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Cuadernos del Centro de Estudios en Diseño y Comunicación. Ensayos

versión On-line ISSN 1853-3523

Cuad. Cent. Estud. Diseñ. Comun., Ensayos  no.122 Ciudad Autónoma de Buenos Aires set. 2023  Epub 23-Sep-2023

 

Articulo

Sentidos políticos da brincadeira do Cavalo Marinho: criando um novo espaço de possíveis

Mariana Oliveira1 

1 Graduada em Direção Teatral pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Licenciatura em Educação Artística pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutora em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cêni-cas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGAC-UNIRIO). Professora adjunta de Teatro do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CAp-UERJ).

Resumo

O artigo propõe-se a abordar a brincadeira do Cavalo Marinho, manifestação es-tética e espetacular de canavieiros da zona da mata norte pernambucana, questionando-se acerca de seus sentidos políticos. Para tanto, procura articular discursos dos participantes, observações de apresentações do gênero e análise da estética da brincadeira, fruto de tra-balho de campo realizado entre os anos de 2002 e 2005, com conceitos elaborados pelo filósofo Jacque Rancière. Organizada em tópicos (a re-partilha do sensível, as relações de poder em jogo, o contexto da brincadeira e o regime estético das artes) a reflexão aponta para quatro dimensões políticas, com destaque para a reconfiguração do espaço de possí-veis provocada pelo brincar.

Palavras chave: Cavalo Marinho; Jacques Rancière; Política; Partilha do sensível; Regime estético das artes; Teatro.

Resumen

El artículo se propone abordar la brincadeira del Cavalo Marinho, manifestación estética y espectacular de cultivadores de caña de azúcar de la zona de la mata norte pernambucana, cuestionándose sobre sus sentidos políticos. Con el fin de hacerlo, busca articular discursos de los participantes, observaciones de presentaciones del género y aná-lisis de la estética de la brincadeira, fruto de trabajo de campo realizado entre los años 2002 y 2005, con conceptos elaborados por el filósofo Jacque Rancière. Organizada en temas (la re-división de lo sensible, las relaciones de poder en juego, el contexto de la brincadeira y el régimen estético de las artes), la reflexión apunta a cuatro dimensiones políticas, con destaque para la reconfiguración del espacio de posibles provocada por el brincar.

Palabras clave: Cavalo Marinho; Jacques Rancière; Política; Reparto de lo sensible; Régimen estético de las artes; Teatro.

Summary

The article proposes an approach to the brincadeira of Cavalo Marinho, an aesthetic and spectacular manifestation of sugarcane growers from the north of the forest zone of Pernambuco, questioning about its political senses. In order to do so, it seeks to articulate participants’ discourses, observations of presentations of the genre and analysis of the aesthetics of the brincadeira, result of fieldwork carried out between 2002 and 2005, with concepts elaborated by the philosopher Jacque Rancière. Organized in topics (the re-distribution of the sensible, the power relations at stake, the context of the brincadeira and the aesthetic regime of art), the reflection points to four political dimensions, highlighting the reconfiguration of the space of possibles provoked by the brincar.

Keywords: Cavalo Marinho; Jacques Rancière; Politics; Distribution of the sensible; Aesthetic regime of art; Theatre.

Cavalo Marinho, manifestação estética

Manifestação estética e espetacular que envolve dança, poesia, música e dramatizações, o Cavalo Marinho pode ser visto especialmente nos períodos dos festejos natalinos e de ano novo na zona da mata norte pernambucana. Prática de canavieiros da região, é por eles de-signado como brincadeira, noção que envolve o sentido de diversão, tanto para quem faz quanto para quem assiste. Assim, há a preocupação de que o brincador tenha um domínio técnico específico (as pisadas do samba, as loas a serem ditas, as toadas a serem cantadas, as figuras a serem colocadas). O espetáculo pode durar até cerca de oito horas, adentrando a madrugada até romper o dia, tendo em seu repertório mais de setenta figuras (ou perso-nagens), entre elas o Mateus e o Capitão.

“Peça melindrosa”, conforme descrição de Mestre Mariano Teles, o Cavalo Marinho cons-titui objeto difícil, vasto, de limites imprecisos, dinâmico, que está sempre escapando às definições e contradizendo as compreensões que procuram se sedimentar. O que apre-sentaremos a seguir é fruto de uma pesquisa de mestrado1 que incluiu, entre os anos de 2002 e 2005, viagens exploratórias e de trabalho de campo no estado de Pernambuco, es-pecialmente na cidade de Condado, hoje designada como terra do Cavalo Marinho. Além da observação e registro de apresentações do gênero, as viagens possibilitaram contato e entrevistas com brincadores e mestres, entre eles Sebastião Pereira de Lima (Martelo) e Mariano Teles Rodrigues.

Neste artigo, buscaremos tecer uma nova abordagem do assunto, buscando refletir acerca de quatro possíveis sentidos políticos envolvidos nessa manifestação estética. Lançando mão de alguns conceitos elaborados pelo filósofo Jacques Rancière (2009), organizaremos a discussão nos seguintes tópicos: a re-partilha do sensível, as relações de poder em jogo, o contexto da brincadeira e o regime estético das artes.

A re-partilha do sensível

Uma das dimensões políticas da arte, para Rancière, estaria imbricada na partilha do sen-sível, noção que estabelece a existência de um comum partilhado e, ao mesmo tempo, de partes exclusivas.

O animal falante, diz Aristóteles, é um animal político. Mas o escravo, se com-preende a linguagem, não a “possui”. Os artesãos, diz Platão, não podem par-ticipar das coisas comuns porque eles não têm tempo para se dedicar a outra coisa que não seja o seu trabalho. Eles não podem estar em outro lugar porque o trabalho não espera. A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa ativida-de se exerce (Rancière, 2009, p. 16).

Rancière articula, por meio de Aristóteles, a possibilidade de construir e emitir discur-sos com a possibilidade de participação no comum, ou seja, a politicidade humana. E esclarece a constituição de partes exclusivas e excludentes nesse processo a partir de uma configuração de trabalho que absorve todo o tempo, tornando impossível o estar em outro lugar, o fazer outra coisa. Dessa maneira é que se daria o “encarceramento do trabalha-dor no espaço-tempo privado de sua ocupação, sua exclusão da participação ao comum” (Rancière, 2009, p. 64).

Haveria, entretanto, saídas para esse enclausuramento. A arte teria a potência de propor interferências, perturbações e deslocamentos na partilha do sensível. O fazedor de míme-sis, mencionado por Platão, por exemplo, seria o homem do duplo, ao fazer duas coisas ao mesmo tempo. Outro exemplo seria a prática, estudada por Rancière, de um grupo de operários (artesãos, sapateiros, alfaiates, tipógrafos) na França da primeira metade do século XIX, que se reuniam à noite para se dedicarem à leitura e à escrita, escapando à ordenação temporal do mundo que os obrigava a trabalhar durante o dia e a descansar durante a noite para recobrarem as forças produtivas.

No caso do Cavalo Marinho, vemos situação análoga. Ao se dedicarem a essa manifes-tação espetacular, os brincadores (originalmente escravos, hoje agricultores canavieiros ou trabalhadores dedicados a outras funções, em geral manuais) interferem, portanto, na partilha do sensível hegemônica, que tenta prendê-los à função do trabalho. Em seu fazer, eles propõem, portanto, uma re-partilha do sensível. Tomemos a questão a partir de uma visada sobre o processo de formação da brincadeira, isto é, do levantamento de suas origens, trazendo à baila a apresentação que fez sobre o assunto Mestre Mariano Teles:

Quando veio o Cavalo Marinho pro Brasil era de senzala. Ele saiu de senzala, na época que o Cavalo Marinho brincava, que começou brincar mais escondi-do do rei, se chama sinhô e sinhá porque são os povo branco que comandava a corte e os Cavalo Marinho vivia brincando os nego escondido. Depois, o Capitão do Mato viu, reconheceu e avisou para sinhô e sinhá que tinha nego brincando escondido. Num tava querendo trabalhar. Tava se escondendo pra brincar. (...) denunciar como era aquela brincadeira que ele queria ver. Se ele não se agradasse, ia pro tronco, ia apanhar. E tinha aquela nega de cozinha...

que o racismo nunca acabou (...) branco é branco, o negro é negro. Pois bem, eles pegaram aqueles negro, viram que os negro dava pra brincar, fizeram al-forria dos negro, os negro teve que representar com a família do Capitão e do rei. Brincar junto. Um respeitando o outro. E aqueles dois Mateu e a Catirina quem tomava conta do povo tudinho. Quando eles fugia, tinha aquele Capitão do Campo, outros chamam Bode, outros chamam Bicho Medonho. Quando eles fugia (...) matulão, aquilo era a mudança dele (...) ele se tacava no meio do mundo e se escondia (...) o Capitão chegava e mandava buscar. Trazia lapeado no pau para eles virem pra trabalhar na cultura da fazenda. Aí o Cavalo Mari-nho representou como era também (...) O Capitão mandou chamar o Soldado (...) (Entrevista, 31 de dezembro de 2004).

Nessas palavras de Mestre Mariano, encontramos a estrutura comum às versões mais di-fundidas entre os brincadores acerca das origens do Cavalo Marinho, podendo apresentar variações dependendo do sujeito que fala. Aí vale notar, antes de tudo, justamente o deslo-camento na partilha do sensível apresentada por Rancière, e, neste aspecto, a tensão entre trabalho e brincadeira. O lugar, o tempo e a atividade reservados aos escravos eram os do trabalho, eles estavam interditados de participar deste comum que era a brincadeira, essa manifestação estética.

Interessante, ainda, destacar um aspecto adicional à questão da re-partilha do sensível que a fala do mestre evidencia: é que ela não se dá de maneira harmoniosa e tranquila, mas conflituosa e violenta (o brincar escondido, a denúncia do brincar, a necessidade de agradar os brancos à pena de apanhar no tronco, as fugas e as capturas dos negros à base do chicote para serem jogados de volta ao trabalho). Sob esse ponto de vista, operar o deslocamento na partilha do sensível não é fácil e não deve ser descrito sob a égide de ideias simplificadoras tais como espontaneidade ou naturalidade. Aliás, ainda nos tempos atuais, podemos encontrar dificuldades significativas interpostas ao brincar. O desempre-go, a falta de dinheiro e de perspectivas de melhorias nas condições de vida, o abandono por parte do Estado eram, no período do trabalho de campo, fatores bastante presentes nas preocupações de brincadores. Por exemplo, Martelo, que performava o Mateus, não raro ameaçava “deixar o folclore” dadas as dificuldades financeiras e de reconhecimento que enfrentava. Dizia que, pelo que já fizera, merecia “um prédio” no lugar da casa de pau e barro que habitava ou, ao menos, um “salário mínimo”.

Vale a menção aqui à criação na região, pouco após o período de pesquisa de campo, de alguns Pontos de Cultura, isto é, centros de reunião de grupos, coletivos ou entidades que recebiam financiamento do governo federal a partir de uma política pública lançada em 2004 pelo Ministério da Cultura, sob a gestão de Gilberto Gil. Incentivando e dinamizando as práticas culturais locais, alguns desses pontos previam oficinas de Cavalo Marinho para a comunidade, ajudando, assim, na re-partilha democrática do sensível, dando a chance para que os brincadores pudessem tomar parte no comum. Conforme Rancière (2009):

A partilha democrática do sensível faz do trabalhador um ser duplo. Ela tira o artesão do ‘seu’ lugar, o espaço doméstico do trabalho, e lhe dá o ‘tempo’ de estar no espaço das discussões públicas e na identidade do cidadão deliberante (p. 65).

Relações de poder em jogo

Além da re-partilha do sensível, explorando a fala de Mestre Mariano Teles sobre as ori-gens do Cavalo Marinho, encontramos um segundo sentido político do Cavalo Marinho. Chamamos a atenção, então, para as relações de poder colocadas em jogo. Vamos focar no exercício de poder violento de brancos sobre negros, decorrente do sistema escravista brasileiro, com a tensão entre a classe dos escravos, de um lado, e as dos senhores, de outro. Nessa oposição, vale notar a localização das origens do Cavalo Marinho secretamente nas senzalas, trazendo à tona o significado da brincadeira como resistência cultural e memória coletiva de uma população historicamente oprimida. A denúncia do racismo e da separa-ção entre brancos e negros ainda hoje também vêm, na fala do mestre, atrelada à história da brincadeira. Em evento que reunia diversos grupos de Cavalo Marinho, anualmente promovido por Mestre Salustiano na Casa da Rabeca, Cidade de Tabajara, Olinda, Mestre Mariano também afirmou:

É brincadeira de negro, nunca foi dos brancos. Os brancos não gostavam do Cavalo Marinho. (...) os negros sambavam a pulso para o senhor da senzala. (...) o Capitão Marinho e o Capitão de Campo pisavam os Mateus, botavam eles pra trabalhar; quando eles fugiam, que achavam o serviço pesado, volta-vam lapeados para a fazenda (Palestra, 25 de dezembro de 2004).

Figura 1 Martelo como Mateus em apresentação do brinquedo de Mestre Biu Alexandre, na rua principal. Condado, Pernambuco, em 01 de janeiro de 2005. Fotógrafa: Mariana Oliveira. 

Na relação desigual de poder que marcou o processo formativo do Cavalo Marinho, os brincadores têm uma posição definida; e a brincadeira é expressão que a eles pertence. Interditados de elaborar e emitir discursos, de tecer manifestações estéticas, eles o fizeram de modo singular. Como prática de resistência daqueles que falam sem autorização, que subvertem a partilha do sensível dada, a brincadeira parece ter articulado conflitos, ten-sões e violências de maneira tática, um pouco no sentido das maneiras de fazer de Michel de Certeau (1999).

Na análise dos discursos de Mestre Mariano, notamos um aspecto profundamente ins-tigante: a sobreposição de tempos e sujeitos do âmbito do real, pertencentes à história de formação da brincadeira, e tempos e sujeitos ficcionais, pertencentes ao universo da brincadeira e de sua trama. Por exemplo, os escravos criadores do Cavalo Marinho se confundem com a figura de Mateus, protagonista da história contada. Essa sincronia de tempos e sujeitos, aliás, é uma constante na brincadeira. Numa apresentação do gênero, após algumas etapas iniciais de abertura, com música e dança, podemos identificar uma espécie de enredo que costuma se repetir de modo mais ou menos uniforme dependendo do grupo, iniciando-se com a chegada de Mateus na roda2 do Capitão do Cavalo Marinho. Mateus (Figura 1) é um negro escravo liberto que ficou sob a proteção do patrão, a quem deve confiança, ou, em outras versões, um escravo fugido; pode ser, ainda, um trabalhador rural do tempo do sistema de morada ou um cortador de cana que hoje trabalha para as usinas. Assim é que as respostas entre brincadores acerca da remuneração que recebe por seu trabalho variam, podendo ser que, sim, ganha alguma coisa ou que, ao contrário, só “recebe pêra na cara, lama, empurrão” (Martelo, entrevista, 28 de dezembro de 2003).

Na fala de Mestre Mariano, vemos também a mistura entre as capturas violentas dos escra-vos fugidos pelos chamados capitães do campo, ou do mato, com a aparição, em determi-nado momento da brincadeira, das figuras dos Bodes3 que, arrastando uma das pernas no chão como touros, abusam, isto é, provocam, chateiam e até aterrorizam Mateus, gritando em seus ouvidos, batendo as espadas no seu chapéu e botando-o para correr. Dependendo do grupo e da apresentação, a aparição dessas figuras ocorre ao mesmo tempo em que se dá o Baile, feito pelo Capitão do Cavalo Marinho e sua família, que, em meio a louvores a Jesus Cristo, com cantos melodiosos e calmos, ignoram o que se passa em volta.

A menção que faz o mestre à nega da cozinha também é ambígua porque, ao mesmo tempo em que parece designar uma personagem que atuou na constituição da brinca-deira, pode se referir a uma toada que diz: “Marieta dança, eu não sei dançar. Meto-lhe a macaca, ela dança já”. O “sambar a pulso para o senhor da senzala” parece aí representado. A repressão real aos brincadores também parece ser a referência para passagens como a do Soldado, chamado pelo Capitão para prender Mateus, e a do Empata-Samba, que vem pra proibir a música e a festa.

Ou seja, num procedimento de sincronia e metalinguagem, o Cavalo Marinho, em seu enredo, parece falar de seu próprio processo formativo, de seu contexto cultural, das pró-prias relações de poder que aí estiveram em jogo. Uma maneira tática de tratar assuntos espinhosos para quem era proibido mesmo de falar. De fato a tática, voltando à noção de Certeau, seria uma espécie de drible nos termos dos contratos sociais, envolvendo sutileza, astúcia e esperteza. O caso da figura de Mateus é exemplar nesse sentido.

Segundo o brincador Martelo, especializado no Mateus, esse usa uma fala “embaraçada, atravessada”, é “fanhoso”, “tem que falar grego, gregado, griguim, greguei” (entrevista, 30 de dezembro de 2004). Os artifícios de linguagem zombeteiros, ou puias, isto é, piadas com trocadilhos em geral de sentido sexual, são muito característicos da brincadeira. Por exemplo, no diálogo de Mateus com o Capitão, quando aquele chega à roda e vai acertar a empreitada: “Capitão mandou me chupar?” O outro responde: “Mandei lhe chamar!” E, em seguida, após a chegada de Bastião, pareia4 de Mateus: “Ói, Capitão, este aqui é parente meu. Vem viajado, enfadado, cansado. O ôio de um é o butico do outro. Capitão, aceite o parente em sua roda!” Atento, o Capitão especifica: “Na roda do terreiro!” A brincadeira parece se constituir, assim, como espaço onde hierarquias podem ser subvertidas.

O Capitão, aliás, figura de poder que corresponde ao patrão ou ao senhor de engenho, aparece como trapaceiro em diversos momentos, quando, por exemplo, diz não conhecer o Pataqueiro, um homem com quem fez uma troca desonesta de cavalos e de quem procu-ra se esquivar ou quando não paga as diversas dívidas que acumula. Acerca disso, Martelo comenta: “Capitão paga a ninguém, paga?” (entrevista, 30 de dezembro de 2004).

Assim, a brincadeira, considerando as relações que coloca em jogo, constitui um lugar onde é possível que o lado subjugado assuma uma posição de grande poder, especialmente pela dimensão de criação, construção e invenção de mundo que pertence ao brincar. Nesse sentido, torna-se significativa a fala de Martelo quando diz que em cinco minutos pode fazer uma casa que o pedreiro passa quinze dias para erguer. Como? Na loa:

Com 10, peguei na casa

Com 20, finquei esteio

Com 30, cheguei no meio

40, fiz uma pausa

50, ninguém me atrasa

60, obra singela

70, porta e janela

80, a ripa eu amarro

90, bati o barro

Com 100, eu tô dentro dela

(Martelo, entrevista, 28 de dezembro de 2003)

Ele começa do alicerce, deixa a casa pronta, mora nela e, ainda, ele mesmo a bota abaixo se quiser, dizendo os versos no sentido contrário. Trata-se, mais uma vez, de uma atividade tática, ou seja, uma maneira de exercer uma espécie de poder sobre uma realidade assen-tada num sistema de relações entre poderes extremamente desiguais.

O contexto da brincadeira

A loa fornecida por Martelo é emblemática, ainda, ao pensarmos o contexto social do Cavalo Marinho, em que o direito à moradia representa questão muito significativa. Nes-te ponto, localizamos um terceiro aspecto político da brincadeira. A cidade de Conda-do dividia-se, à época do trabalho de campo, em duas áreas principais, uma com melhor infra-estrutura (por exemplo, a rua principal, onde ficavam a prefeitura e a igreja) e outra com condições mais precárias (loteamentos ou invasões Novo Condado, Zé Dourado e São Roque), onde conviviam casas de alvenaria e de pau e barro. Nessa segunda região é que moravam os brincadores, especialmente em Novo Condado. Lá, a rua da caixa d’água era de paralelepípedos, mas as transversais eram de terra e possuíam sérios problemas de saneamento básico: as casas não costumavam ter água encanada, mas poço, e nenhuma de-las possuía esgotamento (usava-se fossa), o que fazia com que houvesse pequenas valas ao longo das ruas por onde corria constantemente a água da cozinha e do banho (Figura 2). Podemos entender a constituição desse tipo de cidade na zona da mata norte a partir do estudo de Lígia Sigaud (1979) sobre os trabalhadores da cana-de-açúcar de Pernambuco. Conforme a autora, na região, após a abolição da escravatura, prevaleceu o sistema de morada, em que o trabalhador dispunha de um pedaço de terra dentro do engenho, o sítio, para morar e manter sua própria plantação de subsistência, oferecendo em troca sua força de trabalho.

Entre proprietário e morador estabeleciam-se relações tradicionais de confiança, perso-nalistas e exclusivas que implicavam direitos e obrigações. O rompimento dessas relações, por qualquer motivo, como abuso de poder por parte do patrão, podia provocar o aban-dono de um engenho e a busca de outro. Aliás, no enredo do Cavalo Marinho, Mateus, antes de chegar à roda do Capitão, está peregrinando, com seu matulão5 às costas, sem emprego, talvez fugindo de um mau patrão. Ao longo da apresentação, mostra-se bastante fiel ao novo chefe, protegendo-o mesmo quando esse trapaceia ou nega dívidas acumula-das. Como diz Martelo, “se o Capitão é o senhor do Mateus, se ele não defender o Capitão, como é que fica? Ah, não fica tudo desmantelado?” (entrevista, 30 de dezembro de 2004). Em meados da década de 1950, a penetração do capitalismo no campo teria forçado rup-turas definitivas das relações tradicionais e do sistema de morada. A organização dos tra-balhadores e o poder das usinas teriam contribuído para a expulsão dos moradores dos engenhos que passaram a formar pequenos aglomerados urbanos, chamados ruas. Esse processo se intensificaria na década de sessenta, com os estatutos de defesa dos direitos do trabalhador rural e, principalmente, após o golpe de 1964 (Sigaud, 1979). Durante o trabalho de campo, em viagem a Macujê, pequeno município “jogado no meio do cana-vial”, como se costumava dizer na região ao se comentar o perigo e a dificuldade de acesso àquela cidade, por estrada de terra, passando literalmente no meio da plantação de cana e por antigas moradias abandonadas, algo fantasmagóricas, o brincador Aguinaldo da Silva apontou a construção que fora a capela onde se batizara no tempo de engenho. À época da pesquisa, ele já morava no bairro de Novo Condado.

Essa questão do direito à terra e à moradia concretizava-se também na presença de mo-vimentos sociais e de muitos acampamentos e assentamentos ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Um desses, chamado Engenho Bonito, aguarda-va, havia dez anos, o processo de desapropriação do latifúndio. Os acampados contavam que o proprietário dizia esperar vencê-los pelo cansaço -“se o MST trabalha com dois advogados, o usineiro contrata cinco, seis”-, ao que eles respondiam: “nós é que estamos esperando ele cansar”. Diziam que se, após a morte do latifundiário, seus filhos continu-assem, do mesmo jeito seus próprios filhos também continuariam, pois não poderiam permanecer naquela vida de cortadores de cana, na qual, se não tinha carteira assinada, o trabalhador era “quebrado” e, se tinha, era só durante a temporada de corte, visto que, depois, a usina demitia.

Naquele acampamento, moravam 45 famílias, algumas relacionadas aos brincadores. Na entrada, havia uma guarita dotada de um sistema de alarme feito com uma grande tampa de panela pendurada para soar em sinal de alerta quando preciso, uma escola, uma praça delimitada por canteiros plantados dentro de pneus pintados de branco, uma cacimba ou olho d´água e árvores frutíferas (banana, manga, azeitona) (Figuras 3-7). A paisagem diferia bastante da monotonia do canavial, quase como se outra região fosse. Em sua con-figuração, Engenho Bonito remetia, como o Cavalo Marinho, a uma operação tática de poder criativo sobre a realidade: ambos acabavam por se constituir como ações que da-vam visibilidade ao fazer estético-político de seus sujeitos, que, afinal, tomavam parte no comum com voz ativa.

Figura 2 Rua Maria Leopoldina de Melo, loteamento Novo Condado. Condado, Pernambuco, em 28 de dezembro de 2005. Fotógrafa: Mariana Oliveira. Figuras 3-4. Guarita e praça do acampamento Engenho Bonito. Condado, Pernambuco, em 29 de dezembro de 2005. Fotógrafa: Mariana Oliveira. Figuras 5-7. Escola, igreja e plantações do acampamento Engenho Bonito. Condado, Pernambuco, em 29 de dezembro de 2005. Fotógrafa: Mariana Oliveira 

O regime estético das artes

Tecendo conexões entre estética e política, Rancière enuncia, a partir da referência platô-nica, três formas de partilha do sensível (a escrita, o teatro e o coro) que, tendo constância histórica, definem de que modo obras ou performances “fazem política”, independente de suas intenções. Nessas formas, haveria uma “politicidade sensível”, que sofreria mutações em diferentes épocas e contextos. Os paradigmas vigentes se situariam no nó arte/política; os princípios formais das artes estariam imbricados com o de re-partição política da ex-periência comum, por exemplo, na relação entre cena e sala, na significação do corpo do ator, em jogos de proximidade ou distância. Ou seja, características formais e materiais das artes revelariam sua politicidade.

O importante é ser neste nível, do recorte sensível do comum da comunidade, das formas de sua visibilidade e de sua disposição, que se coloca a questão da relação estética/política. A partir daí pode-se pensar as intervenções políticas dos artistas, (...). As artes nunca emprestam às manobras de dominação ou de emancipação mais do que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas: posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. E a autonomia que podem gozar ou a subversão que podem se atribuir repousam sobre a mesma base (Ranciè-re, 2009, p. 26).

A partir desse entendimento é que situamos um quarto sentido político da brincadeira do Cavalo Marinho, relacionado às suas técnicas e materialidades e ao seu modo de funcio-namento. Diríamos que aí se revela sua politicidade sensível. E, neste âmbito, encontramos muitos pontos de diálogo com um fazer teatral contemporâneo, por exemplo, no que diz respeito à relação com o espectador, à corporeidade do brincador ou ao uso da palavra. Vejamos mais detalhadamente.

Destacamos, na análise da brincadeira, alguns tópicos: 1) sua configuração espacial, ma-terializada na roda, suscita elevado grau de atividade dos espectadores, que comentam, dançam, são alvo de piadas e podem até ser subitamente carregados para o meio do espaço cênico por algum brincador; 2) a corporeidade dos brincadores exige atividade, agilidade, atenção, capacidade de escuta e decisão, prontidão, além de domínio técnico. O corpo-que-brinca já em si parece colocar suas partes a jogar umas com as outras (oposições, soltura, energia), mas também deve estar disponível para brincar com o outro, agindo e reagindo prontamente, dialogando de maneira efetiva e instaurando, no grande cor-po do Cavalo Marinho, um estado de brincadeira. Nesse, apresentam-se tensionadas as características lúdicas duais de atenção relaxada, liberdade ordenada, crença incrédula, divertimento sério e repetição imprevisível; 3) sua poesia traz frequentemente o aspecto da valorização da materialidade das palavras, ou seja, do nível do significante em detrimen-to daquele do significado. Jogos de linguagens e diálogos repetitivos fazem muitas vezes esmaecer o sentido profundo de cada palavra e chamam a atenção para sua sonoridade; 4) o estatuto representativo das artes é problematizado, especialmente no fato de que as figuras, quase todas mascaradas, não equivalem perfeitamente à noção convencional de personagem. Aparecendo em episódios curtos, verdadeiras passagens, e sendo colocadas por um pequeno número de brincadores figureiros, elas parecem manter-se num plano bastante superficial, não tridimensional, sem profundidade, assemelhando-se a citações. Além disso, verificamos freqüente ambigüidade entre figura e pessoa do brincador e entre tempos-espaços ficcionais e reais, por onde se movem as figuras; 5) embora tenhamos feito referência anteriormente a uma espécie de enredo da brincadeira, é preciso esclarecer uma característica fundamental de sua dinâmica, que é a abertura e a fragmentação. Ain-da que reconheçamos alguma narrativa, especialmente nas primeiras sequências de uma apresentação, prevalece a sensação de forte dissolução de encadeamento causal entre suas partes. Além disso, identificamos a mistura de gêneros, com a valorização do estilo épico-narrativo (em cantos e versos) que remete à estrutura não aristotélica, feita por justaposi-ção e colagem, própria do gênero da performance.

Tais aspectos colocam o Cavalo Marinho em franco diálogo com o fazer teatral contem-porâneo e também com o que Rancière chamou de regime estético das artes. Esse último seria caracterizado por desobrigar a arte de toda regra específica ou hierarquia de temas, gêneros, artes e por fazer conviver, sob sua abrangência, temporalidades heterogêneas, não opondo o antigo e o moderno. Diferenciando-se do regime representativo das artes, o es-tético não se afirmaria exatamente com decisões de ruptura artística, mas “com as decisões de reinterpretação daquilo que a arte faz ou daquilo que a faz ser arte” (Rancière, 2009, p. 36). O Cavalo Marinho faz conviverem temporalidades heterogêneas não só em suas figuras e ações, como já dito antes, mas também no fato de se constituir como objeto de interesse da pesquisa contemporânea. Sob o ponto de vista de suas características estéticas e poéticas, ele estabelece diálogo com o fazer artístico contemporâneo. E essa possibilidade se desvela exatamente sob o regime estético das artes.

Esclarecendo que o “estado estético é pura suspensão, momento em que a forma é expe-rimentada por si mesma” (Rancière, 2009, p. 34), o filósofo nos fornece ainda uma chave interessante para pensar alguns dos tópicos acerca da análise da brincadeira discutidos aci-ma. Afinal, vale notar que a brincadeira produz arrebatamento não apenas naqueles que pertencem à sua comunidade produtora, mas também em pesquisadores e outros sujeitos externos àquele fazer. Sonoridades, corporeidade, presença, cores e texturas convidam a uma instigante experiência sensível (Figura 8).

Figura 8 Em momento de grande beleza, Mestre Mariano Teles conduz a dança dos arcos na apresentação do brinquedo de Mestre Antônio Teles, seu irmão, por ocasião do encontro de Cavalos Marinhos promovido anualmente por Mestre Salustiano. Cidade de Tabajara, Olinda, Pernambuco, em 25 de dezembro de 2004. Fotógrafa: Mariana Oliveira. 

Considerações finais

A título de conclusão, reiteramos a dupla relação que podemos estabelecer entre o Cavalo Marinho e o regime estético das artes. Acerca desse último, Rancière afirma: “Ele não colo-ca em causa apenas a duplicação mimética em proveito de uma imanência do pensamento na matéria sensível. Coloca também em causa (...) a partilha das ocupações que sustenta a repartição dos domínios de atividade” (2009, p. 66). Ou seja, com ele a brincadeira se relaciona tanto por meio do enfoque sobre a materialidade sensível dos signos quanto também do deslocamento que provoca na partilha do sensível, fazendo-nos voltar ao pri-meiro sentido político discutido neste artigo, relacionado à transformação da repartição dos tempos, lugares e atividades, à reconfiguração, enfim, de um espaço de possíveis.

Referências

Cascudo, L. C. (1984). Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia. [ Links ]

De Certeau, M. (1999). A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes. [ Links ]

Rancière, J. (2009). A partilha do sensível: estética e política. (2ª ed.) São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34. [ Links ]

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1 A dissertação “O jogo da cena do Cavalo Marinho: diálogos entre teatro e brincadeira”, de minha autoria e com orientação da Profa. Beti Rabetti (Maria de Lourdes Rabetti), foi defendida em fevereiro de 2006 no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAC-UNIRIO). Fui contemplada, durante o segundo ano do curso de mestrado, com a Bolsa Nota 10 oferecida pela Faperj.

2A roda é a configuração espacial em que se dá a brincadeira. Na verdade, os especta-dores costumam formar um semicírculo em frente ao banco onde se sentam os músicos (um rabequeiro, um pandeirista ou toadeiro, dois tocadores de baje-de-taboca, espécie de reco-reco, e um de mineiro, espécie de ganzá). As figuras costumam aparecer e entrar na roda a partir do ponto oposto ao do banco.

3O termo “bode”, no século XIX, era usado para designar mulatos, mestiços, filhos de branco e negra (Cascudo, 1984). Essa figura, dependendo da brincadeira, pode aparecer apenas na parte seguinte, no “Viva, ora, viva”.

4Pareia é a expressão pela qual se tratam Mateus e Bastião. O encontro dos dois dá-se logo no início da brincadeira, com um abraço, em geral sentados e de pernas abertas. Um chama o outro assim: “Pareia!”, “Parente, meu!”, “Ai, meu nego!”, “Meu camarada!”

5Matulão, no nordeste brasileiro, significa bolsa ou saco para carregar provisões. Ele participa da indumentária de Mateus, que se constitui de calça e blusa de chita bem co-loridas, chapéu em forma de cone, cheio de fitas de papéis metálicos de cores variadas pendurados, bexiga de boi ou bode seca e inflada, usada como instrumento percussivo, e, finalmente, um feixe de palha preso à cintura, representando seu surrão ou matulão.

Recibido: 01 de Abril de 2020; Aprobado: 01 de Mayo de 2020; : 01 de Junio de 2020

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