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Cuadernos del CILHA

versión On-line ISSN 1852-9615

Cuad. CILHA vol.17 no.1 Mendoza jun. 2016

 

DOSSIER

JGR-4D: "O espelho", um despetalar de Rosa1

JGR-4D: "The mirror," a despetalar of Rosa

 

Byron Vélez Escallón

CAPES/PNPD
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
flint1883@yahoo.com.mx

 

Recibido: 19/10/2015
Aceptado:
19/11/2015


Resumen: Este trabajo aborda el cuento firmado por Guimarães Rosa (Primeiras estórias, 1962) en relación con el interés que ese autor manifestó, en momentos decisivos de su producción, por las teorías de la cuarta dimensión. El ensayo intenta articular ese interés con la deriva rosiana de un cosmopolitismo tout court hacia un cosmopolitismo situado, en que la cuestión de la identidad, lejos de borrarse, se robustece con las teorías contemporáneas del espacio-tiempo, a la vez que el texto no se presenta más como la representación de una dada realidad sino como su archivo. Más allá de la comprensión de la historia como un desarrollo unívoco, la escritura estudiada, desde la perspectiva adoptada por el trabajo, postula una temporalidad sin direccionalidad preferente, dependiente siempre de marcos de referencia, lo que impide pensar esa escritura en los términos de una medida de valor universal para los fenómenos culturales.

Palabras clave: Guimarães Rosa; Cosmopolitismo; Literatura latinoamericana; Cuarta dimensión.

Abstract: This paper deals with the story signed by Guimarães Rosa (Primeiras estórias, 1962) regarding the interest that author said, at decisive moments in their production, by the theories of the fourth dimension. The essay attempts to articulate that interest with the Rosiana derived from a tout court cosmopolitanism to a cosmopolitanism located, that the question of identity, far from erased, is strengthened with contemporary theories of space-time, while the text does not it is presented more as the representation of a given reality but as its file. Beyond understanding of history as a unique development, writing studied from the perspective adopted by work, postulates a temporality without preferred directionality, always dependent on frameworks, which prevents think that writing on the terms of a universal measure of value for cultural phenomena.

Key words: Guimarães Rosa; Cosmopolitanism; Latin American literature; Fourth dimension.


 

"Esta minha ultra-metafísica hiperabarca tudo".

Fernando Pessoa. "O vencedor do tempo". 1906-1910.

 

"COROCEROORO".

Arturo Carrera. Momento de simetria.1973.

Este trabalho aborda o conto "O espelho" (1962) de Guimarães Rosa em relação com o interesse que o autor manifestou, em momentos decisivos da sua produção, pelas teorias da quarta dimensão. Como tentarei mostrar, esse interesse pode ser lido em confluência com a passagem de um cosmopolitismo tout court para um cosmopolitismo situado, em que a questão da identidade, longe de esmorecer, se robustece com as teorias contemporâneas do espaçotempo. Também aqui se pensará, brevemente, de que maneira a escritura rosiana não se apresenta exclusivamente como a representação de realidades dadas, mas como o seu arquivo, um corpus que recebe comoções do seu espaçotempo para além de todo conteúdo conscientemente incorporado -motivo pelo qual não podem ser desconsiderados a imagem, o outro e a ficção na configuração daquilo que se entende como "próprio" ou "real". Isso, entre outras coisas, implica um posicionamento crítico a respeito dos protocolos de leitura associados à literatura latino-americana. Para além da compreensão da história como uma entidade dotada de sentido ou significação, e para além da compreensão do tempo como um desenvolvimento unilinear e evolucionário, a escritura de Guimarães Rosa postula uma temporalidade sem direcionamento preferente, sempre dependente de marcos (ou sistemas) de referência, o que impede a proposição de uma medida de valor universal para os fenômenos culturais.

Gostaria de começar citando um rascunho de poesia2 que encontrei em 2013, no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, à procura de materiais no acervo de João Guimarães Rosa:

    

É um poema, segundo a indicação datilografada (o título foi manuscrito a caneta), não está datado, e foi guardado no arquivo pessoal de Rosa3. Não vou analisar esse poema inédito e "inacabado" agora. Dado que alguns dos versos que recém citei foram utilizados, além de em "Páramo", no conto homônimo "O espelho", prefiro agora deter-me nessa última narrativa.

"O espelho", conto publicado em 1962 no volume Primeiras estórias, mas trabalhado ao menos a partir da década de 19404, reencena a situação narrativa de Grande sertão: veredas (1956), ou "Meu tio o iauaretê" (1961), entre outras narrativas: um travessão introduz a fala de alguém que fala para outrem invisível, alguém que escuta -ou seja: lê- e cuja escuta se escreve nas palavras escutadas. Para além dessas coincidências, em "O espelho" se encontram vários temas e problemas associados às teorias da quarta dimensão. Além da clara referência ao excepcional "O espelho" (1882) de Machado de Assis, o conto se impregna da teoria lacaniana de "O estádio do espelho como formador da função do [eu] tal como nos é revelada na experiência psicanalítica"5. Como nessa conferência, e como tentarei mostrar mais adiante, o protagonista e narrador rosiano constata a sua própria falta de fundamento substancial, a absoluta dependência de uma rede diferencial para a constituição do "eu", isto é, a insuficiência da natureza, a absoluta necessidade da imagem, do outro e da ficção, na própria conformação da identidade e da sua correlação com o real. Não por um acaso, a teoria de Lacan se nutria nesses anos das teorias do mimetismo de Roger Caillois -desenvolvidas na década de 1930- que, por sua vez, se alimentavam das análises de Minkowski e Riemann-Christoffer (Caillois, 1939: 138-140), reconhecidos teóricos da quarta dimensão e do hiper-espaço que, entre outros teóricos, como Howard Hinton e Claude Bragdon, possibilitariam a criação dos modelos do espaçotempo citados na narrativa de Guimarães Rosa:

Note que meus reparos limitam-se ao capítulo dos espelhos planos, de uso comum. E os demais -côncavos, convexos, parabólicos- além da possibilidade de outros, não descobertos, apenas, ainda? Um espelho, por exemplo, tetra ou quadridimensional? Parece-me não absurda, a hipótese. Matemáticos especializados, depois de mental adestramento, vieram a construir objetos a quatro dimensões, para isso utilizando pequenos cubos, de várias cores, como esses com que os meninos brincam (Rosa, 1978: 72).

Em 1934 Jorge Luis Borges publica um ensaio sobre a quarta dimensão, que comenta a teoria como explicitada por Charles Howard Hinton, menciona o nome de P.D. Ouspensky, cujo Tertium Organum (1912) seria uma referência permanente na obra borgiana, e inclui gráficos com os modelos de figuras quadridimensionais do teósofo e arquiteto Claude Bragdon (tradutor de Ouspensky, junto com Nicholas Bessaraboff, em 1920). Justamente, são modelos dos "objetos a quatro dimensões, pequenos cubos, de várias cores", que menciona o narrador de "O espelho".

Fig. 1. Borges reproduz essas imagens no ensaio "La cuarta dimensión", precedidas por estas palavras: "El arquitecto norteamericano Claude Bragdon
ha publicado un ABC de la cuarta dimensión, en 15 lecciones.
Traduzco, abajo, la primera"6 (Borges, 1995: 32).

Não posso me deter agora em pormenores das teorias da quarta dimensão, mas sim dizer que a leitura de Ouspensky (um "herdeiro" de Hinton, um "precursor" de Bragdon), entre muitas outras, acompanha a passagem de Borges de um cosmopolitismo ultraista ao criollismo posterior, uma espécie de cosmopolitismo situado, que a partir da década de 20 marca a sua opção por uma cultura universalizada, porém apropriada de uma situação singular: O aleph7.

Guimarães Rosa também é um leitor de Ouspensky8, e acredito que, como no caso de Borges, para a passagem de Rosa de um cosmopolitismo "neutro" a um cosmopolitismo situado se faz fundamental a noção de marco de referência, que remete todos os movimentos ao sistema de referência em que está o observador que os mede. Portanto, espaço e tempo não são entidades absolutas, mas estão sujeitas a um princípio relativista. Este princípio também se aplica à simultaneidade de eventos. A noção clássica de simultaneidade supoe um tempo absoluto; a noção relativista assume que o que parece ser simultâneo para um observador pode não aparecer como simultâneo para outros observadores (Ferrater-Mora, 1964: 556)9.

Voltemos a Ouspensky. Seu Tertium Organum postula a tese idealista de que aquilo que chamamos de realidade é uma ilusão, um sonho ou uma visão parcial, e de que, portanto, tempo, matéria e movimento não existem. Ouspensky explica o que entendemos como milagre da mesma maneira que entende o que percebemos como movimento: são projeções da quarta dimensão, ou de n dimensões, sobre o nosso plano apenas tridimensional10. Por ser parte de uma mesma realidade desconhecida, o Tertium Organum postulava a identidade de todas as coisas: todos os homens seriam um homem só, e todos os livros um só livro11. Se vemos esses entes como separados, e se percebemos a passagem do tempo, isto acontece porque vivemos num plano de três dimensões, em que se projetam visões parciais do espaçotempo ou de dimensões superiores12. Partindo da certeza dessa projeção, e com o devido treinamento, se poderia atingir in via a percepção de uma quarta dimensão. Dessa previsão, em livro posterior, intitulado The fourth way (1957), Ouspensky depreende a noção de "quarto caminho" que, como o Tao, ninguém conhece, ninguém pode indicar nem definir, e advém após vastos sofrimentos. Basicamente, essa quarta via consiste numa "lembrança de si", uma consciência do "corpo" tetradimensional distanciada das aparências perceptivas da vigília, que leva a um despertar que só pode ser achado por quem o procura13. De esse despertar, entre outras coisas, se espera a certeza de um porvir desde sempre já existente, e portanto passado ou preexistente, isto é, um tempo que não flui e cuja direcionalidade é tão arbitrária como reversível. Alcançado o Quarto Caminho, profetiza Ouspensky, as nossas mentes prescindirão do tempo unilinear, e intuirão o universo de modo angélico: sub specie aeternitatis (Ouspensky, 2005).

Lembremos que o narrador-protagonista de "O espelho" declara narrar "não uma aventura, mas experiência" (à maneira das experiências científicas). Também postula a experiência narrada como procura de "uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária" e a sua falta como "um milagre que não estamos vendo" (Rosa, 1978: 70) [o grifo é meu]. Mais adiante afirma: "a simultaneidade torna-se impossível, no fluir de valores instantâneos. Ah, o tempo é o mágico de todas as traições" (71). Lembremos ainda que o narrador-protagonista se declara "positivo", "um racional", "um perquiridor imparcial, neutro absolutamente", "movido por curiosidade, quando não impessoal, desinteressada [...] [de um] urgir científico". Bem, esse narrador inicia a sua experiência com espelhos, à procura do seu ser substancial, após a visão pavorosa do seu duplo, um sósia (menecma) do mal:

Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei... Explico-lhe: dois espelhos -um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício- faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era -logo descobri... era eu, mesmo! (73).

Por rejeição dessa entrevisão de si, e para conseguir enxergar a própria "vera forma", o "núcleo dessa nebulosa" do semblante no espelho, o nosso "perquiridor imparcial" elabora um procedimento bastante específico, que não dispensa a Ioga14 nem os exercícios espirituais jesuíticos, e lembra em muito a "quarta via" de Ouspensky, acima mencionada:

Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio "visual" ou anulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado. [...] era principalmente no modus de focar, na visão parcialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar não-vendo (74-75) [grifos no original].

Poderíamos dizer que o narrador protagonista tenta uma aproximação apriorística do espelho, uma suspensão de julgamento que pretende o olhar de um "perquiridor imparcial, neutro absolutamente"15. Apesar disso, o narrador é claro: "Levei meses" (74). O que quer dizer que a nada fácil tarefa de alienar a própria percepção deve passar por um processo que somente interessa e é possível para esse sujeito, e não para outro. Por isso, o processo de despojamento deve passar pelo "bloqueio 'visual' ou anulamento perceptivo" de, ao menos, cinco "diversas componentes"16 "interpenetrando-se no disfarce do rosto externo". Essas cinco componentes são:

1. O elemento animal: "Tomei o elemento animal, para começo. [...] Meu sósia inferior na escala era, porém -a onça".
2. O elemento hereditário: "o elemento hereditário -as parecenças com os pais e avós- que são também, nos nossos rostos, um lastro evolutivo residual".
3. As paixões: "o que se deveria ao contágio das paixões, manifestadas ou latentes, o que ressaltava das desordenadas pressões psicológicas transitórias".
4. As ideias e sugestões de outrem: "o que, em nossas caras, materializa idéias e sugestões de outrem".
5. Os interesses efêmeros: "e os efêmeros interesses, sem seqüência nem antecedência, sem conexões nem fundura" (75-76).

Notemos que essa percepção "a priori" só se dá após a alienação de si de alguém que declara:

Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão. [...] Sendo talvez meu medo a revivescência de impressões atávicas? O espelho inspirava receio supersticioso aos primitivos, aqueles povos com a idéia de que o reflexo de uma pessoa fosse a alma. Via de regra, sabe-o o senhor, é a superstição fecundo ponto de partida para a pesquisa (72).

Esse a priori, portanto, é totalmente histórico. Note-se o oximoro. Não é o despetalar da rosa, mas dessa Rosa. Um a priori histórico, precisamente a fórmula ambivalente, tão paradigmática quanto transcendental, com que Michel Foucault veiculara a sua noção de arqueologia17. Ora, pode ser que, à maneira da "polaridade das fórmulas de pathos"de Aby Warburg18, ou da imagem dialética de Benjamin19, ou mesmo da arqueologia foucaultiana, nesse alhear, ou nessa alienação, coincidam a urgência -variável- do presente e uma imensa invariável: a catástrofe da história.

Alhear a própria percepção é fazer uma espécie de partilha dos afetos, ou do sensível. Ou seja, talvez, tentar uma visão a priori do próprio rosto, retirando dele todo elemento "externo", seja algo semelhante ao que acontece em "Meu tio o iauaretê" (1961), conto que, entre muitas outras coisas, pensa de que maneira pode ser lesiva a hipertrofia da identidade, ou seja, que a pureza coagula o monstro.

Para voltar a "O espelho", após conseguir retirar de si todos esses componentes "impuros" por "externos", o protagonista declara:

Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista, inflectindo de propósito, em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era -o transparente contemplador?... Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona (74).

Para logo constatar (notem-se as cinco componentes, acima mencionadas, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo):

[...] Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até a total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um... des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, [1] sobre a persistência do animal, [2] um pouco de herança, [3] de soltos instintos, [3] energia passional estranha, [4] um entrecruzar-se de influências, [5] e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho -com rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças- o espírito do viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória (Rosa, 1978: 77) [destaques no original].

O espelho é cislúcido e aprisiona quando nele só se procura o próprio rosto. Mas quando se entende que a imagem "funciona" e se desdobra também em relação com outras imagens, com outras ficções20, aí se abre a outra coisa, ao trans. Por isso, talvez, "ao fim de uma ocasião de grandes sofrimentos" (77), e após conhecer o amor "eu já amava -já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria" (78)-, quando suspensa a pretensão de uma percepção a priori, aos poucos, o semblante volta ao reflexo, volta a imagem do narrador ao espelho. Toda identificação dirige-se aos outros e deles toma a sua legitimidade, vem sempre e somente dos outros e, como linguagem, é uma espécie de suplemento, como o amor, uma projeção do fora ou do outro, isto é, o excesso em mim do que desde sempre já estava aí. Talvez por isso, a situação narrativa se instala com um travessão: um sinal, um traço, um vestígio, que introduz a fala de alguém que fala para outrem invisível que (como nós) escuta -ou seja: lê- e escreve a sua escuta.

Sem uma existência central, autônoma, o narrador se vê finalmente lançado a uma pergunta, uma quase conclusão que em muito lembra Ouspensky: "Será este nosso desengonço e mundo o plano -intersecção de planos- onde se completam de fazer as almas?". Por esse motivo, toda sobrevivência possível apenas se sustentaria por um irresolúvel, um "julgamento-problema" expresso na questão: "Você chegou a existir?" (78). Essa pergunta sustenta em diante a própria fala do narrador, que constata não haver existência fora do semblante, que aparência e essência não são "coisas" separadas. Todo semblante recolhe em si aparência e essência, esperança e memória, até um extremo tal que a oposição entre esses termos aparece quase absurda. No retirar-se do aparente está o ser suspenso dentro do nada: o semblante o encobre tanto quanto o manifesta no sensível. Antes de voltar brevemente ao texto que usei como "pórtico" deste ensaio, o "poema" "Espelho", vou escrever isso com palavras de Jacques Lacan:

[...] semblante é o significante em si. // [...] Se há um discurso sustentável, ou pelo menos sustentado, nominalmente chamado de discurso da ciência, talvez não seja inútil nos lembrarmos de que ele partiu, muito especialmente, da consideração de aparências. [...] É nessa medida que não há semblante de discurso. Tudo que é discurso só pode dar-se como semblante, e nele não se edifica nada que não esteja na base do que é chamado de significante (2009: 14-15).

Não há um discurso que não seja semblante, como não há imagem de si que não seja uma espécie de significante. Em outras palavras: todo a priori é histórico. Tirando o "sensível", o "temporal", o ser-lançado-no-mundo, não há mais nada. Nem deus, nem essência, nem substancia: há o ser-aí.

Antes disse que versos desse poema com que iniciei foram usados em outros textos de Guimarães Rosa, digamos que se espelharam neles21. Isso me leva a falar brevemente sobre o "procedimento de composição" de Guimarães Rosa. Um texto publicado, mesmo a versão definitiva, revisada pelo autor, não é outra coisa do que a projeção numa superfície plana de um processo que se estende no tempo e no espaço. O texto "definitivo", portanto, é uma seção de algo que acontece em múltiplos planos ou dimensões, mas de que temos apenas uma visão parcial. Os materiais preparatórios da ficção de Rosa permitem supor que o autor fabricava seus textos montando pequenas, às vezes ínfimas, composições e anotações escritas em sequência, muitíssimas delas ouvidas diretamente da boca de informantes de variadas procedências e condições. Diminutos trechos de texto que, em muitos casos, acabaram em livros de proposta diversa e de datas de publicação distantes, cuidadosamente datilografados em folhas soltas e organizadas em pastas rotuladas com títulos. Assim que um fragmento era usado, Rosa o rasurava à caneta e escrevia perante o trecho o título da narrativa em que acabou inserido. Ou seja, o sentido de cada material "montado" varia de acordo com a rede de palavras em que se inserta, ao próprio jogo do texto e de sua leitura, e não depende exclusivamente da intenção com que fora composto ou pronunciado. Esse jogo, esse procedimento insensato, implica em Rosa uma compreensão do texto literário como o lugar de uma repetição diferencial e situada, como uma constelação de sentidos singularizada no "cada vez" do seu acontecimento.

Não há um discurso que não seja semblante e, assim como o semblante do protagonista, o poema citado ao início deste trabalho é o plano -intersecção de planos, sem centro, sem existência autônoma- onde se completam de fazer outros semblantes. Neste caso, múltiplas ficções.

Acredito que essa desconfiança num representacional neutro ou universal e, finalmente, antrópico -o espelho a priori-, aplica-se, se pensamos a ficção de Rosa como um ponto de partida teórico, aos protocolos de leitura da literatura latino-americana. Todo protocolo de leitura é uma espécie de modelo cosmológico, uma representação de rigorosa infidelidade do existente. Como muito bem compreenderam os grandes leitores de Rosa -e Borges- que são Severo Sarduy (1999) e Silviano Santiago (1978) -e, claro, sem renunciar ao expediente de modelos cosmológicos intimamente relacionados com protocolos ou paradigmas de leitura fundamente marcados pelos seus lugares e tempos de produção-, os perigos de uma pretensão universalista, porém etnocêntrica, somente são dribláveis se cada maneira de ler manifesta a sua situação, os seus materiais de fabricação e a sua temporalidade singular, isto é, a sua artificialidade, a sua ficcionalidade.

Se considerado da maneira que tento mostrar neste trabalho, Rosa teria maior afinidade com protocolos diversos daqueles que erigiram a autonomia literária como um valor atrelado à representação superestrutural de um complexo histórico-social latino-americano sem, entretanto, conseguir ver o caráter relativo, ficcional, construído, de aquilo que se considerava dado -o específico cultural-, ou a profunda dogmática do progresso implícita na postulação de um universal transculturado ou supra-regionalizado por uma consciência dilacerada do subdesenvolvimento (Candido, 1987; Rama, 2008). O anacronismo fabrica a história: projetada sobre a cena contemporânea, aquém desses diagnósticos que a compreenderam como precursora da literatura do chamado boom22, a escritura de Guimarães Rosa teria, na passagem cosmopolita acima referida, a potência barroca ou acefálica de colocar-se, não como a simples receptora de um contexto, mas como criadora intempestiva de contextos numa situação de entre-lugar que, pelo seu próprio caráter derivado -e não derivado- em relação com as metrópoles coloniais, impugnaria qualquer pretensão de prioridade ontológica, centralidade ou autenticidade absolutas de uma cultura de referência (Antelo, 2008; Sarduy, 1999; Santiago, 1978).

Longe de uma reação estatal ou nacionalista, a escritura rosiana incorpora o vazio, a ficção, como fundamento identitário23, evidenciando a legibilidade do texto como decorrência de sua inscrição numa rede intertextual, tão ampla quanto variável, um marco ou sistema de referência em perpétuo movimento24. Com isso, de vez, se questiona uma exigência regionalista rasa e se questiona um universalismo fechado a diálogos de afinidade, pois deslocando os marcos perceptivos outras constelações aparecerão: não há, assim, nem uma origem absoluta nem um destino universal, mas apenas lugares de existência, que desativam qualquer noção de precedência espiritual ou de uma medida absoluta de valor para os fenômenos culturais25.

Alguns textos são sintomáticos dessa passagem de um cosmopolitismo tout court para um cosmopolitismo situado. Como exemplos de um cosmopolitismo neutro ou classicista, poderia mencionar as primeiras narrativas assinadas por Guimarães Rosa, publicadas entre 1929 e 1930 (posteriormente reunidas no volume Antes das primeiras estórias, de 2011), assim como os artigos esperantistas publicados no jornal O Estado de Minas Gerais, em 192926. Essa procura de uma langue, aos poucos, derivou na compreensão de que é na variedade das línguas humanas, nas variações, e nos entrecruzamentos e trocas entre elas que está o seu sentido. De esperantista a poliglota, Rosa descobriu que a verdade da língua é sempre a sua própria diversidade, o galimatias pós-babélico. Ou, parafraseando Benjamin -que no texto sobre "A tarefa do tradutor" (1923) se valia de Mallarmé para dar conta da impossibilidade babélica de chegar à verdade através da língua-, a única língua da verdade é a verdadeira linguagem, isto é, o ato elocutório concreto com seus gestos singulares (Benjamin, 2001: 205). Dessa segunda atitude, acima mencionada como um cosmopolitismo situado (ou barroco, poderíamos dizer), são característicos textos como "Páramo", "Meu tio o iauaretê" (1969), "O espelho" (1962), "Uns índios (sua fala)"27 (1952) ou Tutaméia (1967). O intervalo entre essas maneiras de compreensão está constituído pelo volume Magma (1936-1937), título que designa algo tão profundamente telúrico quanto universal, e, claro, por Sagarana (1946).

No sentido do esvaziamento das noções metafísicas de "tempo", "ser", "origem", "história", entre outras, a quarta dimensão opera como um poderoso antídoto contra o etnocentrismo, além de implodir, de maneira clara, qualquer pretensão autonomista, pois ao mostrar o ato de leitura como dependente de marcos referenciais também se despoja o texto de qualquer centralidade semântica. Toda leitura é a ficção de uma leitura, e está fortemente relacionada com imperativos vitais que, de maneira alguma, podem ser separados das nossas aproximações aos textos28. A escritura de Rosa, em diálogo com o corpus "científico" ou "pseudo-científico" -pressuposto neutral- que utilizei neste trabalho, evidencia a inviabilidade de um pensamento historicista, ao mesmo tempo que pensa os limites entre arte e vida como umbrais, como limiares. Dessa maneira, entre outras coisas, podemos entrever a inviabilidade de um pensamento dos fenômenos e práticas culturais que não leve em consideração que esses fenômenos e práticas não podem ser definidos a partir de referentes homogêneos, pois esse tipo de operação reforça hábitos e relações de poder que afetam a definição dos seus próprios "objetos".

Toda definição de valor, assim, deve partir da sua própria enunciação situada, da invenção explícita de um marco de referência, pois um marco desse tipo exerce funções, garante condições de legibilidade e circulação, ao mesmo tempo que a passagem entre perspectivas impugna da aspiração logocêntrica a uma universalidade sem diferença, ou seja, expõe a candidez e a profunda perversão de uma cultura que pretende falar ao mesmo tempo desde nenhum lugar e desde todos os lugares, de um ocidente que se pensa a si próprio como a realização de uma identidade objetiva, menecma do mal, espírito absoluto ou Geist, que incrementa seus perigos à medida que se constrói como um polo não marcado.

Pensemos uma última vez no "poema", esse "espelho abaixo de zero", que usei como pórtico deste texto, singularmente nos últimos versos do rascunho, que estão antecedidos por imagens fantasmais, e até pela corrosão de carnes própria da morte. Nestes quatro versos:

O motivo é circular e o estribilho obscuro, talvez, entre outras coisas, porque a questão da identificação, do reflexo, assim como vários fragmentos deste poema, se repetem, à maneira de estribilhos, em outras narrativas de Guimarães Rosa. Rostos que vêm de longe vindo para emergir "n'O espelho". Uma sorte de versura intertextual e não somente intratextual, um enjambement entre textos29, um entretecer-se de planos e de tempos. Dado que o seu procedimento de composição, via de regra, parte da palavra, passa -ou pode passar- pelo verso, e acaba na "maneira" narrativa, podemos pensar que esse proceder permite e suscita múltiplas perspectivas a partir do mesmo conjunto sintagmático, uma espécie de rosto multifacetado da mesma junção de signos. Ou seja, posto em marcos de referência diversos, o verso se associa com elementos de enunciações que, cada vez, abrem novos mundos, olhares outros e outras situações de existência. Na "inexaurível tensão entre a série semiótica e a série semântica, [...] no momento do fim, quando a oposição das duas séries não é mais possível" (Agamben, 2014: 184), o que se abre para nós é uma noção alargada -melhor dizendo: expandida- de poesia, que não se restringe aos textos versificados:

Há poesia quando, como previra aliás Baudelaire, um texto nos introduz em um outro mundo; mas é preciso acrescentar também que esse novo mundo deve poder nos oferecer a presença de um ser ou de um vínculo fundamental com a linguagem que o tornou nosso mundo (Antelo, 2011: 5).

Se o nosso mundo carece de fundamento essencial, então, para que essa partilha e esse vínculo com outro mundo criado na linguagem e pela linguagem se torne nosso, devemos dar uso a essa linguagem, como diria Benjamin sobre seu projeto das Passagens:

Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os (2006, "N 1ª 8": 502).

Usar as criações de linguagem em diversas ocorrências, inclusive as "próprias" criações de linguagem. Singularmente, a poesia trabalha recombinando significantes recebidos -seja da série poética, histórica, seja filosófica, literária, linguística, etc.-, então ela faz novos sentidos e novos mundos remontando o que já estava aí, reapropriando-o em jogos, constelações, e articulações diferentes, muitas vezes simplesmente delirantes. É isso mesmo que constitui "o novo": uma remontagem da própria história. A questão é que esses novos mundos, recriados a partir de mundos já-dados, guardam traços dos momentos da sua escritura, das suas leituras e das suas releituras, enviam a tempos heterogêneos que interessa pensar, principalmente à medida que "carregam" ordens de relação simbólica com mundos, ou melhor, seus vestígios. Pensar esses vestígios como sintomas não é afundar o poema em abismos sigéticos ou no silêncio. Melhor seria pensar que, se bem o verso, ou o poema, não são translúcidos, mas cislúcidos, duros como pedra e só significantes em relação com marcos de referências ou princípios produtivos sempre variáveis, a única maneira de evitar que esses espelhos nos aprisionem, de fazer com que retornem do cis ao trans, seja repensar "o escopo da sua orgulhosa estratégia: que a [fala] consiga no fim comunicar a si mesma, sem permanecer não dita naquilo que diz"30. O fim do poema é a prosa do(s) mundo(s), ou seja, um começo: uma escuta e não um ditado, um falar "com" e não um falar "sobre" ou "em lugar de" outro, uma ultra-metafísica que hiperabarca tudo, mas não a história ou a linguagem ou o homem ou o ser, nenhum shifter supremo, mas as estórias, as primeiras, as terceiras, estas estórias. A esperança e a memória.

Notas

1. Este trabalho é resultado da minha participação no Seminário de pesquisa entre os alunos do PROCAD (Pós-Graduação Ciência da Literatura da UFRJ e Pós-Graduação em Literatura da UFSC), ocorrido no dia 24 de agosto de 2015. Faz parte, também, das atividades que atualmente desenvolvo em instância pós-doutoral, junto ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, com supervisão da Profa. Dra. Susana Scramim. Agradeço ao Prof. Dr. João Camilo Penna, cuja intervenção após a minha fala me sugeriu parte do título da versão atual do texto, assim como a leitura atenta e as sugestões da Dra. Maryllú Caixeta. Também agradeço, especialmente, à Profa. Dra. Liliana Reales, pelo convite para contribuir com este dossiê.

2. Lamentavelmente, não disponho de uma reprodução digital do documento arquivado sob os cuidados do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Isso, além de não permitir uma visão direta do documento, impede o recurso a dispositivos como a transcrição diplomática. A estrutura arquivante, neste caso, é a própria mão do pesquisador, e isso faz com que detalhes como os tipos, as cores das tintas usadas; as qualidades, matérias, e formatos dos suportes; os carimbos, timbrados, rasuras, acidentes, etc., não sejam aqui reproduzíveis. Apesar do imenso cuidado empregado na transcrição do documento, as próprias disposições das grafias sobre o papel poderão estar alteradas. Apontado isso, são necessários alguns esclarecimentos a respeito dos critérios usados na transcrição do documento:

1. O documento, como todos os citados neste trabalho, foi identificado com uma nomenclatura correspondente ao número catalográfico do IEB/USP: JGR-M-19,66.

2. Para a transcrição do documento se usou o tipo de letra Times New Roman tamanho 10.

3. Trechos e palavras manuscritos por João Guimarães Rosa foram transcritos usando o tipo Lucida Handwriting tamanho 11.

4. Nos casos em que o autor desenhou linhas, unindo ou separando fragmentos de texto, reproduzi esses desenhos usando as auto-formas do Microsoft Word 2007.

5. Reproduzi as rasuras do autor usando as auto-formas do Microsoft Word 2007, sempre imitando os traços do original.

6. Na medida do possível, tentei manter a disposição tipográfica do original, assim como os recuos, entrelinhados, anotações diagonais ou oblíquas à orientação predominante no documento.

7. Nenhuma ortografia, pontuação ou "mistura" idiomática foi corrigida nem atualizada.

3. Transcrevo a descrição catalográfica do IEB: "Conjunto de dois papéis colados sobre folha branca contendo elaborações e esforços redacionais versificados. O primeiro papel, colado na parte superior da folha, apresenta pequenas elaborações e algumas sugestões datiloscritas de títulos para futuras obras poéticas do autor, agrupadas sob o título 'Poesia'. Já o segundo papel, colado na parte inferior da folha, contém algumas elaborações manuscritas esparsas e um conjunto de versos agrupados sob o título '(Espelho)'". A ficha completa está disponível no Catálogo Eletrônico do IEB:http://200.144.255.59/catalogo_eletronico/.

4. Como se pode coligir por algumas coincidências, que mostrarei na nota 21 deste trabalho, com o conto "Páramo", de datação incerta, mas trabalhado por Rosa a partir das suas passagens bogotanas: entre 1942 e 1944, nomeado segundo secretário da embaixada brasileira em Bogotá, e em 1948, no marco na IX Conferência Pan-americana. A respeito dessas datações cf. Vélez (2014). No IEB, também, podem-se conferir os materiais tombados com os números ACGR-2108 e JGR-EO-07,01. Neste último material há várias anotações colombianas de Guimarães Rosa e alguns trechos de composições posteriormente incorporadas ao conto "O espelho". Singularmente chama a atenção nesse material uma anotação datiloscrita em que se lê "m%) uma) hipótese imaginária": perante ela estão, manuscritas, as palavras "Bogotá" (riscada) e "Espelho". Entre esses títulos, como se pode constatar no documento, Rosa fez um signo de igualdade "=".

5. Apresentada publicamente em 1936 e publicada em Zurique em 1949.

6. Em relação com essa transição do ponto ao hiper-volume, copio este fragmento de Borges, tomado de "El libro de arena" (1975): "La línea consta de un número infinito de puntos; el plano, de un número infinito de líneas; el volumen, de un número infinito de planos; el hipervolumen, de un número infinito de volúmenes... No, decididamente no es éste, more geometrico, el mejor modo de iniciar mi relato. Afirmar que es verídico es ahora una convención de todo relato fantástico; el mío, sin embargo, es verídico" (1989: 68). Para uma descrição um tanto mais árdua dessa transição, fonte indubitável da lição de Bragdon, remeto ao Tertium Organum (2004: 223-224), em que Ouspensky, se valendo da chamada matemática dos números transfinitos, elabora uma detalhada explicação da transição mencionada, uma espécie de exposição lógica desses sólidos tetradimensionais que Howard Hinton denominava "Tessaracts" e que pretendia fazer intuir através de complexos exercícios com "81 cubos, 27 placas, 12 diferentes cubos coloreados, 100 nombres para las superficies, 216 nombres para los cubos y otros 256 para los cuerpos de cuatro dimensiones" (Maeterlinck, 1928: 61).

7. No artigo "Borges 4D" desenvolvi uma reflexão sobre esse cosmopolitismo situado borgiano, em relação com as teorias da quarta dimensão (cf. Vélez, 2015).

8. Como se pode conferir nas anotações preparatórias de "Páramo" (IEB/USP- JGR-EO-08,02), que reproduzi na minha tese de doutorado, dedicada em parte a esse cosmopolitismo limítrofe ou situado (cf. Vélez, 2014). No IEB, também, pode-se coligir um material tombado com o número JGR-EO-030, em que há um pedaço de folha datilografada contendo quatro notas de leitura identificadas: Alfred Jarry, "Navigation dans le mirroir"; Menotti del Picchia, "o lago do espelho, à sombra da palmeira do abat-jour"; Maurice Maeterlinck, "caminhos por onde a morte vai e vem. A morte trabalha em colmeias de cristal" e Tobias Barreto: "é fácil ao físico, embebido no estudo do mundo corpóreo". A ficha catalográfica pode ser consultada no Catálogo Eletrônico do IEB.

9. Pela sua clareza e concreção remeto à definição em Ferrater-Mora, mas também pode ser constatada em Maeterlinck que, entre inúmeros exemplos, recorre ao mito platônico da caverna para ilustrar a noção de sistema ou marco de referência (cf. 1928: 85-87). Também remeto à didática explicação que Brian Greene elabora nas partes I e IIde El universo elegante (cf. 2006: 10-98); além de, claro está, ao livro de Albert Einstein (1971) relacionado na bibliografia deste trabalho.

10. "El reconocimiento de la realidad del mundo de muchas dimensiones es una transición ya cumplida hacia la comprensión y el reconocimiento del mundo de lo 'milagroso'. Y una transición a lo milagroso es imposible sin admitir la realidad de nuevas relaciones lógicas, absurdas e imposibles desde el punto de vista de nuestra lógica" (Ouspensky, 2004: 229).

11. "Imaginémonos algún objeto -por ejemplo, un libro- fuera del tiempo y del espacio. ¿Qué significaría esto último? Si tomamos un libro fuera del tiempo y del espacio, eso significaría que todos los libros que existieron, existen o existirán, existen juntos, o sea, ocupan el mismo lugar y existen simultáneamente, formando como si fuera un solo libro, que incluye en sí mismo cualidades, características y atributos de todos los libros que son posibles en el mundo. Cuando simplemente decimos un libro, significamos algo que posee las características generales de todos los libros: es un concepto. Pero el libro del que ahora hablamos no posee solamente las características generales sino también las particulares de todos los libros en particular. //Tomemos algunos otros objetos: una mesa, una casa, un hombre. Imaginémoslos fuera del tiempo y del espacio. Tendremos objetos que poseen, cada uno de ellos, una cantidad tan infinitamente grande de atributos y características que la mente humana sería cabalmente incapaz de comprenderlos. Y si un hombre deseara comprenderlos con su mente, estaría obligado a dividir estos objetos de algún modo, a considerarlos primero en un sentido, en un aspecto, en una sección de su ser. ¿Qué es el 'hombre' fuera del tiempo y del espacio? Sería la totalidad de la humanidad, el hombre como 'especie' -el 'Homo sapiens', pero al mismo tiempo poseyendo las características, los atributos y las peculiaridades de todos los hombres en particular. Sería yo, usted, Julio César, los conspiradores que le asesinaron, y el diariero de la esquina ante quien paso todos los días -todos los reyes, todos los esclavos, todos los santos, todos los pecadores- todos considerados juntos, fusionados en un solo ser indivisible del hombre, similar al gran árbol que tiene corteza, madera y ramas muertas, hojas verdes, flor y fruto. ¿Nuestra mente podrá entender y concebir a tal ser?" (Ouspensky, 2004: 108).

12. "La dirección, no contenida en el espacio tridimensional, en que se mueve todo cuerpo tridimensional, es la dirección del tiempo. Existiendo, todo cuerpo tridimensional se mueve en el tiempo, por decirlo así, y deja la huella de su movimiento en la forma de un cuerpo temporal, o de un cuerpo tetradimensional. Debido a las propiedades de nuestro aparato perceptor nunca vemos ni sentimos este cuerpo: sólo vemos su sección; y a esto lo llamamos un cuerpo tridimensional. En consecuencia, estamos muy equivocados al pensar que un cuerpo tridimensional es algo real. Es meramente la proyección de un cuerpo tetradimensional: su dibujo, su Imagen en nuestro plano. Un cuerpo tetradimensional es un número infinito de cuerpos tridimensionales. En otras palabras, un cuerpo tetradimensional es un número infinito de momentos de existencia de un cuerpo tridimensional: de sus estados y posiciones. El cuerpo tridimensional que vemos es sólo una figura en una película cinematográfica, una de una serie de instantáneas" (Ouspensky, 2004: 49).

13. "El primer camino es el camino del Faquir. Es un camino largo, difícil e incierto. El faquir trabaja sobre el cuerpo físico, sobre la conquista del dolor físico. El segundo camino es el camino del Monje. Este camino es más corto, más seguro y más definido. Requiere ciertas condiciones, pero sobre todo requiere fe, porque si no hay fe, el hombre no puede ser un verdadero monje. El tercer camino es el camino del Yogi, el camino del conocimiento y de la consciencia. [...] Pero existe un Cuarto Camino que es un camino especial, no una combinación de los otros tres. Es diferente de los otros, primero de todo, en que no hay un renunciamiento externo a las cosas, pues todo el trabajo es interior. El hombre debe empezar el trabajo en las mismas condiciones en que se halla cuando lo encuentra, porque estas condiciones son las mejores para él. Si empieza a trabajar y estudiar en estas condiciones, puede alcanzar algo, y después, si es necesario, podrá cambiarlas, pero no antes de que vea la necesidad de ello. De modo que, al principio, uno continúa viviendo la misma vida que antes, en las mismas circunstancias que antes. En muchos aspectos, este camino demuestra ser más difícil que los otros, pues no hay nada más difícil que cambiarse internamente sin cambiar externamente. Luego, en el Cuarto Camino, el primer principio es que el hombre no debe creer nada; debe aprender; de manera que la fe no entra en el Cuarto Camino. Uno no debe creer lo que oiga o lo que se le aconseje; debe encontrar las pruebas de todo. Si se convence que algo es cierto, entonces puede creerlo, pero no antes. Este es un breve esbozo de la diferencia entre los cuatro caminos" (Ouspensky, 2005: 109-110).

14. Cf. Nota 29 deste trabalho.

15. "Kant considera que el conocimiento a priori es independiente de la experiencia, a diferencia del conocimiento a posteriori, que tiene su origen en la experiencia. [...] Los modos de conocimiento a priori son puros cuando no hay en ellos ninguna mezcla de elementos empíricos. [...] lo a priori no se refiere a las cosas en sí, sino a las apariencias. Los elementos a priori condicionan la posibilidad de proposiciones universales y necesarias. En cambio, no hay en la metafísica juicios sintéticos a priori, porque lo a priori no se aplica a los noumena" (Ferrater-Mora, 1964: 24).

16. Coincido nessa contagem, como em vários pontos da sua leitura, com Marcelo Jaques de Moraes, no artigo "O outro que se lê: 'O espelho' de G. Rosa" (2002).

17. Primeiro em As palavras e as coisas (1966); depois em A arqueologia do saber (1969). Em Signatura rerum (2009), Giorgio Agamben desenvolve uma interessante reflexão sobre esse conceito em relação com a arqueologia foucaultiana.

18. Há inúmeros trabalhos que abordam essas polaridades, que Aby Warburg retomou -entre outros- de Freud e de Nietzsche, mas aqui vale a pena relembrar que para esse historiador da arte na sua conferência sobre Franz Boll de 1925, o pathos distintivo da cultura Ocidental -isto é, a esquizofrenia- se manifestaria através de polaridades da representação, há tempos presa à tensão entre o caos da excitação patética produzida pelos objetos (o polo dionisíaco) e o distanciamento desses objetos reclamado pela razão (o polo apolíneo) (2010: 171). Para uma arqueologia da warburguiana "polaridade das pathosformeln", e da sua relação com o pensamento de Walter Benjamin, remeto ao catálogo Atlas (2010), de Georges Didi-Huberman. Quanto à relação dessa polaridade com a chamada "iconologia dos intervalos", remeto ao capítulo "Aby Warburg y la ciencia sin nombre" (2007), de Giorgio Agamben.

19. Em relação com a noção de imagem dialética, em que coincidem a urgência do presente e a invariável da catástrofe histórica, remeto à secção "N" de Passagens (2006) e às teses "Sobre o conceito de história" (2008).

20. "[...] quando aprendemos, em suma, a não ver aquilo que nos faz crer que somos o que somos, que nos faz reconhecer o que nos torna idênticos a nós mesmos, não sobra nada" (Moraes, 2002: 154).

21. Para não me estender para além das necessidades deste artigo, apenas vou referenciar algumas coincidências em trechos do poema "Espelho", e nos contos "Páramo" e "O espelho", que o leitor poderá constatar nas edições que passo a indicar entre parênteses. Em "Páramo" há transcrições literais dos versos "O espelho, tão cislúcido", "O espelho me aprisiona", e "Num espelho em que meus olhos soçobraram" (Rosa, 1976: 188). O verso "eu imaginado", se transforma em "Páramo" em "Esta cidade é uma hipótese imaginária" (1976: 179), e em "O espelho" em "uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária" (1978: 70). Os versos "Flor pelágica e "para emergir no espelho", transformam-se em "O espelho" em "Mas o ainda-nem-rosto -quase delineado, apenas- mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal" (1978: 78). Talvez a coincidência mais surpreendente seja uma coincidência não literal, que é a transformação desse "menecma ( = sócia)" do esboço de poema no sósia "repulsivo senão hediondo" de "O espelho" (1978: 73) e no Doppelgänger que em "Páramo" caracteriza-se como Homem com o aspecto de cadáver: "Ele, é o mais morto. Sua presença, obrigatória, repugna-me, com o horror dos seres infaustos, como uma gelidez contagiante, como uma ameaça deletéria, espantosa. Tenho de sofrê-la, ai de mim, e é uma eternidade de torturas" (1976: 183).

22. A questão, para mim fundamental, é que esses diagnósticos têm reflexos imediatos sobre a crítica e sobre operações tradutórias. De maneira bastante sintomática, por exemplo, uma discípula de Haroldo de Campos, a ensaísta e tradutora Vera Mascarenha de Campos, em seu livro Borges e Guimarães (1988), refere-se a um "espírito comum" (tomado de Northrop Frye) que justifica essa descendência para os autores estudados, e até propõe uma tradução mineira da variação orillera usada em textos do jovem Borges (cf.: 53). Com isso, e através da adaptação a um interpretante nacional, fundamentado numa convenção conhecida, note-se, se perde boa parte da singularidade que ambos os autores esforçam-se por elaborar. Uma tradução sem contágio do estrangeiro, acredito, pode ser uma das manifestações da universalidade sem diferença contra a qual, precisamente Rosa e Borges, escrevem.

23. A associação de sentidos entre quarta dimensão e identidade, para além do indivíduo ou de uma percepção individual elevada a universal, não é um privilégio de Rosa, e muito menos deste trabalho. Em 1935, por exemplo, aparecia o Manifesto dimensionista elaborado por Charles Sirato e assinado, entre outros, por Ben Nicholson, Alexander Calder, Vicente Huidobro, Joan Miró, Moholy-Nagy, Hans Arp, Pierre Albert-Birot, Robert e Sônia Delaunay, Marcel Duchamp, Wassily Kandinsky e Francis Picabia. Esse manifesto reivindicava que : "l' 'art à n+1 dimension' (le planisme) se soucie peu de la destinée individuelle. Parce que la signification de la vie individuelle s'efface et perd le privilège de la véritable existence par suite de la libre association du temps et de l'espace"(cf. Sirato, 2010). A respeito dessa aproximação remeto ao artigo "The Fourth Dimension and Non-Euclidean Geometry in Modern Art" (1984), em que Linda Dalrymple Henderson aporta um cuidadoso tesauro das apropriações vanguardistas das teorias da quarta dimensão e da geometria não euclidiana. Por outra parte, não se deve deixar de levar em conta a proximidade entre essas apropriações vanguardistas e as doutrinas ocultistas, teosóficas e esotéricas que, de maneira geral, o período recebe do acervo do Século XIX. No caso latino-americano, esse acervo se processa via Modernismo (hispano-americano), Simbolismo ou decadentismo, e, de maneira bastante frequente, aparece "misturado" com teorias de um caráter científico reconhecido. Uma apropriação "bárbara", antropófaga, diríamos com Oswald de Andrade, precisamente por não se tratar da incorporação sistemática, ou sequer, "correta" dessas teorias. A própria Linda Henderson, no artigo acima mencionado, descreve de que maneira esses corpus de conhecimentos, para além do seu rigor científico, significaram para as vanguardas "primarily a symbol of liberation for artists". (cf. 1984: 205). Para um perfil das leituras teosófico-científicas do fin de siècle latino-americano, cf. Paz, 1990; Gutiérrez-Girardot, 2004; Bosi, 1994; Viñas, 1963; Rama, 1985; Salazar Anglada, 2000.

24. "O senhor, como os demais, não vê que seu rosto é apenas um movimento deceptivo, constante. Não vê, porque mal advertido, avezado; diria eu: ainda adormecido, sem desenvolver sequer as mais necessárias novas percepções. Não vê, como também não se vêem, no comum, os movimentos translativo e rotatório deste planeta Terra, sobre que os seus e os meus pés assentam" (Rosa, 1978: 74).

25. Por se tratar de materiais que acompanharam a elaboração deste trabalho, remeto aqui a algumas leituras. Em primeira instância, ao livro O clamor de Antígona (2014), em que Judith Butler pensa o rol de gênero da heroína de Sófocles como performance, isto é, como um fazer para além do ser, para desconstruir as concepções naturalizadas de parentesco consanguíneo e simbolização pré-social, em Hegel e Lacan, respectivamente. Considerando que esse caráter performativo de um índice identitário tão forte como o gênero (e inclusive o sexo é performático para Butler) inevitavelmente leva atrelada uma flexibilização dos laços parentais, não posso deixar de remeter neste lugar a ¿Quién le canta al estado-nación? (2009), em que Gayatri Spivak e Butler, para além da fatalista "vida nua" teorizada por Giorgio Agamben em Homo Sacer II (1995), pensam "regionalismos críticos" em que a afinidade opera como uma estratégia de identificação entre subalternos em circunstâncias ou situações específicas que não obliteram, mas exigem a heterogeneidade como insurgência face à monolíngua.  Silviano Santiago que, justamente, se vale da ideia de afinidade como elemento chave para a compreensão de um cosmopolitismo pobre (2004) em tempos de mundialização, sintetizou esse tipo de parentesco na fórmula "universalidade mais diferença" (2013: 253). Para uma compreensão dos avatares da afinidade em relação com a situação, remeto também aos trabalhos de Donna Haraway (1995) e Chela Sandoval (2004), incluídos na bibliografia deste trabalho. Em relação com esses conceitos, mas aplicado ao problema do "nacional", remeto ao conceito de "nação eventural", elaborado por Raúl Antelo, em Algaravia: discursos de nação (1998), como virtualidade, atualizada em situações espaço-temporais diversas, criadora de identificações pautadas por representações não só estruturadas, mas estruturantes do social. O que me interessa nesses avatares singulares é que a universalidade não se apresenta como um destino absoluto, nem como a manifestação de uma origem determinada, mas sempre em relação com lugares de existência que, por sua vez, se compreendem como incompletos, inclusive como contraditórios, conflituosos, ou mutáveis, e sempre insertos em complexas redes diferenciais. É claro que estou longe de afirmar que Rosa encarna um cosmopolita pobre, ou que promove diretamente uma consciência cyborg, negra, opositiva ou diferencial, mas a sua apropriação sertaneja de concepções do espaço-tempo (aparentemente "neutrais" por "universais"), é afim com o tipo de agência pensada pelos textos mencionados, que aproveito em prol da minha argumentação.

26. Há cópias desses artigos no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), tombados sob os números catalográficos: JGR-R20.03,01 ("A estética do idioma de Zamenhof") e JGR-R20.03,02 ("Semana do livro esperantista").

27. Esse texto incorpora alguns dos assuntos e questões que mais me interessam, não só em Tutaméia, mas de maneira geral na obra de Guimarães Rosa, a saber: 1. a questão da representação, em relação com a escritura; 2. a questão da identidade, complementar à da representação; 3. O papel do escritor ou transcriptor que permanentemente Rosa coloca num silêncio paradoxal, geralmente em situações narrativas de contato entre um intelectual vindo da cidade e os habitantes do interior. Nessa crônica, publicada em A Manhã em 25 de maio de 1954, o narrador-Rosa relata o seu encontro, no estado de Mato Grosso, com "Terenos, povo meridional dos Aruaks". À procura de alguns segredos da surpreendente língua tariana, o escritor transcreve em caracteres alfabéticos algumas palavras, descreve brevemente a "indigência, o aciganamento sonso" em que encontra a pequena aldeia semi-nômade, e finaliza declarando o seu fracasso na tentativa de achar a lógica dessa fala, ou de sequer representá-la . Esse fracasso, colige-se da crônica, responde ao afã do escritor por querer "saber exato o sentido" da língua, à própria necessidade de catalogar o mundo numa caderneta: "Tôda língua são rastros de velho mistério. [...] Nenhum -diziam-me- significava mais coisa nenhuma, fugida pelos fundos da lógica. Zero nada, zero. Eu não podia deixar lá minha cabeça, sòzinha, especulando. Na-kó i-kó? Uma tristeza" (Rosa, 1970: 88-90). Note-se: não é a língua que não funciona, é o homem civilizado que falha na tentativa de sistematizá-la. Em trabalho posterior, pretendo abordar essa narrativa a partir dos eixos fundamentais mencionados.

28. En "Autonomia, pós-autonomia, an-autonomia" (2013) Raúl Antelo aproxima as teorias da quarta dimensão  de teorias contemporâneas da literatura e da cultura, vinculando, entre outros, os conceitos de espaçotempo y realidadeficção como índices de desconstrução da função, ou da estrutura, autonomistas, e de uma concepção do acontecimento-texto como imagem, ou dispositivo, de um poder que só anacronicamente, ou seja, como efeito de leitura, declinaria a captura de seus objetos.

29. Cito mais uma vez Guimarães Rosa: "através dos espelhos [que neste caso são os próprios textos], parece que o tempo muda de direção e de velocidade" (73). É uma sorte de bustrofédon: "Há, porém, que sou um mal contador, precipitando-me às ilações antes dos fatos, e, pois: pondo os bois atrás do carro e os chifres depois dos bois" (77). Chama a atenção o fato de que essa metáfora, a do carro, se relaciona em Borges com a noção de "karma" e com a, complementar, noção de "nirvana", cujo sentidos mais aproximados são "esvaziamento", "apagamento" ou "extinção" (Ferrater-Mora, 1964: 398). Em "La personalidad y el Buddha" (Sur, 1950) e na conferência "El budismo" (Siete noches, 1980), Borges elabora essas noções. No Milindapañha, obra apologética do século II, o autor de Ficciones encontra um exemplo, aquele do carro, que expressa a radical negação que o budismo faz do conceito de "eu" -attavada-, cuja simples menção pode constituir a pior das heresias: "así como el carro del rey no es las ruedas ni la caja ni el eje ni la lanza ni el yugo, tampoco el hombre es la materia, la forma, las impresiones, las ideas, los instintos o la conciencia. No es la combinación de esas partes ni existe fuera de ellas". Todo homem, portanto, seria para o budismo uma ilusão imposta aos sentidos por uma série de homens momentâneos: o homem de ontem morreu no de hoje, o de hoje morrerá no de amanhã, o presente que vive não viveu nem viverá. Dessa maneira, o Nirvana não pode ser alcançado por uma individualidade, por uma alma carregada com as culpas da lei causal do karma, porque sendo igual ao Nada, esse estado carece de cronologia. O karma, por sua vez, tem uma origem infinita e um final certeiro, e isso comporta para Borges uma curiosa consequência: a extinção é tão certa quanto impossível uma determinação da origem, e o homem não tem uma essência unitária, não é nem uma somatória de partes nem existe fora delas (cf. Borges, 1989; 1999). Esvaziamento, despojamento da convicção do eu" ("a flecha"), temporalidade não ascensional ou progressiva, expansão do passado ou compreensão de que na origem de toda existência há um excesso de ser e não a sua falta, todas essas ideias confluem em Tutaméia, por exemplo, no prefácio "Sobre a escova e a dúvida", no qual Guimarães Rosa brinca com os erros de português, e até parodia a metáfora arvorecente de Antonio Candido, a quem transforma num fazendeiro, o Tio Candido, que tem uma mangueira cujas mangas são capazes de produzir infinitas árvores. De fato, a epígrafe do fragmento citado é bastante eloquente a respeito do sentido dessa proliferação infinita: "A matemática não pôde progredir, até que os hindus inventassem o zero. O DOMADOR DE BALEIAS" (1968: 148). Isso quer dizer, ao relacionarmos essa citação com a reflexão oriental sobre a série numérica elaborada por Severo Sarduy em La Simulación (1982), que na origem não há uma presença, mas um vazio, e que toda presença é já sempre secundária. Ou seja, o derivado não é inferior, mas pode abrir possibilidades infinitas. É originário, se aceitamos a perspectiva do supostamente secundário: "Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois" (Rosa, 1968: 148-149). Note-se que essa espécie de bustrofedón intertextual funciona aqui como um procedimento de esvaziamento semântico e de remontagem, em que não é a outra coisa que a rede de palavras -talvez secundária- em que se inserta que se deve o sentido de cada material "montado" e não mais exclusivamente à intenção com que fora composto.

30. A citação original, que propositalmente altero, é essa: "Desse modo, o poema revela o escopo da sua orgulhosa estratégia: que a língua consiga no fim comunicar a si mesma, sem permanecer não dita naquilo que diz" (Agamben, 2014: 186) [destaque meu]. Acredito que a exigência, para além de toda necessidade ou possibilidade,postulada por Agamben em "¿A quién se dirige la poesía?" (2015), e que ele interpreta como um escrever no lugar de a partir do verso de César Vallejo "por el analfabeto a quien escribo", pode ter mais uma volta de parafuso no escrever com postulado por Georges Didi-Huberman na sua conferência "Cinema e poesia: Godard face a Pasolini" (Porto, 2014, disponível em: http://filosofiaemvideo.com.br/conferencia-prof-dr-georges-didi-huberman-cinema-e-poesia-godard-face-a-pasolini/). Esse "escrever com", muito mais afim com a ficção de Rosa que o "escrever no lugar de", como atestaria a mais superficial constatação, constitui uma opção pela diferença que, não por acaso, se adverte já no debate aberto por Didi-Huberman contra Agamben no livro Sobrevivência dos vagalumes (2011a). Uma opção que não se manifesta sem contrários: da língua à montagem; do fatalismo de uma experiência extinta à insistência vital; da língua como abstração silenciosa e universal, ao plurilinguísmo dos sotaques, das cores e dos sexos; do significado imposto e/ou discernido pelo intelectual, ao significante errático e contingente dos encontros, dos desencontros.

Bibliografia

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