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Cuadernos del Centro de Estudios en Diseño y Comunicación. Ensayos

versión On-line ISSN 1853-3523

Cuad. Cent. Estud. Diseñ. Comun., Ensayos  no.107 Ciudad Autónoma de Buenos Aires jun. 2022  Epub 22-Mayo-2022

http://dx.doi.org/10.18682/cdc.vi107.4208 

Artículo

Narrativa brasileira de autoria feminina contemporânea: breves apontamentos

Maria do Rosário A. Pereira1 

1 Graduação em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); mestrado e doutorado em Estudos Literários, área de concentração Literatura Brasileira, pela mesma instituição. É pesquisadora nos grupos Letras de Minas - Mulheres em Letras (UFMG); Mulheres e Ficção (UFV); Mulheres na Edição (CEFET-MG); e Atlas (CEFET-MG). Atua como professora nos cursos técnicos e de graduação em Letras do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG).

Resumo

O objetivo deste artigo é tecer algumas considerações, à luz dos estudos de gênero e da crítica feminista, sobre três romances de autoras brasileiras contemporâneas: Quarenta dias (2014), de Maria Valéria Rezende, que problematiza o envelhecimento feminino na sociedade; A vida invisível de Eurídice Gusmão (2016), de Martha Batalha, que narra as vivências de duas irmãs nos anos de 1940, às voltas com o “destino de mulher” e as implicações de segui-lo ou não; e Com armas sonolentas (2018), de Carola Saavedra, que aborda a maternidade problemática, isto é, mulheres que são mães mas se arrependem, ainda que convivam, por vezes, com sentimentos dúbios, como a culpa.

Palavras chave: autoria feminina; romance contemporâneo brasileiro; Maria Valéria Rezende; Martha Batalha; Carola Saavedra.

Resumen

El propósito de este artículo es hacer algunas consideraciones, a la luz de los estudios de género y la crítica feminista, acerca de tres novelas de autores brasileños contemporáneos: Quarenta dias (2014), de Maria Valéria Rezende, que problematiza el envejecimiento femenino en la sociedad; A vida invisível de Eurídice Gusmão (2016), de Martha Batalha, que narra las experiencias de dos hermanas en la década de 1940, quienes se enfrentan con el “destino de mujer” y las implicaciones de seguirlo o no; y Com armas sonolentas (2018), de Carola Saavedra, que aborda la maternidad problemática, es decir, las mujeres que son madres pero se arrepienten, aunque a veces vivan con sentimientos dudosos, como la culpa.

Palabras clave: autoría feminina; novelas brasileñas contemporâneas; Maria Valéria Rezende; Martha Batalha; Carola Saavedra.

Abstract

The purpose of this article is to make some considerations, in the light of gender studies and feminist criticism, about three novels by contemporary Brazilian authors: Quarenta dias (2014), by Maria Valéria Rezende, which problematizes female aging in society; A vida invisível de Eurídice Gusmão (2016), by Martha Batalha, who narrates the experiences of two sisters in the 1940s, dealing with the “woman’s destiny” and the implications of following it or not; and Com armas sonolentas (2018), by Carola Saavedra, which addresses problematic motherhood, I mean, women who are mothers but regret it, even though they sometimes live with dubious feelings, such as guilt.

Keywords: female authorship; contemporary Brazilian novel; Maria Valéria Rezende; Martha Batalha; Carola Saavedra.

A literatura de autoria feminina no Brasil e o mercado editorial

O que mudou na literatura de autoria feminina contemporânea nas últimas décadas? Após um certo boom de obras que se debruçavam sobre o declínio do patriarcado -as quais questionavam, por exemplo, o lugar e o papel ocupado pela família como instituição-, é notório que atualmente as mulheres escritoras têm abordado inúmeros outros temas e questões que perpassam suas vivências. A década de 1970 trouxe uma série de transformações e questionamentos, como a revolução sexual e a chegada da pílula anticoncepcional, fatos estes atrelados ao que se convencionou chamar de quarta onda feminista. Atualmente, indaga-se se estaríamos vivendo uma quinta onda, na qual a tecnopolítica e o corpo como forma de manifestação artística e política ganham a cena. Seja como for, fato é que temas-tabu como lesbianidade, estupro, incesto, aborto e erotismo, por exemplo, têm sido assunto privilegiado na literatura de muitas escritoras, como Carola Saavedra, Adriana Lisboa, Carol Bensimon, Natália Borges Polessa, dentre inúmeras outras. Sendo assim, neste artigo, vamos abordar brevemente três romances brasileiros contemporâneos: Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende, publicado em 2014 pela Editora Alfaguara, que problematiza o envelhecimento feminino na sociedade; A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, publicado pela Companhia das Letras em 2016, que narra as vivências de duas irmãs nos anos de 1940 no Brasil, às voltas com o “destino de mulher” e as implicações de segui-lo ou não; e Com armas sonolentas, de Carola Saavedra, publicado em 2018 também pela Companhia das Letras, que aborda a maternidade problemática, isto é, mulheres que são mães mas se arrependem, ainda que convivam, por vezes, com sentimentos dúbios, como a culpa.

De acordo com Regina Dalcastagnè, em Literatura brasileira contemporânea: um território contestado (2012), como o próprio título indica, a literatura brasileira é um território contestado, uma vez que o que está em jogo é a possibilidade de dizer sobre si e sobre o mundo, o poder de falar com legitimidade. Sendo assim, quando determinadas vozes emergem no texto literário, a saber, sobretudo, a dos negros, dos pobres, das mulheres, dos gays, das lésbicas, dos trans, dentre outros, vozes estas não autorizadas, surge uma espécie de desconforto, desconforto este reforçado, ainda segundo Dalcastagnè, pela abertura de novas abordagens e pelo debate acerca das particularidades do texto literário (p. 7). Sendo assim, pesquisadores que se debruçam sobre essas vozes teriam de justificar, primeiramente, qual de fato é a relevância de tal estudo para, depois, lerem efetivamente o texto. Susana Bornéo Funck analisa tal questão em ensaio intitulado “Mulher e literatura” (2016), escrito na década de 1980 (entre 1985 e 1986), mas ainda válido para se pensar no panorama atual. A pesquisadora conta que, quando procurava um tema para sua tese de doutorado, tinha certeza de que queria escrever sobre uma mulher, mais especificamente sobre uma romancista norteamericana contemporânea. No entanto, foi desencorajada por colegas, inclusive colegas mulheres, que lhe sugeriram que deveria procurar um tema “sério” para investigação sob pena de ter sua carreira seriamente prejudicada. A partir desse fato, Funck pontua dois aspectos básicos no que se refere à questão “mulher e literatura”: primeiro, a existência de uma premissa, adotada por todos, homens e mulheres, de que

Há um padrão literário universal, descorporificado e assexuado, e que qualquer coisa especificamente feminina não pode representar a experiência humana. Em segundo lugar, a relativa ausência de mulheres escritoras do cânone acadêmico (Funck, 2016, p. 20).

Ou seja, se o masculino é o universal, se esse é o ponto de partida, qual a validade de se pesquisar mulheres, suas vivências, sua escrita, seu modo de se expressarem no mundo? É daí que nasce o não reconhecimento de escritoras, artistas, advogadas, mães etc. Seja qual for o papel desempenhado pela mulher -mas sobretudo papéis que façam parte da esfera pública-, esse papel é sempre subalterno. E como todo espaço é um espaço em disputa, e como o campo literário brasileiro ainda é extremamente homogêneo -de 1990 a 2004, 72,7% dos autores de romances eram homens, sendo 93,9% brancos, e mais de 60% residente no eixo Rio-São Paulo, de acordo com Dalcastagnè (2012, p. 7)-, torna-se notório o quão incômodo pode ser ouvir tais vozes pouco ou nada hegemônicas. Ainda que haja uma ampliação editorial em pequenos espaços -emergência de editoras independentes que se dedicam a temas ditos marginais, como a Padê Editorial, dedicada a publicações lésbicas, e a escritoras pouco conhecidas, por exemplo, ou mesmo casas editoriais como a Quintal Edições, que publica somente mulheres-, tais espaços não são valorados da mesma forma.

No que se refere à literatura de autoria feminina, há uma certa expressividade de tal produção nos dias de hoje, reforçada por projetos que buscam promover a leitura de autoras. Faz-se pertinente, contudo, abrir um rápido parênteses para que reflitamos sobre a expressão “literatura de autoria feminina”, termo que vem sendo usado com frequência no Brasil por estudiosas do tema, que o preferem em lugar de “escrita feminina”, “escrita de mulheres” ou ainda “literatura feminina”. Para o movimento feminista em geral e para quem se dedica ao estudo da literatura produzida por mulheres, “escrita feminina” é uma expressão considerada problemática por apresentar a ideia de um certo “essencialismo” supostamente encontrado na escrita de mulheres, como se fosse imanente a essa escrita a presença de certas temáticas e, principalmente, de determinadas formas de abordagem por meio da linguagem. O termo acobertaria então, sob o mesmo rótulo, escritas que apresentariam, em tese, uma uniformidade na linguagem e no modo de expressão, quando, em verdade, o que temos é um panorama multifacetado, no qual vemos escritoras bastante diversas, com características e personalidade próprias.

Se é fato que muitas escritoras privilegiam aspectos pouco problematizados pela literatura escrita por homens -como por exemplo a dicotomia espaço público versus espaço privado, a violência de gênero, a maternidade, o aborto etc.-, valendo-se de uma dicção própria, diferente daquela encontrada em uma literatura canônica centrada em valores patriarcais, euro e falocêntricos, é fato também que há escritoras que não tocam em tais temáticas nem se apropriam de estratégias discursivas que, teoricamente, seriam próprias do universo feminino. É o caso, por exemplo, da escritora carioca Ana Paula Maia, com certo reconhecimento no mercado editorial tanto por parte do público leitor quanto da crítica literária. Com narrativas repletas de violência, algumas beirando o escatológico, e aproximando-se da linguagem cinematográfica, no que alguns teóricos denominam de “novo realismo”, sua literatura aproxima-se da de alguns escritores brasileiros reconhecidos por essa mesma abordagem, como Rubem Fonseca, sem se deter em especificidades de gênero ou raça. Ilustramos com esse exemplo para mostrar que, não necessariamente, uma autora mulher aborda em sua escrita literária questões mais subjetivas, típicas -ou postuladas como típicas- do universo feminino.

Por outro lado, é curioso observar como algumas autoras que nunca tiveram preocupação com questões de gênero, agora, voltam-se para essa discussão: é o caso de Patrícia Melo, escritora brasileira reconhecida por obras como Inferno, publicado em 2000, ambientado em uma favela, e que aponta questões como o submundo das drogas, das facções e da polícia. Em 2019, veio a público Mulheres empilhadas, narrativa que se passa no Acre, estado brasileiro com o maior índice de feminicídios no país. Fica então a pergunta: por que a escritora resolveu voltar-se para essa questão -a violência de gênero? É claro que, a priori, um escritor, seja ele do sexo masculino ou feminino, pode falar do que quiser... No entanto, encontramos, em um dos paratextos da obra, pistas que nos permitem refletir sobre o fato de que possivelmente existem outras motivações para além de um interesse meramente particular da autora sobre o tema. Na seção “Agradecimentos” da obra em xeque, Patrícia Melo inicia agradecendo às

minhas editoras Leila Name e Izabel Aleixo que me fizeram o convite de escrever um romance de tema livre. Mas elas insistiram numa história com protagonismo feminino e eu aceitei o desafio. (...)

Sem minha amiga e jornalista Emily Sasson Cohen, que fez comigo a pesquisa para o romance (entrevistando dezenas de especialistas na questão da violência contra as mulheres, feministas, advogados, lideranças indígenas, líderes comunitários e viajando para o Acre, para a floresta como se fosse meus olhos e meus ouvidos), esse livro não teria sido possível. Mais que uma pesquisadora rigorosa, Emily é uma feminista ativa e sua postura e engajamento foram inspiradores para Mulheres empilhadas (Melo, 2019, e-book, grifos meus).

O livro de Patrícia Melo, ao que parece, foi um projeto muito bem construído, o qual envolveu, inclusive, profissionais externos que auxiliaram a autora fornecendo-lhe subsídios para a redação da trama. Aproveitou-se, ao mesmo tempo, o boom de livros que narram histórias de mulheres. Julgamos pertinente a citação acima para mostrar que o mercado editorial se debruça invariavelmente sobre temas que estejam no centro das demandas sociais e da atenção pública. Não poderia deixar de ser diferente com as questões feministas. O crescimento de publicações, tanto literárias quanto ensaísticas, voltadas para a discussão de gênero em seus mais diversos aspectos, e, mais ainda, produzidas pelas próprias mulheres, aponta para a importância de questionamentos sobre a temática. As mulheres, agora, saem dos bastidores e ganham notoriedade pública, o que é extremamente positivo.

É claro que ainda há um longo caminho de reconhecimento a se percorrer, e esse movimento de visibilidade que se acirra ao longo das décadas é fundamental; por outro lado, entretanto, o mercado se aproveita de tal movimento. Conforme afirma Daniela Szpilbarg, em artigo intitulado “Armas cargadas de futuro: hacia una historia feminista de la edición en Argentina”:

Es indudable que los debates sobre feminismo y género están “de moda” y no solo en Argentina sino también en colecciones feministas de editoriales como La Decouverte o Traficantes de Sueños. Esto es fácil observarlo por la proporción de títulos sobre estos temas que publican editoriales grandes, medianas, académicas o de nicho y que se proyectan en los planes editoriales de 2018 (Szpilbarg, 2018, p. 5)

Ainda que os exemplos do excerto acima, de uma pesquisadora argentina, sejam estrangeiros, em solo brasileiro verifica-se facilmente este fato -no que, aliás, parece ser um fenômeno mais abrangente: o número de títulos escritos por mulheres cresceu significativamente, inclusive em grandes editoras, ainda que a maioria das escritoras, sobretudo as poetas, publique por editoras menores, estas, em geral, mais preocupadas com a bibliodiversidade de seus catálogos. E tal crescimento não deixa de apontar para uma apropriação dos ideais feministas pelo mercado, que, ao perceber um interesse crescente pela pauta feminista e por um reconhecimento da atuação feminina nos mais diversos campos do conhecimento, não deixa de convertê-lo em comércio -no campo editorial isso é perceptível pelo grande número de publicações escritas por mulheres, conforme dito acima. Daí o “modismo” apontado acima por Szpilbarg. É devido a essas relações entre capitalismo e feminismo, algumas vezes mais sutis, outras, mais explícitas, que pensadoras como Nancy Fraser ponderam que “devemos reconectar a crítica feminista à crítica ao capitalismo” (Fraser, 2019, p. 44).

Seja como for, iniciativas que procuram incentivar a leitura de obras não só com protagonismo feminino, mas escritas pelas próprias mulheres, são cada vez mais recorrentes. É o caso do Leia Mulheres, projeto que funciona como uma espécie de clube do livro aberto ao público em geral e que acontece em diversas cidades brasileiras, passando tanto por cidades grandes, como Belo Horizonte, quanto por cidades menores, como Divinópolis, São Sebastião do Paraíso, Belém do São Francisco, Apodi etc. Mensalmente, é proposta a leitura de uma obra escrita por mulheres, obra esta que pode ser um clássico ou um texto mais contemporâneo. É assim que figuram escritoras literárias, como Ana Cristina César, Dina Salústio, Isabel Allende e Chimamanda Adichie -há, portanto, nomes nacionais e internacionais-, mas também escritoras de ensaios, como Grada Kilomba e bell hooks. Tais apontamentos demonstram a abrangência do projeto, que permite a leitura de diversas escritoras situadas em tempos e espaços diversos. No endereço eletrônico do referido projeto encontramos pistas sobre sua motivação:

Para 2014 a escritora Joanna Walsh propôs o projeto #readwomen2014 (#leia-mulheres2014) que consistia basicamente em ler mais escritoras. O mercado editorial ainda é muito restrito e as mulheres não possuem tanta visibilidade, por isso a importância desse projeto. (Disponível em: <https://leiamulheres. com.br/>.)

Também no YouTube há um canal intitulado Bondelê, no qual a jornalista Mariana Mendes -que trabalhou 19 anos no departamento de educação da Companhia das Letras, e com formação na área de Letras- entrevista escritoras brasileiras que estão sendo publicadas pelo mercado editorial. Além disso, há sugestão de livros ou pequenos comentários que, em geral, antecedem a entrevista. Ocasionalmente, o vídeo expõe somente uma resenha ou apresentação da escritora, como acontece logo no primeiro programa, em que a referida jornalista falou sobre a obra da escritora italiana Elena Ferrante. O projeto teve início em janeiro de 2017, numa parceria com Carolina Freitas da Cunha, responsável pela edição de vídeo, cuja formação é na área de cinema. Também no sítio eletrônico do projeto as motivações para tal empreitada aparecem:

O lugar social do escritor é ocupado por homens há mais tempo e por isso é comum pensarmos que mulheres escrevem menos. Bondelê apresenta e expõe as autoras brasileiras ajudando a compor o cenário literário atual. As vozes são numerosas, produzem com qualidade e “aqui” queremos ouvi-las. (Disponível em: <https://www.bondele.com.br/apresentacao>.)

Secularmente, as vozes das mulheres sempre foram inaudíveis. Como lembra Szpilbarg, retomando Ana Ojeda, “algo cambia porque las mujeres empiezan a hablar más, a hablarse, a expresar sus demandas, a nombrarse” (Szpilbarg, 2018, p. 15). É por isso que iniciativas como a do Bondelê são fundamentais para que a produção literária feminina seja conhecida por mais leitores, acostumados a um cânone masculino. Após um ano e meio de existência, Mariana Mendes convidou onze escritoras para uma série de conversas informais por ocasião da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty, no Rio de Janeiro), em 2018. A jornalista alugou um espaço próximo ao centro histórico de Paraty; foram três dias de programação intensa, com nomes como Francesca Cricelli -uma das tradutoras da Elena Ferrante no Brasil-, Luana Chnaiderman, Noemi Jaffe, dentre outras escritoras. No entanto, ainda que a visibilidade feminina seja crescente e que projetos como os mencionados acima contribuam efetivamente para a desconstrução de lugares-comuns, como o de que a escrita é e sempre foi pertencente aos homens, é grande a discrepância entre a fatia ocupada por homens e mulheres no que se refere ao mercado editorial. Muitas delas ainda são editadas por casas pequenas ou investem na autoedição -processo este, como lembra Szpilbarg (2018, p. 3), rico e complexo, e que cresce desde a crise dos anos 2000, momento no qual há uma concentração editorial maior. Tal constatação merece ser investigada, pois, no que diz respeito aos leitores, pesquisas como a Retratos da Leitura no Brasil, em sua quarta edição em 2016, dão conta de que as mulheres constituem a maior parte do público leitor -59% das mulheres são leitoras-, situação esta semelhante a países como Chile, Colômbia e México. Além disso, as mulheres são as que mais influenciam o hábito da leitura. Sendo assim, se há um destaque feminino no que se refere às mulheres vistas como leitoras, por que não há o mesmo destaque no que diz respeito à instância autoral? Sendo assim, pensar sobre as questões de gênero, hoje, não é o mesmo que pensá-las há 40 anos. Como, diante de inúmeros desafios sociopolíticos, as escritoras veem sua própria contemporaneidade? Como ponto de partida, vamos refletir sobre as ponderações de Giorgio Agamben no ensaio “O que é o contemporâneo?”. Para o filósofo italiano, “[a] contemporaneidade (...) é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias (...) (Agamben, 2009, p. 59). Dessa forma, aqueles que “coincidem muito plenamente com a época” não seriam capazes de enxergá-la verdadeiramente, em suas contradições e fissuras. Fazer a crítica ao próprio tempo a que pertence, portanto, visualizar a singularidade das relações sociais que nele se desenvolvem é fator chave para que alguém seja considerado contemporâneo. No que se refere à autoria feminina, as escritoras contemporâneas procuram questionar representações canônicas até então vigentes: a da mulher branca, eterna “rainha do lar” domesticada, e a da mulher negra, sempre subalterna, ocupando posições que variam entre a empregada doméstica e a mulata safada. De acordo com Lúcia Zolin (2010):

A crítica literária feminista, bem como o feminismo entendido como pensamento social e político da diferença, surge nesse contexto com o intuito de desestabilizar a legitimidade da Representação, ideológica e tradicional, da mulher na literatura canônica (p. 185).

As representações femininas na literatura canônica, então, são em geral maniqueístas e reducionistas, circunscrevendo a mulher ora à santidade, ora à demonização, desconsiderando a complexidade que a envolve. Na contracorrente desse pensamento estão as representações femininas das próprias mulheres as quais, ao falarem por si próprias, permitem-nos entrever novos contornos na problemática da autoria versus representação.

Ao considerarmos as três escritoras selecionadas para este trabalho, evidencia-se o quão multifacetada é a literatura escrita por mulheres hoje em dia. É tarefa das mais árduas, pois, tentar buscar linhas de força ou mesmo projetos que permitam delinear um certo percurso dessa literatura -e definitivamente não é este o objetivo deste trabalho. Pretendemos, no entanto, traçar algumas considerações por meio das quais possamos entrever esse caráter heterogêneo da autoria feminina na contemporaneidade, já que essa mesma contemporaneidade vem sendo objeto de reflexão tanto de filósofos quanto de escritores, e vem sendo nomeada de formas diferentes -“modernidade líquida”, de Z. Bauman, “hipermodernidade”, de G. Lipovetsky-, conforme o enfoque que se queira dar.

O corpo envelhecido na literatura feita por mulheres

Passemos então à leitura dos romances em xeque. “A velhice é particularmente difícil de assumir, porque sempre a consideramos uma espécie estranha: será que me tornei, então, uma outra, enquanto permaneço eu mesma?” (Beauvoir, 2018, p. 297). Tais assertiva e indagação, respectivamente, proferidas pela filósofa Simone de Beauvoir nos anos de 1970, são condizentes com o dilema vivido pela personagem Alice no romance Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende. Ao mesmo tempo que, sendo professora aposentada, Alice tem uma vida própria, seus interesses, suas motivações íntimas, é cobrada socialmente por não pretender assumir o lugar de “avó profissional” -a prima Elizete é personagem emblemática neste sentido. Norinha, sua única filha que morava no Sul, quer que a mãe largue sua vida na Paraíba e para lá se dirija a fim de auxiliá-la com o filho que pretendia ter. Afinal, como ela era jovem e tinha uma carreira universitária na qual investir, e a mãe, ao contrário, sob sua ótica, já havia vivido tudo que tinha para viver, nada mais justo do que esta última acompanha-la. Aos poucos a personagem vai se deixando enredar e sequer seus objetos pessoais consegue carregar na mudança para Porto Alegre:

Minha filha disse O que é isso, mãe? Parece que virou uma velhota sentimental, com esse apego a coisas completamente ultrapassadas. Pronto. Foi o que bastou pra Elizete pegar a deixa e pôr as mãos na massa, esvaziar gavetas e estantes (...) A essa altura nem tentei mais resistir (...) A última peça a sair de minha casa foi a cadeira de balanço austríaca (...), restos da casa da minha avó, onde eu tinha arriado pra ficar, amuada, assistindo ao rebuliço, à derrocada da minha vida tão boínha (...) (p. 10).

A cadeira de balanço, herança recebida da avó, está ultrapassada; a “vida boínha”, sinônimo de escolhas, também. Alice é transportada para um apartamento em outra cidade no qual não se reconhece, no qual o espaço é impessoal, onde os objetos nada dizem de sua personalidade ou de sua história. De acordo com Beauvoir, os velhos devem

Dar o exemplo de todas as virtudes. (...) A imagem sublimada deles mesmos que lhes é proposta é a do Sábio aureolado de cabelos brancos, rico de experiência e venerável, que domina de muito alto a condição humana; se dela se afastam, caem no outro extremo: a imagem que se opõe à primeira é a do velho louco que caduca e delira e de quem as crianças zombam (Beauvoir, 2018, p. 9).

A protagonista de Quarenta dias parece justamente caminhar de um extremo a outro, ainda que a “velha louca” não tenha sido exatamente um estigma imposto pela sociedade, já que ela escolhe livremente transitar por quarenta dias nos espaços marginais da cidade, e nem mesmo sua filha -que a deixa sozinha tão logo a mãe chega a Porto Alegre, pois embarcava com o marido em uma viagem de seis meses- se dá conta desse percurso. Tal jornada, ao final, é muito mais uma busca interior, uma espécie de penitência que a personagem se propõe a vivenciar. O título da obra é significativo, pois remete ao discurso bíblico, ao período em que Jesus passa quarenta dias no deserto, em jejum e oração, para se purificar. Também Alice parece passar por um “esvaziamento” interno, ao partilhar de experiências muito diversas das suas, com pessoas que de fato viviam na rua.

Naomi Wolf, em O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres (2018), aponta que o “envelhecimento na mulher é ‘feio’ porque as mulheres, com o passar do tempo, adquirem poder e porque os elos entre as gerações de mulheres devem sempre ser rompidos” (p. 31). Como se nota, essa é uma estratégia da sociedade capitalista para manter a mulher sob controle, já que o “mito da beleza” determina o comportamento e estimula a competição entre as mulheres. Não é à toa que uma das palavras de ordem do movimento feminista hoje é a sororidade, o apoio mútuo, independentemente de cor, credo, classe social. O feminismo é para todo mundo, conforme título de uma das obras mais recentes de bell hooks.

O modo como a sociedade percebe o envelhecimento, sobretudo o feminino, é que vai impactar a vida das pessoas. A Alice de Maria Valéria, num discurso em primeira pessoa anotado em forma de diário, utiliza as “velhas ferramentas de trabalho” para refletir sobre si mesma e sobre o modo como o meio social percebe sua condição. As anotações são feitas em um caderno que estampa a figura da boneca Barbie, e essa alusão a um produto que reflete um corpo magro, em geral loiro e sexualizado, é uma clara confrontação ao discurso apresentado pela protagonista, que ironiza os próprios acontecimentos de sua vida e opõe-se a tudo aquilo que a boneca simboliza.

A relação de Alice com a cidade de Porto Alegre aponta para um sentimento de não identificação, de deslocamento. Em relação ao apartamento luxuoso em que a filha a instalara, pode-se pensar na ideia de “casa da espera” abordada por Elódia Xavier em A casa na ficção de autoria feminina (2012). Alice permanecia o dia inteiro ali sem atividades, com os poucos livros que lhe restaram na mudança, à eterna espera de que a filha decidisse ter um filho para que a avó fosse a cuidadora. Porém, não há perspectivas de que essa espera termine, uma vez que Norinha nem grávida está e planeja ficar fora seis meses em um compromisso acadêmico com o marido. Daí a personagem perambula pelas ruas. A peregrinação se inicia a propósito da busca por um tal Cícero Araújo, que migrara para o Sul em busca de trabalho e de quem a família nunca mais tivera notícias. No entanto, com o passar do tempo e sem nenhuma pista do rapaz, percebe-se que o fato funcionava mais como um pretexto para a personagem, que não se enquadrara ao novo estilo de vida:

...tive vontade de chorar e fiquei um bom tempo com a cara virada pra fora, fungando, querendo esconder as lágrimas, fingindo que olhava pela janela, vendo vagamente passarem avenidas e prédios que não me diziam nada, uns com essa cara de luxo padronizado que se espalha igualmente de Dubai a Xangai (...) outros em construção ou abandonados, sei lá, com aspecto de ruína, tudo tão misturado que a gente fica sem saber se a cidade está nascendo ou morrendo (Rezende, 2014, p. 99).

É tensa, portanto, a relação da personagem com o espaço que ora habita. Pode-se pensar, ainda, na ideia de “casa ausente”, levantada também por Xavier, já que a casa em Porto Alegre não significava nada para ela, era, na verdade, indício de sua desterritorialização. A personagem, por não se sentir integrada àquele novo espaço, que lhe parece provisório, uma vez que não tem objetos que remetam a suas vivências, a suas raízes, à sua subjetividade enfim, tem com ele uma relação de hostilidade, de repúdio, de não aceitação. Há momentos em que permanece o dia todo no quarto e evita até mesmo deslocamentos curtos dentro da própria habitação. Dessa forma, o espaço do apartamento acaba sendo mais adverso do que a própria rua, local em que, ao menos, a personagem recebe solidariedade e compreensão por parte de outros viventes que de fato moram na rua.

Antes de refletirmos sobre o romance de Martha Batalha, e a fim de traçarmos algumas ligações entre os discursos histórico e o literário, façamos algumas breves considerações sobre como o corpo feminino foi vilipendiado ao longo do tempo a fim de atender a interesses escusos. Silvia Federici, em Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2017), demonstra, por meio de uma leitura histórica, que a discriminação contra as mulheres na sociedade capitalista é fruto da própria formação do capitalismo, “construída sobre diferenças sexuais existentes e reconstruída para cumprir novas funções sociais” (p. 11). A autora lembra que milhares de mulheres foram consideradas “bruxas” entre os séculos XVI e XVII e foram exterminadas em decorrência disso -“sujeitos femininos que o capitalismo precisou destruir: a herege, a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que ousa viver só, a mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos à rebelião” (p. 24). Embora tenham sido consideradas pervertidas, loucas ou miseráveis pela maioria dos historiadores, o que de fato se dá, segundo Federici, é um movimento de despolitização do genocídio ocorrido, uma vez que a caça às bruxas relaciona-se à domesticação das mulheres e ao surgimento do capitalismo, preparando o terreno para um regime patriarcal ainda mais opressor.

A historiadora relaciona a caça às bruxas à crise demográfica pela qual a Europa passou no início da Idade Moderna, em que os índices de natalidade e reprodução foram postos em xeque devido à peste negra, à crise do trabalho, dentre outros acontecimentos. Tanto é assim que a maioria das mulheres consideradas “bruxas” eram camponesas...

Mencionamos tais exemplos históricos a fim de demonstrar como, no sistema capitalista, as mulheres são frequentemente usadas como “bode expiatório” conforme a conveniência. Outro rápido e conhecido exemplo: durante as grandes guerras mundiais, a mão de obra feminina foi largamente incentivada e usada, sobretudo nas fábricas; no entanto, no pós Segunda Guerra, houve um movimento de incentivo à permanência da mulher no lar, já que os homens regressavam a suas casas. Reforça-se a imagem da mãe zelosa e dedicada que deveria viver integralmente ao dispor do marido e dos filhos. Tais eventos históricos encontram ecos na literatura brasileira contemporânea de Martha Batalha, escritora carioca, em A vida invisível de Eurídice Gusmão -recentemente adaptado para o cinema sob o título de A vida invisível. O livro narra a história de duas irmãs que, na primeira metade do século XX, experienciam situações diferentes. A Eurídice do título, personagem que apresenta inúmeros potenciais, tem uma vida de completo apagamento em prol de uma “tradicional família”:

Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar (Batalha, 2016, p. 12).

De acordo com Flávia Biroli, em Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (2013), “pode-se dizer que a família é produto de, e reproduz ativamente, relações de poder historicamente estruturadas”. Ainda de acordo com a pesquisadora, o estudo das relações intrafamiliares permanece silenciado, negligenciado. É assim que Eurídice ouve calada ao marido, quando bebia e a chamava de “vagabunda” porque ela não havia sangrado na primeira noite -certa herança familiar deixada pela mãe, que também não sangrara, ainda que ambas fossem virgens. Mais do que o “não sangramento”, a herança que ela recebe da mãe é a perpetuação do status quo, é o costume de atender aos anseios do marido e da família em primeiro lugar. Ainda assim, ela ousa olhar para si própria e empreende inúmeras tentativas de ser reconhecida por alguma de suas habilidades que não fosse simplesmente ser dona de casa ou mãe. No entanto, todos os projetos que tenta desenvolver -na culinária, na costura e, por fim, na escrita- não encontram apoio entre os seus e invariavelmente fracassam.

Paralelamente à história de Eurídice narra-se a de Guida, sua irmã, que foge para se casar com um pretendente rico, a quem de fato amava, mas que não resiste à vida de penúria a que se vê submetido quando a família ameaça deserdá-lo por se casar com uma moça humilde. Desquitada, usa do próprio corpo como meio de sobrevivência em algumas situações, como por exemplo relacionar-se sexualmente com o farmacêutico para obter remédios para o filho doente. Entretanto, ao final da narrativa, consegue mudar de vida ao se casar com um comerciante bem-sucedido financeiramente. Enquanto Guida busca alternativas para sobreviver e alcançar um lugar ao sol -mesmo que esse lugar seja via matrimônio-, Eurídice permanece confinada ao lar, tal como sua mãe permanecera e, tal como a Alice de Maria Valéria Rezende, dedica-se ao final da vida à escrita, ainda que nunca tenha tido retorno sobre os textos que escrevia para serem publicados na imprensa:

Com uma filha que se mostrava cada dia mais diferente, um filho que só era dela porque saiu dentre suas pernas e um marido que só se achegava para beijos na testa, Eurídice voltou-se ainda mais para dentro de si, e para dentro do escritório com estantes de livros até o teto, onde passava a maior parte do dia. (...)

A vida seguiu por aí, e um único som permaneceu constante: Tec tec tec, tec tec tec, tec tect, tec... Tec tec tec, tec tec tec, tec tect, tec... Tec tec tec, tec tec tec, tec tect, tec... (2016, p. 185)

Em Com armas sonolentas, romance mais recente de Carola Saavedra, tem-se a experiência de três narradoras, de idades diferentes -uma mulher velha confinada ao espaço de um asilo, uma jovem, Maike, que transita entre a Alemanha e o Brasil, e Anna, uma atriz que se muda para a Alemanha devido a um casamento com um diretor alemão e em busca, ao mesmo tempo, de ascensão na carreira. Três experiências femininas bem distintas, mas interligadas por elos familiares e por dilemas e decisões que deixam suas marcas nas sucessivas gerações.

Anna, que em princípio chega à Alemanha com grandes expectativas, vê-se confinada ao espaço doméstico. De acordo com Biroli (2013), “divisões convencionais entre o público e o privado acabam funcionando (...) como justificativas para a alocação desigual dos recursos e oportunidades”. Além disso, o Estado dá conta do que é público; se o problema das mulheres circunscreve-se à vida privada, isto é, ao âmbito doméstico, tal espaço estaria fora da jurisdição estatal não sendo passível, portanto, de sofrer nenhum tipo de intervenção, mesmo que tal intervenção buscasse assegurar a igualdade de direitos ou mesmo a preservação de alguns direitos básicos, como o da própria integridade física. É assim que ditados como “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher” ainda são aplicados em termos concretos.

Trancafiada em casa -o marido tinha compromissos costumeiramente em outras cidades alemãs, não a levava e, quando retornava, parecia somente usá-la sexualmente-, Anna acaba engravidando. No entanto, a maternidade não lhe cai bem e a personagem acaba por abandonar a criança, numa cena que desmitifica o amor materno como supostamente inato, apontando para o fato de que a ideia que se tem socialmente sobre esse sentimento é muito mais uma elaboração histórico-cultural que nos foi imposta ao longo do tempo:

Sentou-se num banco, e ficou ali, olhando para o bebê, que enfim havia parado de chorar, não sentia nada. Nem carinho, nem raiva, muito menos amor. Poderia ser qualquer coisa, uma caixa, um embrulho, um embrulho que alguém havia lhe entregado e dito, tome, cuide disso (Saavedra, 2018, p. 60).

Na sequência, Anna vê uma capivara no parque -ressalte-se que o romance de Carola é repleto de elementos míticos-, a qual lhe sugere que ela vá embora:

Anna olhou para o carrinho, que era agora um carrinho de boneca, a boneca chorava, não chore, bonequinha, tudo vai ficar bem, pode ir, Anna, eu cuido da sua filha, a capivara parecia sussurrar ao seu ouvido (...) Anna encostou o carrinho perto de uma árvore, acionou os freios, a capivara tinha razão, em pouco tempo estaria escuro, e ela precisava ir, durma bem, ela disse em voz muito baixa, enquanto ajeitava o gorro e cobria a filha com a manta (p. 61-62).

Em Um amor conquistado: o mito do amor materno (1985), Elisabeth Badinter desmitifica a ideia de que o amor materno é instintivo, inato à condição feminina. A autora demonstra como esse “amor inato” é construído culturalmente e, portanto, apresenta variações. Tal ideia de essencialismo começa, de acordo com a autora, em fins do século XVIII, quando a higiene e a saúde dos bebês, antes entregues a amas e babás, passa a ser de responsabilidade materna, o que é reforçado por discursos que circulavam à época, como aquele exposto na obra Émile, de Jean-Jacques Rousseau. De acordo com Badinter:

A evolução dos costumes foi mais lenta do que se poderia crer. Por razões diferentes, e até opostas, numerosas mulheres se recusaram a se conformar ao novo modelo. (...) as rousseaunianas (...) não são legião. Formam um pequeno núcleo de adeptas intelectuais não representativas do conjunto das francesas (p. 213).

As mulheres da burguesia abastada foram, então, as primeiras a aderirem ao novo modelo dos cuidados maternos, aquelas que, um século antes, delegavam os cuidados dos filhos a terceiros, por “conformismo, preguiça ou falta de motivação”. Como se nota, a mulher vai, progressivamente, adquirindo novas funções, as quais, a pouco e pouco, estendem-se para as demais classes sociais até se tornar uma espécie de paradigma a ideia de que cuidar de um filho é tarefa única e exclusiva da mãe.

Voltando à narrativa de Saavedra, muitos anos depois de abandonar a filha, Anna, então atriz consagrada, retorna ao Brasil e, em um monólogo de caráter autobiográfico, retoma a maternidade mal digerida:

Eu era ainda muito jovem e acabara de ter um bebê. Eu pari um amontoado de células que costumamos chamar “outro ser humano”, e, ao fazê-lo, apenas reproduzi o gesto de todas as mulheres da minha linhagem, minha mãe, minha avó, minha bisavó, minha tataravó, minha tataratataravó. A natureza. (Pausa) Mas nada é natural na natureza! (Saavedra, 2018, p. 175).

Por meio do texto literário, a autora propõe o seguinte questionamento: será que, de fato, a maternidade é inevitavelmente intrínseca à condição feminina? Ou somos, indiretamente, coagidas a reproduzir um padrão que se estende por gerações e gerações? Não seria interessante, para a própria sociedade, que as mulheres tivessem o poder de decidir efetivamente se querem, quando querem e quantos filhos querem? Ao que parece, não, uma vez que o sistema patriarcal prepondera, introjetando valores acerca dos supostos papéis sociais que homens e mulheres devem cumprir, os quais são difíceis de se extirparem na prática. De acordo com Adrienne Rich, em Nacemos de mujer: la maternidad como experiencia e institución (2019), há dois significados atribuídos à maternidade que se sobrepõem: a “relação potencial” da mulher com os poderes da reprodução e com os filhos, por um lado, e a instituição a qual pretende garantir que esse potencial -bem como as próprias mulheres- permaneçam sob o controle masculino (Rich, 2019, p. 57). Segundo a autora, inúmeras seriam as implicações desse acontecimento: as mulheres não conseguem tomar as decisões que regem sua própria vida, ainda que seja frequente a presença de discursos que pretendem nos fazer acreditar no contrário; os homens são eximidos da paternidade, em seu sentido real, isto é, podem até participar financeiramente ou mesmo “ajudar” quando lhes resta algum tempo, mas a educação de fato permanece sendo um encargo feminino; e, ainda, vida “pública” e vida “privada” tornam-se cada vez mais dicotomias estanques: “A las mujeres se nos controla amarrándonos a nuestros cuerpos” (Rich, 2019, p. 58). Voltando à obra de Saavedra, a personagem Ana depara-se com algumas dessas barreiras -o marido é ausente, ela não sai de casa e não pode mais realizar escolhas profissionais-, que acabam por levá-la a tomar uma decisão extrema.

Interessante notar que há outras obras contemporâneas que vêm questionando a maternidade compulsória, como A filha perdida, de Elena Ferrante, e Maternidade, de Sheila Heti. Como as pressões sociais para que a mulher seja mãe ainda persistem, aquelas que tomam a decisão de não fazê-lo, ou que o fazem e se arrependem, sentem-se frequentemente culpadas e são estigmatizadas pela sociedade. No romance de Saavedra, o segundo matrimônio de Anna, que inicialmente parecia um paraíso, converte-se em pesadelo: ela torna-se vítima de violência doméstica e um dos argumentos frequentemente usados pelo abusador -que a tratava como um objeto comprado- era o fato de que ela não prestava por ter abandonado a filha e, logo, merecia apanhar. Isso demonstra o peso social que recai sobre a mulher que foge às convenções estabelecidas no imaginário coletivo sobre o que é ser “boa mãe” e “mulher cumpridora dos seus deveres”.

Vale ressaltar que a mesma sociedade que estigmatiza essas mulheres -e não está em discussão o aspecto ético que envolve o abandono de um filho- raramente se indaga das motivações e do contexto que as conduzem a tal situação extrema, e menos ainda reflete sobre a construção histórica que preside o chamado “amor materno”. No caso masculino, tais cobranças simplesmente não existem. As responsabilidades maternas, ao contrário, foram crescendo com o passar da história até se tornarem de fato um fardo para a maioria das mulheres, as quais, por vezes, têm uma jornada diária árdua, pois esta inclui trabalho fora de casa, filhos, marido, e o próprio lar. De acordo com Badinter:

Auxiliar do médico no século XVIII, colaboradora do padre e do professor no século XIX, a mãe do século XX arcará com uma última responsabilidade: o inconsciente e os desejos do filho. Graças à psicanálise, a mãe será promovida a “grande responsável” pela felicidade de seu rebento. Missão terrível, que acaba de definir seu papel (...). Enclausurada em seu papel de mãe, a mulher não mais poderá evitá-lo sob pena de condenação moral. (...) Ao mesmo tempo em que se exaltavam a grandeza e a nobreza dessas tarefas, condenavam-se todas as que não sabiam ou não podiam realizá-las à perfeição. Da responsabilidade à culpa, foi apenas um passo (...). É à mãe, doravante, que se adquire o hábito de pedir contas... (Badinter, 1985, p. 236-237).

A obrigatoriedade de ocupar o papel de mãe foi ainda, durante muito tempo, entrave para que a mulher ocupasse o mercado de trabalho. Além disso, tais discursos sustentaram o desprezo -do qual há resquícios ainda hoje- ou a piedade aos quais as mulheres que não tinham filhos eram relegadas. Seguindo as colocações de Badinter, Rousseau e Freud elaboraram imagens de mulher muito semelhantes, cujo senso de dedicação e sacrifício era a tônica, adjetivação esta que passaria a caracterizar uma mulher “normal”. Aquelas que pensassem fora da caixa, pois, teriam de arcar com as consequências.

Encaminhando-nos para o final destas breves reflexões, destacamos que a literatura é, e sempre será, uma forma de reflexão, tal como assevera Antoine Compagnon em Literatura para quê (2009):

Exercício de reflexão e experiência de escrita, a literatura responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo. (...) A literatura desconcerta, incomoda, desorienta, desnorteia mais que os discursos filosófico, sociológico ou psicológico porque ela faz apelo às emoções e à empatia. (...) A literatura nos liberta de nossas maneiras convencionais de pensar a vida -a nossa e a dos outros (...).

É assim que também a literatura de autoria feminina, ao repensar as representações tradicionais de mulheres expressas na literatura em geral, problematizando questões intrínsecas à experiência feminina, suplementa, no sentido colocado por Jacques Derrida, a história e as narrativas oficiais, sempre incompletas. Virginia Woolf, em Um teto todo seu (2014), nos lembra de que o espaço doméstico tinha, para os gregos, uma conotação feminina: “Aí o seu lugar. Em princípio ela [a mulher] não deve sair.” (p. 197) Os gregos não tinham razão - nem eles, nem os que vieram depois, tentando manter um status quo excludente. Num cenário em que cada vez mais mulheres escrevem e narram experiências de mulheres, os incômodos gerados por essa literatura são cada vez mais bem-vindos. Temos muito o que falar.

Referências

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Recebido: 01 de Fevereiro de 2020; Aceito: 01 de Março de 2020; : 01 de Abril de 2020

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