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Cuadernos del Centro de Estudios en Diseño y Comunicación. Ensayos

On-line version ISSN 1853-3523

Cuad. Cent. Estud. Diseñ. Comun., Ensayos  no.107 Ciudad Autónoma de Buenos Aires June 2022  Epub May 22, 2022

http://dx.doi.org/10.18682/cdc.vi107.4201 

Artículo

Literatura Juvenil de Mulheres Negras - Brasil, Século XXI

Lorrany Mota de Almeida1 

Paula Renata Melo Moreira2 

1 Graduanda em Letras - Tecnologias de Edição. Atualmente desenvolve pesquisa de Iniciação Científica, aprovada pelo CNPq, sobre Mulheres negras na literatura juvenil brasileira. Coorganizadora do projeto “Saúde Mental, gênero, racismo e o ambiente acadêmico” no CEFET-MG. É bolsista do projeto de extensão “Curso de extensão para capacitação de professores em PLE” (CEFET-MG).

2 Licenciada em Letras (UFC) e doutora em Estudos Literários (UFMG). É professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, onde atua no Programa de PósGraduação em Estudos de Linguagens; no Bacharelado em Letras - Tecnologias da Edição e ensino médio. Atualmente, pesquisa Literatura juvenil de mulheres negras e participa dos grupos GIECE e Mulheres na Edição (CEFET-MG).

Resumo

É fato que o mercado editorial tem, pelo menos desde o fenômeno Harry Potter, focalizado o nicho juvenil. Portador de subdivisões que atendem desde o adolescente até o jovem adulto, as narrativas mais longas deste segmento costumam desafiar o mito de que o jovem não lê. Todavia, qual o perfil de quem escreve esse tipo de produção? Nos catálogos das maiores editoras brasileiras, verificase a ausência de mulheres negras. Mas elas escrevem todos os tipos de literatura, inclusive juvenil. No presente artigo, apresentaremos dados de uma pesquisa em andamento sobre as mulheres negras que escrevem para o nicho; como se legitimam; onde e como publicam.

Palavras chave: Literatura juvenil; Jovem; Edição; Mulheres negra; Escritoras.

Resumen

Es un hecho que el mercado editorial, al menos desde el fenómeno Harry Potter, se enfoca el nicho juvenil. Portador de subdivisiones que contemplan desde adolescentes a adultos jóvenes, las narraciones más largas en este segmento tienden a desafiar el mito de que los jóvenes no leen. Sin embargo, ¿cuál es el perfil de quienes escriben este tipo de producción? En los catálogos de las editoriales brasileñas más grandes, hay una ausencia de mujeres negras. Pero ellas escriben todo tipo de literatura, incluída la juvenil. En este artículo, presentaremos datos de una investigación en curso sobre mujeres negras que escriben para el nicho; cómo se legitiman ellas mismas; dónde y cómo publican.

Palabras clave: Literatura juvenil; Joven; Edición; Mujeres negras; Escritoras.

Abstract

It is a fact that the publishing market has, at least since the phenomenon of Harry Potter, focused on the youth niche. Bearer of subdivisions that serve from teenagers to young adults, the longer narratives in this segment tend to challenge the myth that young people do not read. However, what is the profile of those who write this type of production? In the catalogs of the largest Brazilian publishers, there is an absence of black women. But they write all kinds of literature, including youth literature. In this article, we will present data from ongoing research on black women who write for the niche; how they legitimize themselves; where and how they publish.

Keywords: Youth literatura; Young; Editing; Black women; Writers.

Algumas palavras para situar

Uma tendência relativamente recente nos estudos editoriais tem sido observar como se dispõe o campo em termos de uma possível equalização de fatores de gênero, raça, orientação sexual e classe. Os resultados em relação ao mercado conglomeral, como seria de se esperar, convergem no sentido de indicar certa homogeneização da produção, como indica Regina Dalcastagnè em Literatura Brasileira: um território contestado (2012), ainda que pontualmente esse cenário apresente certas exceções. A citada pesquisa põe em foco grandes editoras do Brasil em um período circunscrito, mas seus resultados, por extensão, servemnos para pensar o grande mercado editorial do nosso país e vizinhos.

O recorte de gênero, especificamente, tem, com a quarta onda feminista, certa alavanca, que faz as editoras atentarem para tal demanda do público, fazendo nascer uma série de publicações que colocam em evidência as questões do feminino, mesmo interseccional - este, entretanto, em menor medida. Todavia, quando nos distanciamos do ensaio ou do romance adulto, tais recortes parecem novamente se homogeneizar.

Historicamente, a autoria de mulheres negras no Brasil foi por muito tempo desprestigiada nos estudos literários e, por extensão, editoriais. Maria Firmina dos Reis, com a obra Úrsula (1859), é um exemplo dessa anulação. No período de sua publicação, o romance foi ignorado pela crítica, sendo retomado em versão facsimilar apenas em 1975. A obra de Maria Firmina, porém, foi reeditada e realmente analisada somente no século XXI, ou seja, mais de 100 anos de apagamento de uma autoria negra e feminina precursora do romance no país. Carolina Maria de Jesus, com o livro Quarto de Despejo (1960), é outro exemplo. Sua legitimidade como autora de literatura ainda é questionada, por, entre outros aspectos, não atender a norma culta da língua -apresentando o que alguns estudiosos, como Marcos Bagno, chamam de norma oculta- e por narrar histórias a partir de suas vivências -uma escrita de si, termo que ganhou muita força e foi capaz de ressignificar a escrita de Carolina.

No século XXI, autoras negras ainda encontram muitos obstáculos para se legitimarem na Literatura brasileira, aquela com L maiúsculo. Análises de suas obras e oportunidades de publicação são, muitas vezes, negadas. Conceição Evaristo, importante autora contemporânea brasileira, em uma entrevista para Carta Capital (2017) asseverou:

O que se percebe então é a dificuldade que nós temos, nestas e em outras situações, de publicar nossas obras, de divulgar, de chamar atenção da mídia, de concorrer aos prêmios. É isso que permitiria termos visibilidade e é isso que nos é negado.

Conceição se refere a toda a comunidade negra brasileira que não tem grande possibilidade alcançar visibilidade no mercado literário, apenas como exceções que confirmam uma regra excludente. No entanto, é necessário analisar que o recorte de gênero -aqui entendido como característica social construída a partir da naturalizada diferença entre os sexos, atuando como aparato de poder- limita ainda mais a evidência dessa autoria. O homem negro, mesmo com limitações e apagamentos, ainda alcançou alguns postos de análises críticas e publicações no cenário nacional. O exemplo mais bem acabado de sucesso de um autor negro na literatura brasileira é Machado de Assis, porém com recorrentes tentativas de branqueamento. Sua fortuna crítica, ainda assim, é regular e consistente, tendendo apenas a crescer. Em 2019, a Faculdade Zumbi dos Palmares lançou o projeto “Machado de Assis Real”, no qual recriou a foto mais famosa do autor, restaurando seu tom de pele e fenótipo negro, disponibilizando a imagem para substituir a fotografia embranquecida. Tal ato indica que, mesmo sob coerções, a figura deste autor negro conseguiu fixarse no cânone nacional, sendo hoje um dos autores mais reconhecidos da produção literária brasileira. Machado de Assis, todavia, é a tal exceção comentada anteriormente. Ainda assim, se fosse mulher -como Maria Firmina dos Reis-, sua história provavelmente seria diferente. A mulher, na conhecida acepção de Simone de Beauvoir, ocupa sempre o lugar de Outro. Para Grada Kilomba, intelectual negra portuguesa, a mulher negra seria, então, o Outro do outro, ou seja, aquela com chances ainda menores de ascensão, de reconhecimento, de delineamento de uma identidade. Se mesmo autoras brancas -ainda que pertencentes à classe média- e autores negros têm obstáculos para encontrar espaço no mercado editorial e se enquadrar na literatura prestigiada, quais seriam as chances das mulheres negras?

Regina Delcastagnè, em Literatura Brasileira contemporânea: um território contestado (2012), apresenta dados que comprovam a invisibilização de determinados grupos de autores. O levantamento feito pelo grupo de estudos de Literatura brasileira contemporânea da UnB (Universidade de Brasília), coordenado pela citada professora, investigou publicações das grandes editoras brasileiras de 1990 a 2004 (em um total de 15 anos). Foi percebido que 72,7% das obras têm autoria masculina e 93,9% são de autores brancos. O meio literário e editorial mostrase, portanto, tendendo à homogeneidade, dominado por homens brancos, sendo a eles destinado todo o valor. Quando autores diferentes desse padrão tentam ingressar, são frequentemente questionados quanto a sua legitimidade ou aparecem como literatura de nicho.

Para complexificar o recorte, é lícito dizer que não apenas o gênero, como recorte social gestado a partir dos delineamentos sexuais, é bloqueio consistente para a circulação de maior porte. Os gêneros textuais também exercem uma série de freios para o reconhecimento de certos autores. Assim, aqueles que escrevem romances psicológicos, por exemplo, têm mais chances de serem laureados com prêmios -um dos legitimadores mais buscados nos últimos tempos- do que aqueles que se dedicam a romances policiais, por exemplo. Mesmo Harold Bloom, o importante crítico literário defensor do cânone, reconhece tal fato: “Em cada era, alguns gêneros são encarados como mais canônicos que outros” (Bloom, 2010, p. 34). Assim sendo, percebe-se que escrever os gêneros de maior capital simbólico também é uma ferramenta para inserir-se nos campos literário e editorial. Gêneros, na concepção mais específica advinda de Bakhtin, são expectativas do discurso: formas textuais relativamente estáveis que acontecem em determinado período de tempo e têm sua ascensão circunscrita a fatores não só linguísticos como também sociais. A partir da noção de gênero, na contemporaneidade, nasce também a ideia de nicho. Com a divisão do mercado editorial em conglomerados, de um lado, e microeditoras de feição independente de outro, a visão de livros lançados para um público específico ganha cada vez mais força. Alguns são cooptados pelas grandes editoras, por serem de venda fácil. Já outros, somente são editados por empreendimentos pequenos, pelas baixas chances de retorno -estimulando, contudo, a diversidade do mercado editorial.

Nesse aspecto, a literatura juvenil, no Brasil, é um campo que, ao contrário da literatura negra e feminina, é consideravelmente aceito no mercado literário. Por outro lado, tende a ser depreciado pela crítica literária, fazendonos perceber a velha antítese, já apontada por Pierre Bourdieu (2018), entre dinheiro e acumulação de capital simbólico.

Os estudos sobre o tema são relativamente recentes, visto que, mesmo como mercadoria, foi há pouco descoberta pelas editoras. Portanto, os estudos sobre literatura juvenil algumas vezes precisam dissociar-se da literatura infantil -que já carrega, esta, certa tradição literária. Por isso, a fortuna crítica do tema, vezes sem conta, não apresenta características próprias e consolidadas, sendo frequentemente relacionada, de forma pejorativa, a livros sobre problemas de adolescentes, ou ainda, a livros que são, por concessão, trabalhados no ambiente escolar, negando, assim, o status de Literatura.

Devido a essa descrença no nicho de livros destinados a jovens, ainda se diz muito que jovem não lê, pois, em geral, as instituições legitimadoras não consideram Literatura a gama de obras consumidas por esse público. As obras canônicas trabalhadas na escola, por sua vez, não costumam atrair o gosto dos leitores mais jovens, causando a falsa impressão da não leitura geral, já que as obras indicadas estão associadas à ideia de obrigação, sendo, por vezes, propedêuticas. Porém, boa parcela dos jovens efetivamente lê fora da escola, em espaços onde conseguem exercer sua autonomia de leitores. Dessa maneira, no âmbito do mercado editorial, a categoria “juvenil” tem crescido, em um primeiro momento com tradução de obras estrangeiras como Harry Potter (1997) e toda uma gama de publicações geradas a partir deste sucesso editorial.

No contexto de publicações nacionais, em 1972, a coleção Vagalume, sob a direção de Jiro Takahashi na Editora Ática, marcou a especificidade da literatura juvenil entre nós. A série, mesmo que direcionada para um público escolar, distanciava-se dos modelos de livros paradidáticos, sendo composta por narrativas simples, escritas por autores que não pertenciam ao cânone brasileiro e com temáticas que prendiam a atenção dos jovens leitores. Foi considerada um sucesso editorial. Nas últimas décadas, autoras sucesso de vendas como Thalita Rebouças, Paula Pimenta, Bruna Vieira, entre outras, apresentam histórias sobre o cotidiano dos jovens ou com protagonistas da mesma faixa etária e proporcionam aos leitores a experiência de se perceberem nas obras. Ainda mais recentemente, livros de youtubers, KPOP e mesmo poesia também têm ganhado espaço no gosto dos jovens leitores. Mesmo com tal diversidade temática no referido nicho, a estatística apresentada por Dalcastagnè (2012) é ainda válida, pois, encontram-se largamente autores brancos, que escrevem sobre personagens adolescentes também brancos e pertencentes à classe média brasileira. Se a literatura juvenil é porta de entrada para o gosto pela literatura, a autoria negra e feminina, mesmo nessa categoria dada como inferior pela crítica, também parece ser invisibilizada. A questão que ressoa é: mulheres negras não escrevem para o público jovem? E, se escrevem, onde são publicadas?

Tais indagações motivaram a pesquisa de iniciação científica “Mapeamento de autoras negras na literatura juvenil brasileira” -desenvolvida no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Brasil, com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em andamento desde agosto de 2019. A pesquisa consiste em um levantamento dos nomes e obras das autoras negras que escrevem para jovens na atualidade. O recorte temporal tem como marcos os anos de 2014 e 2019 para começo e término, respectivamente. O ano de 2014 foi erigido como marco inicial por entendermos que o tema “mulheres negras” passa a ganhar força nesse período, com o feminismo negro e as mobilizações em rede, bem como um maior delineamento do nicho juvenil como campo de pesquisa. É em 2014, por exemplo, que a escritora Joanna Walsh propõe o projeto #readwomen2014 nas redes sociais, convocando os leitores a terem em suas listas de obras mais mulheres escritoras. A ideia se espalha pelo mundo, trazendo em seu bojo questionamentos interseccionais, de modo que à pergunta: “quantas mulheres você já leu?”, acrescenta-se o adjetivo relativo à raça. “Quantas mulheres negras você já leu?”, perguntam as redes sociais, avivando uma problemática que já se espraiava por outras áreas. Em nossa pesquisa, o levantamento vem acontecendo por meio de análise de catálogos das editoras brasileiras, bibliotecas, redes sociais e o pelo portal Literafro, da Universidade Federal de Minas Gerais, possibilitando construir algumas hipóteses sobre a ausência dessas mulheres no mercado editorial. Os dados encontrados são registrados em planilhas do Excel, uma com os nomes das autoras e suas respectivas publicações e outra com a quantidade de autoras encontradas, agrupadas por editora -quando não se trata de autopublicação. Neste artigo, pretendemos detalhar algumas dessas hipóteses, apresentar um breve panorama sobre autoria feminina e negra no Brasil, discutir brevemente o que entendemos como literatura juvenil como norte da pesquisa e alguns dos resultados já obtidos no levantamento.

Autoria negra e femenina

A primeira onda do feminismo no Brasil aconteceu no início do século XIX, sendo sua primeira reivindicação o direito de aprender a ler e a escrever. Podemos dizer que a escrita de mulheres está fortemente ligada ao movimento feminista, que na época, levantou a alfabetização feminina como bandeira central, rompendo a ideia de que mulheres não precisavam desenvolver tais conhecimentos, pois tal saber não agregava nada às funções domésticas. Zahidé Muzart afirma que:

[...] no século XIX, as mulheres que escreveram, que desejaram viver da pena, que desejaram ter uma profissão de escritoras, eram feministas, pois só o desejo de sair do fechamento doméstico já indicava uma cabeça pensante e um desejo de subversão. E eram ligadas à literatura. Então, na origem, a literatura feminina no Brasil esteve ligada sempre a um feminismo incipiente (como citado emDuarte, 2003, p. 153).

Só o fato de querer adquirir conhecimento já tornava as mulheres feministas, pois recusavam o padrão patriarcal que era oferecido. Na segunda onda, a educação para mulheres estava consolidada. Aquelas já alfabetizadas buscavam formas de difundir o conhecimento para as demais, não somente as ensinando a ler e escrever, mas a construir pensamentos críticos, apresentandolhes seus direitos, visto que só se libertariam se as regras ditadas pelo patriarcado não fossem mais absolutas. As revistas e jornais se tornaram, assim, a principal plataforma de divulgação dos ideais feministas. Era nesse espaço que as mulheres conseguiam publicar -obviamente, não com a mesma aceitação que teriam se fossem homens. Elas precisavam ir um pouco além do escrever, precisavam fundar meios de divulgação para suas causas. Como exemplo, podemos citar: o jornal O Corymbo (1884-1944) e a revista A mensageira (1897-1900). É Norma Telles (1997) quem comenta: “O Corymbo durou sessenta anos (1884-1944) e, durante esse tempo, cobriu qualquer aventura de mulheres brasileiras no campo das letras e nas várias profissões” (p. 426).

Na terceira onda, século XX, além da luta pelo direito ao voto, as autoras feministas ganham destaque no campo literário. Gilka Machado (1893-1980) foi uma dessas autoras, tendo participado ativamente nas lutas pelo sufrágio e na criação do Partido Republicano Feminino. Começou a escrever muito nova, ganhando seu primeiro prêmio aos 13 anos. Gilka publicou seu primeiro livro em 1915, Cristais Partidos, uma lírica equilibrada entre o amor e o erotismo, o que foi considerado um insulto aos dogmas sociais. Foi pioneira, como poeta, por representar um Eu lírico feminino desejante e não apenas desejada, e por questionar o lugar de silenciamento imposto às mulheres, como no trecho do poema Cristais Partidos: “ser mulher, e oh! atroz, tantálica tristeza!/ficar na vida qual uma águia inerte, presa/nos pesados grilhões dos preceitos sociais!”. Devido a todo esse cenário, Gilka sofreu diversos apagamentos, tendo sua obra relançada apenas recentemente.

Também a autora Raquel de Queiroz, importante escritora da terceira fase do Modernismo brasileiro, é um exemplo de mulher inserida nas lutas por visibilidade, tendo embora sempre negado ser feminista quando questionada sobre o assunto. Com a publicação do livro O quinze (1930), que retrata a seca de 1915 no nordeste do país, viu seu nome ser alçado ao rol dos importantes escritores nacionais. Todavia, a construção desse nome não ocorre sem percalços, sendo a autora mesmo indagada acerca da autenticidade da autoria de seu primeiro livro. Além do enfoque nas questões sociais motivadas pela seca no livro O quinze, a protagonista Conceição abdica das relações tradicionais das mulheres dos anos 30 -casamento e subserviência- para se dedicar a leituras incomuns, evocando conceitos como socialismo e “situação da mulher na sociedade”. Outras autoras como Júlia Lopes de Almeida, Francisca Júlia, Maria Sabina e Ercília Nogueira Cobra fizeram parte desse contexto de fins do XIX e início do século XX. Júlia Lopes de Almeida, renomada escritora época, por exemplo, viu seu marido, o pouco prestigiado Filinto de Almeida, receber a cadeira de imortal na Academia Brasileira de Letras, em “homenagem à escritora”. O nome de Júlia fora excluído da ABL, mesmo sendo ela a merecedora de tal distinção e não o seu marido (Telles, 1997, p. 440).

Todas essas autoras, declarando-se feministas ou não, rompem com o estereótipo de literatura feminina, pois não centralizam no romance estereotipado suas forças autorais. Pelo contrário. Cada uma a seu modo ocupou espaços no campo literário antes destinado exclusivamente a homens: Gilka foi eleita a melhor poeta do país, em 1933 -por um concurso realizado pela revista O malho, no Rio de Janeiro-, Raquel foi a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1977, entre outras conquistas de diferentes autoras que ressignificam a literatura feminina.

O feminismo teve um papel essencial na ascensão das mulheres na e pela escrita. Todavia, não é de hoje que se sabe necessário “ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção [...]” (Woolf, 1928. p. 8). Em outras palavras, era necessário ter condições financeiras para que a escrita pudesse ser uma opção de vida. Opção essa, como várias outras, constantemente negada para as mulheres, que precisavam casar e cuidar dos filhos, não tendo, dessa forma, tempo ou espaço para exercer a profissão de escritora. O acesso à alfabetização também acontecia como privilégio: apenas para quem tinha condições de pagar. Em sua obra, Virginia Woolf se refere, obviamente, à Inglaterra, onde residia; no entanto, o cenário brasileiro não se mostra distante de tais acontecimentos e conseguimos delinear de qual classe e etnia pertenciam as autoras que, até hoje, são consideradas grandes escritoras pela crítica literária mais estabelecida.

A grande maioria das mulheres que lutaram pelo direito da alfabetização tinha “um teto todo delas” e condições de se manter minimamente. Naquela época -e ainda hoje no Brasil-, as classes mais baixas economicamente são formadas majoritariamente por pessoas negras, devido a um contexto pósabolicionista que não se preocupou com a adequação das leis e oportunidades para pessoas negras terem as mesmas condições de ascensão que pessoas brancas. Mulheres brancas, então, não tinham o direito de trabalhar fora do lar, lutavam para que pudessem sair da condição de submissão, enquanto mulheres negras realizavam dupla jornada de trabalho (dentro e fora de casa). A reivindicação da mulher negra era o reconhecimento de sua humanidade, dos seus direitos e o feminismo da época tratava as causas femininas como algo homogêneo, desconsiderando as singularidades do fator racial.

Os dogmas patriarcais junto ao recorte racial não eram causa de nenhuma das ondas feministas, mas isso não quer dizer que mulheres negras não estavam escrevendo. Como já mencionado, elas foram apagadas da historiografia literária. A autora Carolina Maria de Jesus, mulher negra, favelada, teve a legitimidade dos seus trabalhos, como já apontado, questionada com frequência. Dalcastagné (2012) afirma que o apreço à linguagem culta faz que alguns a classifiquem, erroneamente, como “escritora semianalfabeta” e continua:

Pensem no quanto é grande o desejo de escrever para que essas pessoas [autores ditos à margem] se submetam a isso - a fazer o que “não lhes cabe”, aquilo para o que “não foram talhadas”. Imaginem o contraste desconforto de se querer escritor, ou escritora, em um meio que lhe diz o tempo inteiro que isso é“muita pretensão”. Daí suas obras serem marcadas, desde que surgem, por uma espécie de tensão, que se evidencia, especialmente, pela necessidade de se contrapor à representação já fixada na tradição literária e, ao mesmo tempo, de reafirmar a legitimidade de sua própria construção (p. 9).

Além de conseguir desenvolver suas obras literárias concomitantemente a outros trabalhos, tal autoria ainda tem que reivindicar seu lugar como literatura. E, no caso das mulheres negras, muitas vezes sem auxílio do movimento feminista. São, desse modo, massacradas por duas opressões: o machismo e o racismo. Na quarta onda feminista, a interseccionalidade ganha espaço e as discussões acerca das necessidades da mulher negra começam a ser pautadas, surgindo inclusive o recorte do feminismo negro. É justamente com as militantes negras que autoria negra e feminina fica em evidência para discussão dentro da crítica literária e do mercado editorial, não sem grande resistência. Como aponta Dalcastagnè (2012):

(...) são páginas e páginas para dizer ‘isso é literatura’, antes de começar a discutir a obra -o que não é, absolutamente, exigido na análise de um autor melhor situado no campo literário (quer dizer, homem, branco, de classe média, morador do Rio de Janeiro e São Paulo, publicando por editoras mais centrais, etc.) (p. 10).

O ano de 2014, nosso marco, foi sinalado pela campanha internacional #readwomen2014 vinculada a conteúdos que traziam visibilidade a autoras que mereciam mais créditos por suas obras, de forma que, pela campanha, fosse fomentada a leitura de mais mulheres. Como já apresentado, mais de 70% das publicações no mercado editorial brasileiro são de homens (pelo menos no romance, mas tendemos a crer que tais dados são extensíveis a diversos outros gêneros e nichos de prestígio), logo, tal campanha ressaltou o machismo tão acentuado no meio literário ainda nos dias de hoje. Tal iniciativa influenciou a criação do clube de leitura “Leia Mulheres”, presente em diferentes cidades do país. Em outros tipos de repercussão da campanha, houve certo burburinho nas redes afirmando que, no meio literário, a mulher sofre mais que o negro -o que, para Bianca Gonçalves (2014), escritora do site Blogueiras Negras, foi uma forma tratar uma temática tão delicada como o racismo estrutural com simplicidade extrema, desconsiderando a complexidade das questões, bem como o cruzamento dessas identidades, ou seja, a própria mulher negra.

Com o motor da discussão, nomes de escritoras negras foram apontados, principalmente internacionais, como Alice Walker, Maya Angelou, Angela Davis, bell hooks, Toni Morrison e Chimamanda Ngozi Adichie. Algumas dessas autoras ainda não tinham obras traduzidas para o português, o que ressaltou uma descoberta seguida de um embate editorial. Mulheres negras não estavam sendo traduzidas no Brasil. Depois, começaram a levantar nomes de autoras nacionais e outra percepção e embate: mulheres negras brasileiras não compunham efetivamente o catálogo das grandes editoras. Desta forma, militantes negras começaram a veicular informações sobre escritoras negras: de biografias a resenhas de suas obras, bem como alguns clubes de leituras. Logo, o ano de 2014 se reforça como um marco para a exposição mais ampla da temática de mulheres negras na literatura e consequentemente a justificativa para o início do recorte da pesquisa a que aqui nos referimos. Tais tentativas de visibilizar autorias negras levaram a pesquisadora Giovana Xavier, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e criadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras, a escrever uma carta aberta intitulada “Arraiá da branquitude”, na qual critica a ausência de escritoras negras na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2016 -o evento mais prestigioso e midiático de literatura do Brasil. Na carta, afirma que:

Em um país de maioria negra e de mulheres, portanto, de maioria de Mulheres Negras, é um absurdo que o principal evento literário do país ignore solenemente a produção literária de mulheres negras como Carmen Faustino, Cidinha da Silva, Elizandra Souza, Jarid Arraes, Jennifer Nascimento, Livia Natalia e muitas outras. Que naturalizando o racismo, a curadoria considere que fez sua parte convidando autoras da raça Negra que infelizmente não puderam aceitar o convite. A não procura de planos a, b, c diante destas supostas recusas relaciona-se à falta de compromisso político da FLIP com múltiplas vozes literárias nacionais e internacionais [...] Este silenciamento do nosso existir em uma feira que se reivindica cosmopolita, mas está mais para Arraiá da Branquidade, insere-se no passado-presente de escravidão, no qual a Mulher Negra é representada, vista e tratada como um corpo a ser dissecado. Um pedaço de carne que está no mundo para servir. Um objeto a ser estudado e narrado pelo outro branco (Xavier, 2016).

Uma festa que se caracteriza como diversa e só apresenta palestrantes brancos: retrato da homogeneidade do meio literário, espelhando as raízes do racismo que compõem a cultura brasileira.

A autora Conceição Evaristo também buscou formas de acentuar a questão dos apagamentos de autoras negras e, em 2018, candidatou-se para ocupar a cadeira número 7 da renomada Academia Brasileira de Letras (ABL). A autora foi motivada por uma carta-manifesto de Juliana Borges e por um abaixo-assinado iniciado nas redes sociais com mais de 17 mil assinaturas. É comum que, antes da entrega da carta, o candidato já participe da vida social da academia e, no ato da inscrição, apresente um dos acadêmicos como padrinho, atitudes às quais Conceição se negou, entregando a carta de intenções pessoalmente, sem participar dos cortejos habituais. A autora sabia, segundo conta em entrevista, que não ocuparia a cadeira na ABL, logo, sua candidatura foi de ordem simbólica, uma espécie de “tapa com luva de pelica” para evidenciar a ausência de negros em uma instituição criada por um autor negro -Machado de Assis-, o que denuncia muito claramente o racismo estrutural que sustenta a sociedade brasileira.

O número de mulheres negras nos catálogos das grandes editoras também indica práticas racistas. Em um país em que mais da metade da população é negra, há ainda presença massiva de escritores brancos nos catálogos. Giovana Xavier, pesquisadora já citada, em uma entrevista para o site Geledés (2019), afirma que esse quadro tem mudado e que o mercado editorial “descobriu que mulher preta vende”, na medida em que selecionam autoras “brilhantes”, ou seja, aquelas com público cativo, que não ofereceriam riscos aos lucros. Um exemplo é a autora Djamila Ribeiro, ela própria um fenômeno editorial. Antes da publicação de O que é Lugar de fala?, Ribeiro escrevia para diferentes meios de comunicação e tinha um público, de certa forma, consolidado. bell hooks (2019), em seu texto “A escrita de mulheres negras: criando mais espaço”, critica o mercado, dizendo:

“Eles” são os editores e estão supostamente procurando por nós [mulheres negras] porque nosso trabalho é uma nova mercadoria. O invisível “eles” que controla a publicação pode só ter percebido recentemente que há mercado para a ficção escrita por mulheres negras; mas isso não significa necessariamente que estejam efetivamente tentando encontrar mais material de mulheres negras, que mulheres negras estejam escrevendo muito mais do que antes, ou que é de algum modo mais fácil para escritoras negras desconhecidas encontrarem formas de publicar seu trabalho (p. 289).

As casas editoriais não leem o trabalho de mulheres negras com o mesmo valor que dão às autorias brancas, com o potencial de conteúdo, mas sim para atender uma demanda do mercado que exige o mínimo de diversidade. Ana Paula Lisboa, escritora e curadora da Bienal Internacional do Livro do Rio, afirmou em uma reportagem para O Globo que a editoras têm medo do lugar de fala da escritora negra, pois é um lugar questionador:

“uma mulher negra vai questionar o lugar da branquitude. E muitas editoras não estão prontas para serem questionadas ou para questionar o seu próprio público” (2019). Desta forma, muitas autoras estão buscando outras formas de serem publicadas, de ficarem em evidência. Algumas optam pela autopublicação -é o caso de algumas das autoras negras de literatura juvenil que encontramos até agora- por meio de plataformas virtuais, como Wattpad, blogs, redes sociais, ou publicações físicas, financiadas exclusivamente por si próprias ou por meio de financiamentos coletivos como o da coletânea Raízes -Resistência Histórica (2018).

As editoras segmentadas, ou de nicho, têm sido uma outra opção para publicação dessas mulheres e são responsáveis por realmente difundir o trabalho de autoras negras. Conceição Evaristo, hoje ocupante de um lugar de destaque, tornou-se uma vantagem para o editor que a publica. Como ato político, Conceição mantém suas publicações em pequenas editoras. Traduções de intelectuais negras também são feitas por essas casas editoriais, como é o caso da editora Elefante com os textos de bell hooks, que renderam três publicações: Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra; Olhares Negros: Raça e Representação; e Anseios, todos publicados em 2019.

Tal cenário se complexifica se a ele adicionamos os questionamentos do nicho juvenil. É o que pretendemos fazer no próximo tópico.

O espaço da Literatura Juvenil

É aparentemente com muita certeza que se enuncia a expressão “literatura juvenil”. Mas a zona de conforto claramente se torna instável quando algumas perguntas corriqueiras, mas incômodas, ameaçam surgir. Se há uma literatura juvenil, claramente apontamos seu receptor: o jovem. Mas o que é um jovem? Como se delimita a juventude? Há recortes dentro da faixa que entendemos ser a da juventude? E, no Brasil, essa realidade sofre alguma diferenciação?

Para nos ajudar no entendimento e historicização de tal conceito, convocamos Philippe Ariès, o famoso historiador da infância, para que, com ele, recortemos de forma mais ajuizada a noção de jovem. Se hoje olhamos para essa etapa da vida com a naturalidade de quem percebe um momento sui generis, é certo que nem sempre foi assim: “Antes, a infância era mais ignorada, considerada um período de transição rapidamente superado e sem importância” (Ariès, 2006, p. 118). Nesse sentido, o momento do qual declinou nossa ideia de adolescência não foi sempre, ele próprio, evidenciado como algo especial e digno de nota. A criança, mini adulto, não era um ser para o qual todos os esforços deveriam se voltar, como ocorreu nas construções sociais posteriores, mas apenas um momento prévio e passageiro da vida do ser humano adulto.

Há, a despeito das mudanças físicas, uma espécie de indissociação entre a criança e o hoje entendido como adolescente. Pensando no contexto francês, o mesmo Ariès informa:

Não existiam termos em francês para distinguir pueri e adolescentes. Conhecia-se apenas a palavra enfant (criança). No final da Idade Média, o sentido desta palavra era particularmente lato. Ela designava tanto o putto (...), como o adolescente, o menino grande, que às vezes era também um menino maleducado (2006, p. 31. Grifo nosso).

Tal informação, por nós ressaltada no excerto, liga-se, em certa medida, àquele estereótipo que, anos depois, cola-se ao adolescente: um ente que já não é criança e, ainda sem ser adulto, guarda certa rebeldia. Todavia, esta imagem demoraria muito a ser amalgamada ao indivíduo que adolescia. Como nomear é fazer existir, nota-se que, historicamente, o adolescente demorou a surgir, a ser percebido como um ente com características próprias. Antes de seu delineamento, surgiu com vigor o olhar mais demorado para o infante:

Embora um vocabulário da primeira infância tivesse surgido e se ampliado, subsistia a ambiguidade entre a infância e a adolescência de um lado, e aquela categoria a que se dava o nome de juventude, do outro. Não se possuía a ideia do que hoje chamamos de adolescência, e essa ideia demoraria a se formar (Ariès, 2006, p. 34).

Nota-se, portanto, já haver a percepção de faixas diferentes de desenvolvimento do nãoadulto. É necessário fazer notar que todas essas categorizações são fruto de uma percepção social acerca do indivíduo não completamente formado. Ao passo que há, indubitavelmente, transformações físicas inegáveis de várias fases entre o neonato e o idoso, as maneiras de olhar para essas mudanças são, inegavelmente, sociais. Assim sendo, mesmo que haja diferenças perceptíveis nas alterações físicas entre a criança e o adulto, a fase entre esses dois estágios não precisaria, por si, ser demarcada por termos específicos -não fossem as condições sociais necessárias para a existência de um novo personagem.

A demarcação da infância, como sabemos, ocorre antes de qualquer ideia de adolescência começar a ecoar. Especialmente por influência de questões educacionais, separa-se a primeira infância, cujos cuidados estão mais ligados ao lar e aos pais e o restante do período antes da vida adulta:

Mas embora a primeira infância fosse assim isolada, a mistura arcaica das idades persistiu nos séculos XVII e XVIII entre o resto da população escolar, em que crianças de 10 a 14 anos, adolescentes de 15 a 18 e rapazes de 19 a 25 frequentavam as mesmas classes (Ariès, 2006, p. 46).

O que se percebe na historicização da infância e adolescência é que, no processo de separação dos nãoadultos, a escola -ela própria quando em evolução dos modelos de ensino- se mostraria responsável não só pela divisão interclasses, mas também por um modelo de segregação da infância/adolescência, retirando-os para um mundo à parte dos adultos: “A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio” (Ariès, 2006, p. 5).

Na escola, então, começa-se, pela enturmação diversa, a se notar uma diferença entre aqueles que se destinavam às primeiras letras e àqueles dados a estudos mais avançados.

Todavia, a nomeação é algo que demora a ocorrer na história dessa separação. Nomear é mais do que estabelecer um termo para algo existente. Nomear é dar a ver, ressaltar a materialidade. Philippe Ariès comenta acerca da indissociação entre infância e adolescência e sua lenta progressão social:

Observamos que, como juventude significava “força da idade”, na idade média, não havia lugar para a adolescência. Até o século XVIII, a adolescência foi confundida com a infância. No latim dos colégios, empregava-se indiferentemente a palavra puer e a palavra adolescens (2006, p. 31).

Todavia, a dissociação das épocas de vida aconteceu -ainda que lentamente- em meados do XIX, alcançando mais força em 1876 com uma já mais delineada imagem de adolescente, tal como conhecemos hoje. Seria anacrônico pensar que tal representação é idéntica à nossa ideia hodierna de jovem. Essa se forjaria apenas mais tarde. Entretanto, ver os primórdios da representação do adolescente nos dá a ver que, socialmente, tal imagem já não era estranha:

O primeiro adolescente moderno típico foi o Siegfried de Wagner: a música de Siegfried pela primeira vez exprimiu a mistura de pureza (provisória), de força fisica, de naturismo, de espontaneidade e de alegria de viver que faria do adolescente o herói do nosso século XX, o século da adolescência (Ariès, 2006, p. 35).

Quando Ariès enfatiza o século XX como “século da adolescência”, tal proposição ocorre porque os modos de ver tal personagem foram alterados significativamente em sociedade -muito por efeito dos acontecimentos históricos que tiveram lugar então. A Primeira Grande Guerra, especialmente, foi fundamental para a criação da consciência da juventude como um momento à parte, fugaz, cuja passagem causava um sentimento de perda:

A consciência da juventude tornou-se um fenômeno geral e banal após a guerra de 1914, em que os combatentes da frente de batalha se opuseram em massa às velhas gerações da retaguarda. A consciência da juventude começou como um sentimento comum dos excombatentes, e esse sentimento podia ser encontrado em todos os países beligerantes (...). Daí em diante, a adolescência se expandiria, empurrando a infância para trás e a maturidade para a frente. (Ariès, 2006, p. 35-6).

Demarcar a juventude como momento à parte é um primeiro passo para sua segmentação. O jovem, então, começa a ser percebido como alguém diferente do adulto, mas diverso também do ser infantil -o que permite perceber diferenças entre as várias, digamos, “fases da juventude”. A adolescência passa a ser, então, essa espécie de interregno entre o ser infantil e o jovem: “a adolescência é a parte inicial desse estágio mais longo, conhecido como juventude” (Freitas, 2019, p. 28). Com ela, alça-se à percepção uma série de características atribuídas ao adolescente -algumas negativas, ligadas à imaturidade e aos estágios emocionais incertos e viscerais dessa fase, muitas vezes justificados pela instabilidade hormonal, e, noutras, positivas, reverberando uma ideia de juventude eterna, desejada pelos adultos: “Assim, passamos de uma época sem adolescência a uma época em que a adolescência é a idade favorita. Deseja-se chegar a ela cedo e nela permanecer por muito tempo” (Ariès, 2006, p. 36).

Existindo a adolescência e a juventude, cria-se a necessidade de produtos específicos para essa fase. Nas escolas, livros que atendam à criança e outros que deem conta dos interesses dos adolescentes e dos mais velhos, já vistos como jovens. Assim, a literatura infantil e, posteriormente, a juvenil nascem com o estigma de literatura feita para algo, necessariamente adjetivada, portanto, sem as peculiaridades capazes de fazer delas exemplares das ditas Altas Literaturas.

O mercado, entretanto, não sofre dos mesmos preconceitos, tendo no lucro a orientação do que é valoroso. Não é diferente o comportamento de parte significativa do mercado editorial, especialmente depois das alterações já indicadas por Schiffrin, entre outros editores, que apontam a orientação dos conglomerados voltados à acumulação de moeda. Para Tárcia Alcântara Freitas, “o mercado, ao enxergar crianças e adolescentes como consumidores, passou a investir maciçamente no desenvolvimento de produtos e na comunicação para esses públicos” (2019, p. 13), ou seja, “esses jovens se tornaram um nicho de mercado altamente lucrativo” (2019, p. 13).

Nesse sentido, percebemos que se forma um nicho de consumo. A literatura juvenil, advinda da infantil e sua relação com a escola, passa um pouco ao largo dessa “produtificação”, embora, como objeto vendável, não deixe de ser pensada para gerar algum lucro. Não é, todavia, essa literatura escolar que nos interessa. Interessanos o que os jovens leem por fora dos muros escolares, sem os limites que mediadores diversos impõem às suas escolhas. É, portanto, ao nicho de mercado da literatura juvenil, como produto criado para atender a uma demanda que cada dia mais cresce, que voltaremos nosso olhar.

Ao percebermos a disposição do livro de literatura juvenil, salta aos olhos a materialidade presentificada no projeto gráfico. Por meio de tais escolhas, infere-se “quais modelos de adolescência são formulados nessas peças” (Freitas, 2019, p. 14). O direcionamento, portanto, registrase desde o projeto do livro. As cores, o formato, os signos evocados evidenciam: aquele livro é feito para jovens.

Mas o que agrada aos jovens? O que é literatura jovem? Para Beatriz Helena Robledo (2011), delimitar o que seria literatura juvenil a partir do que podem ler os jovens gera um problema, na medida em que há jovens que leem Borges e outros que mal conseguiriam decifrar O Patinho Feio. Por outro lado, definir pela temática -aquela literatura que trata de jovens- é limitador e não muito verdadeiro. Vejamos O Vermelho e o Negro: Julien Sorel é um jovem e nem por isso a obra pode ser considerada juvenil.

Várias correntes tentam definir não via recepção, mas produção. Nesse sentido, pensar o endereçamento editorial é uma possibilidade, ainda que problemática, na medida em que, pelo menos, faznos entender que as editoras estão visando o jovem como público a partir de uma proposta de capa, design etc. que, em tese, dialogaria com os eixos de interesse desse sujeito.

O problema é que se gera é que esse consumidor pretendido é mediano, balizado pela faixa etária -o que, em si, diz pouco, na medida em que, numa mesma idade, podem situar-se compreensões de mundo e gostos de leitura amplamente diversificados, ainda que o componente geracional tenha certo peso. Para Freitas, “as peculiaridades de cada história de vida dificultam uma homogeneização dos marcos etários associados à adolescência e juventude” (2019, p. 27).

Segundo Robledo (2011), “uma das linhas de produção se destina a fabricar livros que tratam de temas próprios da adolescência, como o despertar da sexualidade, a anorexia, a bulimia, os conflitos familiares e entre gerações, o meio ambiente, a multiculturalidade, a educação sexual etc.”. Literatura aqui funcionaria quase como manual de autoajuda.

É necessário atentar para as subdivisões que essa literatura vem sofrendo, inclusive caindo no gosto dos adultos e gerando novos subnichos, como Young adult, New Adult, sicklit, entre outros. Entende-se, então, que sob o nome juvenil uma gama amplamente diversificada de produções é apresentada. Desde as produções mais escolares, com mediação do professor e leitura obrigatória até produções que provavelmente jamais cruzariam as portas da escola. Parte desse segundo tipo de produção, adveio após o boom de Harry Potter. Nosso recorte, entretanto, tem outros contornos.

A divisão etária aparentemente se configura de modo específico para o público preferencial do tipo de literatura que nos interessa -os leitores de literatura juvenil escrita por mulheres negras. A adolescência começa e termina mais cedo nessa faixa da população por questões não biológicas mas de condicionamentos sociais que obrigam a criança negra, no Brasil, a “adolescer” mais rápido, bem como a tornar-se adulta antes de seus “pares” brancos. O caso precisa ganhar especial atenção para o recorte mulher negra, que sofre duas pressões por adultização: do segmento negro e do feminino, apontado socialmente como aquele que “amadurece mais rápido” num claro eufemismo para ser obrigada a encarar antes pressões do mundo adulto.

Fomos levadas então a recortar uma adolescência -ou condição juvenil- que começa mais cedo, entre os 11-12 anos, e termina também antes. Mesmo inserido no mundo adulto, de todo modo, ainda podemos identificar o jovem: a pergunta é se ele dispõe do tempo do ócio para o consumo de leitura.

Outros problemas se apresentam. Estatisticamente, o segmento negro da população é o que permanece menos tempo na escola. Apesar de não nos interessar especificamente a literatura juvenil escolar, duas questões se apresentam: a) algumas escritoras negras de literatura juvenil ocupam esse espaço (em partes, graças à lei 10.639, embora ainda falte material ou se privilegie o infantil ou dito infantojuvenil); b) quanto mais tempo na escola, mais chances de esse adolescente performar o modelo de adolescência, não descambando completamente para o mundo do trabalho; mais chances também de apropriar-se da cultura escrita e tornar-se leitor -ainda que o uso escolar da leitura seja criticável.

Todavia, quando falamos de público receptor, no caso do nosso corpus, estamos falando apenas de um endereçamento, de um público leitor visado, pois, até o momento, não temos dados suficientes para avaliar o efetivo consumo dessa literatura.

Dados iniciais da pesquisa

A pesquisa em foco tem como corpus a literatura juvenil de mercado, não escolar e efetivamente consumida pelos jovens. Intenta-se descobrir qual é a representatividade da autoria feminina negra para um público ainda em construção. Para isso, estamos analisando catálogos de editoras de pequeno, médio e grande porte; perfis literários nas redes sociais e consultas ao portal Literafro.

Em um momento inicial da pesquisa, o Instagram se mostrou um grande aliado para encontrar autoras que são conhecidas pelo público jovem, ainda que não reverberem ainda os seus trabalhos em editoras conhecidas. Ao encontrar determinada autora, o perfil possibilita linkar outras que poderiam estar em uma mesma publicação, editora ou agência, formando uma rede de produtoras negras. As escritoras Olívia Pilar e Lavínia Rocha foram, em um primeiro momento da pesquisa, indicadas por escritoras já mais bem posicionadas no campo juvenil, como Laura Conrado. Por meio delas, foi possível levantar o nome de mais duas autoras, Solaine Chioro e Lorrane Fortunato.

Saber que essas autoras escrevem para o público juvenil já respondia nossa primeira pergunta: existe autoria feminina e negra nesse nicho? Consequentemente, tal resposta gerou um novo questionamento: por que essas mulheres não obtêm a mesma visibilidade que outras autoras da mesma categoria? Quem publica essas autoras?

Os dados encontrados são registrados em uma planilha Excel, que se divide em nome da autora, lugar onde essas autoras residem, obras publicadas, ano de publicação, formatos (livro físico ou e-book), classificações (infantojuvenil, juvenil, para adolescentes etc.), editora ou outras formas de publicação.

Até o presente momento encontramos 10 autoras, sendo que o caráter juvenil é pautado em um provável endereçamento editorial percebido pelo projeto gráfico, pelas classificações editorias e palabras chaves apresentadas nos sites de vendas. Sete delas têm, pelo menos, uma publicação impressa. Dessas, a autora Giulia Santana publicou de forma independente; Cidinha da Silva e Cristiane Sobral foram publicadas por editoras que focam a publicação de autoria negra: Mazza Edições e Malê, respectivamente. Nenhuma delas está no catálogo de grandes editoras.

Lavínia Rocha tem 7 publicações. Da listagem, é a autora que mais possui livros físicos, 5 obras individuais e uma coletânea impressas, e apenas um livro, também coletânea, em e-book. Olívia Pilar teve seu primeiro livro impresso publicado em 2019 em formato de coletânea pela V&R Editoras pelo selo juvenil Plataforma 21. Bianca Santana e Jarid Arraes têm publicações individuais impressas. As autoras Solaine Chioro, Lorrane Fortunato e Lethycia Dias -com exceção das participações em coletâneas- publicam unicamente de forma independente pela Amazon, ou pelo Wattpad.

As classificações mais presentes quando buscamos essas obras na internet, principalmente no site da Amazon, são: livros para adolescentes; adolescentes e jovens adultos; questões sociais para jovens e adolescentes; e LGBTQ+. Nas fichas catalográficas dos livros de Lavínia Rocha e Cidinha da Silva, encontramos a classificação de infantojuvenil.

Mesmo com poucos dados, alguns questionamentos podem ser lançados. Em primeiro lugar, obras em formatos de e-book ainda hoje não conferem pelo mesmo processo legitimador que uma obra impressa. Assim, essas autoras que se dão a conhecer exclusivamente por plataformas digitais podem ser lidas, mas ainda precisam galgar certos degraus para ocupar o posto de autoras reconhecidas não só pelo público, mas pelo campo. Assim, em segundo lugar, nota-se que essas autoras que encontraram o meio virtual como forma de serem lidas são autoras independentes, sofrendo, de certa forma, uma dupla opressão do mercado editorial como mulheres e como negras.

Outro aspecto a se fazer notar é elas publicam em coletâneas, o que pode vir a contribuir para sua visibilidade, ao unir seus nomes ao de autoras mais conhecidas. O público dessas autoras em plataformas virtuais aparentemente é ainda muito pequeno, o que nos fazer indagar sobre o acesso a essas plataformas pelo público preferencial. O gênero predominante das publicações é o conto.

Por fim, as autoras de livros individuais e que publicaram por editoras (Lavínia Rocha, Bianca Santana e Jarid Arraes) são negras de pele clara, o que pode indicar também certa tendência mais subliminar do racismo brasileiro, em seu aspecto editorial.

Ainda é cedo para conclusões peremptórias, mas certos vieses já podem ser notados em relação ao pequeno corpus que compõe nossa pesquisa. Para além das autoras que se autopublicam, aquelas que vieram a público por editoras o fizeram por casas pequenas, indicando a importância da existência desses locais, responsáveis em boa parte pela bibliodiversidade em um contexto de edição independente. No entanto, segundo nosso recorte, o número de editoras que publica literatura juvenil de mulheres negras é extremamente pequeno. Tal constatação pode estar atrelado ao fato de que várias dessas casas editoriais primam por uma coerência de catálogo, em que a literatura juvenil não encontraria eco. Todavia, a pouca representatividade de mulheres negras em editoras de todos os portes parece indicar para nós uma marca indelével do racismo estrutural que permeia as relações de todos os níveis no Brasil. Tal feito poderia ser amenizado se as políticas de Estado iniciadas com a lei 10.639 tivessem sido levadas a cabo pelos últimos governos, fato que não ocorreu nem parece próximo a ocorrer, dados os recentes e reiterados ataques ao mercado editorial, na forma de repressões a conteúdos de livros que indiquem diversidade, causando continuamente retração de publicações e autocensura. Os dados levantados são ainda restritos, mas indicam caminhos que, por ora, tem percorrido o mercado de livros voltados para o público jovem.

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Recebido: 01 de Fevereiro de 2020; Aceito: 01 de Março de 2020; : 01 de Abril de 2020

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