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Cuyo

versión On-line ISSN 1853-3175

Cuyo-anu. filos. argent. am. vol.37 no.1 Mendoza jun. 2020  Epub 18-Dic-2020

 

Textos

Alguns aspectos filosóficos da automação. (Elaboração de uma comunicação ao Simpósio da II Bienal de Ciências e Humanidades, tida em São Paulo em 1969)

Algunos aspectos filosóficos de la automatización (Elaboración de uma comunicación al Simposio de la II Bienal de Ciencias y Humanidades, realizado en São Paulo en 1969)

Some philosophical aspects of automation (Preparation of a communication to the Symposium of the II Biennial of Sciences and Humanities, held in São Paulo in 1969)

Vilém Flusser

A tese defendida neste ensaio será esta: há um sentido na afirmativa que sustenta ser a automação um acontecimento crítico na história humana, de certa forma comparável em importância com acontecimentos do tipo “origem da cultura”. E o sentido da afirmativa tem a ver com o significado dos termos “história” e “homem”. Para defender a tese o seguinte itinerário será seguido: (1) será sugerida uma interpretação da história, (2) será sugerida uma interpretação de várias antropologias no curso dessa história, e (3) será sugerido um prognóstico do futuro imediato. As sugestões oferecidas não terão a pretensão de uma aplicabilidade geral, já que visarão apenas a automação como problema. Já que o problema põe em questão a ciência não apenas como discurso que comunica conhecimento e como modelo de trabalho e de comportamento, mas também a ciência como disciplina política e religiosa.

(1) Resumirei a história da humanidade, escolhendo três acontecimentos que me parecem decisivos. O primeiro, que é aquele pelo qual essa história se inicia, é a revolução ôntica pela qual o homem se distancia da sua circunstância e se assume sujeito da natureza. Nessa virada o homem passa a encarar a natureza como seu objeto. Isto é: como algo que é, (a saber: está diante dele, “vorhander”), mas não é como deve ser, podendo ser, no entanto, transformado naquilo que deve ser pela ação humana. O ser da natureza é aceito como dado. O dever ser da natureza é concebido como uma série de modeles eternos, imutáveis e transhumanos. Portanto: o homem vai transformando a natureza dada ao imprimir sobre ela modelos igualmente dados. Nessa atividade transformadora o homem vai se utilizando de instrumentos. Os instrumentos são pedaços da natureza, arrancados do seu conjunto, transformados de acordo com determinados modelos, e virados contra a natureza da qual foram arrancados.

Os modelos dos instrumentos são órgãos do corpo humano. São modelos eternos, porque o corpo humano é concebido como estrutura a-histórica, são imutáveis, por que o corpo humano é concebido como estrutura imprimida sobre o homem. Sendo os instrumentos resultados de manipulação que tem órgãos do corpo humano por modelo, são eles prolongamento do corpo humano. São simulações de órgãos. “Simulação” é imitação que exagera um determinado aspecto do modelo, e despreza os demais. Por exemplo: martelo é simulação de punho, porque exagera o aspecto “peso” do modelo, e despreza outros. Flecha é simulação de dedo, porque exagera o aspecto “perfuração” e despreza outros. Simulantes são menos complexos que os modelos originais que simulam, dada a relativa pobreza de sua estrutura. Mas no aspecto exagerado são mais eficientes que os originais simulados. Por isto aumentam os instrumentos enquanto simulantes de órgãos a eficiência da ação humana sobre a natureza.

Com efeito: a história humana poderia ser enfocada como um crescente exagero de certos aspectos de órgãos do corpo humano em instrumentos. Teríamos, nesse enfoque, o seguinte desenvolvimento partindo do punho: pedra, martelos, bala de canhão, bomba atômica; e, partindo do dedo: osso, lança, flecha, bala de revolver e foguete. Outras árvores genealógicas seriam construíveis com facilidade, tomando vários órgãos do corpo por pontos de partida. Por mais que a eficiência do instrumento aumente pelo exagero da simulação, nunca, por si só, problematizará a relação entre o homem e instrumento. Porque o instrumento continuará sendo prolongamento do corpo humano, dada a maior complexidade do original simulado em relação com o simulante. A época instaurada pela revolução ôntica que resultou em instrumentos perfaz a maior parte da história da humanidade. Nela a relação “homem-instrumento” não é problema. O problema é a relação “homem-natureza”.

O segundo acontecimento decisivo na história da humanidade é aquela revolução, (chamada, em vários contextos, “humanismo” ou “renascimento”), pela qual o homem se assume enquanto produtor e convencionador de modelos. Nessa segunda virada o homem continua encarando a natureza como seu objeto. Mas os modelos, o dever ser da natureza, não é mais tomado como dado, senão como produto de convenção humana. Doravante o homem não vai apenas manipular a natureza de acordo com modelos, mas vai manipular os próprios modelos, (“valores”). Estes, de eternos, imutáveis e transhumanos, passam a efêmeros, invalidáveis e humanos. Trata-se, no fundo, de uma reformulação revolucionária do significado do termo “teoria”. Este deixa de significar contemplação de modelos imutáveis, e passa a significar manipulação de modelos invalidáveis. O resultado da revolução é a ciência no sentido restrito do termo, e que é uma disciplina na qual teoria e praxis se implicam mutuamente.

A ciência, por sua vez, resulta numa revolução no campo dos instrumentos. Essa revolução é chamada “revolução industrial” em vários contextos. Doravante os instrumentos deixam de simular diretamente os originais, (os órgãos do corpo humano), mas passam primeiro pelo crivo de uma determinada teoria, efêmera e invalidável. Se compararmos um tear manual com um tear mecânico, constataremos o seguinte: uma análise fenomenológica do tear manual revelará, como seus eidos, dedos humanos que tecem. A mesma análise do tear mecânico revelará, além dos dedos, uma determinada teoria física do século 18. A passagem pelo crivo de uma teoria permite um crescente exagero no simulante, e uma crescente eficiência do instrumento. Mas cria toda uma série de novos problemas. Um entre esses problemas diz respeito à efemeridade do instrumento, consequência da efemeridade do seu modelo. Este aspecto é chamado “progresso” e é problema porque problematiza o hábito no uso do instrumento. Os instrumentos deixam de ser habituais, e passam a ser progressivamente estranhos. Um outro problema diz respeito à crescente complexidade e ao crescente custo dos instrumentos. Surge pois a pergunta: “Quem é o dono dos instrumentos e quem deve sê-lo?”. Esta é uma das mais características perguntas da revolução industrial, e será o marxismo que a formulará mais significativamente. Mas a complexidade crescente dos instrumentos, agora melhor denominados “máquinas”, cria um terceiro problema, ainda mais grave.

De certa forma essa complexidade vai problematizando a relação “máquina-homem”. Surgem um novo tipo de homem, o proletário, que funciona em função da máquina, e não vice-versa. A estrutura da relação começa a inverter-se. Não mais se caracteriza assim: “homem cercado de instrumentos”, mas assim: “máquina cercada de homens”. O problema não é, no entanto, insolúvel, porque permite a análise seguinte: por mais complexas que sejam as máquinas, o homem continua sendo seu modelador e modelo. As máquinas continuam na dependência da ciência, que é uma disciplina humana, e na dependência da manipulação humana no seu funcionamento. De forma que continuam sendo prolongamento do homem na sua ação sobre a natureza. Apenas resultam em uma classe de homens, o proletariado, que passa a ser dominada pelas máquinas em função dos seus donos. Assim as máquinas se estabelecem como camada intermediária entre dominantes e dominados. O problema da época que se inicia pelo humanismo e que resulta na revolução industrial ainda não é, no fundo, o problema da relação “máquina-homem”. Não é ainda o homem e sua ciência que entram em crise. O problema continua sendo o antigo da relação “homem-natureza”, acrescido da urgência do problema da relação “homem-homem”.

O terceiro acontecimento decisivo na história da humanidade é extremamente recente. Poderá ser chamado “automação”, ou “cibernética”, na falta de uma designação mais adequada. Consiste numa terceira virada ôntica, pela qual o homem se assume como sujeito de si próprio, e pela qual portanto se objetiva. Doravante não apenas encara a natureza como seu objeto, e os valores como seus produtos, mas encara-se a si mesmo a partir de uma transcendência sem fundo. Este distanciamento de si próprio, esta antropologia científica, permitirá doravante ao homem não apenas usar os órgãos do seu corpo como modelos para instrumentos, mas ainda suar o próprio sujeito humano enquanto agente como tal modelo. É verdade que os novos instrumentos cibernéticos parecem simulantes de cérebros, (portanto órgãos do corpo), mas muito mais significativamente são simulantes de decisões humanas, (portanto do homem enquanto agente).

Este novo tipo de instrumento continua sendo simulante, isto é: infinitamente menos complexo que o original simulado, (o sujeito humano). Mas continua sendo simulante também neste sentido: muito mais eficiente no aspecto exagerado, isto é na capacidade decisiva. E isto é um problema inteiramente novo. Ao ter o homem desta forma se simulado a si próprio como agente, provocou um processo pelo qual tenderá a ser eliminado enquanto agente, por progressivamente superado enquanto agente pelos seus simulantes.

A partir daí o problema passa a ser, agora sim, o problema da relação “homem-instrumento”. Em nada adianta querer minimizar o problema com afirmativas arcaicas do tipo: os novos instrumentos continuam sendo resultado da ciência humana e continuam dependendo da manipulação humana no seu funcionamento. Continuam portanto prolongamentos do homem em sua ação sobre a natureza. Esse raciocínio é falho porque ignora o fenômeno da autonomia. E esse fenômeno, que vai ocupando um papel de crescente importância nas análises estruturais, é o problema-chave para a compreensão da nova situação na qual a automação nos coloca.

“Autonomia” é aquele salto pelo qual uma estrutura que se originou de outra passa a explicitar regras apenas implícitas na primeira. O salto torna a nova estrutura independente da original num sentido ôntico, e a torna também inexplicável a partir da primeira num sentido significativo. Por exemplo: o homem pode ser considerado estrutura que se originou a partir da estrutura dos primatas. Pois o homem se autonomizou dos primatas ao explicitar certas regras que estavam apenas implícitas nos primatas. A capacidade para a matemática é uma de tais regras. Está implícita nos primatas, mas no homem se tornou explícita e efetiva. Por isto o homem é onticamente diferente dos primatas, independe deles. E por isto também o homem não pode ser satisfatoriamente explicado enquanto primata. A autonomia do homem com relação à estrutura da qual se originou permite uma reversão dessa relação, reversão essa chamada “feedback”. Por “feedback” o homem pode passar a programar primatas, por exemplo chimpanzés, pode enjaula-los, e fazer com que passem a simulá-lo, fumando charutos e andando em bicicleta. A estrutura original, passa, neste caso, a simular a estrutura à qual deu origem.

Os instrumentos automatizados enquanto simulações de agentes tendem para a autonomia. Tendem a explicitar e tornar afetivas determinadas regras de comportamento que estão apenas implícitas no homem, (no original simulado). É portanto perfeitamente lícito prever-se uma crescente inversão do fluxo de programação entre homem e instrumento. Com efeito, já agora a humanidade atual é parcialmente programada pelos instrumentos, e seu comportamento denota, já agora, um caráter parcialmente instrumental e funcional, isto é: o homem já agora simula seus próprios instrumentos. Em outras palavras: a inversão da relação “homem-instrumento” transforma o ser do homem, que passa progressivamente a ser objeto de programação instrumental, a fonte de informação dos instrumentos por retro-alimentação, a ser funcionário utilizado pelos instrumentos. Não se trata, neste tipo de análise, de uma ilegítima e ingênua antropomorfização do instrumento. Os instrumentos são realmente antropomorfos, já que surgiram como simulação do homem. E a análise é procedente. E o problema diante do qual o fato novo da automação nos coloca, diz respeito ao ser do homem enquanto agente. Põe em questão o homem enquanto portador da história, enquanto sujeito.

(2) Aos três acontecimentos decisivos da história humana correspondem três antropologias distintas. As primeiras duas antropologias podem ser rotuladas, por exemplos pelos rótulos “platonismo” e “cartesianismo” respectivamente. A terceira não pode ser rotulada com tanta facilidade, porque ainda não está formulada. Com efeito: ao tentar formulá-la somos tomados daquela vertigem que é sintoma da aventura. Não obstante desde que pelo menos Kant ela procura assumir forma articulada, e essa articulação se condensa progressivamente, alcançando suas maiores realizações até agora em Husserl, Heidegger e na nova teologia de um lado, em Wittgenstein e no método estruturalista do outro. Para as finalidades do presente ensaio basta, no entanto, esboçar as três antropologias.

Na primeira o homem se concebe como canal entre o plano do ser, (natureza), e o plano do dever ser (valores). Ambos, tanto a natureza como os valores, são externos ao homem, e no entanto o homem participa de ambos. Ao participar de ambos, pode o homem fundi-los. Mas por serem externos ao homem, são ambos problemas no sentido de tarefas. Obviamente este esquema pobre e radicalmente simplificado de uma antropologia nunca tem sido formulado nestes termos, e sofreu grandes modificações no curso de sua vigência na história do pensamento, desse as várias formas de magia, passando pela filosofia grega e pela profecia judia, até o pensamento medieval do cristianismo. Não obstante esta esquematização simplificadora tem sentido. O sentido é mostrar o profundo abismo que separa toda Antiguidade e Idade Média dos tempos modernos.

Há lugar, em tal antropologia, para os conceitos da virtude e do pecado. São sinônimos da obediência ou não aos modelos. Há lugar nela para o conceito de sabedoria que é a contemplação dos modelos. Há lugar nela para o conceito de arte, que é a aplicação de modelos à natureza. Mas não há lugar nela para o conceito da ciência no sentido moderno, nem para a distinção moderna entre arte e técnica, nem para o conceito de progresso. A vida humana, no âmbito de tal antropologia, pode ser interpretada de várias formas conflitivas, mas sempre será interpretada como objeto de influências transhumanas. Se pensar é duvidar, o homem pode pensar, no âmbito de tal antropologia, a natureza e os valores, (fazer metafísica e teologia), mas nunca pode pensar-se, (fazer epistemologia). Porque sendo objeto de algo outro, não pode o homem assumir-se enquanto aquele outro do qual é objeto. E isto equivale dizer que esta antropologia é inconsciente para si mesma. Não se sabe antropologia.

Os problemas existenciais de uma vida no âmbito de tal antropologia terão a ver com a verdade, o bom, o belo, e com as dificuldades de serem alcançados. E a resposta a estes problemas terá sido a cultura. Uma resposta que visará integrar o homem na natureza e nos valores, já que ela é a síntese de ambos. Em outras palavras: o homem se concebe como instrumento que usa outros instrumentos para criar cultura, e neste seu uso o homem serve. A ação humana é a tradução de um imperativo, transhumano, fiel ou falha. Em tal antropologia viver é perpetrar um papel, e a vida é um drama no qual os homens são os atores. Em suma: a vida como rito.

A revolução que resultou na segunda antropologia pode ser visualizada como englobação do plano valorativo pelo homem. O homem não se concebe mais como canal entre modelo e natureza, mas como o polo oposto à natureza. Se o plano dos modelos for equiparado à Divindade, a revolução consiste na interiorização da Divindade pelo homem. Este aspecto da nova antropologia foi melhor elaborado pela Reforma. E se o plano dos modelos for equiparado ao significado, a revolução consiste no conceber-se o homem como ente que confere significado ao mundo. Este aspecto da nova antropologia foi melhor elaborado pelo marxismo. E, finalmente, se o plano dos modelos for equiparado à estrutura do pensamento, a revolução consiste na humanização do conhecimento. Este aspecto da nova antropologia resultou na ciência, no significado moderno do termo.

A relação dialética entre homem e natureza, implícita nessa antropologia e explicitada por Hegel, a torna auto-consciente. O homem se sabe sujeito da natureza. Mas esse saber é uma infelicidade, e a consciência infeliz é basicamente o clima dessa antropologia. Porque ao pensar-se enquanto sujeito da natureza, o homem perde a natureza como seu objeto, e ao pensar a natureza enquanto seu objeto, o homem se perde como sujeito. Por esta razão surge, num dos dois polos, o idealismo que duvida da realidade da natureza, e no outro polo o materialismo que duvida da realidade do sujeito. A tentativa hegeliana de superação desta tensão salienta ainda mais a situação de alienação na qual o homem se concebe dentro dessa antropologia.

A ciência assume, no contexto de tal antropologia, o papel preenchido pela teologia no contexto da antropologia esboçada anteriormente. Enquanto progressiva retro-alimentação entre teoria e práxis, portanto enquanto crescente síntese entre homem e natureza, a ciência vai progressivamente desalienando o homem. É neste sentido que a ciência é disciplina salvadora do homem durante a vigência dessa antropologia. E esta concepção implica em historização tanto do homem como da natureza. Acaba resultando em abandono do pensamento ontológico, porque o ser é impensável em contexto no qual nada é, mas tudo se processa. Em outras palavras: o presente, que é o terreno do ser, passa a ser concebido como ponto imaginário dentro do fluxo linear do tempo que flui do passado em demanda do futuro.

Os problemas existenciais da vida no âmbito de tal antropologia terá a ver com produção, realização e trabalho. O homem se salva da natureza ao humaniza-la pelo trabalho, e se salva a si mesmo ao objetivar-se no seu trabalho. A revolução industrial abre o campo para a ação eficientemente salvadora do homem. As máquinas são a um tempo testemunhas e métodos de ação salvadora. Simultaneamente sacralizam o útil e utilizam o sacro. E criam uma tensão dialética entre arte e tecnologia, entre o belo e o bom, entre o inútil e o útil. Em tal antropologia viver é modificar-se e modificar a natureza. Em suma: a vida como trabalho.

A antropologia da qual vai resultar a cibernética e a automação começa a surgir quando o homem consegue dar um passo para trás (“Schritt zurück” Heidegger), para ver de fora a antropologia que acaba de ser esboçada. E, com efeito, tudo que foi dito neste ensaio foi dito a partir do ponto alcançado por esse passo. Por esse passo o homem se assume enquanto sujeito de si mesmo, e se transforma, portanto, em objeto para si mesmo. Inverto, por essa revolução dramática, a relação que mantinha com os valores da Antiguidade. Na antropologia pré-moderna o homem se assume enquanto objeto dos valores. Na pós-moderna enquanto sujeito dos valores. Assume doravante, enquanto sujeito, uma posição externa à tensão dialética entre o homem, (qua objeto), e natureza. Vê o processo a partir de um ponto que não está inserido no processo. Pode falar “sobre” o processo. Esse passo de transcendência de si mesmo se dá em Kant, mas é um passo penoso e não tem sido completado até hoje.

Esse passo põe os valores em crise. Porque não os desvenda apenas convencionais, mas desvenda os próprios convênios estabelecedores de valores convênios aleatórios e gratuitos. O importante na transvaloração dos valores nietzscheana não é o reagrupamento dos valores, mas a vacuidade do lugar supremo na sua hierarquia. O passo põe ainda a ciência em crise. Porque desvenda o caráter especulativo e absurdo do conhecimento científico, e o caráter gratuito das modificações operadas na natureza. O homem se objetiva pelo conhecimento da natureza, mas a natureza não passa de projeção humana, de forma que ao conhecer a natureza o homem apenas se re-encontra. E o homem humaniza a natureza pela tecnologia, mas ao fazê-lo apenas retorna ao natural, já que a tecnologia resulta em nova natureza. Porque o passo para traz desvenda a relação entre homem e natureza como relação entre dois objetos de si mesmo, portanto como relação “entre dois espelhos pendurados em paredes opostas em quarto vazio” (Wittgenstein). E, mais importante ainda, esse passo põe em crise o homem.

A crise do homem se deve ao fato que o passo para trás não resulta no encontro de um ponto de apoio no qual uma antropologia possa ser estabelecida. Portanto não resulta em perspectiva, como resultou a primeira revolução na antropologia. Pelo contrário, toda perspectiva se perde, porque o passo é repetitível ao infinito. O homem que se assume sujeito de si mesmo pode, no próximo passo vertiginoso, assumir essa própria assunção como seu objeto. E pode reverter a ordem dos passos, assumindo-se como sujeito do passo para trás que deu. Toda hierarquia na transcendência passa a ser reversível. Surge, nesse nada englobante, uma “Bodenlosigkeit” (falta de fundamento), que pode ser chamada de “morte de Deus”, ou de “decisão para a morte”, ou de “teorema de Gödel” em vários contextos. Não é possível ao homem encontrar-se. No fundo esta antropologia é uma antropologia anti, já que nela o homem se assume enquanto ser desorientado.

Mas justamente por ser antropologia anti, permite ela uma antropologia científica, isto é uma disciplina da qual não se sabe quem é o sujeito, mas da qual o homem é objeto. Surgem assim as várias sociologias, psicologias e políticas científicas, que manipulam o homem, e surge a cibernética e a automação, que simulam o homem enquanto agente. E esta simulação torna existencialmente sorvível o que é a vida em tal antropologia: um funcionamento sem sentido e meta. De forma que o “feedback” entre homem e máquina automática, pelo qual o homem passa simular seus simulantes, revela apenas um característico já previamente inerente na atualidade: a vida é funcionamento programado sem sentido.

Resumindo as conclusões até aqui alcançadas: o homem inicia a sua história ao assumir-se sujeito da natureza sem dar-se conta disto, e isto resulta na cultura dos instrumentos. Nela o sentido da vida é obedecer a imperativos transhumanos. No humanismo o homem se dá conta da sua situação enquanto sujeito da natureza, e isto resulta na cultura industrial da ciência e do progresso. Nela o sentido da vida é o trabalho como realização e salvação de si mesmo. Ultimamente o homem se dá conta do seu assumir-se enquanto sujeito da natureza, e isto começa a resultar na cultura pós-industrial das disciplinas formais, da programação, da automação e do consumo. Nela a vida não tem sentido.

(3) Uma observação inicial se impõe com grande força. Os três estágios da história elaborados, e as três antropologias esboçadas, não podem ser aceitos, atualmente, como relatos de fatos objetivos, nem como três estágios num processo objetivo. Pelo contrário, devem ser vistos como resultados da aplicação de um modelo “ad hoc” convencionado, e como estruturas intercaladas mesmo dentro desse modelo. Como resultados de um modelo “ad hoc” podem ser aceitos apenas como uma entre muitas explicações possíveis do fenômeno da automação, das suas causas e dos seus efeitos possíveis. Como estruturas intercaladas exigem o seguinte esforço do pensamento: é preciso ver dentro dos instrumentos iniciais as máquinas cibernéticas como inerências implícitas, e é preciso ver nas máquinas cibernéticas ainda e sempre instrumentos. É preciso ver, no interior dos imperativos transhumanos da Antiguidade e do Cristianismo já e sempre as regras aleatórias de convênios lúdicos, e é preciso ver nas regras fortuitas dos jogos atuais ainda e sempre ou imperativos transhumanos. É preciso ver na vida ritual já e sempre a vida absurda, e na vida absurda ainda e sempre o rito. Não se trata de conceber a história como processo que realiza virtualidades, superando formas e guardando as formas superadas em nível mais alto de desenvolvimento. É preciso tentar conceber a história como um jogo de constante reagrupamento de elementos de acordo com regras, das quais apenas uma é a regra do desenvolvimento. De maneira que é preciso ver que a superação de estruturas é apenas uma entre as explicações da história possíveis, e que há outras explicações, dentro das quais não tem sentido falar-se em superação do passado. Em outras palavras: é preciso ver a reversibilidade da hierarquia de estruturas. É possível explicar a história formalmente, e é possível explicar o formalismo historicamente. Pois é justamente esta reversibilidade que é a morte do historicismo. Não no sentido de superação do historicismo, mas no sentido de sua deposição de lugar preferencial entre as explicações possíveis.

Pois se for conseguido este esforço do pensamento diante do modelo oferecido neste ensaio, uma coisa deve tornar-se clara: os problemas diante dos quais a automação nos coloca são radicalmente novos apenas dentre da perspectiva historicista. Dentro dessa perspectiva efetivamente nunca antes foi posta em questão a relação entre homem e instrumento com igual radicalidade, e isto efetivamente põe em questão pela primeira vez o sentido da cultura, o engajamento na história, e a continuação do homem enquanto agente. Mas outras perspectivas há, dentre das quais o problema de sentido ou sem sentido da ação humana e da vida humana atual nada apresenta de novo. É um dos temas eternos. É justamente essa pluralidade de perspectivas possíveis que nos tira “a” perspectiva.

É pois importante captar que a crise atual é a crise do homem histórico, do homem cientista, do homem ativo, do homem que decide, não do homem “tout court”, (daquele homem que não sabemos encontrar e do qual nem sabemos se tem sentido falar-se). Parece que nesta constatação está a chave de uma das soluções possíveis da crise. Uma chave que parece ter sido encontrada em nível existencial, (embora talvez não em outros níveis), pelo movimento hippie. A solução parece ser esta: abandonar o homem histórico à sua sorte histórica, a de ser superado pelos seus simulantes. Abandoná-lo por retirada de interesse. E assumir-se enquanto “novo” homem, isto é enquanto homem desinteressado nos acontecimentos, mas interessado nas estruturas gratuitas e convencionais que podem ou não informar os acontecimentos. O “novo” homem não seria portanto um manipulador de modelos que visam modificar a natureza e o homem, mas um manipulador de modelos que nada visam. O “novo” homem seria o “homo ludens”.

Negativamente esta mudança de interesse implicaria no abandono da tentativa atual de concorrer-se com os simulantes do homem. Implicaria em relação da ciência, da tecnologia, da política, e de toda aplicação de modelos às máquinas automatizadas. Positivamente implicaria essa mudança de interesse em novo conceito de arte enquanto jogo fortuito, em novo conceito de educação enquanto assimilação, não de fatos na memória nem das capacidades para o trabalho, mas de regras, e em novo conceito de religião enquanto traduzibilidade entre jogos. Em outras palavras: o “homo ludens” viveria uma vida de múltiplos jogos, (camusiana), e essa vida seria o meta-jogo concreto, por irreduzível em sua brutal incomunicabilidade. Diante de tal solução o progresso da automação em todos terrenos, (inclusive no terreno da ciência e da política), poderia perfeitamente continuar a dar-se ou a não dar-se. Não interessaria.

Sintomas para uma tal solução podem ser encontrados na cena da atualidade. Existem outros, que parecem apontar em direção diferente. Esta não seria uma situação de crise, se pudessem prever o futuro. Não podemos. Mas uma coisa parece ser certa: os problemas levantados pela automação serão solucionados apenas com radicalidade semelhante à exposta. E é isto que a nós interessa, a nós que somos ainda todos homens “antigos”, isto é: homens entre o modelo moderno e pós-moderno do homem. A automação é sintoma que se nossas formas de ser homem não continuarão vigentes. Que somos, enquanto homens ativos e que decidem, condenados por não termos futuro. Mas essa condenação não é tão grave quanto parece. Não somos apenas homens ativos e que decidem. Temos múltiplas outras facetas, e que não podem ser explicadas historicamente. Por essas dimensões a-históricas são somos atingidos pelos acontecimentos. Possivelmente a crise atual poderá servir de lembrete dessas nossas dimensões pelas quais transcendemos os acontecimentos?

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