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Revista latinoamericana de filosofía

versión On-line ISSN 1852-7353

Rev. latinoam. filos. vol.43 no.1 Ciudad Autónoma de Buenos Aires mayo 2017

 

ARTÍCULOS ORIGINALES

Considerações críticas acerca do libertarianismo de Nozick à luz da filosofia moral kantiana

Critical Assessments on Nozick’s Libertarianism from the Point of View of Kantian Moral Philosophy

 

Joel Thiago Klein
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico


RESUMEN: Este artigo apresenta uma avaliação crítica da teoria libertariana de Nozick a partir da perspectiva da filosofia moral kantiana. As críticas são divididas em três seções. A primeira questiona a justificação libertariana da aquisição e do direito à propriedade. A segunda avalia as dificuldades e implicações do princípio de transferência. A terceira analisa a questão de como o princípio de retificação funciona no contexto da teoria libertariana de Nozick. Como conclusão mostra-se que, apesar de Nozick reivindicar uma filiação à filosofia moral kantiana, existe um abismo entre ambas as perspectivas teóricas, de modo que para a filosofia kantiana o libertarianismo não passaria de uma teoria do egoísmo moral.

PALABRAS CLAVE: Liberdade; Propriedade; Moralidade; Egoísmo; Kant; Nozick.

ABSTRACT: This article presents a critical assessment of Nozick’s libertarian theory from the perspective of Kantian moral philosophy. The criticisms are divided into three sections. The first challenges the libertarian justification for the original acquisition of holdings and the right to property. The second evaluates the presuppositions and difficulties with the principle of transfer of holdings. The third section examines how the principle of rectification works in the context of Nozick’s libertarian theory. At the end it is concluded that despite Nozick’s claim of an affiliation with Kantian moral philosophy, there is a deep gap between both moral perspectives, so that libertarianism would be for Kantian philosophy only a theory of moral selfishness.

KEYWORDS: Freedom; Property; Morality; Selfishness; Kant; Nozick.


 

A teoria libertariana sustenta duas teses fundamentais: a primeira, que o mercado se autorregula de acordo com uma sábia e eficiente “mão invisível” e que toda a interferência externa ao mercado apenas dificulta e atrapalha a produção e distribuição de riquezas e capital; a segunda, que a atuação do Estado na redistribuição de renda ou no oferecimento de serviços sociais é imoral, pois isso é feito à custa de impostos cobrados injustamente daqueles que possuem capital e riquezas, por conseguinte, por meio de um ataque direto aos direitos dos indivíduos à propriedade.
A discussão em torno da primeira tese é um tópico central de economia e, por isso mesmo, só através de uma análise econômica, feita com base em dados colhidos por longo tempo e comparados em diferentes contextos, pode-se confirmar ou refutar a tese de que de fato o mercado atua de acordo com uma mão invisível e que qualquer regulação estatal da economia apenas atrapalha a produção e distribuição de riqueza. Nesse contexto, houve recentemente a publicação do livro O capital no século XXI de Piketty (2014), o qual procura mostrar através de uma extensa comparação de dados que o maior crescimento econômico aliado a uma melhor distribuição de riquezas ocorreu apenas quando houve intervenção estatal na economia. Além disso, Piketty também mostra que quando os mercados foram deixados desregulados eles acentuaram a concentração de renda o que, por sua vez, conduziu a crises econômicas e à estagnação da própria economia. Se a tese de Piketty estiver correta, então a premissa econômica central do neoliberalismo e do libertarianismo de que a mão invisível do mercado é o modo mais eficiente tanto de produção quanto de distribuição de riquezas e capital é equivocada. Mas essa é uma discussão de foro econômico a qual deve ser realizada por economistas segundo uma metodologia econômica, não necessariamente economicista.
Todavia, a segunda tese sobre a qual se apoia o libertarianismo é uma tese moral que se pretende autossuficiente, isto é, que se sustenta independentemente de qualquer análise econômica. Ela é um tópico da filosofia moral e deve ser justificada argumentativamente enquanto tal. Para avaliar essa tese moral, a análise deste artigo se concentra na proposta defendida por Robert Nozick em seu livro Anarquia, Estado e Utopia.
Como definido por Nozick, o libertarianismo é uma teoria do Estado mínimo, ou seja, defende que apenas o Estado que

se restrinja às estritas funções de proteção contra a violência, o roubo, a fraude, a coerção de contratos, e assim por diante, é justificado; que qualquer Estado mais abrangente violará os direitos de as pessoas não serem obrigadas a fazer determinadas coisas, o que não se justifica e que o Estado mínimo é ao mesmo tempo inspirador e justo. Duas implicações dignas de nota são que o Estado não pode usar seu aparelho para obrigar alguns cidadãos a ajudar os outros ou para proibir a prática de atividades que as pessoas desejarem realizar para seu próprio bem ou proteção. (Nozick 2011: ix)

Nessa passagem nota-se claramente que a tese moral central do libertarianismo se sustenta na existência de um direito moral absoluto do indivíduo com relação à propriedade e que o único modelo legítimo de Estado é o de um “Estado guarda-noturno” (cf. Nozick 2011: 30s; 208 n.). Nesse sentido, para a teoria libertariana, “a tributação da renda gerada pelo trabalho equivale ao trabalho forçado” (Nozick 2011: 217), ou seja, quando um Estado utiliza princípios de justiça distributiva para diminuir a desigualdade econômica ou oferecer educação e saúde para seus cidadãos a partir da cobrança de impostos, ele se torna proprietário parcial das pessoas que estão pagando os impostos, o que significa finalmente que o Estado estaria “escravizando” os contribuintes e não respeitando o princípio de que o indivíduo é proprietário de si mesmo.1
Nozick busca ao longo do seu livro combater as teorias da justiça que, segundo ele, estariam baseadas em conceitos de situação final, como o utilitarismo e o liberalismo igualitário de Rawls. Em oposição a essas teorias ele defende uma concepção de justiça baseada em restrições indiretas à ação, as quais, segundo ele, “refletem o princípio kantiano implícito de que os indivíduos são fins e não simplesmente meios; não podem ser sacrificados ou usados para a realização de outros fins sem seu consentimento. Os indivíduos são invioláveis.” (Nozick 2011: 37). Nesse caso, a filosofia política “só se ocupa de determinadas maneiras pelas quais as pessoas não podem ser usadas por outras”, sendo que essa inviolabilidade se expressaria pela seguinte injunção “não use as pessoas de tal ou tal maneira” (Nozick 2011: 39).
Ora, dado que o próprio Nozick diz apoiar-se em princípios da filosofia kantiana, nada mais natural do que testar a sua teoria à luz de uma leitura cuidadosa e detalhada da filosofia da qual ele se diz herdeiro. Realizar essa avaliação é o objetivo central deste artigo, o que ocorre circundando-se dois conceitos centrais: a liberdade e a propriedade. Cabe reconhecer também a existência de uma oferta relativamente grande de comentários sobre a obra de Nozick, contudo neste artigo não se pretende entrar nesse debate por duas razões: primeira, em geral a análise realizada por essa literatura se centra no debate entre Nozick e Rawls, entre Nozick e os Anarquistas, ou ainda, entre Nozick e as posições marxistas ou utilitaristas, enquanto que este artigo, ainda que faça referência a alguns contextos e argumentos mais amplos, é construído tendo em vista a análise específica da filosofia libertariana de Nozick à luz da filosofia moral kantiana; segunda, uma análise minimamente adequada desse material bibliográfico exigiria um artigo específico.2
Posto isso, para realizar uma análise detalhada da teoria libertariana oferecida por Nozick segue-se nesse artigo a estrutura argumentativa proposta pelo próprio autor. Segundo ele,

Se o mundo fosse totalmente justo, a definição indutiva seguinte daria conta, exaustivamente, do tema da justiça na distribuição de posses (in holdings): 1. A pessoa que adquire um bem de acordo com o princípio de justiça na aquisição tem direito a esse bem. 2. A pessoa que adquire um bem, de acordo com o princípio de justiça na transferência, de outra pessoa que tem direito ao bem, tem direito a ele. 3. Ninguém tem direito a um bem exceto por meio das aplicações (repetidas) de 1 e 2. (Nozick 2011: 193)

Em outras palavras, em um mundo totalmente justo, a aplicação dos princípios da justiça da aquisição e da justiça na transferência seria suficiente para resolver todas as questões morais entre as pessoas acerca da propriedade. Como, contudo, não vivemos em um mundo totalmente justo, Nozick acrescenta o princípio da retificação da injustiça na distribuição de posses (Nozick 2011: 195). Seguindo esse raciocínio, analisa-se e avalia-se a justificação e as pressuposições relativas a cada um desses três princípios a partir da filosofia moral kantiana. Por conseguinte, esse artigo se divide em três seções, cada uma dedicada a um princípio, sendo elas compostas por quatro tópicos.

1. Os limites do princípio da justiça na aquisição original de bens

O primeiro princípio da teoria da titularidade de Nozick é o direito à aquisição original de bens ainda não adquiridos, isto é, dos bens que ainda não possuem dono. Esse princípio parte da pressuposição de que cada indivíduo é proprietário de si mesmo e possui toda a liberdade sobre seu corpo e o resultado do seu trabalho (cf. Nozick 2011: 220). A partir disso, e aqui Nozick segue a teoria tal como formulada por Locke da apropriação baseada no trabalho, uma vez que existam objetos sem dono o indivíduo pode aplicar seu trabalho sobre esses objetos transformando-os em sua propriedade: “Talvez porque somos os donos do nosso próprio trabalho e, portanto, ao impregnar a coisa não possuída com aquilo que possuímos, ela passa a nos pertencer” (cf. Nozick 2011: 225). Na medida em que alguém se apropria de algo mediante o seu trabalho, isso afeta a relação de todas as outras pessoas com esse objeto, pois elas não mais poderão usá-lo. Contudo, para Nozick,

a mudança na situação delas (com o fim da liberdade de agir sobre um objeto antes sem dono) não piora necessariamente a situação delas. Se eu me apropriar de um grão de areia de Coney Island, ninguém mais poderá fazer o que quiser com esse grão de areia. Mas continuará havendo uma grande quantidade de grãos de areia com os quais as pessoas podem fazer o que quiserem. (Nozick 2011: 226)

Além disso, é apresentada também uma série de considerações de ordem social favoráveis à propriedade privada, tais como, que ela aumenta o produto social colocando-o nas mãos daqueles que podem usá-lo de modo mais eficiente; que ela “defende o futuro das pessoas ao fazer que algumas delas retirem recursos do consumo cotidiano, preservando-os para os mercados vindouros” (Nozick 2011: 228), além de vários outros supostos benefícios. Contudo, no momento de oferecer uma justificativa fundamental para a aquisição original da propriedade, Nozick simplesmente permanece, por um lado, na senda aberta por Locke e, por outro, empurrando o ônus da prova para aqueles que defendem a propriedade coletiva (cf. Nozick 2011: 229).
Além disso, Nozick nega a ressalva lockeana, segundo a qual a aquisição originária apenas seria legítima se aquele que adquiriu algo como seu deixou o suficiente e de mesma qualidade para todos os demais. Nozick parece abrir uma exceção apenas quando ocorresse uma catástrofe extrema, como no caso de todos os poços de água de um deserto secarem exceto um, ou no caso de se expulsar um náufrago da única ilha que existe em determinado local. Mas para Nozick os outros indivíduos não têm um direito com relação à água do último poço ou um direito de permanecer na ilha, o que ocorre é que “para evitar uma catástrofe, os direitos são preteridos” (Nozick 2011: 233). Portanto, “o fato de alguém possuir a totalidade de algo que é necessário para a sobrevivência dos outros não faz que sua apropriação (ou a de qualquer outro) deixe algumas pessoas (de imediato ou posteriormente) em uma situação pior que a do ponto de partida” (Nozick 2011: 233). Em outras palavras, para Nozick, para que uma apropriação seja legítima basta que ela não piore a situação dos outros. Assumindo, portanto, que a ressalva lockeana não é um princípio legítimo que deva basear uma situação final, ele recusa qualquer interferência do Estado com vistas a corrigir uma apropriação que inicialmente poderia não ter sido justa.
A partir dessa caracterização passa-se agora a uma avaliação crítica desse modelo à luz da filosofia moral kantiana, o que é feito seguindo-se quatro tópicos.

1.1. Proprietário de si mesmo?

Para Nozick, a propriedade do indivíduo sobre si mesmo envolve a legitimidade do indivíduo fazer o que quiser consigo mesmo e participar de quaisquer contratos que desejar, desde que não agrida a titularidade da propriedade de outro indivíduo. Assim, sendo dono do meu corpo, da minha vida e da minha pessoa, devo ser livre para fazer o que quiser com eles, por conseguinte, “aplicada ao indivíduo, a questão equivalente diz respeito a saber se um sistema livre permitiria que ele se vendesse como escravo. Acredito que sim.” (Nozick 2011: 426). Nesse contexto, por exemplo, para um teórico libertariano, o direito de um Estado legítimo teria que considerar como legítimo e moral as duas situações seguintes:
- um indivíduo poderia vender o seu corpo ou os órgãos do seu corpo para outro indivíduo em troca de uma determinada soma em dinheiro, mesmo que isso o levasse a morte. Tal troca não seria apenas legal, mas moralmente justa. Assim, um pai pobre de uma região miserável poderia vender os seus dois rins e o seu coração para que os seus filhos pudessem ter condições financeiras para frequentar uma universidade;
- o Estado não poderia condenar moralmente o canibalismo consensual, tal como ocorreu em 2001 na cidade alemã de Rotenburg, onde Bernd-Jurgen Brandes respondeu a um anúncio na internet de Armin Meiwes que procurava alguém disposto a ser morto e comido, sem compensação financeira, apenas pela experiência em si (Cf. Sandel 2014a: 90ss).3
Para Kant, ao contrário, isso seria uma deturpação moral. O sujeito moral kantiano não pode dispor de si mesmo ao seu bel prazer. Enquanto pessoa física o indivíduo está subordinado à sua pessoa moral e, enquanto tal, deve estar submetido à lei moral que o obriga a não se tratar a si mesmo como um simples meio, ainda que para a sua própria satisfação de desejos e inclinações sensíveis. A divisão entre ser sensível e suprassensível, ou entre fenômeno e noumenon permite à teoria kantiana separar aquilo que os indivíduos de fato querem daquilo que eles têm o direito de querer e fazer. A partir disso, é possível falar de deveres para consigo mesmo, isto é, o indivíduo tem o dever, por exemplo, de não cometer o suicídio; não tem o direito de dispor do seu corpo caso isso implique uma deterioração moral;4 e não tem o direito de abrir mão da sua própria liberdade, se autoescravizando ou se colocando voluntariamente numa condição de perpétua menoridade (cf. Kant 2001: 16 / WA, AA 08: 39f).
Diferentemente de Nozick, Kant não assume em sua teoria ética, ou em sua teoria do direito um conceito voluntarista de liberdade, isto é, a liberdade não é determinada simplesmente pela capacidade de escolha do indivíduo. Ainda que Kant tenha definido o direito como tratando apenas da obrigação externa da ação, isto é, não se importando com a máxima da ação, mas dizendo respeito simples mente à forma como um arbítrio (enquanto faculdade de escolha) interfere em outros arbítrios, isso não significa que o direito esteja desvinculado da lei moral. Isso fica claramente indicado na primeira fórmula do direito: “Não faças de ti um mero meio para os outros, mas sê ao mesmo tempo fim para eles” (Kant 2014: 41 / MS, AA 06: 236), o que Kant chama de honestidade jurídica. Portanto, “um homem pode ser seu próprio senhor (sui juris), mas não proprietário de si mesmo (sui dominus, poder dispor de si a seu bel-prazer), e muito menos de outros homens, porque é responsável pela humanidade na sua própria pessoa” (Kant 2014: 79 / MS, AA 06: 270). Para Kant existem direitos e deveres que não estão disponíveis para qualquer relação contratual.

1.2. Trabalho gera propriedade? Uma variante da falácia naturalista

Nozick baseia a sua teoria do direito à aquisição original de bens sobre a teoria de que o trabalho pode converter algo sem dono em algo possuído. Para Kant, esse modelo de teoria é equivocado, pois o trabalho não gera em si e por si mesmo direito de propriedade.
A teoria da propriedade assentada no trabalho se constitui em uma variante da falácia naturalista, ou seja, o equívoco de se acreditar que se pode derivar o “dever ser” do “ser”, derivar os direitos daquilo que acontece. Isso ocorre pela seguinte razão: o trabalho é um ato, algo que acontece. Mas disso não resulta que algo que acontece gera um direito. Senão, do fato de que ocorrem furtos, poder-se-ia da mesma forma legitimar o direito ao roubo. Se alguém acrescentar seu trabalho sobre um objeto, isso somente terá algum valor para o agente se esse objeto já lhe pertencia, isto é, se o agente já era dono do objeto, senão, nada mais aconteceu do que dispêndio de trabalho. Se eu estacionar meu carro na rua e alguém chegar e lavá-lo sem que eu tenha solicitado, isso não dá o direito de cobrar o seu serviço, visto que ele fez algo que não lhe foi solicitado, que não foi contratado.5 Em suma, o direito não surge por si mesmo de atos e acontecimentos, mas apenas de uma permissão ou de um direito prévio. É nesse sentido que Kant escreve:

É necessário o trabalho da terra (construção, lavoura, drenagem, etc.) para a sua aquisição? Não! Pois, uma vez que estas formas (da especificação) são apenas acidentes, elas não constituem um objeto de uma posse imediata e só podem pertencer ao sujeito na medida em que a substância foi previamente reconhecida como o seu que lhe compete. (Kant 2014: 73 / MS, AA 06: 265)

Ora, a possibilidade de se justificar a propriedade de bens originariamente sem dono precisa se assentar sobre um princípio prático, um princípio do “reino do dever ser”, um princípio deontológico, ou ainda, sobre um direito. É sobre essa pressuposição prática que se pode assentar a primeira propriedade e não simplesmente sobre o ato do trabalho. Claro que Nozick poderia alegar que sua teoria não se assenta sobre o trabalho em si, mas sim sobre o pressuposto prático de que por meio do trabalho algo possa ser tomado como seu. Essa poderia ser uma solução, mas para isso ele precisaria ter justificado esse direito, o que ele não faz, ou seja, há uma lacuna argumentativa na tese libertariana da aquisição originária.

1.3. Propriedade como relação entre indivíduos e coisas?

Nozick define a propriedade como uma relação entre o proprietário e o objeto possuído. Para Kant, essa é uma visão completamente equivocada de representar o direito à propriedade, pois ela pressuporia um absurdo metafísico. Nas palavras de Kant:

aquele que pensa seu direito relacionado não imediatamente a pessoas, mas a coisas; a saber, que a coisa externa, mesmo que tenha sido perdida pelo primeiro possuidor, por corresponder a todo direito um dever, sempre ainda permanece devida a ele, i.é, recusa-se a qualquer outro pretenso possuidor porque já está comprometida com o primeiro, e que assim o meu direito, feito um gênio que acompanhasse a coisa e a preservasse de todo ataque alheio, remete o possuidor alheio sempre a mim. Portanto, é absurdo pensar uma obrigação de uma pessoa para com coisas e vice-versa (...). Não posso por meio de um arbítrio unilateral obrigar um outro a se abster do uso de uma coisa, para o que ele não teria, aliás, nenhuma obrigação; portanto, somente o posso por meio do arbítrio unificado de todos numa posse comum. Caso contrário, eu teria de pensar o direito sobre uma coisa como se a coisa tivesse uma obrigação para comigo e somente daí derivar o direito em relação a todo possuidor dela, o que é uma maneira de representar absurda. (Kant 2014: 68s / MS, AA 06: 260s)

Ainda que no uso comum da linguagem seja permitido falar de um direito sobre algo, o que acontece na realidade ao se falar de um direito é uma relação dos arbítrios num sistema unificado de arbítrios. Em outras palavras, quando digo que eu sou dono de um carro, o que acontece não é o surgimento de uma propriedade metafísica entre meu carro e eu, mas que se estabelece uma relação prática entre todos os arbítrios num sistema unificado de direito que garante o reconhecimento por parte de todos os outros arbítrios com relação à minha propriedade sobre o objeto em questão, pois do contrário estar-se-ia falando apenas da posse física do objeto. Assim, ainda que outra pessoa esteja dirigindo o meu carro, com ou sem o meu consentimento, tendo eu conhecimento de que o carro seja meu ou não, o carro ainda é meu, não porque existe uma relação metafísica entre o objeto com a minha vontade, mas por que existe um sistema jurídico, o qual reúne o arbítrio unificado de todos e que garante a mim a propriedade de tal veículo. A propriedade é sempre uma relação entre arbítrios acerca de coisas e não uma relação entre arbítrios e coisas. É por isso que se houvesse apenas um único homem sobre a face da terra, não se poderia falar de direito à propriedade.6 Portanto, segundo a perspectiva kantiana, Nozick possui uma concepção absurda e injustificada de propriedade.

1.4. O direito à propriedade: necessidade e universalidade como condições de legitimidade

Para Nozick, é possível reclamar o direito à propriedade sobre algo sem dono e isso pode ser realizado de modo absolutamente legítimo a partir de um ato unilateral de um indivíduo, o qual ele denomina de trabalho. Esse aspecto parece encontrar um correlato na doutrina kantiana do direito no constructo teórico da tomada de posse originária legitimada por uma lei permissiva da razão prática. Contudo, apesar dessa insinuada semelhança inicial, a teoria kantiana da propriedade não é apenas mais complexa e elaborada, mas também é filosoficamente mais coerente. Como não se trata aqui de realizar uma exegese minuciosa do texto kantiano e se enredar com isso num debate acerca de divergências interpretativas, faz-se aqui apenas uma breve reconstrução para mostrar as razões que impossibilitam colocar o modelo libertariano e o modelo kantiano no mesmo campo teórico.
Para Kant, a liberdade é o único direito inato que “pertence a cada homem por força da sua humanidade” (Kant 2014: 43 / MS, AA 06: 237). Todos os demais direitos, inclusive o direito à propriedade, são direitos adquiridos e se fundam sobre o direito inato à liberdade. Se, por um lado, o direito à liberdade é um direito que se legitima por si e em si mesmo na medida em que atribui a todo agente racional a posse de uma vontade e o status de pessoa moral, por outro lado, os direitos adquiridos precisam ser articulados de modo que possam ser legitimados praticamente enquanto tais, isto é, eles precisam mostrar que se sustentam como proposições práticas necessárias e universais, ou ainda, como proposições práticas a priori.
A propriedade é legitimada na teoria moral kantiana em três momentos argumentativos. O primeiro momento estabelece o título da aquisição, o segundo momento estabelece o modo de aquisição, e o terceiro momento estabelece a própria aquisição, isto é, a posse inteligível, ou ainda, a propriedade em sentido pleno do termo (cf. Kant 2014: 76 / MS, AA 06: 268). Assim como um silogismo que possui três termos, cada um dos momentos corresponde ao acréscimo de um aspecto: o primeiro funciona como a premissa maior, estabelecendo a condição geral; o segundo se refere à premissa menor e estabelece a condição de aplicação; enquanto que o terceiro momento se constitui na conclusão e faz um balanço com relação às duas premissas estabelecendo as condições pelas quais elas de fato podem se concretizar de modo definitivo, necessário e legítimo. Dito de outro modo, a premissa maior é o ponto de partida e se assenta no pressuposto fundamental do direito inato à liberdade, a segunda indica a condição da realização desse direito indicando as condições empíricas da tomada de posse e a conclusão envolve o universal e o particular estabelecendo o direito no sentido forte do termo, isto é, da forma como ele de fato deve se concretizar como lei. E é exatamente por que cada momento respeita as características intrínsecas da racionalidade prática segundo o raciocínio silogístico que o direito à propriedade estabelecido na conclusão é moralmente legítimo, isto é, satisfaz os critérios de um conhecimento prático a priori, visto que é dotado de necessidade e universalidade.
O primeiro momento argumentativo se funda sobre a ideia de uma “comunidade originária da terra” que estabelece uma “posse comum originária da terra”. Essa ideia possui realidade objetiva prática e se distingue do conceito de uma “comunidade primitiva”, a qual faz referência a um passado longínquo da espécie humana no qual grupos de indivíduos supostamente se reuniram e mediante um contrato teriam renunciado a posse privada da terra em benefício da posse comum. Enquanto a ideia de uma comunidade originária é uma ideia prática com validade objetiva, a comunidade primitiva não possui qualquer fundamento histórico e, por conseguinte, não passa de uma ficção sem validade teórica (cf. Kant 2014: 57 / MS, AA 06: 251). Nas palavras de Kant:

A posse de todos os homens sobre a Terra, precedente a todo ato jurídico destes (constituída pela própria natureza), é uma posse comum originária (communio possessionis originaria), cujo conceito não é empírico e dependente de condições temporais, como porventura o conceito fictício, mas jamais demonstrável, de uma posse comum primitiva (communio primaeva), mas, sim, um conceito da razão prática, contendo a priori o princípio de acordo com o qual tão somente os homens podem usar o seu lugar sobre a Terra segundo leis jurídicas. (Kant 2014: 70s / MS, AA 06: 262)

Essa tese de Kant busca evitar exatamente o problema da falácia naturalista, pois não seria possível explicar como algo que é sem dono, de repente se torna propriedade de alguém. Isso seria o mesmo que pressupor que, como por um passe de mágica, por meio de um determinado ato, um objeto recebesse uma propriedade metafísica que o vinculasse a determinado sujeito. A única forma de resolver esse problema é partir do pressuposto prático moral de que todos os objetos e toda a terra já pertencem a todos os homens. Nesse caso, o que acontece é que através de um determinado ato (que será discutido a seguir) ocorre uma especificação. Em outras palavras, a proposta kantiana permite pensar o direito individual a propriedade como o estabelecimento de um subconjunto dentro de um conjunto maior, mas não de criar individualmente por si mesmo o conjunto.
O segundo momento ocorre a partir da pressuposição a priori da razão prática que permite “tratar como meu e teu objetivamente possível todo objeto de meu arbítrio”, isto é, “uma máxima de acordo com a qual, caso se tornasse lei, um objeto do arbítrio teria de se tornar em si (objetivamente) sem dono (res nullius) é contrária ao direito” (Kant 2014: 52 / MS, AA 06: 246). O argumento de Kant pode ser traduzido da seguinte forma: o direito à propriedade é uma condição para que um indivíduo possa ser livre, pois ser considerado uma pessoa moral significa reconhecer imediatamente que tal indivíduo deve ser considerado como um agente que possui fins que ele pode legitimamente buscar, mas se para alcançar tais fins ele precisará utilizar de meios, então os meios deverão poder estar ao seu dispor. Afinal, como a realização dos fins depende de que ele possa estar na posse dos meios e como é uma proposição analítica que “querer os fins significa querer também os meios” (na medida em que eles são a única forma de se alcançar os fins), então legitimar o fim significa legitimar o meio. Em suma, para que o sujeito possa ser livre, ele precisa poder ter propriedade, pois a propriedade é condição para que ele possa se colocar como um agente, como pessoa moral. Inversamente, se houvesse objetos que não pudessem ser meios para um agente, então se estaria afirmando que existem objetos que não são objetos, mas que possuem em si o caráter de não poderem ser usados de forma alguma simplesmente como meios, ou ainda, isso significaria reconhecer que eles são agentes que possuem liberdade e, por conseguinte, podem se colocar finalmente numa relação de direitos e deveres. Em suma, a razão prática não aceita que possa haver uma proibição absoluta do uso dos objetos do arbítrio, pois isso implicaria negar o caráter da liberdade do agente ao mesmo tempo em que se atribuiria o caráter de personalidade moral a objetos, o que seria absurdo. Um agente, enquanto agente, é aquele que pode possuir objetos, enquanto ser um objeto significa poder ser possuído.
Nesse contexto, para que se possa pensar o surgimento do Estado como a ligação de sujeitos livres é preciso aceitar que os indivíduos sejam agentes capazes de possuir coisas, mas para isso é necessário conferir uma autorização inicial de que as coisas possam ser possuídas. Em outras palavras, para que os indivíduos possam ser considerados agentes livres e, por conseguinte, possam ser considerados aptos a participar de um contrato, é preciso aceitar que eles já possam ser possuidores de coisas. Assim, se por um lado é necessário que a posse de objetos seja realizada de acordo com um sistema de direitos organizados segundo uma vontade geral, por outro, não é possível esperar que a vontade geral se estabeleça a partir da fundação do Estado e com isso a propriedade seja legitimamente estabelecida. É nesse impasse que se encontra a razão prática, ou seja, em um impasse que não é causado pela própria razão, mas pela complexa condição do homem como um ser físico e inteligível, como um ser racional que também é um animal dotado de inclinações sensíveis. Nessa condição a razão prática se sente compelida a estabelecer uma lei permissiva, que não é equivocada em si mesma, nem pretende manter ou estabelecer uma condição injusta, mas que se constitui como ponto de partida no âmbito fenomênico (determinado espaço-temporalmente), que é moralmente imperfeito, para se pensar a constituição da propriedade privada. É dessa forma que a razão prática nos confere

uma autorização que não poderíamos derivar de meros conceitos do direito em geral; a saber, a autorização de impor a todos os outros uma obrigação, que eles não teriam sem isso, de se absterem do uso de certos objetos de nosso arbítrio, porque nos apossamos deles primeiro. (Kant 2014: 53 / MS, AA 06: 247)

Nesse sentido, Kant estabelece uma tradução entre esse postulado com a proposição “‘feliz aquele que tem a posse!’ porque ninguém é obrigado a justificar sua posse”, pois ela “é um princípio do direito natural que estabelece a primeira tomada de posse como um fundamento jurídico para a aquisição, no qual pode basear- se todo primeiro possuidor” (Kant 2014: 58 / MS, AA 06: 251). Nesse sentido, a tomada de posse (apprehensio) “concorda com a liberdade externa de qualquer um (portanto a priori) tão somente sob a condição da prioridade do tempo, i. é, tão somente como primeira tomada de posse (prior apprehensio), a qual é um ato do arbítrio” e se chama de ocupação (cf. Kant 2014: 71 / MS, AA 06: 263) Essa ocupação não necessita do trabalho, pois basta que o primeiro possuidor “dê um sinal” de que tenha tomado a posse: finque um marco e reze uma missa, por exemplo.
O terceiro momento da legitimação da propriedade privada ocorre apenas a partir da instituição de uma constituição civil. É apenas no Estado republicano que a propriedade se torna um direito peremptório. No estado de natureza permanece indeterminado tanto a respeito da quantidade quanto da qualidade do objeto que um indivíduo pode ocupar e possuir (cf. Kant 2014: 75 / MS, AA 06: 266). Na realidade, dadas as características insociáveis da natureza humana,7 se torna óbvio que tanto a quantidade, quanto a qualidade dos objetos que o indivíduo alega ter adquirido são excessivos e exagerados. Assim, se uma caravela atraca numa praia aparentemente deserta e seus tripulantes fincam um marco (ou seja, dão sinal da tomada de posse), cabe naturalmente perguntar: até que distância do marco as terras se tornaram sua propriedade? Dada a natureza humana, não é de se espantar que os navegadores imediatamente se outorguem o direito não apenas a alguns quilômetros, mas a todo um continente se tiverem a sorte de terem encontrado algum. Assim, no estado de natureza o conflito se torna inevitável e o próprio direito a propriedade algo incerto, instável e impreciso. É por isso que

[a] mesma vontade não pode, entretanto, legitimar uma aquisição externa a não ser na medida em que está contida numa vontade unificada a priori (i.é, pela unificação do arbítrio de todos aqueles que podem chegar a uma relação prática uns com os outros), que comanda de forma absoluta; pois a vontade unilateral (a que pertence também a vontade bilateral, mas ainda assim particular) não pode impor a todos uma obrigação que é em si mesma contingente, mas para tanto se requer uma vontade onilateral, unificada, não de forma contingente, mas a priori, portanto de forma necessária, e somente por isso vontade legisladora; pois somente segundo esse princípio da vontade é possível a concordância do arbítrio livre de cada um com a liberdade de qualquer um, portanto um direito em geral, e assim também um meu e teu externo. (Kant 2014: 71s / MS, AA 06: 263)

O contrato originário que funda um Estado tende a resolver o problema num determinado lugar, mas não resolve o assunto de modo definitivo, pois isso demanda um contrato que “se estende a todo o gênero humano” (cf. Kant 2014: 75 / MS, AA 06: 266). Em outras palavras, a própria estabilidade de uma constituição civil de um Estado também depende finalmente de que os outros Estados se submetam ao direito internacional e entrem numa Federação das Nações e reconheçam mutuamente o seu direito ao território e a sua independência jurídica.8
Nesse terceiro momento argumentativo que estabelece o direito peremptório a propriedade privada não envolve apenas a criação de um aparato jurídico estatal para enforçar o direito à propriedade que já existia no estado de natureza. Esse terceiro momento estabelece um avanço qualitativo com relação ao momento anterior, pois ele também tem a função de corrigir as distorções que surgiram no estado de natureza e também as distorções que porventura possam continuar ocorrendo depois do estabelecimento da constituição civil. Em outras palavras, o Estado não surge para Kant para proteger a propriedade privada que se estabelece no estado de natureza, mas ele surge para proteger e enforçar o direito inato à liberdade de todos os indivíduos que estejam em seu domínio, sejam eles cidadãos ativos ou passivos.9 A propriedade é um dos modos de manifestação e expressão da liberdade humana, mas não é o único. Assim, se por um lado, cabe ao Estado proteger a propriedade privada, enquanto um dos direitos dos sujeitos morais, por outro lado, também cabe a ele corrigir as distorções que com certeza ocorreram (dada a característica insociável da natureza humana) ao longo do processo, bem como evitar que surjam novas.
O Estado deve garantir por meio de leis e também pela atuação do governo que todos os indivíduos tenham o seu direito à liberdade assegurado. Para Kant, o direito à propriedade não é o direito mais fundamental do estado de direito, pois o direito fundamental é o de que todos os indivíduos tenham assegurado o seu direito inato à liberdade e que eles possam encontrar formas de atualizá-lo, ou ainda, o direito à propriedade privada não prevalece sobre o direito material de todos os indivíduos de terem acesso à justiça e de terem condições de exercerem o seu direito inato à liberdade. Por essa razão que o Estado republicano kantiano não é um Estado mínimo, ao contrário, toda vez que ele estabelece a cobrança de impostos para alimentar ou ajudar aos pobres, ele está exercendo uma correção segundo a ideia de uma vontade unificada a priori, isto é, de uma vontade onilateral.
Dessa forma, fica nítida a grande diferença qualitativa acerca do conceito de propriedade no segundo e no terceiro momento argumentativo, no estado de natureza e no estado civil: o primeiro conceito é provisório, o segundo é peremptório; o primeiro não é propriedade em sentido jurídico forte, enquanto que o segundo funda uma lei; o primeiro é condição necessária para a realização do agente como pessoa moral contratante, mas apenas o segundo se apresenta como condição suficiente para que todos os indivíduos sejam pessoas jurídicas; no primeiro vigora a liberdade selvagem, no segundo a liberdade civil, sendo ambas de espécie distintas e a segunda qualitativamente melhor do que a primeira; a ocupação originária é a consequência de uma vontade unilateral que gera apenas um direito formal que possui uma presunção jurídica que vale apenas comparativamente como uma posse jurídica, enquanto que o segundo funda um direito jurídico com validade objetiva. É nesse contexto que deve ser lida a seguinte passagem: “o modo de ter algo externo como o seu no estado de natureza é uma posse física que tem a seu favor a presunção jurídica de fazer dela uma posse jurídica pela reunião com a vontade de todos numa legislação pública, e na espera vale comparativamente como uma posse jurídica” (Kant 2014: 64 / MS, AA 06: 257). Apenas o terceiro momento estabelece um direito real no sentido próprio da palavra, pois está alicerçado na vontade unificada a priori, a qual é onilateral e funda a lei. Isso não significa que a primeira aquisição baseada na vontade unilateral seja falsa, ela é verdadeira e se constitui em um princípio do direito privado, o que ocorre é que tal direito é parcial, provisório e indeterminado. Para sair dessa condição e transformar a posse em uma aquisição peremptória, para transformar a alegação de propriedade em propriedade em sentido forte, é necessário que ela passe pelo critério da ideia de uma vontade geral, a partir da qual se funda a lei (lege).10
Após apresentar, ainda que brevemente, alguns aspectos centrais da teoria kantiana da propriedade, pode-se estabelecer em linhas gerais uma comparação com a teoria libertariana de Nozick. Cabe perguntar: por que os não-proprietários deveriam entrar no Estado segundo a teoria libertariana de Nozick? Ele diria que eles devem abrir mão da insegurança do estado de natureza para receber a segurança do estado civil cujos custos são arcados pelos proprietários. Outra forma de colocar isso poderia ser a seguinte: eles deveriam abdicar da sua liberdade de questionar os defeitos do direito de propriedade privada no estado de natureza e de lutar com todas as suas forças e meios na tentativa de melhorar a sua condição para que eles desfrutem da sua miséria na segurança do estado civil. Mas do que os proprietários abdicam ao entrar no Estado Civil? Eles abdicam do seu direito de impor a sua “justiça” individual e indiscriminadamente e a transferem para um órgão administrador central e com isso podem alegar que a imposição dos seus interesses está sob a sagrada égide do direito e, isso tudo, apenas pelo pequeno custo de ter de pagar pelo aparato judicial e policial que, por sua vez, ao se focar estritamente no aspecto formal do direito e não no seu acesso real, acaba por levar justiça somente aos proprietários, ainda que também se utilize a palavra justiça para impor a vingança dos que têm contra aqueles que nada têm, quando esses últimos cometem algum ato que viola os termos desse contrato: eis os termos do “justo contrato” libertariano que está na base de justificação do Estado mínimo, ainda que Nozick não reconheça isso publicamente.11
Para Kant, em contrapartida, todos os indivíduos abdicam da sua liberdade selvagem para adquirir a liberdade civil que é determinada pela vontade geral, a qual estabelece que todos os indivíduos devem ser tratados como pessoas morais portadoras de direitos e deveres. Nesse caso, não importa se o indivíduo é ou não proprietário, o seu direito deve ser assegurado não apenas formalmente, mas também materialmente, isto é, não apenas na letra da lei, mas também com respeito ao acesso à justiça e às garantias de que poderá exercitar seu direito inato à liberdade. Se para isso se necessitar que mais impostos sejam cobrados dos ricos para alimentar aos pobres, por exemplo, então isso não apenas pode, mas deve ser feito, e não por uma razão de governo, mas por uma questão de justiça. Essa é, de modo geral, a cláusula fundamental do pacto social que funda o direito e a sociedade civil. Sem um contrato nesses termos não há direito peremptório, não há lei e não há aplicação onilateral da justiça.

2. Os limites do princípio da justiça na transferência

Segundo a filosofia libertariana proposta por Nozick, uma vez que haja bens possuídos, tudo o que resultar desses bens será possuído unicamente por seu proprietário, ou seja,

qualquer pessoa que produza algo, tendo comprado ou contratado todos os recursos utilizados no processo (transferindo parte dos seus bens em troca desses fatores auxiliares), tem direito a isso. Não se trata de uma situação na qual um bem foi produzido e não sabemos quem deve ficar com ele. As coisas já aparecem no mundo ligadas a pessoas que têm titularidades sobre elas. (Nozick 2011: 205)

Em suma, pode-se apresentar o critério de distribuição segundo o slogan De cada um, conforme escolherem; para cada um conforme forem escolhidos” (Nozick 2011: 206). Nesse caso, não deve existir nenhuma administração central que distribua bens segundo um princípio baseado em uma noção de situação final, mas “o que cada um ganha vem de outros, em troca de algo ou como um presente. Em uma sociedade livre, diferentes pessoas controlam diferentes recursos, e das trocas voluntárias e das ações das pessoas surgem novos bens”. Dessa forma, “o resultado geral é fruto de um grande número de decisões pessoais que os diferentes indivíduos envolvidos têm o direito de fazer” (Nozick 2011: 192).
Assim, o princípio de transferência estabelece que qualquer transferência e produção de bens que pode ocorrer no contexto de uma sociedade civil, ou mesmo ainda no contexto do estado de natureza, é legítima desde que tenha respeitado as titularidades dos indivíduos envolvidos na transação. Respeitar a titularidade significa apenas e tão somente que os indivíduos que participam de alguma forma do processo de transferência devem agir por livre e espontânea vontade. Isso significa que em uma transferência legítima eles não podem ter sido obrigados por outros indivíduos a participar do processo e por isso entenda-se: ninguém os compeliu utilizando chantagem ou violência física a participar da transação. Portanto, não havendo violência física de outrem no processo, toda transação gera a produção e transferência de bens de forma completamente legítima.
Tal como na seção anterior, por razões de clareza de argumentação e exposição apresenta-se em tópicos as diferenças e as críticas que o modelo moral kantiano poderia apresentar em contraposição ao modelo libertariano.

2.1. Os limites de uma argumentação por analogia: caso Wilt Chamberlain

Uma das teses centrais do libertarianismo de Nozick é o de que a liberdade inevitavelmente perturba os padrões. Mesmo que todos os seres humanos partissem de uma condição de igualdade material, a diferença de sorte, capacidades ou dedicação fará inevitavelmente que, com o passar do tempo, alguns indivíduos se tornem materialmente mais bem-sucedidos que outros. Mas a tese de Nozick não é apenas a de que a liberdade perturba qualquer padrão que estabeleça uma igualdade material entre os indivíduos, sua tese central é a de que, se o surgimento de diferenças econômico-sociais ocorre de modo natural, mesmo que respeitando as titularidades dos indivíduos envolvidos, o que poderia atribuir legitimidade ao Estado para cobrar impostos ou mais impostos dos indivíduos economicamente mais bem-sucedidos para oferecer serviços aos pobres? Para Nozick tal atitude é arbitrária e imoral, pois fere as titularidades, isto é, os direitos dos indivíduos. Para fazer seu ponto, ele utiliza o caso de Wilt Chamberlain não apenas para exemplificar, mas também para legitimar esse processo, visto que esse caso serviria como uma analogia ao que ocorre na sociedade. E como há uma certa tendência a concordar com o caso, ter-se-ia que concordar com o que acontece em sociedade (cf. Nozick 2011: 206ss).
Aqui entra em cena uma das falhas argumentativas mais graves da obra de Nozick. Nos pontos mais centrais do seu texto, nos quais se esperaria encontrar argumentos consistentes que sustentassem sua tese, encontra-se apenas analogias construídas sobre pressupostos pouco evidentes e até mesmo equivocados.
Não apenas enquanto filósofo da política e da moral, mas também como teórico do conhecimento e da própria condição de possibilidade da argumentação filosófica, Kant foi extremamente mais cauteloso no uso de analogias do que Nozick. Ele inclusive se envolveu num acirrado debate sobre esse tema com relação à obra de um antigo discípulo, Johann Gottfried von Herder.12 Para Kant, a utilização de analogias é central para filosofia, mas como uma forma de ilustrar, de evidenciar ou mesmo de exemplificar uma determinada tese ou argumento, mas ela jamais pode ocupar o lugar da argumentação que justifica uma tese. Além disso, uma analogia sempre opera por uma relação de quatro termos, por exemplo, A está para B, assim como C está para D. Nesse caso, não se está dizendo que A e C são iguais ou semelhantes, nem que B e D são iguais ou semelhantes, mas que a relação entre os termos, isto é, que a proporção que se estabelece é semelhante. Assim, quando se diz que Deus tem uma relação com os seres humanos, assim como a de um pai tem com seus filhos, não se pode de forma alguma atribuir as características de um pai a Deus, pois com isso se estaria caindo no erro do antropomorfismo.13 O que ocorre é apenas uma forma de pensar a relação entre dois termos conhecidos com outra relação em que apenas um dos termos é conhecido.
Nesse contexto cabe então perguntar: existe uma semelhança na relação analógica entre as diversas transferências que ocorrem na sociedade e aquela sugerida no caso Wilt Chamberlain? A meu ver a analogia sugerida por Nozick não consegue expressar sequer uma fração da complexidade das relações de transferência que ocorrem na sociedade. Veja-se algumas das incongruências que são decisivas para o fracasso dessa analogia:
- 1ª incongruência: a relação entre os elementos da analogia é completamente distorcida, isto é, a relação entre Wilt Chamberlain e os demais agentes não parte de uma relação de igualdade tal como precisa ser pressuposto na base da constituição da sociedade civil. No caso de Chamberlain, a sua relação com os colegas não é a mesma que ele tem com o público, nem o time tem a mesma relação entre os jogadores e o público assim como o Estado tem para com os cidadãos. Há já no ponto de partida uma desanalogia completa na relação entre os elementos envolvidos.
- 2ª incongruência: a sociedade não funciona e não precisa funcionar como um time na liga de basquete. Na vida em sociedade, para que um grupo ganhe, o outro não precisa perder, isto é, as trocas de transferência não dependem da perda de alguém. Além disso, os torcedores de um time o são por opção. Os torcedores podem deixar de torcer, eles podem torcer sem ir aos jogos, eles podem inclusive trocar de time sem nenhuma grande implicação no status dos seus direitos. Já um cidadão não o é por opção, ele não pode deixar de ser um cidadão, pois ele pode ser obrigado por outros a entrar numa constituição civil. Ao entrar em sociedade ele deve obedecer aos seus deveres e o Estado pode garantir os seus direitos mesmo contra a sua vontade. Ele até pode trocar de Estado, mas isso não depende de um ato qualquer: ele precisa ser aceito em outro Estado, o que de forma alguma pode ser comparado com a troca de time. Seria a intenção de Nozick estabelecer então uma comparação entre os jogadores e os cidadãos? Os jogadores também podem trocar de time e o time pode dar diferentes status aos seus jogadores (titulares, reservas, emprestar ou trocar jogadores, etc.), mas um Estado de direito que fizesse isso estaria minando a sua própria legitimidade. Diferentemente de um time de basquete, na sociedade ocorre uma complexa teia de relações que estão fundadas e balizadas pelo fato de estarem assentadas sobre o fundamento do direito. A função da sociedade é garantir a possibilidade do direito inato à liberdade e das diversas formas de como esse direito pode ser realizado. Ninguém pode alegar que um goleiro tem o direito de receber a bola na mesma proporção que o centroavante ou o cestinha de um time, isso não faz o menor sentido.
- 3ª incongruência: os termos da transferência no caso Chamberlain são completamente diferentes dos termos da transferência que ocorrem na sociedade civil. No caso Chamberlain, os torcedores transferiam 0,25 centavos de dólar para assistir cada jogo em que Chamberlain atuava. Trava-se de uma troca voluntária e livre (no sentido forte do termo, isto é, dificilmente pode-se alegar que o indivíduo não tinha outra escolha tão boa quanto para empregar seu tempo e dinheiro), e, sobretudo, dificilmente envolve algum risco de comprometimento de direito e da dignidade da sua humanidade. Será que essa troca ainda seria moralmente legítima se para isso os torcedores tivessem que colocar em risco a sua dignidade? Será que os torcedores fariam ou mesmo teriam o direito de fazer essa “contribuição voluntária” se eles soubessem que isso significaria o comprometimento da sua dignidade, como por exemplo, caso não pudessem alimentar ou educar adequadamente os seus filhos. E se eles não tivessem outra opção (na hipótese de que ou eles fossem ao jogo ou seus filhos não poderiam frequentar uma escola de qualidade), será que o time teria o direito de cobrar a mais para favorecer Chamberlain? E se, por hipótese, a atuação de Chamberlain de algum modo afetasse de maneira decisiva a saúde de alguns torcedores, o time de basquete que fez o acordo poderia ser responsabilizado quando ele atuasse abaixo da expectativa e fizesse com que repentinamente 25% dos torcedores ficassem doentes e incapacitados de receber tratamento médico adequado, tal como acontece quando ocorre uma crise financeira em que repentinamente milhões de pessoas perdem suas casas, seus empregos e sua saúde pela atuação “precária” de “um jogador”. Querer estabelecer uma relação analógica entre o caso Chamberlain e a sociedade civil não funciona, especialmente quando se quer ressaltar apenas os aspectos positivos de uma relação e se fecha os olhos para tudo aquilo que pode envolver consequências que comprometem a integridade moral dos cidadãos. Na sociedade civil, as relações que se estabelecem são muito mais complexas do que qualquer analogia com um jogo de basquete, o que faz com que aquilo que esteja envolvido em cada transferência seja também muito mais complexo do que a decisão de ir assistir a um jogo pagando uma sobretaxa de 0,25 $.
Cabe apenas apontar que essas mesmas críticas servem para quase todas as analogias que Nozick apresenta em seu livro, que são várias e sempre ocupam um papel central no desenvolvimento da sua argumentação. Entre essas analogias estão, entre outras, a distribuição de notas entre os estudantes (cf. Nozick 2011: 257), a escolha do parceiro para casamento (cf. Nozick 2011: 307), os necessitados de ajuda que não puderam ser empreendedores enquanto “crupiês de cassinos” (cf. Nozick 2011: 331s), a escolha voluntária de parceiros entre 26 homens e 26 mulheres (cf. Nozick 2011: 340s), a aposentadoria de Arturo Toscanini e o caso do empréstimo da minivan (cf. Nozick 2011: 348s.), etc.

2.2. A estreiteza moral da concepção de liberdade na definição de transferência legítima

Grande parte da tese libertariana de Nozick se sustenta sobre a crença de que toda transferência de recursos que ocorrer sem violar as titularidades dos indivíduos envolvidos é legitima. Mas não violar os direitos significa aqui simplesmente não obrigá-los através de coação física a fazer algo que não eles não queiram, por isso, entende-se por direitos a titularidade negativa de não sofrer interferência. Assim, para Nozick, “pessoas decidem realizar trocas com outras pessoas, transferindo- lhes direitos de propriedade, sem sofrerem nenhuma restrição à liberdade de comerciar com quem quer que seja, sob quaisquer condições mutuamente aceitas” (Nozick 2011: 240). Dito de outro modo, “As pessoas transferem seus bens ou seu trabalho em mercados livres, com as relações de troca (preços) sendo determinados de modo costumeiro. Se a teoria da produtividade for razoavelmente adequada, as pessoas receberão, nessas transferências voluntárias de bens, seu produto marginal aproximado” (Nozick 2011: 241). O problema é que a tradução dessa tese para situações concretas mostra o quanto seus pressupostos são frágeis e moralmente questionáveis. Isso fica mais claro quando se precisa responder à pergunta: o que significa uma coerção que comprometa a liberdade da transferência?
Segundo Vita (2007: 65), a teoria de Nozick apenas nega legitimidade para aquelas “ações (roubo, atentado à integridade física de outro, fraude, etc.) que de forma mais óbvia são excluídas pelas constrições deontológicas especificadas pela teoria”. Em outras palavras, Nozick não possui, por exemplo, um critério objetivo que distinga uma transferência feita com base na chantagem entre outra foi feita por interesse próprio:

Se uma pessoa ameaça publicar uma informação com a intenção de me extorquir, então, supostamente, sua conduta envolve a violação de uma interdição deontológica. Mas, se sua intenção é fazer seu livro vender mais, e eu me disponho a pagar para que ela mantenha a informação em segredo (por que para mim isso é benéfico), então, supostamente, ela está maximizando sua própria utilidade sem violar nenhuma interdição deontológica. Mas do ponto de vista da vítima, faz alguma diferença saber qual é a intenção do agente que pode lhe causar um dano? (...) Melhor é admitir logo, como faz Murray Rothbard, que, em uma ‘sociedade livre’ (em que a distribuição de recursos é regida pelo princípio hayekiano do valor percebido), não há como excluir as transações realizadas sob chantagem. (Vita 2007: 67s)

Mas a falta de critério para distinguir se a transferência de fato respeitou as titularidades dos indivíduos (ausência de coação) não atinge apenas as relações de chantagem. Ela afeta até mesmo as relações de dignidade e salubridade dos contratos de trabalho. Um libertariano defende que é imoral que o Estado interfira nas relações de trabalho, que estabeleça regras de segurança ou mesmo um salário mínimo. As relações de trabalho deveriam ser acordadas e estabelecidas segundo a teoria libertariana de modo completamente independente, isto é, apenas pelas partes envolvidas. Traduzindo: para um libertariano um indivíduo é plenamente livre entre escolher trabalhar por um salário miserável ou recusar esse único trabalho disponível, ainda que isso possa lhe custar morrer de fome. Para o libertariano, mesmo aceitando o trabalho com salário miserável, não há nada nessa transação que a torne imoral e injusta.
Kant não discutiu explicitamente esse enfoque em sua obra, mas ele criticou fortemente esse tipo de raciocínio denominando-o de jesuitismo (Kant 2014: 75 / MS, AA 06: 266), isto é, permitir todos os meios para os supostos bons fins, melhor dizendo, os supostos bons fins tais como interpretados por indivíduos imorais e quando lhe são convenientes. Nesse caso, para se permitir a garantia do suposto inviolável direito à titularidade, permite-se que os indivíduos sejam literalmente postos sob a condição de trabalho escravo, com a única diferença de que não é necessário acorrentá-los, pois as opções que lhes sobram são ainda piores. Da mesma forma que algumas prisões não precisam de grades ou cercas, os subempregos que se proliferam no mundo capitalista não precisam de correntes, mas isso não significa que se possa considerá-los como sendo resultado de uma escolha livre. Não pode haver livre escolha, pelo menos não uma que possa manter a dignidade da humanidade do indivíduo, quando ele se encontra “entre a cruz e a espada”.
Nozick provavelmente responderia dizendo que, na realidade, a sua teoria da liberdade não cai no problema do paternalismo: “Minha posição não paternalista defende que alguém pode decidir fazer (ou permitir que outro faça) a você qualquer coisa, a menos que você tenha se comprometido com uma terceira pessoa a não agir dessa forma nem permitir que o façam” (Nozick 2011: 73s.). Ou ainda: “nem todos os usuários de fatores de produção são imbecis que não sabem o que fazem ou que, de maneira irracional e arbitrária, transferem para outras pessoas bens que consideram valiosos” (Nozick 2011: 243). Isso significa que, para Nozick, por exemplo, quando pequenos produtores se encontram na condição de reféns de grandes indústrias que estabelecem preços padrão para seus produtos, os quais seriam inferiores ao que seria o justo, ou se os trabalhadores estão na situação de não poder escolher outra possibilidade para sobreviver do que se submeter ao trabalho em condições insalubres e com salário miserável, então, nessas situações, se os produtores e os trabalhadores aceitam participar dessas trocas extremamente desfavoráveis a eles, então eles seriam “imbecis”. Como o Estado não pode partir do pressuposto de que os cidadãos participam de trocas como imbecis, pois o Estado deve partir do pressuposto de que está tratando com sujeitos livres e responsáveis, então, o Estado não deve intervir de forma alguma nessas trocas voluntárias.
Kant, por outro lado, discordaria completamente dessa perspectiva libertariana, e responderia que o paternalismo ocorre apenas quando o Estado impõe um conceito de vida boa aos cidadãos, isto é, quando o Estado impõe aos indivíduos um conceito de felicidade: dizendo como eles devem ser felizes, que coisas eles podem ou não podem gostar, qual carreira devem seguir, etc. Porém, impor um conceito de felicidade é bastante diferente do que garantir que a liberdade em um sentido substantivo possa ser assegurada. Impor um conceito de felicidade não se compara com a imposição do direito. Assim, a respeito do salário mínimo estabelecido por lei, um libertariano diria que o Estado está ferindo as titularidades dos indivíduos que participaram do contrato tal como eles escolheram e que tal atitude é paternalista. Um kantiano, por outro lado, veria o Estado atuando de forma republicana, impondo o direito e garantindo a liberdade ao impedir que empresas se aproveitem da condição hipossuficiente dos trabalhadores, isto é, o Estado tem o direito de estabelecer as condições mínimas para que uma relação de trabalho não coloque em risco a humanidade, a dignidade e o direito do trabalhador. Há, portanto, uma profunda diferença entre a perspectiva libertariana e a perspectiva kantiana de liberdade.

2.3. A justiça estabelecida nas transferências regidas pela lógica da oferta e demanda

Para Nozick, “em uma sociedade capitalista, as pessoas geralmente transferem bens para os outros de acordo com a quantidade de benefícios que elas avaliam que receberão em troca, o tecido formado pelas transações e transferências individuais é amplamente racional e inteligível” (Nozick 2011: 204). Ainda que Nozick não apresente uma explicação própria ao conceito de “mão invisível”, ele aceita essa concepção, a qual está presente como pano de fundo de toda a obra (cf. Nozick 2011: 24ss.).
Ora, a crença na racionalidade e moralidade da “mão invisível” é questionável tanto econômica quanto moralmente. Ainda que se deixe o primeiro aspecto para os economistas, a respeito do aspecto moral cabe trazer aqui as considerações de Sen:

A prioridade inflexível dos direitos libertários pode ser particularmente problemática, pois as consequências reais da operação desses entitulamentos podem incluir resultados terríveis. Em particular, pode conduzir à violação da liberdade substantiva de indivíduos para realizar as coisas às quais eles têm razão para atribuir enorme importância, como escapar à mortalidade evitável, ser bem nutrido e sadio e saber ler, escrever e contar etc. A importância dessas liberdades substantivas não pode ser descartada com a justificativa da ‘prioridade da liberdade formal’. (...) [P]or exemplo, até mesmo gigantescas fomes coletivas podem ocorrer sem que os direitos libertários de pessoa alguma (incluindo os direitos de propriedade) sejam violados. Os desvalidos, como desempregados ou as pessoas que empobreceram, podem sucumbir à fome precisamente porque seus ‘entitulamentos’ – ainda que legítimos – não lhes permitem obter alimento suficiente. Esse pode parecer um caso de ‘horror moral catastrófico’, porém é possível demonstrar que horrores com qualquer grau de gravidade – de fomes gigantescas à subnutrição regular e fome endêmica mas não extrema – são consistentes com um sistema no qual não se violam os direitos libertários de pessoa alguma. Analogamente, privações de outros tipos (por exemplo, a ausência de tratamento médico para doenças curáveis) podem coexistir com todos os direitos libertários (incluindo direitos de propriedade) sendo inteiramente respeitados. (Sen 2000: 85s)

A teoria da mão-invisível é uma teoria que exime os Estados da responsabilidade de atuar para garantir os direitos dos indivíduos. Mesmo que houvesse uma solução para a fome, isso não seria um problema para os governantes, mas seria um problema unicamente privado. Esse modelo deixa que cada indivíduo, quando lhe convier e quando for tocado pelo sentimento de compaixão, faça algo a respeito, dando, por exemplo, um prato de comida para algum faminto.
Para Kant, não existe uma “mão invisível” ou um “espírito do mundo” que conduz o mercado ou a história, ainda que por meio de uma “artimanha da natureza”, ao progresso moral da humanidade, produzindo o bem simplesmente pela atuação egoísta e auto interessada dos indivíduos. Todo progresso moral precisa ser realizado voluntariamente a partir das escolhas dos indivíduos sobre as políticas públicas, isto é, toda a filosofia da história kantiana é um projeto que segue apenas e exclusivamente um propósito prático, um propósito político que exige o fortalecimento e a contínua reforma das instituições que deverão garantir os direitos de todos os cidadãos.14 Assim, toda vez que o Estado pode atuar para garantir a liberdade substantiva dos cidadãos, ele deve fazer isso. Se os cidadãos estão passando fome ou estão sem abrigo, cabe ao Estado evitar isso, não por razões pragmáticas ou utilita ristas, mas pela razão segundo a qual o Estado se constituiu em uma entidade moral capaz de estabelecer e fazer cumprir direitos e deveres. É por isso que

a vontade geral do povo se reuniu numa sociedade que se deve preservar constantemente, tendo-se submetido ao poder público interno no propósito de preservar os membros da sociedade que não o conseguem por si sós. O governo tem, portanto, por razões públicas, o direito de obrigar os abastados a fornecer os meios para a preservação daqueles que não o são, mesmo em termos de necessidades naturais mais elementares; porque sua existência é ao mesmo tempo um ato de submissão à proteção e ao cuidado da coisa pública, necessário para a existência, com o qual se comprometeram, no que o Estado funda então o seu direito de obrigar os abastados a contribuir o seu para a preservação de seus concidadãos. Ora, isso pode acontecer por tributação da propriedade dos cidadãos ou de seu comércio, ou por fundos constituídos e seus juros, não para as necessidades do Estado (pois o Estado é rico), mas para as necessidades do povo, e não apenas por contribuições voluntárias (porque aqui se trata tão somente do direito do Estado em relação ao povo) (...), mas de forma coercitiva, com tributos públicos. (Kant 2014: 143 / MS, AA 06:326)

Note-se que Kant enfatiza que o Estado tem o direito de agir de forma coercitiva cobrando impostos para garantir as condições mínimas de dignidade de todos os cidadãos. Ainda que Kant tenha mencionado nesse excerto apenas as condições mínimas de conservação, ele com certeza não estava pensando apenas nisso. Ele também considerava, por exemplo, função do Estado investir e garantir um ensino público universal.15 Outro ponto importante é a menção de que o “Estado é rico”, isso significa que o Estado como portador da vontade geral na verdade tem a posse de todos os bens, ele concede o direito de propriedade aos cidadãos, mas se e quanto lhe for necessário (por exigências morais) cobrar por essa propriedade concedida, ele não apenas pode fazê-lo, mas ele tem o direito de fazê-lo.16 É isso que acontece quando o Estado cobra impostos para fundar e manter hospitais, escolas e universidades. Para Kant, ao fazer isso o Estado está cumprindo com seu papel moral de dar condições para a realização substantiva da liberdade dos indivíduos e não sendo paternalista (ou seja, obrigando os indivíduos a serem indivíduos letrados, professores, cientistas, etc.). O Estado, através do soberano e do governo, está realizando a sua finalidade enquanto entidade moral que se constituiu para resguardar e promover os direitos de todos os cidadãos, a sua dignidade enquanto pessoa, isto é, o seu direito inato à liberdade. Para um libertariano, por outro lado, o Estado que atuasse nesse sentido não estaria sendo diferente de um ladrão que obriga os proprietários a fazerem doações aos pobres. Já para Kant, os proprietários apenas estão ressarcindo ao Estado aquilo o que ele lhes concedeu: o direito de propriedade e a possibilidade de viverem em um Estado que garante a liberdade e justiça a todos os cidadãos.

2.4. Justiça intergeracional?

Já se mencionou acima que uma das justificativas pelas quais Nozick legitima o direito à propriedade privada no estado de natureza e também no estado civil é o de que a propriedade privada “defende o futuro das pessoas ao fazer que algumas delas retirem recursos do consumo cotidiano, preservando-os para os mercados vindouros” (Nozick, 2011, 228). Posicionamentos desse tipo levantam muitas críticas, tal como a de que as premissas libertarianas são “idioticamente individualistas” (Barry 1995: xi).
De todo modo, a esse respeito mais um contraste pode ser feito aqui com relação à filosofia moral kantiana. Ao se retomar o que foi dito acima acerca da premissa maior do argumento em favor da propriedade privada em analogia com um silogismo, pode-se trazer à tona algumas importantes implicações para se compreender os horizontes intergeracionais de uma constituição civil. O que caracteriza a posse original da terra ou a posse comum de todas as coisas segundo uma vontade universal a priori não é a referência ao interesse de um grupo de seres humanos determinado espaço-temporalmente, isto é, ao conjunto de indivíduos que num determinado momento ocupou pela primeira vez um pedaço de terra, ou pelo grupo de indivíduos que formulou a constituição de um determinado país no momento da sua fundação. A premissa maior faz referência à espécie humana, não apenas num determinado momento histórico, isto é, sincronicamente, mas à espécie humana pensada diacronicamente, em sua totalidade.17 Isso é importante, pois tem como consequência que a forma como a propriedade pode ser estabelecida numa constituição civil é limitada por aquilo que é o direito da humanidade, isto é, não apenas o direito desta ou daquela geração, mas de todas as gerações, inclusive as futuras. Em outras palavras, a partir da premissa maior do argumento de Kant se segue que o direito à propriedade jamais é um direito absoluto, mas sim que ele é limitado pela ideia prática de que o uso das coisas não pode ser tal que destrua o direito das gerações futuras sobre as mesmas. Nesse sentido, ele permite que o indivíduo realize os seus fins a partir do uso das coisas, desde que isso não implique a destruição do direito das futuras gerações. Surge assim um fundamento para se pensar o conceito de uma justiça intergeracional, a qual encontra suporte também no âmbito da filosofia kantiana da história.18 Desse modo, por exemplo, segue-se que o direito à propriedade de um lago, não dá o direito de poluir o lago, pelo menos não de uma forma que comprometa o próprio lago; a propriedade de uma obra de arte de grande relevância para a humanidade, não dá o direito ao seu proprietário de escolher ser cremado ou enterrado com ela;19 a propriedade da patente de uma vacina não dá o direito ao seu proprietário para que ele a venda por um valor que impeça o acesso de indivíduos pobres ao tratamento. Para a teoria libertariana, nada disso viria ao caso.
Para Kant se estabelece uma relação dialógica ao longo da história entre o indivíduo e a humanidade, entre o processo da ontogênese (indivíduo) e da filogênese (espécie), de modo que o direito precisa encontrar uma forma de equilibrar esses dois aspectos, os direitos do indivíduo por um lado, com os direitos da humanidade, por outro. Acentuar apenas um desses aspectos faz com que o direito fique descompassado e perca sua legitimidade. É procurando um ponto de equilíbrio que Kant articula o que hodiernamente se chama de liberalismo, por um lado, e republicanismo por outro,20 pois ele percebeu que se apenas o direito individual importasse, o resultado disso é que finalmente apenas o direito de alguns indivíduos iria ser respeitado, por outro lado, se apenas o direito da comunidade importa, então o indivíduo não pode ser considerado como portador de direitos.
Nesse contexto, pode-se fazer, por exemplo, a seguinte consideração: em tudo o que é produzido, seja um produto, a patente de uma vacina, enfim, qualquer coisa que gere riqueza e capital, tudo possui dois aspectos, de um lado, algo que não pertence a um grupo ou um indivíduo e que não pode ser simplesmente comprado, pelo menos não em sentido absoluto, isto é, um conjunto de coisas (matéria prima) e de conhecimentos que pertence à espécie humana e, por outro lado, o aspecto do direito do indivíduo de ser proprietário do seu próprio corpo, por conseguinte, do seu trabalho e das coisas que lhe pertencem. Nesse caso, cabe ao direito sopesar ambos os aspectos e encontrar um equilíbrio aceitável entre ambos, ou seja, uma forma que respeite ao mesmo tempo o direito da humanidade estabelecido na premissa maior e o direito individual estabelecido na premissa menor, ou ainda, a conclusão que deve ser apresentada e estabelecida no âmbito do direito civil deve ser sempre tal que considere de modo adequado ambos os aspectos, o indivíduo e a espécie humana.
Distintamente da visão kantiana, pode-se dizer que o libertarianismo sustenta exatamente uma visão que acentua apenas um desses aspectos, a ontogênese:

Só existem indivíduos, indivíduos diferentes, com suas próprias vidas individuais. Usar uma dessas pessoas para beneficiar as outras significa usá-la em benefício das demais. Nada além disso. O que ocorre é que se faz algo com elas em benefício dos outros. Tudo o que se diz sobre o bem social geral constitui um disfarce dessa circunstância. (Nozick 2011: 40)

É nesse sentido que Nozick acusa Rawls, por exemplo, de tratar a propriedade como se ela fosse “maná caído do céu” (Nozick 2011: 257). Além de Nozick se utilizar nesse caso da falácia do espantalho, fica claro que não há qualquer preocupação com o papel social da propriedade, qualquer preocupação com outros indivíduos que não sejam aqueles que já são proprietários. Contudo, o resultado dessa visão é que apenas o direito de alguns indivíduos importa, mas nesse caso, dificilmente se poderia utilizar de maneira legítima a palavra “direito”.

3. Um princípio de retificação?

A construção teórica de Nozick ao longo do seu livro Anarquia, Estado e Utopia é feita sob o pressuposto de que os princípios de aquisição e transferência tendem a funcionar perfeitamente. Nesse sentido, ele sempre utiliza um “se” ou um “suponhamos” (cf. Nozick 2011: 193; 361), mas não se preocupa muito em pensar no que aconteceria se esse “simples” pressuposto não fosse cumprido. Contudo,

[a]té mesmo um colegial sabe que a propriedade capitalista não surgiu de nenhum processo lockeano virtuoso mas da expropriação violenta e da privatização de recursos que previamente eram de uso comum, da proletarização forçada de camponeses e artesãos, da colonização e da escravização de africanos e indígenas americanos, entre outros eventos “idílicos” que poderiam ser mencionados. “Na história real”, como nos diz Marx em sua análise da “acumulação primitiva do capital”, “a conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência desempenham o papel principal”. (Vita 2007: 73)

Kant concordaria perfeitamente com essa descrição. Para ele todo o Estado surge pela violência e a sua origem está impregnada de injustiças.21 Por isso, o que justifica o Estado não é a sua origem empírica, isto é, como ele de fato começou a existir, como de fato os direitos de propriedade foram enforçados por lei e como de fato as leis positivas foram produzidas. O que legitima o Estado, apesar dessa sua origem empírica corrompida é o seu núcleo moral, que se vincula a uma ideia da razão prática pura, a qual deve servir como um critério para correção das distorções que ao longo da história se configuraram em instituições civis. Para Kant, o quid juris tem total precedência sobre o quid facti, logo, para que o Estado se legitime como um Estado republicano, ele deve assumir como uma meta, como seu objetivo, reformar-se continuamente de modo que todas as distorções histórico- empíricas sejam corrigidas e que novas sejam evitadas. E é exatamente para que isso seja feito que Kant não deixa que as correções sejam deixadas à cargo da suposta “mão invisível” do mercado, pois elas não irão ocorrer por essa via. Provavelmente as distorções apenas irão se acentuar. Seja por uma questão de legitimidade, seja por uma questão de capacidade, tal tarefa somente pode caber ao Estado.
Seria demasiado perturbador se Nozick desconhecesse essa história real que qualquer colegial deveria saber: mas então o que ele fez a respeito disso? Ele sugere ou discute o que deveria ser feito e como? Na verdade, Nozick apenas menciona que, caso seja identificado algum descumprimento dos princípios de aquisição ou de transmissão, então deve ser aplicado o princípio de retificação. Mas qual é esse princípio e como ele deve ser aplicado, sobre isso se encontra quase que um profundo e desconcertante silêncio. Juntando-se tudo o que Nozick fala a respeito desse princípio ao longo das mais de 450 páginas, dificilmente se teria mais do que algumas linhas. Assim, o princípio de retificação, ou melhor, a falta de um princípio conduz naturalmente para mais algumas reflexões críticas, afinal, a omissão nesse caso é um elemento central para avaliar uma obra.

3.1. Um princípio histórico?

Nozick insiste que o seu princípio da justiça é “histórico” e se opõe radicalmente ao modelo rawlsiano de justiça, o qual ele coloca sob a categoria de um “princípio padronizado de justiça” que foca o resultado final. Não se pretende entrar aqui na contenda entre Rawls e Nozick, pois esse seria um tópico próprio, ao qual vários autores já se dedicaram.22 Aqui cabe apenas chamar a atenção para o grande esforço que Nozick faz para mostrar as supostas contradições da teoria rawlsiana, desconsiderando largamente aquilo para o qual o próprio Rawls insiste constantemente, a saber, que a sua teoria se aplica apenas à estrutura básica da sociedade e não para a produção de justiça em casos particulares. Negando que seja possível distinguir princípios para casos singulares e princípios que servem para formar a estrutura básica da sociedade, Nozick despende um grande esforço em apresentar contraexemplos que apresentam a teoria rawlsiana de forma quase caricata. Ele chega inclusive a questionar se “deveríamos desejar que esse processo [a corrida dos espermatozoides que selecionou o mais bem-sucedido em fecundar o óvulo] tivesse sido ‘mais equitativo, segundo os padrões de Rawls, que todas as suas ‘desigualdades’ tivessem sido corrigidas?” (Nozick 2011: 292n.).
Essa mesma postura está presente quando ele, ao criticar a teoria marxista da acumulação do capital, questiona:

De onde vieram os meios de produção? Quem, em determinado momento, abriu mão do consumo para que eles fossem obtidos e gerados? Quem abre mão, hoje, do consumo presente ao pagar salários e arcar com custos e, desse modo, só obtém retorno quando o produto final é vendido? De quem foi o discernimento empresarial que esteve atuante durante todo esse tempo? (Nozick 2011: 328 n.)

Obviamente que a resposta de Nozick é: dos empresários, dos proprietários. Contudo, estranhamente, para mostrar que esse é o caso, ele não recorre a fatos históricos, mas se dedica a construção de uma “história hipotética” na qual está pressuposta uma questionável descrição do funcionamento de um modelo socialista.
É no mínimo estranho que Nozick despenda tanta energia em construir contraexemplos baseados em questionáveis analogias e estórias hipotéticas para refutar os seus adversários, chegando inclusive a caricaturá-los, mas quando se trata de apresentar evidências históricas, pois afinal ele alega apresentar um princípio de justiça que possui um enfoque histórico, então quase nada é dito. Nesse contexto é inevitável concordar com Sen: “no que concerne à sua base informacional, o libertarianismo é demasiado limitado. Não só desconsidera as variáveis às quais as teorias utilitaristas e welfarista atribuem grande importância, como também negligencia as liberdades substantivas mais básicas que temos razão para prezar e exigir” (Sen 2000: 86).

3.2. Como mensurar a redistribuição?

Dentre as poucas linhas escritas por Nozick sobre o princípio de redistribuição estão as seguintes:

Para verificar o grau de desvio existente entre teorias da apropriação divergentes e a localização do ponto de partida, seria desejável contar com uma estimativa da importância econômica geral da apropriação original. Essa importância talvez possa ser medida por meio do percentual de toda a renda, que é baseado em matérias-primas não transformadas e nos recursos existentes (mais do que na ação humana), com a renda de aluguel representando principalmente o valor da terra não cultivada e o preço da matéria-prima in situ, e por meio do percentual de riqueza atual equivalente a essa renda passada.* (*) Não tenho conhecimento de uma estimativa precisa. David Friedman, The Machinery of Freedom (Nova York: Harper & Row, 1973), pp. xiv e xv, examina essa questão e sugere que o limite máximo para os dois primeiros fatores mencionados seja 5% da renda nacional norte-americana. (Nozick 2011: 229)

Imiscuída nessa elaborada retórica está a visão libertariana de que todas as atrocidades cometidas com índios, negros e imigrantes, todas elas podem ser mensuradas por uma simples “renda de aluguel” computada sobre o valor da “matéria prima”, um valor que Friedman sugere que não deveria ultrapassar 5% da renda norte-americana. Fazendo uso aqui da estratégia utilizada largamente por Nozick ao longo de sua obra, a qual ao invés de demonstrar sua tese investe em páginas e páginas na colocação de questões, deve-se perguntar: será que todos os índios, negros e outros explorados ao longo do processo histórico da construção das nações modernas concordariam em passar por tudo isso novamente por 5% da renda norte americana? Ou talvez 50%? É muito provável que não.
A lógica libertariana é a do mercado capitalista, a qual acredita que pode colocar um preço em tudo. É essa mesma lógica que, por exemplo, prefere colocar um preço para contratar mercenários para lutar as guerras do país, ou que prefere pagar a indenização pela morte de algumas pessoas, do que fazer um recall dos carros produzidos e realizar um concerto geral.23 Para o libertarianismo tudo tem um preço, tudo está à venda. Para Kant, ao contrário, a humanidade está acima de qualquer preço, ela possui dignidade (cf. Kant 1980a: 140 / GMS, AA 04: 434f.). Por isso, uma política moral não é aquela que coloca preço sobre a dignidade humana, mas aquela que fará tudo o possível para que todos os cidadãos possam ter a sua dignidade, enquanto pessoas morais, resguardada. Novamente aqui há um abismo entre a posição libertariana e a posição moral kantiana.

3.3. Incoerências entre os pressupostos e a conclusão

A tese aceita e defendida por Nozick ao longo do seu livro acerca da defesa do estado mínimo sofre ao menos de três graves incoerências. A primeira incoerência diz respeito à atuação da teoria em casos limite, como a água do último poço ou a chegada de um náufrago em uma ilha já apropriada. Essa crítica pode ser claramente apresentada da seguinte forma:

Na teoria de Nozick (conforme apresentada em Anarchy, State and Utopia), por exemplo, os ‘entitulamentos’ que as pessoas têm mediante o exercício desses direitos não podem, em geral, ser suplantados em importância devido a seus resultados – não importa o quanto eles possam ser perniciosos. Uma isenção muito excepcional é concedida por Nozick ao que ele denomina ‘horrores morais catastróficos’, mas essa isenção não se integra muito bem ao resto da abordagem nozickiana, e também não recebe uma justificação apropriada (permanece acentuadamente ad hoc). (Sen 2000: 85)

Quem julga quando se trata de um caso de horror moral catastrófico? A morte certa de um indivíduo ao qual se nega tratamento médico por motivos econômicos não seria um desses casos? E indivíduos que trabalham em condições de escravidão, ainda que “voluntária”? E os indivíduos cuja saúde e desenvolvimento intelectual estão comprometidos pela falta de nutrição? Para ser coerente, parece que a justificação ad hoc de Nozick teria que ser aplicada regularmente no dia-a-dia da política, o que o obrigaria a renunciar a sua própria tese, já que ela não consegue lidar com a “exceção”, especialmente por que não se trata de algo que seja exceção.
A segunda incoerência se refere diretamente à tensão entre a formulação central da tese do livro e o princípio de redistribuição:

admitindo-se que (1) as vítimas de injustiça geralmente se saem pior do que se sairiam caso não a tivessem sofrido e (2) que as pessoas do grupo social mais desfavorecido têm maior probabilidade de serem as (descendentes das) vítimas das mais graves injustiças, pessoas com direito a indenização por parte dos que tiraram proveito das injustiças (...), poderíamos ter a seguinte regra empírica aproximada para a retificação das injustiças: organize-se a sociedade de modo que maximize a posição de qualquer grupo que acabe ocupando o lugar mais desfavorecido da sociedade. (...) Embora introduzir o socialismo como castigo para os nossos pecados seja ir longe de mais, as injustiças passadas podem ser tão grandes que, no curto prazo, talvez seja necessário um Estado mais abrangente para corrigi-las. (Nozick 2011: 299)

Nesse mesmo sentido, em um outro excerto ele afirma:

Se o princípio de retificação das violações dos dois primeiros princípios produzir mais do que uma descrição de posses, será preciso decidir qual delas será escolhida. Talvez o tipo de consideração sobre justiça distributiva e igualdade [de Rawls], contra o qual eu me posiciono, tenha um papel legítimo a desempenhar nessa escolha secundária. (Nozick, 2011, 196n.)

Ora, como é óbvio (e até um colegial deveria saber disso), o princípio de retificação não corresponde ao modo como as posses estão distribuídas e como de fato ocorre o caso 1 e 2, então é evidente que se justifica a existência de um Estado mais do que mínimo. Nesse caso, no mínimo, Nozick deveria ter formulado da seguinte forma a tese da sua obra: “o Estado mínimo não pode ser realizado no atual momento histórico até que todas as injustiças históricas tenham sido corrigidas e, nesse caso, a teoria rawlsiana talvez seja uma das melhores formas para organizar isso”. Tal como se mostrou na introdução deste artigo, tratar-se-ia de uma asserção muito diferente daquela que Nozick faz questão de divulgar como o resultado da sua argumentação.
A terceira incoerência, ainda que Nozick não admita, sua teoria se funda em uma pressuposição antropológica idealizada do ser humano, a qual coloca em questão a própria possibilidade do Estado mínimo. Kant pensa a política e a moral para seres que não seguem de maneira espontânea a lei moral. Ele inclusive constata que “de um lenho tão retorcido de que o homem é feito, nada de inteiramente direito se pode fazer” (Kant 2001: 29/ IaG, AA 08:23). Na sociedade os homens são acometidos pelas paixões da glória, do poder e da riqueza e, nesse caso, a política deve pensar em um sistema que consiga lidar com o fato de que essas paixões perturbarão constantemente as relações na sociedade e que por isso elas precisam ser contidas de alguma forma. Nozick, por outro lado, faz com que seu conceito de justiça distributiva dependa de que se pressuponha que os homens sejam quase que anjos, quase que moralmente perfeitos, isto é, que eles em geral farão trocas legais nas quais os contratos serão respeitados (cf. Vita 2007: 75). Nesse caso, o princípio de redistribuição de Nozick parece apenas indicar que, uma vez corrigidas as distorções do passado, ainda que ele não diga explicitamente como, quanto e quando, segue-se que todos ou quase todos os crimes futuros serão evitados e corrigidos pelo Estado policial, o Estado guarda-noturno.
Ora, como é impossível corrigir todos os erros do passado e como sempre é possível e provável que novos crimes passados sejam descobertos, bem como outros ainda sejam perpetrados, os quais talvez venham a ser descobertos apenas muito tempo depois, gerando sempre e continuamente várias gerações de vítimas, segue-se que, mesmo que se pudesse mensurar com certa precisão a indenização merecida, algo que é bastante questionável, como determinar quem deve arcar com o ônus da indenização? E como descobrir todos os crimes, ou ainda, como evitar que eles aconteçam? Para que uma sociedade alcançasse um patamar adequado de distribuição de justiça nesses termos, é impossível que ela permaneça estruturada como um Estado mínimo. Seria necessário um Estado com um largo aparato investigativo e policialesco, tornando-se um “Big Brother” que vigiasse constantemente os indivíduos. Não poderia ser um Estado-mínimo, mas um “super” Estado policial. Poder-se-ia denominar isso de “o paradoxo do Estado mínimo”, isto é, para que ele seja mínimo na economia, ele deveria ser máximo na vigilância. Mas uma vez que ele não pudesse reaver dos culpados os bens, como indenizar as vítimas? E se os iniciais e ilegítimos favorecidos não estiverem mais vivos ou não tiverem mais os bens para realizar o ressarcimento? Uma vez que o Estado falhe em proteger as vítimas dos crimes e caso ele não possa fazer com que os culpados ressarçam a vítima, então caberia a ele indenizá-las, visto que ele não fez o que lhe cabia. Ora, para isso novamente um Estado mínimo não seria suficiente. E o que fazer com as vítimas que ao longo desse processo perderam os seus bens e as condições de se sustentar ou que morreram ou passaram grande parte da vida na miséria ou em condições sub-humanas? Provavelmente enviar um pedido de desculpas ou gravar tal pedido nas lápides não parece ser uma forma justa de compensar a incompetência do Estado. Claro que o Estado também comete esse tipo de erros quando pune um inocente segundo o código penal. Mas será que um Estado não deveria ter um plano de contingência para quando o seu aparato vigilante e investigativo falhasse? O Estado mínimo é um Estado fracassado no que concerne à justiça, pois ele precisa contar com a suprema-eficiência do seu aparato vigilante e investigativo, o que o transformaria em mais do que um Estado mínimo, ou precisaria contar com que seus cidadãos fossem como que anjos, o que também não se sustenta e nesse caso, uma vez que o Estado não conseguiria prevenir os crimes, ele deveria ser capaz de evitar que eles tenham consequências tão danosas para as suas vítimas, o que também é incompatível com a noção de Estado mínimo.

3.4. Responsabilidade histórica?

Apesar de reconhecer algumas vezes que pode ser necessário que o Estado faça algumas correções na distribuição da riqueza tendo em vista o princípio de retificação, em geral, a teoria libertariana tende a negar que qualquer indivíduo seja de alguma forma responsável por um crime do qual ele não foi o causador direto. Em outras palavras, apesar do “desconforto” de Nozick ao reconhecer que em geral os grupos em pior situação socioeconômica sejam herdeiros de gerações passadas vítimas de crimes, ele sempre procura ressaltar e faz isso repetidas vezes, que as vítimas e os criminosos não são os mesmos que estão vivos atualmente.
Há uma forte tendência na sua teoria libertariana a negar ou a minimizar largamente algo que pode ser denominado de responsabilidade histórica. Isso ocorre exatamente como consequência da pressuposição de que a única coisa que existe e interessa é o indivíduo singular. Em outras palavras, na teoria libertariana não se pode utilizar o conceito comumente discutido nas teorias contemporâneas da justiça de uma “responsabilidade histórica negativa” (Vita 2007: 53ss). Com isso, nega-se de forma simplista as relações históricas causais, ou seja, tende-se a desconsiderar o fato óbvio de que, por exemplo, os herdeiros das classes médias e abastadas tendem a ter chances muito maiores de permanecer no topo da pirâmide social, enquanto que os herdeiros das classes exploradas tendem a ter as suas chances de melhora de vida largamente comprometidas e dificultadas. Essa visão libertariana de mundo tende a transformar os indivíduos em sujeitos individualistas e autocentrados, que aceitam fazer atos de bondade e caridade privada simplesmente por que isso “massageia” seu ego, mas quando lhes é demandado reconhecer que a sua condição envolveu e dependeu de alguma forma de injustiças passadas, nesse caso, consideram-se imediatamente inocentes e completamente desconectados das relações históricas causais. Se eles reconhecessem isso, então eles não poderiam se considerar como ajudando, mas apenas como restituindo algo que não lhes pertencia e isso eles não estão dispostos a fazer.
Além disso, a teoria libertariana nega que o modelo econômico capitalista baseado na lógica do “livre mercado” possa gerar injustiças simplesmente pelo modo do seu funcionamento. Segundo o libertarianismo, a distribuição feita pelo mercado é livre e justa. Tal tese desconsidera que o funcionamento do mercado pode ser direcionado pela atuação intencional e coordenada de grupos de indivíduos. Aqui Nozick faz questão de invocar a alegação de que críticas nesse sentido se fundam sobre hipóteses de “teorias conspiratórias”. Alegar que isso seja uma teoria da conspiração não é propriamente um argumento, mas usar novamente a falácia do espantalho. Ora, é sabido que muitas vezes há a atuação organizada de grupos com grande poder econômico que procuram estabelecer o controle do mercado a partir da criação das grandes fusões de empresas ou mesmo pela formação de cartéis, os quais, uma vez que tenham alcançado um determinado domínio do mercado, exercem uma força destrutiva com relação ao surgimento de qualquer concorrência de pequeno porte. Esses conglomerados ditam preços e alcançam tamanho poder econômico e político que se torna inviável que o Estado consiga operacionalizar um modo de aplicar o princípio de restituição. Nesse caso, pode-se falar também de um sistema que tende a gerar cada vez mais concentração de renda, exclusão social e miséria. Mas isso também é desconsiderado pela teoria libertariana.
Novamente aqui Kant não poderia apresentar uma visão mais contrastante. Isso fica claro no seguinte excerto:

fossem os homens plenamente justos não haveria pobres, aos quais nós acreditamos demonstrar mérito de beneficência ao lhes dar esmolas. (...) A beneficência para os outros precisa ser recomendada mais como uma dívida do que como uma magnanimidade ou bondade e assim é de fato; pois todas as boas ações são apenas pequenas substituições de nossas dívidas. (Kant, V-Mo/Collings, AA 27: 455ff, tradução própria)

A culpa a qual Kant se refere aqui não é uma culpa individual, no sentido de que a existência dos pobres é causada imediatamente pelo meu agir intencional, mas se refere exatamente à responsabilidade histórica que precisa ser assumida por todos os indivíduos e que precisa ser corrigida tanto nos atos morais privados (nos atos de beneficência), quanto pela criação de instituições políticas que controlem a economia de modo a que ela gradativamente possa acabar com a pobreza e a miséria, que se existe, não deve ser compreendida como efeito de uma causalidade natural, mas que é sempre fruto da ação humana e por isso é aos homens que cabe a responsabilidade de corrigir os erros e solucionar os problemas criados pela sua forma de organização social e política.24 Como fazer isso? Pelas vias legítimas da política e da regulação econômica pelo Estado republicano.25

4. Conclusão

Para Nozick, os menos economicamente dotados ganham mais do que os mais economicamente dotados ao ingressarem na sociedade civil, em outras palavras, os pobres tiram mais vantagem de viverem em um Estado, ainda que seja o Estado mínimo, do que os ricos.26 Além disso, o que faz com que os pobres ou os menos dotados reclamem tanto não é a injustiça, mas a inveja, sendo esse o sentimento que os faz defender a igualdade, visto não possuírem nenhum argumento para isso.27 Ele vai além e também chama de “ideólogos” aqueles que defendem que é necessária a intervenção estatal para acabar com a miséria e a fome (cf. Nozick 2011: 345).
A partir do que foi apresentado nesse artigo pode-se sustentar que, segundo a filosofia moral kantiana, a teoria libertariana não passa de uma espécie de egoísmo moral28 que se expressa na alegada tese de um direito de não fazer nada legitimado num suposto dever de não intromissão. Da perspectiva da filosofia kantiana, esse posicionamento gera um vazio moral, uma espécie de niilismo que é exatamente o oposto do dever kantiano de “tratar a si mesmo e a todos os outros seres racionais como fins em si mesmos”, isto é, como seres dotados de dignidade e acima de todo preço. Em certo sentido, pode-se dizer também que, da perspectiva moral kantiana, a teoria libertariana gera uma grave espécie de “autismo moral” na medida em que constrói uma visão de mundo individualista e autocentrada, a qual não consegue compreender a diversidade e a complexidade das formas pelas quais a liberdade se realiza e também das formas pelas quais a liberdade pode ser comprometida nas relações históricas e sociais.
Em suma, este artigo mostrou que o libertarianismo de Nozick não pode ser visto, seja em sentido estrito, sejam em sentido lato, como uma teoria moral que seja herdeira da filosofia kantiana, pois ele contradiz tanto os princípios morais fundamentais (éticos e jurídicos) da filosofia kantiana, quanto constrói uma visão moral de mundo antagônica àquela resultante da filosofia prática (histórico-política) kantiana.

NOTAS

1. Cf. “Quer sejam efetivados por meio de tributação salarial, quer dos salários que ultrapassem determinado patamar, do confisco dos lucros ou da existência de um cadinho social – de modo que não fique claro o que vem de onde nem para onde vai – os princípios padronizados da justiça social implicam a padronização das ações de outras pessoas. Confiscar o resultado do trabalho de alguém equivale a confiscar horas de sua vida obrigando-o a exercer várias atividades. Quando pessoas o obrigam a fazer determinado trabalho, ou um trabalho não remunerado, por certo período de tempo, elas estão resolvendo o que você tem de fazer e que propósitos seu trabalho tem de satisfazer, sem levar em conta as suas decisões. O processo por meio do qual essas pessoas tiram a decisão de você faz que elas passem a ser proprietárias de parte de você. Exatamente como o fato de ter semelhante controle parcial e poder de decisão, por direito, sobre um animal ou objeto inanimado, equivaleria a ter um direito de propriedade sobre o animal ou o objeto.” (Nozick 2011: 221s.)
2. Alguns exemplos de literatura acerca da obra de Nozick são: Cohen 1995, Lacey 2014, Schmidtz 2002, Wolff 1991.
3. Um caso hipotético criado por Pogge para ilustrar as consequências do libertarianismo pode ser visto em Pogge 1989: 49s. Segundo ele, a partir de certas circunstâncias a teoria libertariana deveria considerar como legítima a atuação do Estado no cumprimento de contratos que conduziriam a situações bárbaras, como, por exemplo, não apenas a legitimidade do estupro, como também a atuação do Estado para a garantia do estupro.
4. “Segundo o conceito do dever necessário para consigo mesmo, o homem que anda pensando em suicidar-se perguntará a si mesmo se a sua ação pode estar de acordo com a ideia da humanidade como fim em si mesma. Se, para escapar a uma situação penosa, se destrói a si mesmo, serve-se ele de uma pessoa como simples meio para conservar até o fim da vida uma situação suportável. Mas o homem não é uma coisa; não é portanto um objeto que possa ser utilizado simplesmente como um meio, mas pelo contrário deve ser considerado sempre em todas as suas ações como fim em si mesmo. Portanto, não posso dispor do homem na minha pessoa para o mutilar, o degradar ou o matar.” (cf. Kant 1980a: 136 / GMS, AA 04:429) Todas as referências às obras de Kant serão feitas inicialmente segundo a regra autor/data, e após a barra segundo as regras estabelecidas pela Akademie Ausgabe.
5. Sobre a análise detalhada deste assunto e de um exemplo análogo verificar Ripstein 2009: 86-146, especialmente 97ss.
6. Cf. “Mas é claro que um homem que estivesse inteiramente sozinho sobre a Terra não poderia adquirir ou ter como seu nenhuma coisa externa, porque entre ele, como pessoa, e todas as outras coisas externas, como coisas, não existe de forma alguma uma relação de obrigação. Logo, não existe também um direito (direto) sobre uma coisa, entendido em sentido próprio e literalmente, mas apenas é chamado assim aquilo que compete a alguém em relação a uma pessoa que se encontra na posse comum com todos os outros (no estado civil)” (Kant 2014: 69 / MS, AA 06: 261).
7. Sobre o conceito de insociabilidade ver Klein 2013a.
8. O tema da relação entre direito nacional e internacional não é um tema central neste artigo, por isso é aqui apenas mencionado.
9. Nesse mesmo sentido ver Pinzani 2016.
10. Não se pretende aprofundar aqui as diversas diferenças entre os dois conceitos de propriedade. De modo geral se está aqui de acordo com Westphal 2002 que inclusive defende que no estado de natureza não se deva utilizar o conceito de propriedade privada, mas apenas de possessão. Nesse sentido, ver também Madrid 2013.
11. Esse contrato estaria bem próximo daquele apresentado por Rousseau como um contrato de escravidão: “Faço contigo uma convecção em que fica tudo a teu encargo e tudo em meu proveito, que observarei enquanto me aprouver, e que tu observarás enquanto isso me agradar” (Rousseau 1999: 18).
12. Sobre uma caracterização detalhada sobre esse tópico ver Klein 2015, 2012, 2013c.
13. Sobre isso ver “Prolegômenos” (Kant 1980b, 80s / Prol, AA 04: 356f.). Sobre uma análise detalhada da argumentação por analogia em Kant ver Beckenkamp 2008 e Hamm 2013.
14. Uma defesa da leitura prática da filosofia da história kantiana se encontra em Klein 2013b y 2014b.
15. Sobre isso ver Klein 2016, no prelo.
16. Cf. “Nessa propriedade territorial originalmente adquirida se baseia o direito do comandante supremo, enquanto proprietário supremo (senhor da terra), de taxar os proprietários privados da terra, i. é, de exigir tributos, através do imposto territorial, sisa e taxas alfandegárias, ou através de prestação de serviços (como a apresentação de homens para o serviço militar), mas de tal maneira que o povo se taxa a si mesmo, porque este é o único modo de proceder nisso segundo leis jurídicas (...).” (Kant 2014: 141 / MS, AA 06: 325).
17. Esse uso dos conceitos de sincrônico e diacrônico é tomado emprestado de Pinzani 2013: 138, que os utiliza para distinguir a vontade de todos (volonté de tous) da vontade geral (volonté générale).
18. Cf. “Com efeito, apoio-me no meu dever inato, em todo o membro da série de gerações – em que eu (enquanto homem em geral) me encontro e, no entanto, com a constituição moral que me é exigida não sou e, por conseguinte, também poderia ser tão bom como devia – de atuar de tal modo sobre a descendência que ela se torne sempre melhor (para o que se deve também supor a possibilidade) e assim semelhante dever se poderá transmitir regularmente de um membro das gerações a outro” (Kant 2001: 97 / TP, AA 08: 309).
19. Sobre isso ver a situação inusitada levantada pela notícia de que Ryoei Saito supostamente teria afirmado que queria ser enterrado ou cremado com as suas principais peças de colecionador de obra de arte, entre elas o quadro de Van Gogh Retrato do Dr. Gachet.
20. Sobre o conceito bastante peculiar de liberalismo republicano de Kant ver Klein 2016a.
21. Cf. “É inútil investigar a origem histórica desse mecanismo, i. é, não se pode ir além do instante inicial da sociedade civil (pois os selvagens não criam um instrumento de sua submissão à lei, e pode-se deduzir já da natureza de homens rudes que eles terão começado com a violência)”, Kant 2014: 159 / MS, AA 06: 339. Também sobre isso cf. Kant 2009.
22. Sobre isso conferir Pogge 1989: 15-62 e Wolff 1991.
23. Sobre isso ver Sandel 2014a: 57s. Sandel apresenta uma grande gama de exemplos de como a visão monetarista, a qual encontra base no libertarianismo, corrói os valores morais (cf. Sandel 2014b).
24. Uma das versões naturalistas foi defendida, por exemplo, por Malthus 1996 que sustentou que a fome é uma forma de “mão invisível” que atua na regulação demográfica, dado que a população cresce mais do que seus recursos alimentares. Dessa forma, culpa-se os pobres pela sua “reprodução” e pela destruição dos recursos naturais. Contudo, esse mito foi posto abaixo pelos dados que mostram que a produção de alimentos é suficiente para alimentar 12 bilhões de pessoas (cf. Ziegler 2006). A fome não é uma forma de lei da natureza que regula a densidade demográfica, mas é uma questão política. Nesse sentido, pode-se concordar com Ziegler: “Admirável Malthus! Provavelmente sem pretendê-lo de forma deliberada, ele libertou os ocidentais de sua má consciência [...] Naturalizando o massacre, creditando-o à necessidade, Malthus livrou os ocidentais de sua responsabilidade moral” (Zigler 2013: 108). Uma defesa detalhada do direito a uma alimentação adequada a partir da filosofia moral kantiana é feita por Soares 2015.
25. Uma análise e defesa detalhada sobre a filosofia kantiana da história como uma teoria da responsabilidade histórica é desenvolvida em Klein 2016b, no prelo.
26 Cf. “É difícil deixar de concluir que os menos dotados ganham mais que os mais dotados com o sistema de cooperação geral. O que se depreende dessa conclusão? (...) O que efetivamente se depreende da conclusão é uma profunda suspeita de que, em nome da equidade, se pretende impor limites à cooperação voluntária (e ao conjunto de bens dela resultante), fazendo com que os que já tiraram o máximo de vantagem da cooperação geral se beneficiem ainda mais!” (Nozick 2011: 250s.).
27. Cf. “Será que é tão inverossímil afirmar que por trás dessa concepção de justiça está a inveja, e que ela é parte integrante de sua noção basilar?” (Nozick 2011: 297, 312, 317); “Em vista da enorme capacidade que as pessoas têm de criar princípios para racionalizar seus sentimentos, e dada a imensa dificuldade de encontrar argumentos que defendam a igualdade como um valor em si, essa resposta, para dizer o mínimo, carece de comprovação” (Nozick 2011: 310).
28. Kant aproxima o solipsismo com o egoísmo moral: “o egoísta moral é aquele que reduz todos os fins a si mesmo, que não vê utilidade senão naquilo que lhe serve, e também como eudemonista coloca simplesmente na utilidade e na própria felicidade, e não na representação do dever, o fundamento de determinação supremo de sua vontade” (Kant, Anth. AA 07: 130).

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Recibido: 12-2015;
aceptado: 08-2016

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