Introdução
A imagem poética transporta-nos à origem do ser falante (Gaston Bachelard)
A presente pesquisa teve por objetivo investigar questões acerca das memórias, lembranças e relatos orais de idosos abrigados na Vila Vicentina em Bauru, cidade localizada no interior do estado de São Paulo. O resultado foi uma produção imagética (fotográfica) e iconográfica. Para tal, fez-se necessário reunir saberes interdisciplinares fundamentais para o processo metodológico.
Optou-se pela Cartografia, como forma descritiva, tal como proposto pela psicóloga Suely Rolnik, no sentido de considerar questões no campo do sensível. Outras questões contempladas foram apontadas pelo sociólogo Milton Santos, para tratar de espaços e aspectos no campo da Psicologia Social (Memórias), tais como tratados por Ecléa Bosi, a fim de colocar em cena visibilidades e invisibilidades.
Um princípio a ser adotado ao longo do processo é o do Design Social que, em sua origem, propõe o pesquisar junto com alguém e não para alguém. O design emerge como estratégia no que se refere às formas de lidar com o humano, por meio da qual se torna possível construir criativamente novas perspectivas e formas de olhar.
Valores e Princípios
Reconhecer a complexidade do sistema já é um grande avanço. Se todos adquirirem alguma consciência do tamanho e do intricado das relações que regem o mundo hoje, será possível caminhar coletivamente em direção a um objetivo, seja qual for. (Rafael Cardoso)
Para que fosse atingido o objetivo geral do projeto tornaram-se necessários levantamentos antropológicos, socioculturais e históricos. Buscava-se conferir visibilidade e voz ao idoso, refletir sobre sua importância no meio social, empregando ferramentas relacionadas ao Design, sobretudo no campo da Fotografia, analisadas e eleitas como instrumentos possíveis em relação ao objeto de estudo.
A inspiração veio do trabalho realizado por Annie Leibovitz. Esta fotógrafa norte-americana descobriu sua afinidade com a profissão em um workshop de fotografia, quando ainda cursava artes no Instituto de Artes de São Francisco. Sua especialidade são os retratos em estúdio ou ao ar livre. Começou a carreira em 1969, em São Francisco, na revista Rolling Stone, que não era ainda uma publicação expressiva. Annie registrou momentos decisivos da história dos Estados Unidos, bem como fixou imagens dos principais ícones da música das décadas de 70 e 80. No início de sua carreira, ela optou por uma estética simples, sem recorrer a produções elaboradas, dando preferência a imagens em preto e branco.
Sobre sua obra a própria fotógrafa declara:
Coisas acontecem na sua frente e você tem de estar preparado para decidir quando usar a câmera. Esse é um dos aspectos mais interessantes e misteriosos da fotografia (Leibovitz, 2008).
Essa percepção sensível, acerca do momento preciso a ser fixado, sua clareza quanto à escolha do objeto, valeram a Annie o reconhecimento internacional, por sua habilidade em perpetuar, por meio de imagens, as histórias das pessoas.
Bauru cidade que seduz
Há múltiplas variações no modo de ver a cidade, mas em cada uma, encontra-se sua veracidade representativa. (Lucrécia D’ Alessio Ferrara)
A internacionalização da obra do sociólogo Milton Santos deve-se à sua forma de tratar as questões do espaço, considerando a cidadania como forma de construção de um pensamento crítico e sensível.
Em ‘O Espaço Poético’ o autor observa que:
A geografia brasileira seria outra se todos os brasileiros fossem verdadeiros cidadãos. O volume e a velocidade das migrações seriam menores. As pessoas valem pouco onde estão e saem correndo em busca do valor que não têm (Santos, 1978).
Compreendendo a tessitura das funções do espaço, definida como conjunto manifesto e indissociável das relações sociais, sistema de objetos e sistema de ações, ao longo do tempo, recomenda:
O espaço deve ser considerado como uma totalidade, a exemplo da própria sociedade que lhe dá vida (...) o espaço deve ser considerado como um conjunto de funções e formas que se apresentam por processos do passado e do presente (...) o espaço se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que se manifestam através de processos e funções (Santos, 1978).
O autor construiu, em sua obra, uma análise transversal fundamentada nos princípios e categorias geográficos, descritos de forma crítica, voltando-se tanto às questões estruturais do funcionamento sócio-espacial, quanto propondo um repensar de bases, a partir do fortalecimento da cidadania, vendo o espaço urbano na sua dimensão de complexidade e dinamismo.
O recorte geográfico da nossa pesquisa traz para o foco da análise a cidade de Bauru, interior de São Paulo. Fundada em 1896, hoje é a cidade mais populosa do Centro-Oeste paulista, com densidade populacional de 510,83 habitantes por km², segundo o Censo de 2010. Um dos principais motivos do crescimento populacional foi a Marcha para o Oeste, incentivada pelo governo Getúlio Vargas para fomentar progresso e ocupação da Região Central do Brasil. Além da importância econômica, Bauru também guarda tradições e propõe aspectos culturais para a região.
O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal - IDH-M é de 0,825, o de longevidade de 0,758 (o nacional é de 0,638), com uma renda per capita de 0,810. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, em Bauru a população da chamada melhor idade corresponde a 13% do total de moradores da cidade.
Comparando-se a população atual de idosos de Bauru à do Censo do IBGE de 2000 observa-se um crescimento de 3% em relação ao número anterior. A Prefeitura Municipal prevê que esse índice pode atingir os 17% do total da população em 2025.
Foi crucial, assim, considerar histórias e relatos orais da população idosa, como fontes de informação, para registro, compreensão e resgate de suas memórias e lembranças. A partir da relevância desses dados, definiram-se os princípios norteadores para fixar as imagens fotográficas. Nesse sentido, procurou-se agregar princípios da cartografia, tal como foram propostos por Suely Rolnik para quem “o cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não só escritas e nem só teóricas” (Rolnik, 1989).
Ser velho...
Além de ser um destino do indivíduo, a velhice é uma categoria social. (Ecléa Bosi)
O contingente idoso vem superando em taxa de crescimento os demais segmentos etários. Estudos mostram que o número de pessoas idosas aumenta em ritmo mais acelerado que o de pessoas que nascem. A elevação da taxa de expectativa de vida, dentre outros fatores, modifica a estrutura de gastos dos países em uma série de áreas importantes.
No Brasil, especificamente, o ritmo de crescimento da população idosa tem sido consistente. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD 2009, o país conta com uma população de cerca de 21 milhões de pessoas com 60 anos idade ou mais.
Para a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificam-se, cronologicamente, como idosas, em países desenvolvidos, pessoas com mais de 65 anos, e em países em desenvolvimento, as de mais de 60 anos. No Brasil, portanto, toda pessoa com idade igual ou superior a 60 anos é idosa, de acordo com o artigo segundo, da Lei n. 8.842, de 04 de Janeiro de 1994, que trata da Política Nacional do Idoso. Na visão da geriatria, entretanto, uma pessoa é considerada de terceira idade a partir dos 75 anos. Observa-se que, na verdade, não existe um acordo acerca do que define os limites de idades da ‘pré-velhice’ ou da ‘velhice’. Embora saibamos que cada sociedade vivencia de modos diferentes o declínio biológico, parte-se do princípio que os idosos possuem grande e valiosa bagagem cultural e emocional que merece ser compartilhada. Suas vidas adquirem nova finalidade se lhes dedicarmos nossa atenção e os ouvirmos. Viveram ricas experiências, alguns constituíram família, trabalharam para mantê-la, lutaram, contribuíram com a sociedade. O vínculo com outras épocas vividas se faz presente na consciência de quem suportou muita coisa, de quem aprendeu tanto. Independente de suas lutas ou méritos particulares, no entanto, quando envelhecem passam a sofrer com o descaso e o preconceito social. No Brasil, apesar do que determina o recente Estatuto do Idoso, verifica-se que ainda há muito a aprender e fazer para modificar estas lamentáveis situações que, frequentemente, esvaziam o tempo do idoso de suas experiências significativas, relegando-o a um lugar à margem.
A Vila Vicentina
Os lugares produzem uma relação entre estímulos sensíveis: visuais, olfativos, volumes e rugosidades, mais os afetos, alegrias, tristezas, luxo e pobreza do cotidiano. (Lucrécia D’ Alessio Ferrara)
A Vila Vicentina foi organizada a partir da mobilização de quarenta vicentinos, oriundos da Société de Saint-Vincent-de-Paul, fundada em 1833, em Paris, pelo beato Antoine Frédéric Ozanam. Esta entidade tornou-se uma fortaleza, defendendo a causa e os direitos humanos dos excluídos. Aliando-se a autoridades bauruenses de diversos segmentos, os vicentinos assinaram um manifesto dirigindo um apelo à população de Bauru. No dia 01 de março de 1940, a Vila Vicentina iniciou os trabalhos de construção em um lote doado por Antônio Galvão de Castro, Benedicta Cardoso Madureira e Diógenes Garcia, com 12.100 cruzeiros. Foram erguidos dois pavilhões destinados a abrigar mulheres idosas e um pavilhão para homens, além de uma enfermaria, áreas do pátio, cozinha, lavanderia e escritório.
O primeiro decênio da instituição foi marcado pela administração das Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus. Posteriormente, a Vila passou a ser conduzida pela administração Vicentina, com uma diretoria de 25 membros que realizam os trabalhos de forma voluntária. Aos poucos, os serviços para a comunidade foram se expandindo para além do suporte residencial e alimentar. Atualmente os idosos recebem tratamentos em diferentes áreas da saúde, com atendimento médico, fisioterapia, odontologia e psicologia, além da realização de atividades culturais, pedagógicas, religiosas e sociais. Para que todas essas ações da Vila Vicentina se concretizem, o programa de voluntariado, a relação com as Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus e o trabalho do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais - HRAC/Centrinho - são essenciais. Assim tem sido possível promover melhor qualidade de vida e bem-estar para os idosos (veja a Imagen 1).
Em 2020, a instituição comemora seu 80º aniversário. Propõem-se campanhas para projeto arquitetônico, manutenção da estrutura de lar e continuidade dos serviços, a fim de garantir dignidade e respeito aos 79 idosos, ou seja, 79 vidas impactadas diretamente pelas atividades do espaço.
Dentre essas 79 pessoas, 30 frequentam o Centro Dia de Referência da Pessoa Idosa. Neste espaço social acontece a prestação diurna dos serviços de assistência social, contando com suportes diversificados, visando a promover socialização através de atividades culturais, andragógicas e pedagógicas. Tem por objetivo favorecer a autonomia, tanto do idoso que recebe cuidados em casa, quanto do cuidador que o auxilia. Outros 49 idosos, entre homens e mulheres, são abrigados na instituição. Contam com moradia, alimentação, participam de atividades de lazer, oficinas de artesanato e alguns frequentam uma escola dedicada ao ensino básico. Recebem auxílio médico, dentre outras ações realizadas por cuidadores e por diferentes personagens dedicados, direta ou indiretamente, ao cuidado dos idosos, vinte e quatro horas por dia. As histórias de vida de muitas dessas pessoas entrelaçam-se à história do espaço, tecendo-se em redes invisíveis e dinâmicas.
Colocam-se em cena, portanto, questões relativas à posição do idoso, no âmbito nacional a partir do foco na instituição Vila Vicentina. A intenção inicial foi realizar levantamento histórico, cultural e antropológico, na busca de melhor alcançar o objetivo geral, ou seja, resgatar lembranças, conferir visibilidade e voz às memórias, por meio da fotografia, complementada e enriquecida por textos, registros que emergiram das narrativas dos envolvidos (Veja a Imagen 2).
O que fazer?
O Design tende ao infinito - ou seja, a dialogar em algum nível com quase todos os outros campos do conhecimento. (Rafael Cardoso)
Delineou-se no plano teórico e prático, o processo de verificar e registrar histórias, momentos e lembranças dos idosos, no sentido da revitalizar e fortalecer as identidades dos abrigados na Vila Vicentina. Lembre-se, sobre a relevância de se empreenderem tais estudos, o que nos diz Ecléa Bosi:
A memória dos velhos desdobra e alarga de tal maneira os horizontes da cultura que faz crescer junto com ela o pesquisador e a sociedade em que se insere (Bosi, 2003).
Na prática configurou-se o livro intitulado Velhas Lembranças, Memórias de Vida reunindo as imagens fotográficas dos idosos aos textos desenvolvidos a partir das entrevistas, realizadas ao longo de nosso trabalho de campo, em Vila Vicentina.
A cada passo do percurso, fez-se necessário analisar aspectos relacionados ao pertencimento à instituição, enquanto modificadores e organizadores do discurso em relação a lembranças e memórias, considerando como pano de fundo, questões relacionadas diretamente à história da cidade de Bauru.
Conviver e ouvir os abrigados permitiu-nos acessar suas vivências, relatos e histórias. Partindo-se de um roteiro previamente definido, em conjunto com uma jornalista local, foi possível traduzir, por meio da imagem fotográfica, as informações coletadas. Estas estariam acessíveis, desta forma, tornadas visíveis nas páginas do livro.
A pesquisa de campo, como exigia a proposta de interlocução junto à comunidade, voltava-se à abordagem qualitativa.
Tendo como modelos os idosos de Vila Vicentina, a fotografia focalizou seu universo, bens materiais e imateriais. O entorno constituiu cenário, estabelecendo uma relação íntima com os relatos, contribuindo para o alcance do resultado prático final.
Quanto ao projeto gráfico do livro destacou-se a colaboração da designer e artista visual Mana Bernardes, responsável pela tipografia do título da capa e títulos de abertura dos capítulos (Veja a Imagen 3).
Escolheu-se para compor o livro Velhas Lembranças, Memórias de Vida uma seleção de 14 histórias de abrigados, consideradas relevantes como amostra significativa, por serem representativas e coerentes com os objetivos e metodologia propostas no decorrer do projeto (Veja Imagens 4, 5, 6 e 7).
A experiência desdobrou-se em registros plenos de significados, que reforçam o caráter afetivo e emocional do Design Social, bem como estreitam as relações entre diversas áreas de conhecimento. Como observa Rafael Cardoso:
A grande importância do design reside em sua capacidade de construir pontes e forjar relações num mundo cada vez mais esfacelado pela especialização e fragmentação dos saberes (Cardoso, 2012).
Constatou-se, posteriormente, o impacto positivo do livro no que se refere à revitalização da memória oral dos abrigados, permitindo avaliar de forma prática, as condições de pertencimento dos mesmos. A grande receptividade do livro no âmbito da sociedade bauruense, principal público alvo do projeto, demonstrou que os objetivos primordiais foram alcançados. Reafirma-se, ainda, a capacidade do Design de estabelecer diálogo com outros campos de conhecimento. Consolidou-se a percepção do alcance da responsabilidade do designer, no emprego da capacidade de tecer relações entre saberes, distanciados pela especialização. O Design pode contribuir neste esforço, viabilizando soluções criativas para os crescentes desafios, presentes e futuros, construindo pontes, difundindo valores.
Pensar o Design como estratégia, voltada ao desenvolvimento humano, por intermédio da qual é possível construir uma sociedade inclusiva, faz com que se acredite na necessidade de repensar, permanentemente, as práticas que conservam viva a responsabilidade ética.
O projeto, por esse motivo, encontra-se sempre em processo, porque assim é o fazer em Design.
Sempre em processo! Cenas dos próximos capítulos
Desenhando memórias, esta experiência projetual criativa, na área do Design Social, seguiu princípios teóricos e práticas metodológicas que fundamentaram o ensaio fotográfico. Configuraram o livro “Velhas lembranças, memórias de vida”, onde se tornam visíveis os relatos afetivos de quatorze idosos abrigados na Vila Vicentina, em Bauru. Embora deslocados de suas origens, o ensejo de relembrarem o vivido e o que foi aprendido ao longo do tempo, de relacionarem essas vivências ao presente, ao novo espaço de convivência, constituiu um mecanismo importante para a preservação de suas identidades. As reminiscências do passado, convivendo com o presente propõem um olhar para o futuro. Ressalta-se que a pesquisa obteve aprovação em fóruns acadêmico-científicos, incluindo Congressos Nacionais, Internacionais e publicações.
O projeto Gráfico-Editorial foi lançado por uma editora carioca, comercializado em livrarias relevantes no país, bem como em Portugal e na Espanha, internacionalizando-se. O livro, produto final da pesquisa teve convites para lançamento na Festa Literária Internacional de Paraty, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro e na feira LER - Salão Carioca, nas edições de 2019, ao lado de uma exposição das telas fotográficas.
Em Bauru, o livro foi lançado no 69º Churrasco Anual da Vila Vicentina, evento no Calendário Municipal. Ganhou destaque por comemorar os 80 anos da instituição, quando ocorreu a venda de exemplares, possibilitando a segunda edição do projeto a ser relançada no ano de 2020. Também fez parte de evento solene na semana de comemoração do aniversário de Bauru.
O projeto Velhas Lembranças, Memórias de Vida representou uma oportunidade de aprendizado quanto ao estabelecimento de diálogos e valorização do contato humano com os interlocutores. Para os idosos abrigados em Vila Vicentina, o projeto proporcionou a oportunidade de participação, de mostrarem sua competência traduzida em experiências de vida compartilhadas. Suas existências ganharam ressonância. A partir dos contatos estabeleceu-se uma relação de confiança, relatos de lembranças e memórias de vida fluíram, tornando-se visíveis.
Consideram-se as ações da Vila Vicentina de extrema relevância para a sociedade, principalmente no que se refere aos idosos que vivem em situação de risco, abandono e/ou vulnerabilidade social.