SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46 número1Democráticamente equivocados: ignorancia del votante, epistocracia y experimentalismo democráticoPresentación índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

  • No hay articulos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Revista latinoamericana de filosofía

versión On-line ISSN 1852-7353

Rev. latinoam. filos. vol.46 no.1 Ciudad Autónoma de Buenos Aires jun. 2020

http://dx.doi.org/10.36446/rlf2020196 

Artículos

O problema da restituido em Tomás de Aquino

The Problem of Restitution in Thomas Aquinas

VITOR LEANDRO KAIZER1 

1Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Resumo

No presente artigo tratou-se sobre a Questáo 62 da Secunda Secundae, da Suma Teológica de Tomás de Aquino. O objetivo principal foi apresentar e discutir a perspectiva do filósofo sobre o problema da restituifáo. A relevancia desta pesquisa está no fato de que o tema tratado apresenta consideráveis discussoes acerca de problemas extremamente atuais; sobretudo, porque a restituifáo, segundo Tomás, visa restabelecer um estado de harmonia social e individual e, portanto, é essencial ao bem estar social. Sendo assim, apresenta- ram-se os oito artigos pertinentes a restituifáo e se tra- balhou no sentido de fazer aproximafoes entre as prin- cipais ideias expostas. Deste modo, foi possível chegar a conclusáo de que o tratamento que o filósofo dá ao problema provém de uma análise racional sobre o im perativo da justifa para o convivio social e que a res- tituifáo é um meio de estabelecer novamente o equi- líbrio social e o bem estar individual quando a justifa tenha sido ferida.

Palavras-Chave: filosofía; Tomás de Aquino; justifa; direito; resti; tuifáo

Abstract

This article deals with Question 62 of the Secunda Secundae, of the Theological Sum ofThomas Aquinas. The main objective was to present and discuss the philosopher’s perspective on the problem of restitution. The relevance of this research lies in the fact that the subject treated presents considerable discussions about extremely current problems; above all, because the restitution, according to Thomas, aims to reestablish a state of social and individual harmony and, therefore, is essential to social welfare. Thus, the eight articles pertaining to the restitution were presented and efforts were made to approximate the main ideas presented. In this way, it was possible to conclude that the philosopher’s treatment of the problem comes from a rational analysis of the imperative ofjustice for social life and that restitution is a means of reestablishing social balance and individual well-being when justice has been wounded.

Key-words: philosophy; Thomas Aquinas; justice; right; refand

1. A justifa em Tomás de Aquino

problema da justifa é um assunto frequente em Tomás de Aquino, de modo que essa constancia representa uma tentativa de esclarecimento do conceito. A palavra justifa recebeu usos e significados amplos no curso histórico das sociedades, mas, apesar disso, caracteriza-se como uma espécie de primazia pela correfáo e equidade. O próprio símbolo da justifa em afáo na balanfa de dois pratos representa a ideia da severidade na aferifáo de duas medidas e a constatafáo lógica de um único resultado. Portanto, justifa é um estado de coisas e relafoes equilibradas.

Sendo a justifa um atributo lógico e necessário para a preservafáo da harmonia em meio a diversidade do conjunto que impoe a vida em so- ciedade, Tomás identificará nela o fator indispensável para a regulafáo da vida social do homem. Neste sentido, González entende que

[...] se o homem fosse um ser solitario, se náo houvesse outros homens, náo haveria necessidade de ordenar afoes pela virtude da justifa, cuja missáo é justamente regular as relafoes com os outros - seja o outro em geral (no casode justifa legal) ou o outro individuo (no caso de justifa especial) (González 2016: 13, tradufao nossa).

Se o homem é um ser que vive em sociedade, entao certa regulafao das suas afoes no ámbito social se apresenta como medida essencial para a preservafao desse equilibrio. Tomás compreende a justifa como um im perativo para a conservafao da vida em sociedade, pois sem ela nao seria possivel a consecufao, ou a sustentafao, de um estado harmónico. Por esta razao, Culleton afirma que,

a tradifao tomista entende que os homens estao unidos na sociedade para suprir suas necessidades e para beneficiar a vida em sociedade e nenhum deles tem o direito de abusar dos outros, que essa pessoa iria contra a própria lógica que justifica a constituifao da sociedade, que é o favorecimento mutuo e a satisfafao das necessidades. A vida em sociedade exige a equivalencia (Culleton 2017: 252).

Essa equivalencia entre os individuos que compoem o corpo social emana do entendimento de que justo é aquilo que pertence a determinado sujeito, ao passo que injusto é aquilo que nao lhe pertence. Portanto, para o bem coletivo, a justifa deve ser vista como um ideal capaz de guiar, orientar e respaldar as atitudes dos individuos na consecufao da harmonia social.

Na obra Suma Teológica, Tomás de Aquino desenvolve essa pro blemática partindo do principio de que a justifa seja uma virtude do ser humano (Cf Tratado das virtudes em geral: ST, I-II, Q 55-67). Neste sentido, compreende que

uma virtude pode ser considerada, na sua espécie, maior ou menor, absoluta ou relativamente falando. E absolutamente maior aquela em que esplende um maior bem racional [...]. E a esta luz, a justifa tem preexcelencia sobre todas as virtudes morais, como sendo mais próxima da razao; o que claramente se manifesta tanto pelo seu sujeito como pelo seu objeto. Pois, o su jeito da justifa é a vontade, que é o apetite racional, segundo já foi claramente estabelecido. O objeto ou matéria da justifa sao os atos pelos quais o homem tem relafao, nao só consigo mesmo, mas também com outrem. Por onde, a justifa é a preclarissima das virtudes [...] (Tomás, ST I-II, Q 66, A 4, resp.).

Na percepfao do filósofo, a justifa se reveste de um atributo lógi co-moral que se manifesta tanto como uma vontade racional condutora dos atos dos seres pensantes -por conseguinte, dos seres virtuosos-, como também em fatos que refletem, por correspondencia a ponderafao que cada qual exerce em sua própria consciencia, o maior ou menor grau de ativafáo dessa mesma vontade racional. Assim, Tomás entende que a justifa seja a virtude de maior excelencia, pois é ela quem produz os maiores beneficios a razáo que, por sua vez, traduz-se na harmonia social.

Portanto, em principio, o objeto da vontade contém todos e cada um dos bens particulares que se referem a consistencia de nossa natureza e, em suma, ao bem humano. Ainda assim, [...] na prática, a realizafáo do bem humano significa informar cada afáo particular com uma razáo particular. (González 2016: 17-18, tradufáo nossa).

Sendo os efeitos da justifa benéficos a todos os individuos que dela participam e em cuja virtude maior está a de guiar os atos humanos no ámbito do convivio e das relafoes sociais na busca pela conservafáo do equi librio, entáo o continuo esforfo pela execufáo de afoes justas, entendidas pela autora como um bem humano, pode ser alcanfado por meio da preme- ditafáo lógica sobre as possiveis consequencias decorrentes de cada afáo. Por isto, Tomás compreende que a virtude humana torna bom o ato humano e o agente que o pratica, o que é próprio da justifa. Pois, os atos humanos sáo bons por se sujeitarem a regra da razáo, que os retifica. Por onde, a justifa, retificando as afoes humanas, é claro que as torna boas. E, como diz Túlio, por causa da sua justifa é que certos homens se chamam bons. Por onde, como diz no mesmo lugar, nela é máximo o esplendor da virtude (Tomás, ST, II-II, Q 58, A 3, resp.).

Assim, a virtude da justifa tem precedencia sobre todas as virtudes desejáveis a natureza humana, pois somente ela se manifesta como um querer capaz de animar a razáo em sua busca incessante pela compreensáo do mundo, do homem e da sua relafáo com o próximo. Dito isto, “[...] só podemos antecipar os fins e o sentido objetivo das [...] inclinafoes e, assim, abrir a esfera de afoes e fins devidos, isto é, a esfera ética, a luz do intelecto” (González 2016: 20, grifos da autora, tradufáo nossa). Sendo a luz projetada pelo intelecto, a claridade imposta pela razáo, a referencia do homem ante o terreno da vida prática e os seus desafios, a justifa para Tomás de Aquino deve ser entendida como o resultado dessa busca constante e interminável do individuo pela sua reta conduta, a qual, antecipando racionalmente o re sultado de qualquer afáo, projeta sobre elas a luz da razáo com o intuito de que nem o próximo, nem ele mesmo venha a sofrer com as consequencias daninhas dos seus atos irrefletidos. De modo ainda mais objetivo é possivel afirmar que, “[a justifa na visáo de Tomás é entendida como uma] vontadeconstante e perpetua de dar a cada um o que lhe pertence [...]” (Cruz 2005: 130). O ser humano, ao desviar-se da normativa imposta pela própria racio- nalidade que o caracteriza como ser pensante e praticar uma afáo injusta, torna-se responsável por originar um estado de desequilibrio inconveniente a desejada harmonia social.

2. A restituifáo

ajustifa comutativa é um meio de regulamentafáo das relafoes sociais, pois, se numa relafáo de cambio entre dois individuos

a justifa é ferida, entáo uma discordancia é criada em funfáo desse ato (Cf Tratado sobre justifa: ST, II-II, Q 57-122). Ora, esse desacordo consiste no fato de que um estado de igualdade, anteriormente existente entre aqueles individuos, foi desconfigurado. A injustifa comutativa é o resultado de uma desproporfáo criada entre dois sujeitos -como, por exemplo, num negócio onde apenas um dos negociantes se beneficia.

Para esses casos em que um estado de proporcionalidade entre dois individuos é danificado, determinados expedientes visam solucionar ou, ao menos, amenizar os danos produzidos. A restituifáo é um recurso que possi- bilita o restabelecimento daquela condifáo anterior que foi perdida, a saber: o estado de justifa. Assim sendo, Tomás de Aquino assegura que “restituir náo é senáo estabelecer outra vez alguém na posse ou no dominio da sua coisa” (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 1, resp.). Restituir é uma forma de oportunizar o restabelecimento de um estado de justifa perdido e, consequentemente, a harmonia social.

Na tentativa de clarificar a funfáo da restituifáo dentro do universo da justifa, Tomás de Aquino, no Artigo 1° da Questáo 62 da Secunda Se- cundae, contrapoe algumas ideias consideradas equivocas. O filósofo inicia afirmando que “a restituifáo opoem-se ao furto. Ora, o furto da coisa alheia é um ato de injustifa, na comutafáo. Logo, a restituifáo dela é um ato de justifa reguladora da comutafáo” (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 1, s. c.). Res tituir, para Tomás, é um imperativo que emana da consciencia dos bene ficios e vantagens que a justifa pode conceder a vida em sociedade. Assim, sempre que um estado de justifa, um estado de igualdade entre dois sujeitos é abalado por algum tipo de injustifa, entáo a restituifáo aparece como a oportunidade de restabelecimento daquela condifáo perdida. Nas palavras de Culleton (2017: 249): “Para o Aquinate, remediar o dano sofrido por aquele de quem se tirou algo injustamente (62. 6 ad 3), isto é, a restituifáo, ‘é um ato de justifa’ (64. 8)”. O pensamento de Tomás manifesta a convicfáo aristotélica da necessidade de proporcionalidade que impera dentro da justifa comutativa: “[...] O justo é [um estado] intermediario entre uma especie de ganho e uma espécie de perda, a saber, os que sao involuntarios. Consiste em ter uma quantidade igual antes e depois da transafao” (Aristóteles, ENV 4, 1132b 18-20); e, sendo o furto um ato de injustifa comutativa, a restituifao torna-se indispensável para que a justifa seja restaurada. Segundo o entendi- mento de Culleton,

a justifa comutativa se baseia no necessário respeito pela igualdade em transafoes ou contratos, de tal forma que nenhuma das partes esteja em uma posifao pior do que a outra depois que a transafao é realizada. Como consequencia, a justifa comutativa corresponde a um “raciocinio arit mético”, segundo o qual as partes devem trocar mercadorias equivalentes. Neste tipo de justifa, o principio que rege seria “dar a cada pessoa o que é seu” (Culleton 2017: 252).

Essa heranfa aristotélica, cuja percepfao de que a razao com sua lógica matemática inequivoca no terreno dos valores quantitativos impoe a necessidade de igualdade entre as partes envolvidas em uma transafao, é marca indelével no pensamento de Tomás de Aquino. De modo que este filósofo considera a restituifao como um imperativo de justifa, já que de uma forma ou de outra esta última foi violada pela irreflexao. Deste modo, entende-se que,

[...] na restituifao, considera-se a igualdade da justifa fundada na compen- safao de uma coisa com outra, o que pertence á justifa comutativa. Por tanto, a restituifao é um ato de justifa comutativa, isto é, quando a coisa de um é possuida por outro, quer, por vontade deste, como no mútuo ou no depósito, quer, contra a vontade, como no roubo ou no furto (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 1, resp.).

Restituir é compensar uma injustifa perpetrada; por exemplo, através do furto. Logo, torna-se necessária por duas razoes: I) porque algo foi sub- traido de alguém e acrescentado a outro de forma indevida, causando um desequilíbrio; II) porque alguém feriu o seu próprio senso de justifa e, com isso, feriu a própria racionalidade que o define como ser humano. Nesse caso, a restituifao deve ser analisada também sob duas óticas: I) deve com pensar a injustifa comutativa praticada; e, além disso, II) deve possibilitar o restabelecimento na consciencia do agente dessa injustifa aquele estado anterior ao ato do furto, ou seja, sua própria racionalidade em premeditar as consequencias das suas afoes e a sua própria dignidade como ser pertencente a uma coletividade.

O Artigo 2° da Suma trata sobre Se é necessário, para a salvagao, fazer-se a restituigao do que foi tirado injustamente a outrem. Nele, o filósofo contesta algumas opinioes contrarias a necessidade da restituifáo para a “salvafáo da alma”. Salienta que “náo é remetido o pecado se náo for restituido o que foi injustamente tirado” (Agostinho apud Tomás, ST, II-II, Q 62, A 2, s. c.). Nesta afirmafáo, destaca-se a ideia de que a restituifáo prima, também, pela retomada de um estado de consciencia perdido pelo agente do delito. Essa busca por um restabelecimento de um “estado de consciencia perdido” pode, muito bem, ser aproximada a afirmafáo de que se deve restituir para se salvar. Corrobora com essa visáo a seguinte declarafáo: “Ora, [ao] observar a justifa sendo de necessidade para a salvafáo, é consequente que seja de tal neces sidade restituir o que foi injustamente tirado” (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 2, resp.). O filósofo enfatiza que a consecufáo da justifa é um imperativo para a salvafáo da alma, do que se pode entender que a justifa é tida como algo maior do que uma simples prática necessária a vida em sociedade; restituir é também uma maneira de restabelecer no delinquente sua condifáo de dig- nidade anterior. Portanto, somente através da restituifáo sáo restabelecidas ao mesmo tempo a satisfafáo no injustifado e a condifáo prévia do autor da injustifa.

O Artigo 3° trata sobre Se basta restituir simplesmente o que foi injusta mente tirado a outrem.Tomás inicia a exposifáo dos seus argumentos insistindo na ideia de que

[...] a restituifáo reduz a igualdade o que, tendo tirado a alguém, causou uma desigualdade. Ora, quem restituiu simplesmente o que tirou restabelece a igualdade. Logo, só está obrigado a restituir tanto quanto tirou (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 3, s. c.).

De modo a salientar a importancia da restituifáo, o filósofo reitera a sua obrigatoriedade; apesar disso, considera que

dois casos devemos considerar, no ato pelo qual nos apoderamos injusta mente da coisa alheia. Uma é a desigualdade real, que as vezes, náo implica injustifa, como no mutuo. Outra é a culpa da injustifa, que pode coexistir com a igualdade real; assim, como quando queremos aplicar a violencia, mas, sem o conseguir (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 3, resp.).

Tomás explica que pode haver injustifa mesmo náo havendo uma desigualdade entre pares, o que náo exime do sentimento de culpa o sujeito cujo empreendimento falhou. Sendo assim, Tomás (ST, II-II, Q 62, A 3, resp.) entende que, havendo culpa, há necessidade de pena, pois a finalidade desta é, únicamente, “emendar” o delinquente (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 3, ad. 3), aliviando o seu sentimento de culpa.

No Artigo 4°, que versa sobre Se devemos restituir o que nao tiramos injustamente a outrem, o filósofo insiste na ideia de que, em lato sensu, a resti tuifáo aplica-se como compensafáo de uma desigualdade. Com isto, Tomás (ST, II-II, Q 62, A 4, s. c.) entende que “[...] náo haveria igualdade se resti- tuíssemos o que náo tiramos. Logo, náo é justo [restituir quando náo se tirou nada injustamente]”. Portanto, se está obrigado a restituir sempre que se tenha causado algum dano a alguém.

Apesar disto, entende que uma pessoa pode ser danificada de duas formas: naquilo que já possuía e naquilo que, provavelmente, chegaria a possuir (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 4, resp.). A reparafáo da primeira requer a restituifáo integral do bem; já no caso da segunda, declara que

[...] náo devemos reparar por uma compensado igual. Porque é menos ter uma coisa virtualmente, que em ato. Ora, quem está em via de alcanzar alguma coisa, tem-na só virtual ou potencialmente. Portanto, se lhe restituíssemos de modo a lhe fazer possuí-la em ato, restituiríamos que lhe tiramos, náo simples- mente, mas, multiplicadamente, o que a restituido náo exige, como dissemos. Estamos, porém, obrigados a dar alguma compensado, conforme a condifáo das pessoas e dos negócios (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 4, resp.).

Com essa distinfáo, o filósofo caracteriza o tipo de compensafáo que se deve quando alguém sofre danos em algo que ainda náo tenha, mas que possivelmente viria a ter se náo tivesse sido prejudicado, como num plantio em que ainda náo obteve colheita alguma. Inclusive nesses casos de bens em potencial, se está obrigado a restituir proporcionalmente ao estado da posse, levando-se sempre em considerafáo o fato de que possuir algo em potencial náo é o mesmo que possuir em ato.

Já o Artigo 5° articula sobre Se devemos sempre restituir aquele de quem recebemos alguma coisa. Por mais que a filosofía tomista seja extremamente rigorosa quanto a obrigatoriedade de compensafáo em casos de injustifa comutativa, nesse artigo, o filósofo considera algumas situafoes onde a res- tituifáo deve ser pontualmente avaliada. No caso de uma coisa que se deva restituir a alguém, mas que devido a mesma restituifáo essa poderia ser-lhe prejudicial, Tomás adverte que,

[nesse caso,] náo se lhe deve entáo restituir, porque a restituifáo se ordena á utilidade daquele a quem é feita; pois, tudo o que possuímos deve nos ser de alguma utilidade. Contudo, o detentor da coisa alheia náo deve apropriar-se dela, mas, guardá-la para a restituir em tempo oportuno, ou entregar para ser conservada em outra parte, de maneira mais eficaz (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 5, ad. 1).

Como restituir é um ato de justifa comutativa, o qual, por sua vez, visa a consecufáo de um estado de equidade perdido, de modo algum a res tituifáo pode ser regulamentada por um automatismo inconsequente, mas sim deve ser guiado através da premeditafáo das suas últimas consequencias.

Outro caso apresentado pelo filósofo nesse mesmo artigo trata sobre a restituifáo nos casos em que a pessoa a quem se deve tenha morrido, ou seja desconhecida; nesses casos, Tomás (ST, II-II, Q 62, A 5, ad. 3) infere que

[...] devemos [restituir] na medida do possível, por exemplo, dando esmolas pela sua salvafáo, quer esteja morto, quer esteja vivo; mas, depois de feita a procura diligente dessa pessoa a quem devemos restituir.

Assim sendo, o devedor náo é isentado de fazer a devida restituifáo e a sua oportunidade de restabelecer-se no estado de consciencia e dignidade perdidos náo lhe é cerceada.

Em outra considerafáo, ainda, Tomás de Aquino afirma que

[...] náo devemos recompensar nosso benfeitor com o bem alheio, o que se daria se restituíssemos a um o que devemos a outro. Salvo em caso de extrema necessidade, em que poderíamos e deveríamos até mesmo tirar o alheio para socorrer um pai (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 5, ad. 4).

Quer dizer, jamais se pode restituir alguém com aquilo que per- tenfa a outrem. Contudo, há casos de extrema necessidade em que o fi lósofo cogita essa possibilidade, como quando para socorrer um pai ou outra pessoa a quem se deva muitíssimo e que, apesar dessa urgencia, a restituifáo a esse terceiro deverá ser efetuada. O último caso tratado nesse mesmo artigo contrapoe a ideia de que é inútil restituir aquilo que venha a parar novamente em máos do próprio restituidor, como, por exemplo, um administrador que desviou fundos da sua própria empresa. Tomás (ST, II-II, Q 62, A 5, ad. 5) insiste na ideia de que o que se deve tem de ser restituido e, mesmo no caso em que a restituifáo volte para as máos do próprio resti tuidor, deve-se executá-la com o cuidado de que chegue as instancias supe riores; ao acrescenta: juntamente a restituifáo, o delinquente deve se abster do animo que o levou a delinqüir, de modo que náo reincida no mesmo delito (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 5, ad. 5).

No Artigo 6°, versando sobre Se quem se apoderou da coisa alheia está sempre obrigado a restituí-la, o filósofo apresenta duas considerafoes a serem feitas com relafao a quem se apoderou de coisa alheia: “[...] a coisa mesma de que se apoderou e o ato de apoderamento” (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 6, resp., grifos nossos). Quanto a coisa apoderada, Tomás afirma que

[...] quem dela se apossou está obrigado a restituí-la enquanto a tiver em seu poder; porque quem tem mais do que aquilo que lhe pertence, deve privar-se disso e dá-lo a quem tem falta, conforme a razao formal da justifa comutativa (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 6, resp.).

Conforme o filósofo, o apoderar-se indevidamente de alguma coisa incorre na obrigatoriedade da restituifao, pois feriu a razao que impoe a justifa comutativa;já o ato propriamente dito do apoderamento merece uma análise mais aprofundada.

Pois, assim como quem feriu a outrem está obrigado a dar uma reparafao ao que sofreu a injuria, embora nenhum proveito do ato tire o autor, assim também quem furta ou rouba está obrigado a reparar o dano causado, embora nenhum proveito conserve do seu ato; e, além disso, deve ser punido, por causa da injustifa cometida (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 6, resp.).

Essa obrigatoriedade de reparar nao só a coisa a qual se privou alguém de modo injusto, mas também a afao praticada, é tratada com tamanha rele vancia que ambas sao consideradas como injustifas e, portanto, requerem a devida restituifao. E acrescenta:

[Também] está obrigado a restituir o que recebeu, nao só considerando-se a coisa em si mesma, mas também levando-se em conta o ato de te-la recebido, mesmo que já a tenha perdido. Pois, está obrigado a recompensar quem lhe prestou o servifo; o que nao se dará, se este vier a ser prejudicado (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 6, resp.).

Segundo Tomás, nao se deve só restituir a coisa recebida -como num empréstimo-, mas, também, considerar o uso que se fez dessa coisa, ou o des gaste que teve. Outra abordagem, ainda, diz respeito ao depósito. O depósito difere do empréstimo em vários pontos, pois, contrário ao empréstimo que é util ao recebedor, o depósito é uma prestafao de servifo por parte de quem o recebe, já que nao lhe é favorável. Justamente por esse desinteresse da parte de quem fica com a posse do bem em depósito, Tomás (ST, II-II, Q 62, A 6, resp.) afirma que, “se lha subtraírem, sem sua culpa, nao está obrigado a restituí-la. Diferente porém seria o caso se, por grande culpa sua, perdesse o depósito”. Com isto, pode-se entender que, nos casos de depósito, nao háobrigatoriedade de restituifáo desde que o bem nao tenha sido extraviado por culpa ou negligencia de quem deveria te-lo conservado.

Já no Artigo 7°, Se quem nao tomou o alheio está obrigado a restituir, o filósofo complementa essas prescrifoes dizendo que, está obrigado a restituir, “[...] todo aquele que é causa de uma apropriafáo injusta [...]” (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 7, resp.). Portanto, está obrigado a restituifáo todo aquele que, “[por] mandado, conselho, consentimento, elogio, auxilios, participafáo, si lencio, falta de oposifáo, falta de manifestafáo” (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 7, resp.), tenha sido causa confirmada de apropriafáo injusta. Desses nove casos, os cinco primeiros obrigam a restituifáo:

Primeiro, o mandado, porque quem manda é quem principalmente move e, por isso, está principalmente obrigado a restituifáo. Segundo, o consenti mento naquilo sem que o roubo náo podia ter sido feito. Terceiro, o auxilio, quando alguém asilou o ladráo e lhe prestou ajuda. Quarto, a participafáo, quando tem parte no crime do latrocinio e na presa. Quinto está obrigado a restituir aquele que náo obstou ao roubo, devendo obstá-lo; assim, os chefes, que estáo obrigados a distribuir a justifa na terra, estáo obrigados a restituir se aumentam, por culpa deles, os ladroes; porque os impostos que os chefes recebem sáo estipendios, que recebem para que fafam cumprir-se a justifa na terra (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 7, resp.).

Chama-se a atenfáo para o quinto caso, o qual trata daqueles que, tendo por obrigafáo o dever de obstar um ato criminoso, náo o faz. Com isto, o filósofo censura os responsáveis por venderem ao povo a ideia de “seguranfa” e de “justifa”, mas que náo a poem em prática; esses se tornam delinqüentes por receberem altos estipendios por aquilo que, justamente, náo fazem.

Finalmente, no Artigo 8°, Se estamos obrigados a restituir imediatamente ou se, ao invés, podemos licitamente diferir a restituifáo, é onde o filósofo exige a imediatividade da restituifáo como um principio de justifa. Tomando o apo- derar-se do alheio como pressuposto de injustifa, Tomás (ST, II-II, Q 62, A 8, resp.) infere que “[...] dete-lo [também é injusto]”. Logo, táo injusto quanto a afáo cometida é permanecer com o bem adquirido ilegitimamente. O filósofo insiste que o ato de injustifa cometido deve ser seguido da imediata restituifáo devida: desde que se possa ser feita. Em caso de impedimento, consente a possibilidade de “[se] pedir uma dilafáo a quem pode permitir o uso da coisa” (Tomás, ST, II-II, Q 62, A 8, resp.). Apenas nesse caso, o dono da coisa, ou um “entendido” como chama -o juiz-, tem o direito de con ceder uma ilafáo, o que náo proscreve a restituifáo.

Considerares fináis s

Esignificativo o tratamento que o filósofo dá, ao abordar a resti- tuifáo, ao problema da culpa. Apresentou-se o modo como a fi- losofia tomista trata da justifa como virtude fundamental e diretriz da razáo: sentido esse que na Modernidade é desconstruído com o advento do raciona lismo e a consequente identificando da “verdade” como postulado científico -postulado esse que, após novas descobertas científicas, deixa de representar a “verdade” que representava-. Contudo, o que traz perplexidade e estimula a uma compreensáo de mundo náo como verdade postulada, mas como per- pétua busca pela correfáo, é a relafáo que Tomás de Aquino permite que se fafa entre a necessidade racional da justifa para a vida em sociedade e o senti- mento de culpa que o desvio da irreflexáo produz na consciencia daquele que infringe o seu próprio imperativo de justifa. Do modo como se aproximou ambos os termos ao longo do texto, foi possível inferir que, devido ao senso de justifa ser oriundo da razáo, um ato de injustifa deixa uma marca indelével na sociedade: a desarmonia; e na consciencia do infrator: o sentimento de culpa. Matematicamente, a primeira requer uma compensafáo a injustifa co metida, seja pela coisa que se apropriou, ou pelo ato através do qual a injustifa foi perpetrada ou, quem sabe, somente empreendida; a segunda demanda algo 42 i de maior complexidade: restituir um estado de racionalidade a consciencia daquele sujeito que infringiu a sua maior característica como ser racional: a razáo; mas, também, a sua dignidade frente a sociedade. Portanto, ressalta-se a enfase que o filósofo dá em dirimir, por meio da restituifáo, náo só a injustifa praticada, mas o sentimento de culpa na consciencia do próprio delinquente.

Por fim, percebeu-se que na grande maioria dos artigos da Questáo 62 da Secunda Secundae, da Suma teológica,Tomás de Aquino insiste na ideia de que toda afáo que cause danos a outrem, em ato ou em possibilidade, cons- titui uma afáo de injustifa comutativa e, portanto, implica na obrigatoriedade imediata da restituifáo. De modo que restituir é um meio necessário para restabelecer o equilíbrio social e manter a consciencia sá naqueles indivíduos que compoem o corpo social na finalidade de ajuda mútua.

REFERENCIAS

Aristóteles (EN), Ética a Nicomaco, in L. Vallandro e G. Bornheim (1979) (trads.), Aris tóteles (Sáo Paulo: Victor Civita, v. 2, 45-236). [ Links ]

Cruz, J. (2005), “Direito e o sempre atual Santo Tomás de Aquino”, Revista de Cultura Teológica, 13, (53): 121-134. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index. php/culturateo/article/view/23945/17194. Acesso em: 10 jul. 2018. [ Links ]

Culleton, A. (2017), “A restituido como dever de justia em Tomás de Mercado”, Re vista Filosofia Unisinos, 18, (3): 247-252. Disponível em: http://revistas.unisinos. br/index.php/filosofia/article/viewFile/fsu.2017.183.16/60746110. Acesso em:19 nov. 2018. [ Links ]

González, A. M. (2016), “Natural Law as a Limiting Concept: a Reading of Thomas Aquinas”, in González (2016) (ed.), Contemporary Perspectives on Natural Law:Natural Law as a Limiting Concept (New York: Routledge, 11-28).Links ]

González, A. M. ( 2016 ) (ed.), Contemporary Perspectives on Natural Law: Natural Law as a Limiting Concept (New York: Routledge).Links ]

Thomae de Aquino, Sententia libri Ethicorum, Ed. Leonina (1969), vol. 47. 1. (Roma:Sancta Sabina). Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9498r.r.Acesso em: 16 nov. 2018. [ Links ]

Thomae de Aquino (ST), Summw Theologiw. Opera omnia iussu impensaque Leonis XIII P M . edita (1888-1897), vol. IV-IX, (Roma: Polyglotta). Disponível em: https://ar- chive.org/details/operaomniaiussui09thom/page/n5. Acesso em: 16 nov. 2018. [ Links ]

Thomae de Aquino (ST), Suma teológica, trad. Alexandre Correia (Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1980) [ Links ]

Vallandro, L. e Bornheim, G. (1979) (trads.), Aristóteles (Sao Paulo: Victor Civita). [ Links ]

: de ; Recebido: 09 de Janeiro de 2019; : de ; : de ; Aceito: 01 de Outubro de 2019

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons