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Cuadernos del Centro de Estudios en Diseño y Comunicación. Ensayos

versión On-line ISSN 1853-3523

Cuad. Cent. Estud. Diseñ. Comun., Ensayos  no.121 Ciudad Autónoma de Buenos Aires ago. 2023  Epub 23-Ago-2023

 

Articulo

O ensino do design na América Latina: em busca de uma identidade latino-americana

Matheus Alberto Ramos de Freitas1 

Rita Aparecida C. Ribeiro2 

1 Universidade do Estado de Minas Gerais.

2 Pesquisadora, Professora e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG, Brasil. Líder do Grupo de Pesquisa Design e Representações Sociais. Pesquisador da FAPEMIG. Co-diretora da linha de pesquisa Presente y Futuro del Diseño Latino, Programa de Investigación y Desarrollo, Facultad de Diseño y Comunicación, Universidade de Palermo.

Resumo

O artigo se propõe a analisar o ensino na pós-graduação em design na América Latina, tendo como principal discussão os sentidos culturais presentes nos objetos que reproduzem as culturas eurocêntricas hegemônicas, propondo um resgate dos valores que fazem parte das tradições culturais dos países latino-americanos, ou como denomina Boaventura Santos, os que instituem as Epistemologias do Sul, fundamentadas principalmente no forte impacto de preconceito e hegemonia dos valores culturais burgueses, patriarcais e brancos que o design industrial causa no comportamento da sociedade capitalista ocidental vigente. Pensando por essa perspectiva, o cenário atual exige a necessidade de amplificar os critérios do conhecimento no século XXI, considerando a diversidade, partindo para o reconhecimento de uma ecologia de saberes, que deve se refletir nas pesquisas no campo do design.

Palavras chave: Design latino-americano; contra-hegemonia; pesquisa; pós-graduação.

Resumen

El artículo busca analizar la enseñanza de estudios de posgrado en diseño en América Latina, teniendo como principal discusión los significados culturales presentes en los objetos que reproducen las culturas hegemónicas eurocéntricas. Se propone un rescate de los valores que forman parte de las tradiciones culturales de los países latinoa-mericanos, o como las llama Boaventura Santos, las que instituyen Epistemologías del Sur, basadas principalmente en el fuerte impacto del prejuicio y la hegemonía de los valores culturales burgueses, patriarcales y blancos que el diseño industrial transmite a la actual sociedad capitalista occidental. Pensando desde esta perspectiva, el escenario actual requiere la necesidad de ampliar los criterios de conocimiento en el siglo XXI, considerando la diversidad, comenzando con el reconocimiento de una ecología del conocimiento, que debe reflejarse en la investigación del área de diseño.

Palabras clave: diseño latinoamericano; contra-hegemonía; investigación; posgraduación.

Abstract

The article analyzes the Design postgraduate studies programs in Latin America, having as its main discussion the cultural meanings present in the objects that repro-duce Eurocentric hegemonic cultures. A rescue of the values that are part of the cultural traditions of Latin American countries is proposed, or as Boaventura Santos calls them, those that institutionalize Southern Epistemologies, based mainly on the strong impact of prejudice and the hegemony of bourgeois, patriarchal and white cultural values in the industrial design, transmits to the current western capitalist society. Thinking from this perspective, the current scenario requires the need to broaden the criteria of knowledge in the 21st century, considering diversity, beginning with the recognition of an ecology of knowledge, which must be reflected in the Design research area.

Keywords: Latin American design; counter-hegemony; research; postgraduate.

Introdução

Esta pesquisa, partiu da parceria entre os grupos de pesquisa de nossa instituição e da Universidad de Palermo, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG. As indagações acerca da pós-graduação nos acompanham e foram objeto de estudo dos programas no Brasil, ampliando o nosso olhar para o cenário latino-americano. Perceber o design como um campo de conhecimento próprio é tarefa árdua, dada sua natureza híbrida. No entanto entendemos que aquilo que poderia ser considerado uma fragilidade, constitui a força motriz deste campo. Cada vez mais o design interfere e afeta os comportamentos sociais. No século XXI sentimos sua influência em todos os campos, ainda que de forma sutil. Até mesmo os processos comunicacionais passam a ser influenciados por esta área. Por que não lhe atribuir o estatuto de campo de conhecimento?

Já em 1993, na criação da primeira revista voltada para os estudos acadêmicos do design no Brasil, a Estudos em Design, Victor Margolin argumenta sobre a necessidade de estudos teóricos acerca do campo. Seus questionamentos entendem o Design como uma forma de atuação social:

Quando aprendemos a perceber a profundidade da interferência do design no universo de objetos, serviços e técnicas na sociedade podemos começar a reconhecer neles as manifestações de valores e políticas sociais.[...] O design é o resultado de escolhas. Quem faz essas escolhas e por quê? Que visões de mundo estão subjacentes a elas e de que modo esperam os designers apresentar uma visão do mundo manifesta nos seus trabalhos? (Margolin, 1993, p. 11).

As indagações de Margolin antecipam a tônica das discussões acerca dos caminhos do design na atualidade. Lipovetsky e Serroy (2015) afirmam que o design hoje transcende o material e incorpora o emocional: “como escreve Harmut Esslinger, ‘form follows emotion’ suplantou ‘form follows function’” (Lipovetsky, Serroy, 2015, p. 250).

As tradicionais divisões do design nas áreas de produto, gráfico, ambientes e moda deixam de existir, enquanto os limites de atuação do design se estendem a todos os campos e seus sentidos se ampliam. Da mesma forma, os estudos guiados pelos programas de pós-graduação, devem perceber tais mudanças e agir em função destas transformações. Como a pesquisa em design na América Latina percebe e trabalha estas mudanças? Existe uma identidade própria do design latino-americano?

Os objetos produzem indivíduos?

Segundo a teoria da Fenomenologia do Espírito1, é possível compreender a transformação da civilização da condição pré-histórica à condição pós-moderna, o avanço que ocorre é a partir das experiências que vão sofisticando o corpo chamado de sociedade, e neste ponto é que se torna possível compreender a questão levantada por Miller (2013, p. 84) sobre: “Qual a relação última entre as ordens do mundo exterior e a constituição das pessoas”. O que o antropólogo está propondo é compreender a dialética entre as pessoas e o mundo natural produzindo como experiência os elementos que compõem as sociedades como “indumentária, moradia, carros e outros trecos” (Miller, 2013, p. 88). O interessante é que todo processo dialético representa uma via de mão dupla, ou seja, “o que temos é o processo dinâmico ele mesmo” (Miller, 2013, p. 88), o indivíduo, seu mundo exterior e seus objetos são todos produtos do mesmo contexto histórico e social no qual estão inseridos.

Portanto, não é apenas o indivíduo que produz os objetos a partir do mundo natural, o próprio mundo exterior, o contexto histórico e social, produz os objetos intuindo as formas de pensar e de agir do indivíduo.

O psicólogo e especialista em marketing Ernest Dichter escreveu:

The objects which surround us do not simply have utilitarian aspects; rather, they serve as a kind of mirror which reflects our own image. [...]

The things which surround us motivate us to a very large extent in our everday behavior (Dichter, 2004, p. 91-92).

O teórico do design Marcus Dohmann enfatiza:

Hoje, os objetos podem “dizer” muitas coisas sobre seus possuidores. Nenhuma exceção a esta classificação, até os mais austeros, criados sem nenhum objetivo que não seja apenas servir discretamente. Todos emitem mensagens mesmo que para contextos culturais específicos. A qualidade de uso é muitas vezes subestimada, exigindo, no entanto, um substituto de inconfundível significado simbólico dentro dos códigos em vigor. É precisamente esta nova condição agregada às coisas úteis, que permite ao simples “objeto útil” tornar-se super-valorizado (Dohmann, 2013, p. 38).

Sobre os objetos configurando os indivíduos, o filósofo Flusser faz uma interessante observação:

Um homem rodeado de ferramentas, isto é, de machados, pontas de flecha, agulhas, facas, resumindo, de cultura, já não se encontra no mundo como em sua própria casa, como ocorria por exemplo com o homem pré-histórico que utilizava as mãos. Ele está alienado no mundo, protegido e aprisionado pela cultura (Flusser, 2007, p. 37).

De acordo com este pensamento, a partir do momento que o indivíduo passa a fabricar objetos delimitando códigos e funções a estes, o mesmo ocorre do outro lado, os objetos fabricados passam a delimitar códigos e funções ao indivíduo. Um exemplo simples é o sujeito que fabrica sapatos é transformado em sapateiro, ou seja, assume um código e uma função perante o grupo social. É interessante o conceito de cultura para Flusser, ou seja, tudo aquilo que foi manipulado e transformado da natureza pelo indivíduo e passa a ser artificial e a compor o seu meio ou sua vida. E essa cultura ao mesmo tempo que o protege também o aprisiona, e neste aprisionamento podese conceber o contexto histórico e social limitando e condicionando as formas de pensar dos indivíduos e dos grupos sociais, assim sendo, os objetos industriais que compõem a sociedade capitalista atual ao mesmo tempo que são fabricados e delimitados pelos códigos hegemônicos culturais desta sociedade: valores e percepções burguesas, patriarcais e brancos. Estes valores culturais serão reproduzidos nos objetos industriais modelando e condicionando os comportamentos dos indivíduos, uma vez que compõem os seus meios de vida. O problema deste sistema, ou o confronto cultural, se encontra no fato de que a sociedade é diversificada e carregada de pluralidades para estar condicionada a um modelo hegemônico de significações, design, dos objetos industriais que compõem predominantemente a realidade de boa parte dos indivíduos desta sociedade.

Para compreender melhor a constituição da hegemonia atual e seus reflexos no design, é preciso recorrer a um conjunto de teorias capazes de explicar e questionar o modelo vigente, e as teorias sociológicas das Epistemologias do Sul, fundamentadas principalmente por Boaventura de Sousa Santos apresentam um arcabouço de entendimento plausível. Essas teorias sustentam o forte impacto de preconceito e hegemonia dos valores culturais burgueses, patriarcais e brancos que o design industrial causa no comportamento da sociedade capitalista Ocidental vigente.

Sociedade e capitalismo contemporâneo

Boaventura de Sousa Santos, ainda que formado em direito, tem seu trabalho voltado majoritariamente para o campo da sociologia, publicando no final da década de 1980 o livro Um discurso sobre as ciências no qual apresenta a crise do paradigma epistemológico que Fúlvio de Moraes Gomes explica da seguinte forma:

Para o autor, o modelo hegemônico da ciência moderna é oriundo do modelo de racionalidade que se constituiu a partir da revolução científica do século XVI, e que alcançou seu apogeu no século XIX. Trata-se de um modelo de conhecimento que se baseia na formulação de leis gerais, e cujo campo de atuação fica restrito ao âmbito das ciências naturais (Gomens, 2012).

No ano de 1995, Santos realiza a constatação de uma “epistemologia do Sul” por meio da publicação Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the Paradigmatic Transition, o que gerou vários debates no campo científico como argumenta (Meneses, 2008). Finalmente, em 2009, Santos organiza o livro Epistemologias do Sul no qual apresenta o artigo Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes e aprofunda sua teoria epistemológica. A base argumentativa de Santos é a de que a separação do Velho e do Novo Mundo permanece metaforicamente, sendo que a colonização europeia da América se consolidou por via da apropriação e violência sobrepondo-se de modo absoluto a cultura estrangeira europeia sobre as culturas existentes suplantando a presença destas culturas originárias, o mesmo processo ocorreu no continente africano. Santos, chama isso de linhas abissais, ou seja, fora da cultura eurocêntrica prevalece o nada ou abismos culturais que Santos explica de maneira prática da seguinte forma:

No domínio do conhecimento, a apropriação vai desde o uso de habitantes locais como guias e de mitos e cerimônias locais como instrumentos de conversão, à pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, enquanto a violência é exercida através da proibição do uso das línguas próprias em espaços públicos, da adopção forçada de nomes cristãos, da conversão e destruição de símbolos e lugares de culto, e de todas as formas de discriminação cultural e racial (Santos e Meneses, 2009, pp. 29-30).

Portanto, para além das linhas abissais, fora do mundo eurocêntrico, do mundo da regulação e emancipação, o que resta é a ausência radical, a negação das outras culturas e seus indivíduos, a sub-humanidade moderna. Que Santos identifica como presente desde o período colonial até os dias de hoje: “O pensamento moderno ocidental continua a operar mediante linhas abissais que dividem o mundo humano do sub-humano, de tal forma que princípios de humanidade não são postos em causa por práticas desumanas” (Santos e Meneses, 2009, p. 31). Uma informação importante sobre as linhas abissais é que nos últimos 60 anos elas modificaram o posicionamento através das lutas anticoloniais e pela expansão do fluxo migratório do Sul Global para o Norte Global o que causou a subversão da lógica jurídica regulação/emancipação de acordo com Gomes (2012, p. 47).

Segundo Santos e Meneses, o Sul Global representa o Sul geográfico no qual países e regiões ficaram submetidos ao colonialismo europeu, e, sem contar com a Austrália e a Nova Zelândia, acabaram por não conseguirem atingir níveis de desenvolvimento econômico compatíveis ao Norte Global representado pela América do Norte e Europa (2009, p. 13). A partir do ponto do entendimento das linhas abissais, Boaventura irá estabelecer um postulado que seja capaz de superar o problema, segundo o autor “não existe justiça social global sem justiça cognitiva global” (Santos e Meneses, 2009, p. 41), portanto é necessária a formulação de um novo pensamento capaz de gerar alternativas para os problemas das linhas abissais, um pensamento pós-abissal:

O pensamento pós-abissal parte da ideia de que a diversidade do mundo é inesgotável e que esta diversidade continua desprovida de uma epistemologia adequada. Por outras palavras, a diversidade epistemológica do mundo continua por construir (Santos e Meneses, 2009, p. 41).

O primeiro passo dado é a reconfiguração das experiências de conhecimento do Norte, entender a conotação na qual foram desenvolvidas e suas limitações pragmáticas o que Boaventura e outro autores desenvolvem com alta habilidade, no trecho a seguir Maria Paula Meneses aborda essa questão:

A relação global etnoracial do projecto imperial do Norte Global vis à vis o Sul Global -metáfora da exploração e exclusão social- é parte da relação global capitalista. Esta hierarquização de saberes, juntamente com a hierarquia de sistemas económicos e políticos, assim como com a predominância de culturas de raiz eurocêntrica, tem sido apelidada por vários investigadores de ‘colonialidade do poder’. Uma das expressões mais claras da colonialidade das relações de poder acontece com a persistência da colonização epistémica, da reprodução de estereótipos e formas de discriminação (Meneses, 2008).

A seguir, o pesquisador Aníbal Quijano também elucida sobre as limitações do conhecimento tradicional e suas consequências hegemônicas:

O eurocentrismo não é exclusivamente, portanto, a perspectiva cognitiva dos europeus, ou apenas dos dominantes do capitalismo mundial, mas também do conjunto dos educados sob a sua hegemonia [todos que se encontram no Sul Global]. E embora isso implique um componente etnocêntrico, este não o explica, nem é a sua fonte principal de sentido. Trata-se da perspectiva cognitiva durante o longo tempo do conjunto do mundo eurocentrado do capitalismo colonial/moderno e que naturaliza a experiência dos indivíduos neste padrão de poder. Ou seja, fálas entender como naturais, consequentemente como dadas, não susceptíveis de ser questionadas (Santos e Meneses, 2009, pp. 74-75).

Portanto, Boaventura vai chamar de epistemicídio a supressão de conhecimentos locais perante a dominação de um conhecimento estrangeiro hegemônico, e tal supressão perpassa pelos campos da “história, cultura ou conhecimento, a partir de uma perspectiva e condição de subalternidade” (Menses, 2008, p. 6). Com isso, o cenário atual exige a necessidade de amplificar os critérios do conhecimento no século XXI que de acordo com Maria de Paula Meneses, o “desafio à hegemonia cultural resultou numa abertura à diversidade de saberes” (Meneses, 2008, p. 7), o que significaria para Fúlvio Gomes “que os modos de intervenção no real seriam enriquecidos por um sem-número de tradições epistemológicas até agora ignoradas ou menosprezadas (Gomes, 2012, p. 47).

O próximo passo a ser dado, é entender de acordo com Gomes (2012, p. 48) que em um mundo de ampla diversidade epistemológica não é possível que haja qualquer epistemologia geral, mas que o pensamento pós-abissal conduz a uma ecologia de saberes que significa “o reconhecimento de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico” (apud Ibidem, p. 54); Boaventura completa no seguinte trecho:

O pensamento pós-abissal pode ser sumariado como um aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul. Confronta a monocultura da ciência moderna com uma ecologia de saberes. É uma ecologia, porque se baseia no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em interacções sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a sua autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que o conhecimento é interconhecimento (Santos e Meneses, 2009, p. 44).

Finalmente, fecham-se as teorias das Epistemologias do Sul que representam a inclusão do “máximo das experiências de conhecimento do mundo, incluindo, depois de reconfiguradas, as experiências de conhecimento do Norte” (Meneses, 2008) alargando assim, “uma reflexão mais ampla sobre este mundo tão complexo e divers” (ibidem, 2008, p. 10). Gomes, explica as Epistemologias do Sul fazendo a citação que segue:

Tratase do conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão dos saberes levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica dominante, valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos. A esse diálogo entre saberes chamamos ecologias de saberes (Gomes, 2012, p. 45, apud Santos; Meneses, 2010, p. 7).

Um mundo mais ético socialmente, é um mundo concebido com bens de consumo capazes de transmitirem maior diversidade e pluralidade. E enquanto o design for basicamente centralizado na concepção burguesa branca, patriarcal e eurocêntrica não haverá ecologia de saberes no consumo dos objetos industriais nas sociedades capitalistas. O que causa um empobrecimento da percepção plural do mundo, comportamentos e modos de pensar preconceituosos.

Aplicação das teorias na esfera do design

Apresentadas resumidamente as teorias das Epistemologias do Sul estas serão aplicadas dentro do universo do design. Os projetos que configuram os bens de consumo da sociedade capitalista atual e os próprios objetos industriais, estes são manipulados em sua maioria de modo a estabelecerem relações com a sociedade voltadas para a globalização hegemônica2. De acordo com Santos, globalização é “um conjunto de campos de lutas transnacionais” (Santos, 2002, p. 30), e nestes ambientes onde ocorrem as manifestações dos interesses sejam eles mais humanitários ou capitalistas, locais ou regionais, de igualdades ou de privilégios e assim segue. Importante frisar que são campos de disputas e não de pacificidade: “Definimos globalização como conjuntos de relações sociais que traduzem na intensificação das interações transnacionais, sejam elas práticas interestatais, práticas capitalistas globais ou práticas sociais e culturais transnacionais” (Santos, 2002, p. 36).

É uma grande ilusão acreditar que os objetos industriais produzidos no contexto da globalização hegemônica partem exclusivamente da criatividade dos designers3. Ao contrário de muitos artistas que trabalham sobre grande autonomia e liberdade, os designers trabalham na maioria das vezes seguindo as necessidades e vontades dos fabricantes e estes condicionados às demandas do mercado hegemônico. Outra limitação dos designers é estarem submetidos a ajustarem na maioria das vezes os projetos aos meios de produção seriados, só este fator causa uma enorme diferença de resultado entre um objeto industrial e um objeto artístico (isso não quer dizer que artistas não produzam obras de arte através de objetos seriados). Além disso, existe ainda o fator de que quando se desenvolve um produto industrial complexo como um smartphone ou um automóvel o designer se limitará mais aos aspectos da forma enquanto a funcionalidade se relacionará mais a outras áreas como as das engenharias. Portanto, dentro da relação dialética entre sociedade capitalista vigente e os projetos de design estão incutidos principalmente as estratégias de lucros dos fabricantes que envolvem todo um processo e uma cadeia de produção fabril para atender esta demanda de garantir ou aumentar a lucratividade da qual os designers fazem parte. O interessante é que os próprios fabricantes que muitas das vezes manipulam o gosto e o desejo de compra dos consumidores são também frutos da sociedade na qual estão inseridos, ou seja, não gozam de grande autonomia condicionados que estão às concepções e valores das sociedades capitalistas hegemônicas4:

O design é a linguagem que uma sociedade usa para criar objetos que reflitam seus objetivos e seus valores. Pode ser usado de formas manipuladoras e malintencionadas, ou criativas e ponderadas. O design é a linguagem que ajuda a definir, ou talvez a sinalizar, valor (Sudjic, 2010, p. 49).

Quando não concebem os produtos condicionando os consumidores dentro das concepções e valores tradicionais da sociedade, os fabricantes possuem a capacidade de perceberem o surgimento das transformações sociais e adaptarem seus projetos às novas demandas sem perderem a capacidade de lucrar. Estas transformações podem ocorrer sob perspectivas contra-hegemônicas o que acaba favorecendo o multiculturalismo e consequentemente o desenvolvimento de designs diversificados. Um exemplo interessante é o fenômeno Baby Boom que caracterizou os filhos nascidos depois da Segunda Guerra Mundial e tornaram-se consequentemente um enorme público consumidor nas décadas de 60 e 70 do século XX. Isso provocou uma adequação industrial do design dos produtos para um novo mercado voltado para os jovens de viés político mais progressista que desafiavam os valores hegemônicos daquele período como o movimento hippie.

O que ocorreu de modo geral em 60 e 70 não foi que a contracultura estivesse contra o consumo. Ela era contra a falta de opções, o que acabou por gerar uma mudança qualitativa na produção e na forma de consumir e levou a sociedade a buscar novas formas de expressão. Na verdade, ocorreu um crescimento do consumismo, pois a reposição e a variedade foram exploradas (Silva, 2006, p. 56).

A concepção do que se torna agradável ou desagradável ou do que é aceito e não aceito, e aprofundando dentro das teorias das Epistemologias do Sul do que se torna visível e invisível. Neste ponto cabe uma reflexão. Como seria o design dos produtos que nos rodeiam em um mundo não misógino e não racista? Dentro desta teoria não seria como é concebido atualmente. Por exemplo a noção de brinquedos voltados para as meninas em tons de rosa e de brinquedos voltados para os meninos em tons de azul não existiria. Outro exemplo seria que bonecos e bonecas para crianças não seriam majoritariamente da cor de pele branca e representaria uma pluralidade de tons de pele que englobasse negros, indígenas, asiáticos etc. Portanto, torna-se claro que a aprazibilidade de um design esconde facilmente valores que modelam o comportamento social e ao mesmo tempo alimenta padronizações de valores preconceituosos. Não apenas isso, o design possui a capacidade também de reafirmar as relações entre o mundo regulamentado e emancipado daquele que não é.

Quando se associa mentalmente carros modernos e tecnológicos ao Eixo Norte e fogões à lenha rudimentares e precários ao Eixo Sul fica predeterminado o Eixo Norte como o modelo bom e o Eixo Sul como o modelo ruim. O design torna um modelo do que é bom ou ruim devido aos benefícios pessoais que este é capaz de provocar em termos de conforto, segurança, prazer, facilidade e por aí adiante. E ao mesmo tempo disfarça a realidade de exploração e privação que outros povos ou indivíduos enfrentam para que carros modernos e tecnológicos cheguem aos emancipados e regulamentados.

A sociedade capitalista atual é pautada no acúmulo de capital e uma das maneiras mais eficazes de gerar lucros é estimulando o consumo de produtos. O design é muitas das vezes a linguagem utilizada para causar o desejo de compra dos objetos industriais, portanto o design é um provocador do consumismo. Nesta lógica o melhor design é aquele que é responsável pela maior quantidade de vendas. Quanto mais sofisticado o design maior é a sua capacidade de tornar os produtos adquiridos obsoletos e os novos desejáveis. Portanto, é um aspecto muito eficiente da sociedade capitalista aliado com a publicidade.

O paradoxo e ilusão deste sistema descrito está na sua insustentabilidade. A globalização hegemônica não apresenta muito interesse em modificar as formas insustentáveis de lidar com a extração, produção, transporte, uso e descarte dos produtos. Tudo isso reverbera com o desinteresse das nações mais desenvolvidas em auxiliar as nações mais pobres a se tornarem emancipadas financeiramente; produzindo um grande sistema antiético e de infelicidade, pois os principais atores são conscientes e responsáveis por boa parte do desequilíbrio no qual se encontra o planeta e ao mesmo tempo pelas perspectivas de deterioração da qualidade de vida a longo prazo na qual todos se encontram.

E designs pensados em aumentar a lucratividade com grande eficiência acabam por entrarem neste ciclo insustentável. São os smartphones que solucionam os problemas da vida, o carro do ano, as roupas de marca, a nova pasta de dente, o perfume que a atriz famosa usa, o computador que todos devem adquirir, o shampoo do famoso jogador de futebol; enfim, todos estes produtos descartáveis a curto tempo enquanto deveriam ser usados a prazos longos. Um exemplo interessante é o desperdício de embalagens que só aumenta na sociedade capitalista, os novos padrões de embalagens cada vez menores como as das bebidas somente produzem mais descarte e mais lixo. Sobre este modelo de consumismo do começo do século XXI Sudjic exemplifica:

Como gansos alimentados à força com grãos até seus fígados explodirem para virar foie gras, somos uma geração nascida para consumir. Os gansos se apavoram quando o homem se aproxima pronto para lhes enfiar um funil de metal goela abaixo, enquanto lutamos por nossa vez de chegar ao cocho que nos fornece o dilúvio sem fim de objetos que constituem nosso mundo. Há quem acampe em frente a lojas da Apple para ser o primeiro a comprar um iPhone. Há quem pague qualquer preço para colecionar réplicas de tênis de corrida dos anos 1970. Há até quem use o Bentley Arnage para dizer aos jogadores de futebol da primeira divisão que vale 10 milhões de libras, e não os 2,5 milhões necessários para adquirir um Continental (Sudjic, 2010, p. 6).

Portanto, quanto mais se conhece e se investe e se compreende o design dentro da lógica capitalista, mais distante e incompatível com o desenvolvimento sustentável ele se torna, e desenvolvimento sustentável se refere não somente ao aspecto ambiental como também social. Este é o paradoxo e a ilusão da sociedade capitalista em relação ao design do início do século XXI.

Segundo Carlo Vezzoli e Ezio Manzini em 1987 durante a World Commission for Environmet and Development (WCED) foi preparado um documento intitulado Our Common Future e assim era introduzido o conceito de desenvolvimento sustentável que corresponde às necessidades do presente sem comprometer as futuras gerações dentro das possibilidades de suas necessidades. Portanto, foi estipulado um princípio fundamental ético, a responsabilidade das gerações de hoje em relação àquelas de amanhã (Vezzoli e Manzini, 2007, p. 9). Como é possível perceber, há algumas décadas que a sociedade capitalista atual possui o conhecimento da necessidade de haver responsabilidade socioambiental e a continuidade de práticas que vão contrárias a este caminho são causadoras de enorme infelicidade para as futuras gerações e de uma sistematização de designs insustentáveis.

Entretanto, os novos comportamentos sociais alimentados pela utilização de objetos industriais que estimulam a consciência e a atitude ética no âmbito social e ambiental representam um novo modelo ou sistema de design contra hegemônico. Progredindo neste âmbito é possível avançar para além da deterioração e do desequilíbrio no qual a sociedade capitalista atual chegou. O mundo de objetos que rodeiam uma pessoa pode estimular o comportamento desta em duas direções, uma para o egoísmo e a competição e a outra para a alteridade e a colaboração ou, uma para a desigualdade de renda, a misoginia e o racismo e a outra para equidade financeira, dos sexos e das raças. Existem dois modelos de projetos, um que culmina no avanço da deterioração socioambiental e o outro que se opõe a esta corrente e avança no campo da emancipação e equidade, contudo apenas o segundo modelo apresenta soluções a longo prazo para a melhoria do bem-estar da sociedade e do planeta. O avanço científico, social e ambiental que ultrapassa a (linha abissal) na qual se encontra a sociedade capitalista da atualidade culmina em base da ética necessária para a continui-dade da vida e do bem-estar no globo. E ética mais liberdade, qualidade de vida e expansão de consciência são ingredientes impossíveis de serem alcançados sem avançar no caminho dos comportamentos sociais sustentáveis. Sendo assim, existe a necessidade de desenvolver designs sob perspectivas contra hegemônicas que produzem ou alimentam comportamentos que dialogam com a continuidade da vida no planeta e do equilíbrio social5.

A cultura do design como retrato da cultura de um país

Autores como Andrea Branzi associam a história do design aos períodos anteriores à Revolução Industrial conectando-a à própria história dos objetos dentro da Itália (Branzi, 2008, pp. 10-11). Construindo assim uma historiografia do design ligada à antropologia e à arqueologia nacional. O designer gráfico brasileiro Rogério Duarte apresenta uma colocação simples e inteligente que complementa o assunto: “O fato dos primeiros tipos terem copiado as formas da caligrafia indica apenas o que referimos no início, seja a impossibilidade da indústria possuir um repertório próprio de formas” (Duarte, 1965, p. 228). Portanto, não faz realmente muito sentido desvincular a história dos objetos industriais dos artesanais, pois a origem de todo objeto industrial está diretamente ligada a um antecedente artesanal e a uma cultura específica que por exemplo distingue um jarro de cerâmica Maia de um Inca.

Entretanto, autores como Beat Schneider entendem que o design é uma atividade que surge durante a Revolução Industrial e que consequentemente compõe o universo dos objetos industriais (Schneider, 2010, pp. 16-17). Deste modo, o design é visto como uma área particular dos países que se industrializaram e seu primórdio restrito a determinados países da Europa como a Inglaterra e França. Portanto, de início, é possível perceber ambiguidades teóricas quanto à cultura do design ligado à nacionalidade, à territorialidade e à temporalidade.

O fato é que existe um problema de nomenclatura, pelo menos na língua portuguesa, os objetos sejam eles artesanais ou industriais são desenvolvidos dentro de uma concepção projetual e anterior ao conceito está o indivíduo que os desenvolvem, este por fim carrega sua bagagem cultural associada em boa parte à sua identidade nacional. Contudo, o fenômeno da globalização que intensificou com a Revolução Industrial foi responsável por desenvolver e distribuir objetos industriais pelo mundo de maneira impactante e abundante sobre países e culturas locais nunca almejado pelos objetos artesanais, sendo que muitos destes foram extinguidos. Portanto, se o artesanato e o design fossem as mesmas palavras é provável que ficaria mais fácil de entender historicamente o momento no qual esta atividade projetual, associada aos objetos seriados, sofreu uma enorme transformação e revolução a partir do desenvolvimento e a expansão das indústrias.

Uma indústria predominantemente francesa, inglesa ou italiana por mais familiaridades que possa haver: segmento de mercado, tecnologia, infraestrutura, capacidade de produção etc. Entretanto, possuem uma bagagem cultural nacional que as tornam distintas. Isso pode vir a diferenciar desde a localização territorial da fábrica em determinada cultura do país, até pela nacionalidade dos designers que concebem os produtos e a nacionalidade dos fabricantes que podem vir influenciar o resultado final da formulação dos projetos, e justamente por isso, que é possível dizer que existe um design italiano, um design alemão, um design japonês, um design americano etc. Como também é possível definir as artes e as arquiteturas em aspectos de nacionalidade e territorialidade.

Branzi vai dizer que a essência do design italiano contemporâneo, reconhecido principalmente na segunda metade do século XX associado a um sistema particular entre sociedade e indústria, conserva um imprinting genetico que o diferencia dos outros países mesmo que a globalização atual tenha dissolvido aparentemente os valores nacionais (Branzi, 2008, p. 12). A lógica de Branzi pode ser aplicada em diversos países, pois a maioria deles possuem tradições culturais locais que influenciam a forma de conceber e de criar dos indivíduos e do grupo social de modo entrelaçado com a indústria.

Contudo, os países do Eixo Sul que passaram por um processo de industrialização tardio tendem a encontrar maiores dificuldades para implementar o imprinting genetico uma vez que, assumem um maior papel de receptores da cultura e dos produtos industrializados do Eixo Norte. O famoso designer brasileiro Aloísio Magalhães constrói uma reflexão importante relacionada a essa questão:

Será que a nação brasileira pretende, ao longo desta sua trajetória projetiva... será que a nação brasileira pretende desenvolver-se no sentido de se tornar uma nação rica, uma nação forte, poderosa, porém uma nação sem caráter? Será que o objetivo do chamado processo de desenvolvimento é somente o

crescimento dos benefícios materiais, o aumento de uma ilusória alegria e felicidade do homem através dos seus bens e dos seus elementos de conforto material? Ou, ao contrário, o verdadeiro processo, o verdadeiro desenvolvimento de uma nação baseia-se em, harmonicamente, dar continuidade àqueles componentes que lhe são próprios, aos indicadores do seu perfil ou da sua fisionomia e, portanto, de sua identidade? (Magalhães, 1997, pp. 45-46).

O pesquisador Cardoso, apresenta esta tensão entre a cultura local e a cultura internacional, Eixo Norte, como parte do processo da Globalização Neoliberal que se consolidou no período pós-Guerra:

O resultado a longo prazo dessa internacionalização econômica sob o patrocínio dos estados nacionais [hegemônicos] tem sido previsivelmente híbrido. A tensão entre ideologias nacionalistas e internacionalistas, que já se anunciava na primeira metade do século 20, vem suscitando ao longo dos anos situações bastante paradoxais e contradições quase perversas em termos políticos, sociais e culturais, com repercussões significativas para a área do design (Cardoso, 2000, p. 154).

E uma das perversidades deste sistema são as concentrações de renda que não favorecem nos países de Eixo Sul e suas indústrias locais, uma vez que as elites são direcionadas a consumirem os objetos industriais da cultura internacional o que acaba provocando um desequilíbrio econômico como explica Celso Furtado:

A concentração de renda corresponde, digamos, à necessidade de se fabricarem automóveis de luxo. Estes, por sua vez, têm um custo em divisas muito elevado, pois vários de seus componentes são importados. Assim, boa parte do setor industrial se deforma para produzir artigos de luxo e essa transformação é duplamente perversa, pois os produtos de alto conteúdo de divisas agravam a tendência do País à escassez de divisas. De um lado, piora a concentração da renda, de outro, piora o desequilíbrio externo. [...] Quando o custo em divisas aumenta mais do que a própria renda nacional, criase o desequilíbrio externo, que torna o país vulnerável (Furtado, 2006, pp. 19-20).

No cabo de força do consumo dos objetos industriais entre Eixo Norte e Eixo Sul, as indústrias do Eixo Norte acabam levando maior vantagem em muitos segmentos de mercado devido à melhor capacidade tecnológica e impondo seus valores culturais através do design de seus produtos e, consequentemente, enfraquece a identidade cultural dos países do Eixo Sul, limitando o imprinting genético dos objetos industriais que compõem a vida dos indivíduos localizados no Eixo Sul ao universo cultural dos países hegemônicos.

Gui Bonsiepe afirma que os países hegemônicos possuem pouco interesse no crescimento do design vinculado à indústria nos países não hegemônicos, sendo assim, os países do Eixo Norte dificultam político e economicamente os outros países a subirem os degraus sobre os quais os países desenvolvidos já alcançaram para que não se tornem futuros concorrentes (Bonsiepe, 2008, p. 14). Os acordos políticos e econômicos que surgem do capitalismo Neoliberal como o Fundo Monetário Internacional-FMI é um exemplo de medida para a manutenção do atraso e não desenvolvimento dos países do Eixo Sul: “O FMI é um fantasma usado por nações poderosas para que as indefesas não tenham uma política própria” (Furtado, 2006, p. 21).

Sobre essas questões Schneider ratifica: “A prática do design na periferia [Eixo Sul] segue, em grande medida, preceitos estilísticos e normas que são importados das culturas ocidentais europeias (e em parte dos EUA)” (Schneider, 2010, p. 237). São os vestuários impressos com palavras e frases estrangeiras, a maioria em inglês, são as bonecas e os bonecos de brinquedos com tonalidade de pele clara ocupando exclusivamente as vitrines das lojas em países cuja população é majoritariamente negra, são as árvores sintéticas de natal e seus enfeites que representam a fauna e os animais de países do Norte, é o mobiliário que segue o chamado “Estilo Internacional” e não apresenta qualquer ligação com os móveis artesanais locais, são os objetos de decoração baseados em temas estrangeiros como a Torre Eiffel e a Estátua da Liberdade que se sobrepõem aos símbolos culturais locais, é o design das cozinhas que mimetizam e são pensados de acordo com os hábitos culinários Norte americanos, etc.

Diante deste contexto de importação cultural do Eixo Norte para o Eixo Sul torna-se importante salientar a importância e relevância de movimentos que contrariam este modelo de desapropriação da cultura nativa e o foco dado é para a América Latina e direcionado ao Brasil.

A pós-graduação em design na América Latina

Realizar o levantamento dos cursos é tarefa complexa, dada a diferença na concepção e percepção da pós-graduação nos países vizinhos. Diversos cursos que entendemos como especialização, devido à carga horária de cerca de 360 a 400 horas, são considerados programas master. No entanto, a distribuição por áreas de pesquisa denota os caminhos da pesquisa no continente.

Figura 1 Distribuição por linhas de pesquisa na América Latina (Fonte: dos autores). 

Tecnologia, inovação e materiais são as áreas com maior concentração de linhas de pesquisa. Pode-se perceber o interesse dos países em relação às políticas de desenvolvimento que têm o design como ferramenta estratégica.

Na atual fase de transição da era industrial para a era do conhecimento e da criatividade, o design passou a ter papel cada vez mais relevante como suporte para melhorar o bem-estar social e o desenvolvimento urbano. A abordagem do design tem sido usada para promover qualidade de vida e facilitar interações entre os aspectos econômicos, tecnológicos, sociais, culturais e ambientais da sociedade contemporânea. Consequentemente, o design inovador passou a ser um elo catalisador para a elaboração de estratégias de desenvolvimento que sejam mais adaptadas à realidade do século XXI e melhor respondam às suas necessidades (Duisenberg, 2015, p. 9)

Em comparação ao Brasil, percebe-se como os demais países latino-americanos trabalham suas linhas de pesquisa:

Figura 2 Comparativo entre as linhas de pesquisa na América Latina (Fonte: dos autores). 

Podemos inferir que a pesquisa em Design no Brasil, pelo fato de ter programas mais antigos, dada também sua extensão territorial, possui mais tradição e um maior incremento no desenvolvimento de pesquisas voltadas para os setores estratégicos que envolvem a tecnologia, inovação e materiais. Faz-se necessário um estudo que permita levantar a existência de políticas públicas nos demais países para o fomento à pesquisa em design em nível acadêmico. O Brasil, até 2018 contava com os órgãos tradicionais de fomento (CAPES, CNPq, FINEP, FAPEMIG), assim como o apoio da Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos - Apex-Brasil). No entanto, as mudanças na política brasileira que vêm ocorrendo desde a posse do novo governo, não nos permitem pensar em um futuro promissor para o campo do design, principalmente nos aspectos socioculturais.

Considerações Finais

Os principais desafios na pós-graduação em design no país refletem, portanto, a evolução no pensamento do design, o amadurecimento no campo e apontam os novos desafios que se descortinam num cenário em que as mudanças vêm se constituindo cada vez mais rapidamente. O ritmo acelerado dos processos tecnológicos e sociais determina também a necessidades de atualização e aprimoramento dos conhecimentos, o que nos leva a referendar a importância da pesquisa e da criação de redes no continente latino-americano.

Mas, o que se faz mais urgente, para além do incentivo financeiro e tecnológico, é a tomada de consciência dos pesquisadores e docentes frente às características culturais de nosso continente. Enquanto o design latino-americano continuar se pautando pelos moldes hegemônicos eurocêntricos, seremos apenas mais repetidores. Um dos aprendizados da atual crise mundial que estamos vivendo em decorrência da pandemia que se instaurou, é justamente nossa capacidade de reconhecer em nossos países os elementos culturais que nos formaram. Se pode existir algo de bom na situação atual é a possibilidade que temos de nos reinventar. E agora, talvez, com os olhos voltados para o que realmente somos: latino-americanos. E cabe a nós, docentes e pesquisadores, sermos os braços que conduzem os remos desse processo.

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio recebido.

Bibliografía

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1É uma teoria complexa do filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel publicada em 1807 e considerada uma das grandes teorias filosóficas universais. O conceito de Bildung, formação cultural, da Fenomenologia que está sendo utilizado no subcapítulo para explicar a fluidez da historicidade.

2Pode ser entendida como o conjunto de políticas econômicas neoliberais que intensificam o desequilibro socioambiental desde a escala local até em nível planetário.

3O entendimento aqui é dentro do quadro dos objetos industriais produzidos em maior escala e por companhias ou fábricas com capacidade de produção para abrangência nacional e ou internacional. Contudo, mesmo que a produção parta da self-production ou de designers autorais, o designer está muita das vezes restrito a projetar dentro dos elementos que compõem o habitus dos grupos sociais como Berwanger apontou na citação do capítulo um, e o habitus, mesmo que se distingue nas categorias, está em grande parte circunscrito à hegemonia cultural.

4Santos distingue quatro grandes tipos de capitalismos vigentes: o capitalismo mercantil, o capitalismo mesocorporativo, o capitalismo social-democrático e o capitalismo estatal. Estes tipos de capitalismo estão em profunda interação e o autor aponta para uma maior evolução do capitalismo mercantil que é predominante nos Estados Unidos (SANTOS, 2002, p. 32-36).

5Este argumento não desconsidera os embates dos quais as sociedades vivenciam entre os interesses das organizações de cunho humanitário e os interesses das organizações de cunho capitalista, como Santos explica o fenômeno da globalização é este grande campo de lutas.

Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 01 de Agosto de 2020; : 01 de Setembro de 2020

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