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Revista latinoamericana de filosofía

versión On-line ISSN 1852-7353

Rev. latinoam. filos. vol.47 no.1 Ciudad Autónoma de Buenos Aires jun. 2021

http://dx.doi.org/10.36446/rlf2021175 

Artículos

O Sócrates de Xenofonte e o estoicismo (Memoráveis 1.4)

Xenophon’s Sócrates and the Stoicism (Memorabilia 1.4

ALICE BITENCOURT HADDAD1 

1 Universidade Federal Fluminense

Resumo

Esta pesquisa se insere no contexto maior de um estudo sobre os Contra os físicos de Sexto Empírico. Procuramos compreender, neste artigo, a ci- tafáo das Memoráveis de Xenofonte ali presente e sua relafáo com a teologia estoica, uma vez que esta é o alvo principal da crítica de Sexto. Para isso, abordamos o próprio texto de Contra os físicos, de Sexto Empírico; algumas anedotas em Diógenes Laércio e em Themistius (SVF 1.9); De natura deorum, de Cicero; e os Discursos de Epiteto.

Palavras-Chave:

Abstract

This research is part of a study of Sextus Empiricus’ Against the physicists. The present

paper aims to explain the passage of Xenophon’s Memorabilia quoted by Sextus, and its link with the Stoic theology, since this is the main target of Sextus’ criticism. For that, we deal with the following texts: Sextus Empi- ricus’ Against thephysicists, some of Diogenes Laertius’ and Themistius’ (SVF 1.9) anecdotes, Cicero’s De natura deorum and Epictetus’ Speeches.

Key-words: Memorabilia; theology; physics; stoic reception

Em Contra os Físicos, no capítulo intitulado “Se há deuses”, Sexto Empírico afirma que Xenofonte teria um argumento a favor da existencia de deuses. No contexto maior, o que Sexto vem fazendo desde o inicio da obra é lanfar luz sobre a disputa em torno disso que ele con sidera o principal fundamento das físicas de seu tempo, a saber, o princípio eficiente. Como o princípio eficiente é reconhecido por vários pensadores e escolas como Deus, Sexto se detém por dois longos capítulos nesse assunto, específicamente na discordancia em torno da origem da nofáo de “deus” ou “deuses”; em seguida, na discordancia em torno da recusa ou defesa de sua existencia. Xenofonte é enquadrado nesse último grupo, com um ar gumento atribuido a Sócrates nas Memoráveis. Neste trabalho pretendemos analisar o argumento de Xenofonte e a maneira como ele foi apropriado por Zenáo e sua escola.

Contextualizaqao

Antes de prosseguir, é preciso recuperar, de maneira muito breve, a maneira como Sexto encadeia seus argumentos nessa discussáo específica sobre Deus ou os deuses, com vistas a mostrar, primeiro, que seu alvo preferencial nesse contexto é a física estoica, e que Xenofonte só é mencionado ali porque, em certa medida, inspirou o estoicismo (o que ficará mais claro, esperamos, no decorrer do artigo).

Lembremos que, ainda na introdufáo do livro, Sexto apresenta os pensadores que de alguma forma tratam do princípio eficiente (poietike arkhé). Elenca, nesta ordem, Homero, Anaxágoras, Hermótimo de Clazo- menas, Parmenides, Hesíodo, Empédocles e, por último, os estoicos (M. 9.4 111). Cada um desses pensadores nomeia esse princípio de uma maneira:

Proteus, Nous, Eros, Philía etc. Os estoicos usam um nome que doravante será assumido por Sexto como um termo que unifica o que todos esses pensadores estáo entendendo (segundo ele, claro) como principio eficiente: theós, Deus. Segundo os estoicos (M. 9.11), haveria dois principios: Deus e a materia indeterminada (literalmente, sem qualidades - ápoios hyle); Deus como aquilo que age, atua, cria (poieín); a materia como aquilo que sofre, padece, se altera (páskhein; trépesthai). Após essa apresentafáo, Sexto define que atacará esses dois pontos presentes nessa classificafáo (diátaxis), que ele considera ter sido elaborada pelos melhores físicos (M. 9.12).

O primeiro ramo da classificafáo é Deus, e é disso que ele irá tratar inicialmente. E a maneira como Sexto o aborda é interessante porque pres- supoe uma diferenfa bem estabelecida entre a nofáo (énnoia) de Deus e Deus ele mesmo, se existente. Dessa maneira, ele parte de um dos maiores combates (senáo o maior) que céticos e académicos travaram com os es toicos: aquele que questiona a realidade daquilo que nos aparece tal qual nos aparece, com base na suposta evidencia ou clareza daquilo que nos aparece. Desmembrando o problema em dois, Sexto, entáo, primeiro discute a origem da nofáo de Deus, como diferentes pensadores e escolas explicam o fato de representarmos Deus, para, em seguida, questionar tanto a afir- mafáo de inexistencia como a de existencia de Deus ou deuses. O foco da argumentafáo contra os estoicos está, claro, na discussáo sobre os que defendem a existencia de Deus. E desse ponto em diante, boa parte da argu- mentafáo, mesmo que citando outros pensadores, tem uma matriz estoica. Afirmamos isso a partir do próprio texto de Sexto, quando cita estoicos, e a partir do confronto com o texto de Cicero De natura deorum, em que as mesmas estratégias argumentativas pela defesa da existencia de Deus ou deuses sáo reportadas - e, mais do que reportadas, usadas - pelo personagem estoico Lucilio Balbo. Em Sexto (M. 9.60), sáo elas: (1) o consenso uni versal; também em ND 2.5 e associado a Cleanto em ND 2.13; (2) o arranjo ordenado do cosmo; também em ND 2.4 e associado a Crisipo em ND 2.16; (3) o absurdo da negafáo da existencia da divindade - única estratégia em que náo aparecem nomes, de nenhum pensador ou escola, e que náo tem paralelo em ND; e (4) a derrubada dos argumentos oponentes, em que se expoem os argumentos estoicos contra os que afirmam a inexistencia de Deus ou deuses - o primeiro deles em Sexto (M. 9.132) é analisado em detalhes por Balbo em ND 2.7-13, que o atribui a Cleanto; o segundo deles

Diógenes Laércio com DL e os Stoicorum Veterum Fragmenta com SVF. Essas abreviafoes sao as comumente usadas na área dos Estudos Clássicos em geral, porém cabe esse esclarecimento para o leitor nao acostumado.

em Sexto é atribuido a Zenáo; Sexto lhe apresenta uma objefáo e traz em seguida a resposta de Diógenes da Babilonia.

Esse quadro geral visa apenas a mostrar, já de inicio, que, com ex- cefáo da terceira estratégia (porque náo podemos provar, embora suspei- temos de que ela também tenha origem estoica), todas as demais sáo reme tidas a estoicos específicos, seja por Sexto, seja por Cicero. Como dissemos, mesmo quando temos outros pensadores citados, eles sáo citados a partir de um estoico.

A citafáo de Xenofonte se enquadra na segunda estratégia argumen tativa, que trata do arranjo ordenado do cosmo. E é apenas dela que trata remos neste artigo, com o objetivo limitado de entender por que Xenofonte - um autor considerado muitas vezes como secundário pela literatura fi losófica - e em que a passagem das Memoráveis citada por Sexto contribui para o argumento estoico da defesa da existencia de deuses. Creio relevante esclarecer também que a sequencia do Contra os físicos explora a importante influencia do Timeu de Platáo (M. 9.105-107) para essa mesma estratégia argumentativa estoica, porém deixaremos este assunto para um outro artigo, de modo a cuidar com mais detalhamento dessa outra dimensáo do texto (recomenda-se, todavia, para a influencia do Timeu na cosmologia estoica, Betegh 2003).

Xenofonte no Contra os Físicos (M. 9.94-95) e suas Memoráveis

Também Xenofonte, o socrático, propos um argumento a favor da existencia de deuses (lógon eis to eínai theoús), atribuindo a prova (apódeixin) a Sócrates, que, investigando junto a Aristodemo, disse com estas palavras: “Dizeme, Aristodemo, existem aqueles a quem admiras por sua sabedoria? Claro, disse. Entáo quem sáo eles? Pela habilidade poética, admiro Homero; pela escultura, Policleto; e Zeuxis, a dádiva da pintura. E náo é que tu os aprovas pelas coisas produzidas por eles, confeccionadas de maneira extraordinária? Sim!, disse. Se, entáo, uma imagem de Policleto ganhasse vida, tu náo aprovarias muito mais o artífice (tekhníten)? Muito mais! Ora, enquanto miravas uma estátua, dizias que tinha sido confeccionada por um artífice; e mirando um ser humano que se move perfeitamente por ser animado, e bem organizado quanto ao corpo, náo consideras ter sido confeccionado por uma inteligencia extraordinária (nou perittou)? Em seguida, mirando a posifáo e a utilidade das partes, primeiro, que aprumou o homem, deu-lhe olhos de modo a ver as coisas visíveis; audifao, de modo a ouvir as coisas audíveis. Qual a utilidade do odor, se nao tivesse acrescentado as narinas; da mesma maneira, qual a utilidade dos sabores, se a língua, que os discerne, nao tivesse sido produzida? Além disso”, continuou, “sabendo que possuis uma pequena porfao de terra, que é muito abundante, em teu corpo; um pouco de água, que é abundante; e de fogo e de ar da mesma maneira; acreditas que só a inteligencia (noun), nao estando em lugar algum, te alcanfa por pura sorte?” (M. 9.92-94 - esta e as demais tradufoes sao nossas).

O trecho em questao é originado das Memoráveis 1.4, em síntese e com algumas variafoes. Antes de analisar a passagem, cabe notar que as Me moráveis tem uma clara intenfao de defender Sócrates das acusafoes pelas quais foi condenado e morto; que Xenofonte inicia o texto retomando os argumentos dos acusadores e respondendo-os um a um. Entao desde o primeiro capítulo abundam as cenas rememoradas de um Sócrates piedoso: que acreditava nas revelafoes divinas por meio da adivinhafao (1.1.3); que chamava de insensatos aqueles que nao enxergam a providencia divina e creditam tudo a inteligencia humana (1.1.9); que reagira a ilegalidade do processo contra os nove generais por causa de um juramento, e acreditando que os deuses vigiam as afoes humanas (1.1.19); que chamava de loucos os que nao obedeciam aos avisos dos deuses (1.3.4).

No capítulo 4, Sócrates nao somente é caracterizado como piedoso, mas ele chega a procurar convencer Aristodemo, alguém que negligenciava os deuses, a se-lo também. Segundo Xenofonte, esse Aristodemo “nao sacri- ficava aos deuses nem recorria a adivinhafao, mas ria daqueles que o faziam” (Mem. 1.4.2). É entao que Sócrates inicia sua argumentafao, considerada por Sexto um argumento a favor da existencia dos deuses. No original de Xe- nofonte, o diálogo é mais extenso, insistente em certos detalhes. A descrifao das partes do corpo humano e suas utilidades recebe especial atenfao. Após a apresentafao dos sentidos, e que se encontra em Sexto, o Sócrates de Xeno fonte disserta sobre a utilidade das pálpebras, “que se abrem quando preciso e se fecham durante o sono”; dos cílios, que protegem a vista contra o vento; dos supercílios, que formam uma goteira por cima dos olhos para que o suor da testa nao escorra sobre eles; o formato do ouvido, que permite que nao se encha; os dentes, que na frente sao cortantes e atrás triturantes; a boca, perto dos olhos e do nariz, recebendo o que parece apetitoso; e os canais das dejefoes, repugnantes, afastados dos órgaos dos sentidos. Além disso, nao parece casual, segundo a passagem, que os animais desejem se reproduzir, que as maes desejem alimentar seus filhotes e por eles tenham o maior amor e o maior temor de que morram. Toda essa argumentafao (Mem., 1.4.5-7) está fora do texto de Sexto.

Em seguida (1.4.8), Sócrates introduz o argumento da relafáo entre parte humana e parte do todo. Se parte da terra que há no mundo está em nosso corpo; se parte da água que está no mundo está em nosso corpo; por que apenas a inteligencia (nous) seria exclusivamente nossa? Como os seres sáo mantidos em ordem? Como vimos, essa parte do argumento está em Sexto.

O mesmo náo se pode dizer da sequencia, quando Aristodemo levanta a questáo de náo ver os artífices dessa obra. É entáo que Sócrates replica, questionando que a alma também é invisível e nem por isso duvidamos de sua existencia. Náo acreditamos, em nos referindo a nós mesmos, que fazemos tudo ao acaso; pelo contrário, nos reconhecemos agindo com intenfáo, com gnóme. Esse é um termo de difícil tradufáo tendo em vista as implicafoes filo sóficas envolvidas, porém aqui o que parece estar em jogo é a oposifáo entre a afáo desejada, pretendida, intencional e a afáo arbitraria, casual, impensada. Gnóme se opoe, aqui, a tykhe, ao acaso. Pois entáo: mesmo náo vendo a alma, náo deixamos de admiti-la, se a compreendemos como isso que comanda o corpo - Sócrates dirá que ela é a senhora (kyría) do corpo. O argumento é mais simples e persuasivo do que inicialmente pode parecer. Ninguém nega que faz escolhas, ninguém se enxerga agindo arbitrariamente, como se o próprio corpo fosse um estranho em movimento e incontrolável. O oposto é o que o ocorre. Após esse argumento convincente, Xenofonte migra pro contexto do mundo. Se o mundo também náo nos aparece caótico nem arbitrário, mas como algo ordenado (eutáktos ékhein, 1.4.8), é porque ele náo opera por meio do acaso, mas por meio de uma inteligencia. Há, portanto, inteligencia no cosmo, assim como há inteligencia em nós.

Aristodemo responde, entáo, num outro tom, já náo questionando a existencia dos deuses, mas a necessidade de lhes oferecer culto, acrescentando, ainda, como justificativa, que eles náo se ocupariam dos homens. A resposta de Sócrates, curiosamente ausente do texto de Sexto, defende um outro tema caro ao estoicismo, a concepfáo de que o homem seria especialmente cuidado pelos deuses, diferindo-se de outros animais em vários aspectos: por ficar de pé e assim poder ver mais longe, por ter máos, por ter uma língua que lhe permite se comunicar, por um ininterrupto período para os prazeres do sexo até a velhice, por ter uma alma perfeita e capaz de reconhecer a exis tencia dos deuses, por ter a capacidade de premunir-se contra intempéries e doenfas, de desenvolver a forfa com exercício, de adquirir conhecimento, recordar-se do que viu, ouviu e aprendeu. Para esse Sócrates, os homens sáo superiores, em corpo e alma, aos demais animais.

Continuando, Sócrates faz menfáo aos costumes: por que as divin- dades se revelariam a todos os gregos, por meio da adivinhafáo, menos para Aristodemo? Se eles náo pudessem distribuir o bem e o mal, como se acredita, nós já náo teríamos descoberto esse engodo? Por que as instituifoes humanas mais antigas e mais sábias sao as mais religiosas? Por que as épocas mais lúcidas sao as mais piedosas? Para concluir, Sócrates adverte Aristodemo acerca da onisciencia e onipresenfa dos deuses, ocupando-se de tudo ao mesmo tempo.

O texto de Sexto, entretanto, é sintético, deixa de fora vários desses argumentos, e se concentra naquele de que Zenao de Cítio, segundo ele (M. 9.101), teria se apropriado: o argumento da relafao entre parte e todo. Reto mando entao: por analogia, se há muita terra no mundo e um pouco em nós; se há muita água no mundo e um pouco em nós; como acreditar que nossa porfao de inteligencia também nao existe em maior quantidade no mundo? Nas palavras de Zenao, “tomando Xenofonte como ponto de partida” (apo Xenophóntos ten aphormen labon, M. 9. 101), “aquilo que lanfa a semente do racional (logikou) é, ele também, racional (logikón); ora, o cosmo lanfa a semente do racional; logo, o cosmo é racional”. A passagem que Zenao realiza entre o argumento de Xenofonte e seu silogismo envolve muitos outros pontos doutrinais que no momento nao poderíamos explicitar em detalhes. Pela sequencia exposta por Sexto, a chave está na relafao parte-todo, ho- mem-cosmo; e na concepfao de que o todo nao se confunde com o conjunto ou o continente que abrange as diferentes formas de seres. Por isso ele diz mais a frente que nao se pode comparar a relafao cosmo-homens a vinha que contém (periékhei) uvas, como se os homens estivessem circundados pelo cosmo; nao é uma relafao kata perigraphé (M. 9.103), o homem como conteúdo, o homem incluído no cosmo. O cosmo, na visao estoica, é um continuum orgánico (cfr.Gerson 1990: 167; e especialmente Boeri e Salles 2014: 266-268, que explicam o papel coesivo do pneuma), uma totalidade íntegra, racional, mas que percebemos de nosso ponto de vista, literalmente, parcial. Além disso, o cosmo é compreendido como perfeito, melhor do que nós - e Sexto cita o Timeu de Platao nesse sentido (em M. 9.105), como se a argumentafao que aparece naquele diálogo, em 29d ss, servisse de susten- tafao para a tese estoica da perfeifao do Todo. É importante assinalar que no Timeu a perfeifao do cosmo é uma premissa, quer dizer, algo que se assume e que serve de ponto de partida para a afirmafao, caracterizada como evidente ou clara (saphés), de que o demiurgo olhou para o modelo eterno (to aídion parádeigma) ao fabricá-lo (cfr. 29a1-6: “Se este cosmo é belo e o demiurgo bom, é claro que olhou para o [modelo] eterno; se é o que nao se permite dizer, [olhou] para o que veio-a-ser. Ora, é absolutamente claro que olhou para o eterno, pois ele [o cosmo] é a coisa mais bela de todas as que nasceram, e aquele [o demiurgo] a melhor de todas as causas”). Se o cosmo é melhor do que nós, prossegue o raciocinio de Zenao a partir do Timeu, é preciso que seja animado e racional, pois o animado é melhor do que o inanimado, e o racional, melhor do que o irracional. É entao o cosmo um vivente, inteli gente, cuja racionalidade podemos auferir observando a regularidade, a orde- nafáo, a funcionalidade e a organicidade das partes que a nós se manifestam. É claro que todo o raciocinio demandaría uma explicafáo com mais etapas e citafoes comprobatórias, porém o que se pretende para o momento é apenas tornar evidente que o texto de Xenofonte serviu como uma das bases para o desenvolvimento de uma doutrina que pensa o cosmo como totalidade perfeita e principio gerador racional. Uma doutrina complexa, que assume mais premissas, evidentemente, do que Xenofonte, mas que parte dele, que o toma como ponto de partida (aphorme).

Podemos imaginar a importancia de Xenofonte para Zenáo a partir do que nos diz Diógenes Laércio em sua biografía. Nascido em Citio, na ilha de Chipre, acaba em Atenas por acaso, quando sofre um naufragio perto do Pireu após ter comprado púrpura na Fenicia. Senta-se numa banca de livros e comefa a ler as Memoráveis de Xenofonte - segundo Diógenes, o segundo livro - e, encantado com Sócrates, sai em busca de homens como ele. Daí que lhe recomendam Crates e se inicia sua vida filosófica em Atenas (DL 7.2-3). Diógenes relata ainda uma outra versáo, de Demétrios de Magnésia (7.31), que afirma que desde menino Zenáo lia as obras dos socráticos que seu pai lhe levava de Atenas, quando lá negociava. E há, ainda, a versáo de Themistius (Or. 23.295 D. Hard. em SVF 1.9): “A coisa mais famosa sobre Zenáo e celebrada por muitos é que a Apologia de Sócrates o teria conduzido da Fenicia para o [Pórtico] pintado”. Náo sabemos, contudo, a que Apologia o autor se refere, se de Platáo ou Xenofonte. Essas diferentes histórias (espe cialmente a primeira) talvez nos apontem um indicio, independentemente de sua veracidade (como diz Long 2001: 18): Zenáo se encanta com o Só crates de Xenofonte. Esse registro é mais um sinal de como o estoicismo, segundo a tradifáo, a partir da figura de Zenáo, compreende e se apropria de Sócrates. Em outras palavras, e afirmando com mais rigor, o Sócrates estoico náo é, ou náo é somente, o Sócrates de Platáo (para uma análise minuciosa e abrangente da diversa literatura socrática e sua relafáo com o estoicismo, recomenda-se Alesse 2000).

Essa passagem das Memoráveis que aparece cortada e resumida em Sexto Empirico é uma que chama bastante atenfáo dos intérpretes porque, independente de Sexto citar Zenáo, ela é eivada de elementos estoicos. A se- melhanfa com a teologia estoica é de tal modo impactante que levou alguns estudiosos a afirmarem que se tratava de interpolafáo (ver referencias a au tores e textos em Dorion 2016: 1849 Náo apenas o trecho do livro 1, cap. 4, mas também o do livro 4, cap. 3, em que novamente abundam elementos identificados com a doutrina estoica, argumentos referentes aos cuidados dos deuses para conosco, proporcionando-nos a luz, as estafoes, o alimento, a água, o ar, inclusive os animais de outras espécies, que náo apenas serviriam de alimento, como nos auxiliariam na guerra, nos trabalhos etc. Cabe notar, ainda, que em 4.3.13, Sócrates novamente afirmará, agora a Eutidemo, a importancia de reconhecermos os deuses por meio de suas obras, já que eles mesmos sao invisíveis.

Importantes estudiosos de Xenofonte e do estoicismo, todavia, ques- tionaram a tese da interpolafáo (por exemplo, Dorion 2017: 54; Long 2001: 39 e DeFilippo e Mitsis 1994: 265). Nas palavras de Dorion (loc. cit.), Xeno fonte que teria influenciado fortemente o estoicismo e náo haveria nenhum argumento contundente para nos fazer concluir o inverso. Em apoio a essa interpretafáo, eu apontaria uma passagem nas Memoráveis que escapou da imputafáo de interpolafáo, no livro 2, cap. 3, em que Sócrates aparece con versando com Querécrates, procurando persuadi-lo a ficar amigo do irmáo, porque “ao que [...] parece, a divindade fez o par de irmáos tendo em vista uma maior utilidade recíproca do que aquela das máos, dos pés, dos olhos, e de todos os outros pares que ele gerou para os homens” (Mem. 2.3.19). Portanto, mesmo numa conversa sobre outro assunto, sobre a importancia da amizade entre irmáos, Sócrates assume como premissa a divindade inteli gente e geradora com vistas a fins.

Mais do que mostrar a importancia de Xenofonte ou do Sócrates de Xenofonte para o estoicismo, o que nos parece mais adequado seria afirmar que essa passagem das Memoráveis 1.4 guarda um argumento que ganha vida própria para além da obra em seu contexto. Sua apropriafáo pelos estoicos e seus adversários pode ser vista tanto em Sexto quanto em Cicero (como adiantamos na sefáo “ Contextualizafao”). Aliás, várias sáo as semelhanfas entre a discussáo de Sexto sobre os deuses no Contra os físicos e o diálogo criado por Cicero em De natura deorum, sáo muitos os argumentos e pensadores citados em comum, o que indica uma fonte comum para ambos (teriam consultado um mesmo livro?), ou pelo menos que a discussáo atravessou a escola estoica por várias gerafoes. Sobre a questáo da suposta fonte de Cicero (e também de Sexto, já que expressamos a forte suspeita de serem a mesma), Boyancé (1962: 26) e outros (ver referencias em Pease 1955: 46) levantam a possibilidade, considerando especialmente o livro 2, de ser o Peri Theon de Posidonio. Claro, o próprio Cicero o menciona ao final do livro 1 (123) ao descrever criticamente a teologia de Epicuro, fornecendo, inclusive, o título e o lugar do livro em que Posidonio alude ao ateísmo do filósofo. Porém Boyancé defende que o Peri Theon seja no máximo uma inspirafáo e náo uma fonte no sentido de ter seus conteúdos transcritos ou transmitidos por Cícero. Apoia-se, como argumento, no fato de Cícero normalmente citar pelo nome os autores cujas ideias ele expoe no momento em que expoe. E a verdade é que, no longo trecho do livro 2 em que ele apresenta a teo- logia estoica, o nome de Posidonio sequer aparece. Aparece em se referindo apenas ao planetário (um modelo do sistema solar) que ele teria construído (ND 2.88). Há, ainda, estudiosos que defendem diferentes fontes, entre elas, além de Posidonio, o Peri Theon, de Apolodoro; o Peri Pronoías, de Panécio; algum manual da Academia; alguma obra de Crisipo; alguma obra de An- tíoco (ver Pease 1955: 47-48 para cada uma dessas hipóteses com indicafáo de bibliografía).

A possibilidade da fonte comum para Cicero e Sexto náo é assunto supérfluo para nossa questáo, uma vez que em De natura deorum (2.18), exa- tamente o mesmo argumento, o da origem da inteligencia (sollertia) humana, é atribuido ao Sócrates de Xenofonte (apud Xenophontem) por Lucílio Balbo, o representante do estoicismo no diálogo:

E ainda da própria inteligencia (sollertia) dos homens devemos considerar que existe alguma mente (mentem) e ela mesma penetrante e divina. Pois de onde o homem a “teria pego” (como diz Sócrates em Xenofonte) (ut ait apud Xenophontem Socrates)?

Aqui, pelo que vem em seguida, certamente o que está em foco é o argumento parte-todo que expressamente aparece, como já vimos no Contra os físicos, como ponto de partida para Zenáo em sua exposifáo da doutrina da racionalidade cósmica.

Mais a frente (ND 3.27), em sua resposta, o personagem adversário de Balbo, o académico Cota, cita novamente o Sócrates de Xenofonte (apud Xenophontem Socrates) e o argumento da origem da nossa inteligencia, atri buida novamente ao cosmo (mundo). E assim temos bem consolidado que esse é um argumento referido ao Sócrates de Xenofonte bem antes de Sexto escrever seu Contra os físicos.

Aliás, tanto Sexto quanto Cicero (ou sua fonte comum), pelas pas- sagens aqui citadas, expressam mais convicfáo quanto a autoria do argu mento por Xenofonte do que os estudiosos modernos. Em Cicero, com muita clareza, em De natura deorum 1.31, Veleio, o personagem epicurista, afirma que “Xenofonte comete quase os mesmos erros [que Platáo], embora com menos palavras; pois, em suas memórias dos ditos de Sócrates, ele re- presentou Sócrates [rettulit Socratem] argumentando [...]”... Esse personagem critico ao estoicismo ataca Xenofonte explicitamente. Ele nem inicia a frase com “o Sócrates de Xenofonte...”, mas com “Xenofonte” mesmo! Entretanto, náo foram poucos os estudiosos modernos que retiraram de Xeno- fonte a autoria das passagens das Memoráveis em questáo. Além de todos aqueles que as consideram interpolafáo estoica, há ainda aqueles que en- tendem que toda a passagem teológica, que aqui expusemos, teria sido retirada de Diógenes de Apolonia (por exemplo, Jaeger 1948: 174-175; Gerson 1990: 293-294, n. 47; além de outros referenciados por Dorion 2016: 185); e outros que defendem que Xenofonte teria se inspirado nos escritos de Antís- tenes (por exemplo, Decleva Caizzi 1966: 100-101; cfr. também Jaeger 1995: 504, que cita alguns estudiosos). Claro que por trás dessa longa e complicada discussao está o problema-Sócrates. Que Sócrates seria esse que Xenofonte representa que nao encontra paralelo em Platao? Um Sócrates “criacionista anticientífico” e que desenvolve uma teologia explicitamente antropocen- trica (nas duras palavras de Sedley 2007: 78-80). Um Sócrates que afirma a divindade e a importancia da religiosidade, muito diferente do Sócrates do Eutífron de Platao, que primeiro quer saber o que é a piedade; que per- gunta mais do que responde, que é mais inquieto e inquietante do que as- sertivo. Por outro lado, é preciso lembrar, como o fizemos inicialmente, que as Memoráveis sao escritas com a intenfao de apresentar um Sócrates piedoso, condenado injustamente. A verdade sobre o que é do Sócrates histórico e o que é apenas do Sócrates recriado por Xenofonte é, nos parece até entao, inatingível. Isso, entretanto, nao é uma questao nem para Sexto nem para Cicero. É Xenofonte ou o Sócrates de Xenofonte que é referido por eles, nunca entrando em debate a historicidade ou veracidade desse relato.

De qualquer forma, é interessante notar que em Epiteto, um estoico mais próximo temporalmente de Sexto, ou seja, já bem afastado de Zenao, e ainda por cima com um registro estilisticamente também muito afastado tanto do texto de Contra os físicos quanto do De natura deorum - o que nos faz hesitar em afirmar sua inspirafao na suposta fonte comum de Sexto e Cicero -, encontramos a mesma referencia a Xenofonte num contexto de argumentafao em defesa da existencia de Deus. O capítulo 6 do livro I dos Discursos, “sobre a providencia” (peri pronoías), é praticamente uma reescrita do trecho das Memoráveis que aqui estudamos. Segue um pequeno trecho apenas para ilustrar a semelhanfa, embora valha a pena ler capítulo inteiro.

Se Deus tivesse feito as cores mas nao a faculdade de ve-las, qual seria a utilidade disso? - Nenhuma. - Mas, ao contrario, se tivesse feito a faculdade porém nao os seres sujeitos á faculdade da visao, do mesmo modo, qual seria a utilidade disso? - Nenhuma. - E entao? Se ele tivesse feito ambas as coisas mas nao tivesse feito a luz? - Nem assim haveria uma utilidade. - Entao, quem juntou isso áquilo e aquilo a isso? Quem juntou a espada á bainha e a bainha á espada? Ninguém? Costumamos declarar acerca de uma dada cons- trufao, dentre outras coisas prontas, que a obra é, sem dúvida, de um artífice; e que nao há coisa construída sem propósito.

O texto prossegue mencionando a utilidade do prazer sexual, assim como em Xenofonte; a importancia do intelecto (diánoia) e nossa superio- ridade com relafao aos demais animais; além do servifo que eles nos prestam.

Epíteto (ou Arriano, o escritor) nao cita nominalmente Xenofonte aqui, mas certamente conheceu bem o argumento das Memoráveis. Por outro lado, assim como Zenao, que parte de Xenofonte para a elaborafao de doutrinas marcadamente estoicas, Epiteto também dá um salto que o próprio Xeno fonte nao dá (cfr. Dorion 2016: 196 e 205, muito arguto nessa observafao). No fragmento 23 (94), retirado de Estobeu 4.53.29, atribui-se a seguinte afirmafao a Epiteto: “Maravilhosa é a natureza (physis) e, como diz Xeno fonte, amante do ser vivo (philózoos)”. A apropriafao de Epiteto é muito sutil. Xenofonte de fato utiliza esse termo philózoos em Memoráveis 1.4.7, mas em se referindo ao sábio artífice (sophos demiourgós) do mundo. A estoicizafao de Xenofonte ocorre quando Epiteto substitui a divindade pela physis. Em Xenofonte, o estudo da physis nao é debatido por Sócrates (1.1.11), e é por ele condenado por pertencer ao ámbito do divino (Mem. 1.1.15), nao sendo razoável nem útil se dedicar a ele. A enfase está num Sócrates fundamentalmente preocupado com questoes humanas, investigador daquilo que é necessário para a aquisifao da virtude, conduzindo exames sobre a piedade, a beleza, a justifa, a sabedoria etc. (Mem. 1.1.16). No estoicismo, por sua vez, a teologia é parte da física (DL 7.132), e é Deus (ou uma de suas expressoes) o próprio cosmo (DL 7.137) racional. E a composifao material do cosmo é passível de ser estudada, assim como suas transformafoes - genese e disso- lufao. A diferenfa de Xenofonte, também nao há ruptura, pelo menos nao tao marcada, entre física e ética, uma vez que a physis deve nortear nosso modo de viver, de acordo com a razao que atravessa todo o universo. Perce- bermo-nos integrados ao cosmo e agir conforme a natureza universal é justamente o que nos torna virtuosos (ver DL 7.88). Por isso, voltando a Sexto e ao que nos fez iniciar esta pesquisa, compreende-se que o Xenofonte que aparece no Contra os físicos é o que serviu de inspirafao aos estoicos, e somente por isso que ele interessa a Sexto. Arrisco dizer que o Sócrates de Xenofonte também seria “contra os físicos”, cético quanto a assuntos con siderados por ele nao-humanos, porém quis a história da transmissao das doutrinas que justamente ele, e específicamente o texto das Memoráveis 1.4 (somado ao de 4.3), fornecesse os caminhos para a teologia natural estoica.

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1“M. 9” corresponde a Adversus Mathematicos 9, ou seja, Contra os físicos 1. Memoráveis abre viaremos com Mem., De natura deorum com ND, o Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres de

Recebido: 22 de Abril de 2020; Aceito: 17 de Junho de 2020

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