensível. Ao fim, portanto, a tese gödeliana de que possuímos percepção de conceitos remonta a assumir que possuímos compreensão de conceitos, onde conceitos são concebidos, platonicamente, como propriedades.20

4. Percepção de conceitos, compreensão e a distinção entre conceito e objeto

Nossa descrição deixou de lado, até agora, aquela que é justamente a parte que o próprio Gödel parecia considerar mais controversa. Referimo-nos, aqui, àquelas afirmações concernentes a uma possível conexão causal envolvida na percepção de conceitos e à necessidade de um órgão físico que lide com as impressões abstratas de modo similar a como os órgãos dos sentidos lidam com as impressões sensíveis.21 Sem dúvida, a consideração dessas afirmações coloca em questão a interpretação apresentada na seção anterior. Em especial, tais afirmações parecem implicar que a analogia entre intuição intelectual e percepção é mais substancial do que supomos e também implicaria que a afirmação sobre a razão ser um sentido adicional deve ser entendida em uma acepção um tanto mais forte do que a atribuída por nós.
Esses aspectos mais controversos do pensamento de Gödel podem ser pensados como resultando de uma concepção errônea ou confusa do que sejam conceitos. Como vimos na seção anterior, a distinção entre objeto e conceito -formulada em termos da distinção particular/universal- desempenha um papel fundamental na concepção gödeliana, estando intimamente vinculada à distinção entre percepção sensível e percepção racional. Em suas conversas com Wang, Gödel caracteriza conceitos mereologicamente, como sendo entidades intensionais (Wang 1996: 274, afirmação 8.6.1), abstratas, gerais -em contraposição a entidades particulares- e que existem onde quer que existam relações de semelhança (Wang 1996: 295, afirmação 9.1.24). Conceitos e objetos se distinguiriam, então, pelo fato de conceitos serem abstratos, intensionais e gerais. Além disso, conceitos são entendidos como sendo compostos de conceitos primitivos:

9.1.26 Conceitos -Um conceito é um todo -um todo conceitual- composto a partir de conceitos primitivos, tais como negação, existência, conjunção, universalidade, objeto, (o conceito de) conceito, todo, significado, e assim por diante. (...) Um conceito é um todo em um sentido mais forte do que conjuntos; ele é mais orgânico, como um corpo humano é um todo orgânico de suas partes. (Wang 1996: 295)

Ao conceber conceitos mereologicamente, Gödel parece defender o que Coffa chama de "concepção química de conceito", segundo a qual conceitos são compostos por conceitos mais simples e, em último caso, por conceitos primitivos, da mesma forma que uma substância química, como, por exemplo, a água, é composta por átomos.22
O problema com esse tipo de concepção é que não fica nada claro qual poderia ser a diferença entre objetos e conceitos. É verdade que Gödel também contrasta aspectos particulares com aspectos gerais da realidade, o que corresponderia a um contraste entre objetos e conceitos. Porém, se entendemos a generalidade dos conceitos em termos da possibilidade de muitos objetos poderem cair sob um mesmo conceito, é difícil explicar em que sentido um conceito unívoco, ou necessariamente não instanciado, poderia ser geral, e também por que conjuntos não são também gerais ou universais.
Um conceito, assim como um objeto, seria uma unidade que, ou é indivisível, ou é composta por outros conceitos. A comparação entre um todo que é um conceito e o corpo humano sugere que os conceitos não primitivos são somas mereológicas intensionais, assim como um corpo humano. Afinal, não é qualquer soma de cabeça, tronco e membros que contaria como um corpo humano. Contudo, a própria comparação com um corpo humano pareceria excluir a possibilidade de distinguirmos conceitos de objetos em termos do caráter mereológico intensional dos conceitos. Além disso, conceitos primitivos, bem como objetos primitivos (mônadas, segundo Gödel), são unidades que não são todos (Wang 1996: 295-296). Portanto, mesmo que pudéssemos distinguir conceitos não primitivos de objetos não primitivos como sendo somas mereológicas intensionais, isso de nada serviria para distinguir conceitos primitivos de objetos primitivos.
Tudo o que restaria para distinguir conceitos de objetos é que conceitos seriam intensionais e abstratos, enquanto objetos seriam entidades concretas, espaçotemporais. O problema com essa forma de distinguir entre conceito e objeto é que não é nada claro por que objetos seriam sempre entidades concretas e, levando-se em conta a tese gödeliana da idealidade do tempo, podemos lançar dúvidas sobre se a distinção entre concreto (espaçotemporal) e abstrato é, de fato, uma distinção ontológica ou se ela diz respeito somente ao modo como a realidade se apresenta para nós. Restaria, ainda, a possibilidade de realizarmos a distinção com base na diferença entre entes intensionais (conceitos) e entes extensionais (objetos). Não está claro, porém, se não poderiam existir objetos intensionais, como, por exemplo, objetos que são somas mereológicas intensionais ou se, dentre os objetos primitivos, não existam objetos intensionais.
Se a distinção entre percepção sensível e percepção/intuição intelectual, como defendemos na seção anterior, é derivada a partir da distinção ontológica entre objeto e conceito, é de se esperar que a obscuridade presente no modo como Gödel concebe a distinção ontológica tenha reflexos na distinção epistemológica. Dessa forma, para ele, a essência de um conceito é determinada por sua composição (Wang 1996: 296, observação 9.1.28). Assim, nada resta para compreendermos sobre um conceito a não ser sua composição, que determinaria, entre outras coisas, as relações que o conceito mantém com outros conceitos. Não é à toa que Gödel acabe retornando à ideia da intuição intelectual como um "olhar com o olho da mente", postulando um órgão responsável pela intuição de conceitos. Conceitos primitivos são unidades atômicas; a compreensão de um conceito primitivo não pode consistir na compreensão de sua composição, mas teria de ser algo imediato. Portanto, toda e qualquer compreensão de conceitos, acaba envolvendo a compreensão desses conceitos primitivos e suas relações, e tal compreensão somente pode ser um "ver de imediato" (to see at one glance).23
O problema não está simplesmente na ideia de que podemos ter algum tipo de compreensão imediata de conceitos. A partir do momento em que concebemos a essência de um conceito como determinada por sua composição, fundamos toda compreensão de conceitos na compreensão dos conceitos primitivos, que são os componentes últimos. Consequentemente, toda compreensão de conceitos envolveria uma "visão imediata" dos conceitos primitivos que, justamente por ser imediata, não poderia mais ser explicada como resultando de uma atividade da razão, mas sim teria de ser entendida em termos de uma entidade que, de alguma forma, age sobre a razão do mesmo modo que os objetos concretos agiriam sobre órgãos da percepção sensível. Em outras palavras, a compreensão de conceitos primitivos não poderia mais ser alcançada por reflexão sobre as instâncias do conceito ou sobre como identificamos suas instâncias ou, ainda, por abstração. A dificuldade, aqui, não seria apenas se possuímos ou podemos possuir uma compreensão imediata de algo, mas sim que sentido poderia ter falar de uma compreensão que somente pode ser imediata.
A origem de tais problemas na concepção de Gödel é um tanto similar com o que teria levado Kant a suas problemáticas teorias sobre o sintético a priori e a intuição pura.24 Kant definia a noção de analiticidade em termos do conceito do predicado estar contido no conceito do sujeito. Consequentemente, todo conhecimento analítico é conhecimento em virtude da decomposição de conceitos em notas constituintes. O enunciado "todo homem é racional" é analiticamente verdadeiro, pois o conceito de homem é composto pelas notas animal e racional. No entanto, o que fazer com um enunciado verdadeiro a priori que não é verdadeiro por decomposição dos conceitos em notas constituintes, como seria o caso de "7 + 5 = 12"? A resposta kantiana consiste em classificar tais enunciados como sintéticos a priori e então apelar para a intuição pura.
Gödel, ciente de todos os problemas envolvendo as noções kantianas de sintético a priori e de intuição pura, bem como ciente dos avanços na lógica e na matemática posteriores a Kant, apelou para uma noção de analiticidade como verdadeiro em virtude dos conceitos, e, em especial, para uma noção de intuição racional de conceitos. Dessa forma, ao final de sua exposição filosófica dos desenvolvimentos em fundamentos da matemática, Gödel afirma:

As afirmações relevantes de Kant são, é verdade, incorretas se tomadas literalmente, dado que Kant assere que, na derivação de teoremas geométricos, nós sempre precisamos de novas intuições geométricas e que, portanto, uma derivação puramente lógica a partir de um número finito de axiomas é impossível. Isso é demonstravelmente falso. Entretanto, se nessa proposição substituímos o termo "geométrico" por "matemático" ou "conjuntista", então ela se torna uma proposição demonstravelmente verdadeira. (Gödel *1961/?: 10)

A intuição intelectual gödeliana assume o mesmo papel que a intuição pura kantiana, o de fundamentar aqueles enunciados a priori cuja justificação não pode mais ser entendida em termos puramente formais, isto é, através de lógica e definições.25
O problema, contudo, é que Gödel compartilhava com Kant a concepção química de conceitos. Assim, diante de conceitos que não mais possam ser analisados (i. e., decompostos) torna-se obscuro em que consistiria a percepção de conceitos. Se tudo o que há para compreender sobre um conceito é quais conceitos mais simples o compõe, em que poderia consistir a compreensão de um conceito simple? Aqui, onde Kant recorreu à intuição pura, Gödel acabou tendo de recorrer a idéia de um "ver imediato" que se daria através de um órgão especial. Os aspectos problemáticos da concepção de Gödel, porém, não são oriundos da ideia de que obtemos acesso e conhecimento de conceitos por meio da percepção de conceitos, mas sim se originam em uma concepção de propriedade -conceitos entendidos platonicamente- que falha em capturar a distinção entre objeto e propriedade.

5. Conclusão

Embora Gödel não possuísse uma teoria desenvolvida acerca da intuição intelectual, a partir das observações que ele faz sobre o tema podemos traçar uma rica rede de conexões conceituais envolvendo as noções de percepção, razão, compreensão e conceito. Percepção sensível e percepção racional são comparadas por Gödel tendo em vista aquelas características que tornam a percepção sensível uma relação com entes que nos permite adquirir conhecimento acerca deles. Sob este prisma, o conceito de percepção é entendido como o conceito de uma relação de acesso, que pode ser 'dividido' em percepção sensível e percepção intelectual, como duas espécies de um mesmo gênero. Enquanto que seu status de relação de acesso aproxima as duas formas de percepção, a distinção entre elas está intimamente relacionada a outras duas distinções, a saber, aquela entre os sentidos e a razão e, especialmente, a distinção entre objeto e conceito. Desta forma, objetos (particulares) são percebidos pelos sentidos, enquanto que conceitos (universais) são percebidos pela razão, onde perceber um conceito nada mais é do que compreendê-lo.
O que obscurece, em Gödel, o caráter da percepção de conceitos como compreensão não é uma dificuldade inerente à tese de que a compreensão nos fornece acesso a entes, mas sim são problemas referentes a uma falta de clareza quanto à natureza dos conceitos ou propriedades e àquilo que os tornariam ontologicamente distintos de objetos. A percepção racional de re se caracterizaria por ser percepção do geral, i. e., de conceitos ou universais, em contraste com a percepção sensível, que é sempre percepção de particulares. Ao adotar uma concepção mereológica de conceito Gödel falha em distinguir entre geral (conceito) e particular (objeto) e então parece retornar de uma concepção da percepção de conceitos como uma forma de acesso imediato a entes. Intuir um conceito seria um "ver de imediato", o que se aproxima perigosamente da idéia de um "olhar com o olho da mente" e se encontra sujeito a todo tipo de objeção.26
A resposta gödeliana para problema levantado por Benacerraf sobre como podemos conhecer entes abstratos consiste em dizer que nós os conhecemos através da razão, nós os compreendemos. Gödel, contudo, não chegou a desenvolver sua resposta oferecendo um tratamento sistemático e aprofundado do tema. Como é bem sabido, as concepções gödelianas acerca de intuição de conceitos costumam ser desenvolvidas seguindo linhas husserlianas. Como uma matéria de fato, Gödel possuía grande admiração pela filosofia de Husserl e, a partir do final dos anos 50, parece ter ele mesmo sugerido tal desenvolvimento. As conexões conceituais entre percepção de conceitos, razão, compreensão e a noção de conceito, porém, sugerem um caminho alternativo de desenvolvimento das idéias de Gödel. Este caminho consistiria em, tendo em vista as dificuldades apontadas na terceira seção deste artigo, desenvolver uma epistemologia platonista usando como guia as perguntas "o que são conceitos?" e "o que significa compreender um conceito?".27

NOTAS

1. Veja, por exemplo, Tieszen 1998 e 2002, van Atten e Kennedy 2003, Hauser 2006 e Liu 2010. Porém, como defendem Da Silva 2005 e Cassou-Noguès 2009, assim como existem pontos de contato entre ambos os autores, também existem importantes divergências. Ressalta-se, também, que Gödel somente começou a estudar mais profundamente a obra de Husserl a partir de 1959, época em que várias de suas teses acerca da percepção de conceitos já haviam sido formuladas, especialmente na Gibbs Lecture (*1951) e nas diversas versões de "Is Mathematics Syntax of Language?" (1953/9 e *1953/9).
2. Uma destas aparentes inconsistências diz respeito ao próprio platonismo de Gödel. Sobre isto, veja Davis 2005, sec. 2 e Tait 2005, cap. 12, sec. 3.
3. Esta seção apresenta, de forma resumida, teses defendidas em Schultz 2012.
4. As obras de Gödel contidas nos Collected Works são citadas usando a numeração original.
5. Veja Gödel 1964: 272, citada acima.
6. Veja também Parsons 1995: 65-66 e 2008: 147-148.
7. Veja Gödel *1959, versão V: 359.
8. Veja Gödel *1951: 30.
9. Sobre a distinção entre intuição de re e de dicto, Gödel afirma: "Não distinguimos entre intuição de re e de dicto, uma está contida na outra." (Wang 1996: 305, observação 9.2.46).
10. O exemplo, assim como este aspecto da analogia, encontra-se em Gödel *1951: 34: "nosso conheci mento do mundo dos conceitos pode ser tão limitado e incompleto quanto aquele do mundo das coisas. É certamente inegável que este conhecimento é, em certos casos, não apenas incompleto como também indistinto. Isto ocorre nos paradoxos da teoria de conjuntos, que frequentemente são considerados como uma refutação do platonismo, ainda que, creio eu, de modo injustificado. Nossas percepções visuais algumas vezes contradizem nossas percepções tácteis, por exemplo, no caso de um bastão imerso em água. Contudo, ninguém em sã consciência concluiria disto que o mundo externo não existe." Veja também as observações 7.4.3 e 7.4.5 em Wang 1996.
11. Veja Gödel *1953/9-III, §41, n 43. Este aspecto também se faz presente na idéia, exposta em Wang 1974: 324, de que a mente humana é incapaz de formular todas as suas intuições matemáticas.
12. Esta linha de argumentação foi sugerida pelo parecerista da RLF.
13. Sobre tais características relacionadas ao conceito de percepção sensível e seu status como uma relação de acesso, veja Azzouni 1997.
14. Veja a passagem citada no início desta seção, onde Gödel afirma: "não vejo nenhuma razão para termos menos confiança neste tipo de percepção, i. e., intuição matemática, do que na percepção sensível" (1964: 272).
15. Parsons 1995: 62-64, também caracteriza a analogia fornecida por Gödel como sendo formal. Contudo, enquanto que Parsons parece o criticar por fornecer apenas uma analogia formal, defendemos que aquilo que é de fato relevante e substancial para a concepção defendida por Gödel é que a analogia seja formal.
16. Veja Gödel *1953/9-III, §42 e *1953/9-II, §39: 185. A relação entre intuição intelectual e razão é afirmada também na versão IV (MS: 17), como citada em Parsons 1995: 63: "pois enquanto que com os últimos [os sentidos] percebemos coisas particulares, com a razão percebemos conceitos (acima de tudo, os conceitos primitivos) e suas relações". Em *1951, logo após expressar sua confiança de que o platonismo é a única perspectiva viável, Gödel caracteriza o platonismo afirmando: "com isto [a perspectiva platonista] me refiro à concepção de que a matemática descreve uma realidade não sensível, que existe independentemente tanto dos atos quanto das disposições da mente humana e que somente é percebida, e, provavelmente, percebida de maneira muito incompleta, pela mente humana". (Gödel *1951: 38)
17. A relação entre percepção de conceitos -ver um conceito- e compreensão também encontra-se na seguinte passagem: "7.3.4 Tentar ver (i.e., compreender) um conceito mais claramente é o modo correto de descrever o fenômeno vagamente descrito como 'examinar o que queremos dizer com uma palavra'" (Wang 1996: 233, ênfase nossa). Esta última afirmação é relatada também em Wang 1974: 85.
18. Pouco após essa passagem, Gödel afirma, em 8.2.4, que números parecem ser menos concretos do que conjuntos (254), deixando implícito que conjuntos contam ainda como objetos concretos. A tese de que conjuntos são entidades quase empíricas (ou quase espaciais) reaparece em duas outras observações de Gödel. Em 9.1.27, Gödel diz: "um conjunto é uma unidade (ou todo) cujos constituintes são os elementos. Objetos estão no espaço ou próximos do espaço. Conjuntos são o caso limite de objetos espaçotemporais e também de todos" (Wang 1996: 296). Também, em 7.1.3, lê-se: "a lógica não elementar envolve o conceito de conjunto, que também necessita de intuição concreta". (Wang 1996: 217, ênfases minhas)
19. Sobre o conceito de idealização, veja o capítulo 7 de Wang 1996, em especial a seção 7.1.
20. É interessante notar que Martin 2005: 213, critica Gödel justamente por este falar em percepção de conceitos e não de compreensão de conceitos: "Não vejo por que nosso acesso tenha que ser descrito como perceber um conceito, como Gödel o descreve. Nós compreendemos o conceito e podemos explicá-lo, como Gödel faz nos artigos sobre a hipótese do Contínuo. Naqueles artigos, o próprio Gödel fala de explicar o conceito de conjunto e de compreendê-lo." Segundo nossa interpretação, Gödel concordaria inteiramente com Martin, exceto que acrescentaria: compreender um conceito significa percebê-lo. Este tipo de crítica é formulada também em Hauser 2006: 543.
21. Essas são as afirmações 7.3.5 e 7.3.13-7.3.15, em Wang 1996: 233 e 235. A afirmação referente à existência de um órgão específico responsável pelas impressões abstratas é relatada também em Wang 1974: 85. Não é muito claro, porém, como entender a conjectura gödeliana de um órgão de percepção de conceitos. Sobre isto, veja Chateaubriand 2007: 534ss.
22. Veja Coffa 1991: 9-11. Esta concepção é atribuída por Coffa à Kant, e talvez não seja errado atribuí-la a Leibniz também.
23. 9.2.28 "Intuição é diferente de construção; é ver de imediato" (Wang 1996: 302).
24. Seguimos aqui a interpretação de Coffa 1991, cap. 1.
25. Parece ser nesse contexto, também, que surge o interesse de Gödel pela fenomenologia husserliana, como sugerido em Gödel *1961/?: 8.
26. Para algumas destas objeções, veja Benacerraf 1973, sec. 5 e Chihara 1982.
27. Gostaria de agradecer aos professores Frank Thomas Sautter (UFSM), Abel Lassalle Casanave (UFBA), e, especialmente, Oswaldo Chateaubriand (PUC-Rio), por comentários, críticas e sugestões a versões preliminares do presente trabalho. Agradeço também ao parecerista anônimo da RLF por várias observações e críticas que me permitiram melhorar a versão final do presente trabalho. Este artigo foi escrito como parte do projeto de pós-doutorado financiado pela FAPERJ intitulado Intuição Intelectual e Conhecimento Simbólico.

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Recibido: 06-2013;
aceptado: 04-2014

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