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Cuadernos del Centro de Estudios en Diseño y Comunicación. Ensayos

versão On-line ISSN 1853-3523

Cuad. Cent. Estud. Diseñ. Comun., Ensayos  no.125 Ciudad Autónoma de Buenos Aires dez. 2023  Epub 01-Nov-2023

http://dx.doi.org/10.18682/cdc.vi125.4551 

Artículo

O Amigo da Onça: continuidade e reapropriação do personagem de Péricles

Ana Cristina Carmelino1 

1 Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista (UNESP, Araraquara, Brasil). Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, Guarulhos, Brasil). Coordena o GETHu - Grupo de Estudos de Textos Humorísticos (CNPq). Organizou as obras Gêneros humorísticos em análise (2018), Humor: eis a questão (2015) e A linguagem do humor: diferentes olhares teóricos (2009).

Resumo

O objetivo deste texto é mostrar a permanência no imaginário social de uma das principais referências da história do humor gráfico e dos quadrinhos no Brasil, “O Amigo da Onça”, personagem criado por Péricles Maranhão em 1943 e publicado na forma de cartum na revista O Cruzeiro. Considera-se a hipótese de que a sobrevivência do personagem ao longo do tempo -que é retomado ora pela continuidade, ora pela apropriação- é explicada por algumas relações intertextuais específicas. Trata-se de uma narrativa fluida, que, além de sempre ser reescrita, transborda de seu continente, assumindo diferentes formatos.

Palavras chave: O Amigo da Onça; quadrinhos; intertextualidade; continuidade; apropriação.

Resumen

El objetivo del texto es mostrar la permanencia en el imaginario social de una de las principales referencias en la historia del humor gráfico y de las historietas en Brasil, “O Amigo da Onça”, un personaje creado por Péricles Maranhão en 1943 y publicado como un dibujo humorístico en la revista O Cruzeiro. La hipótesis es que la supervivencia del personaje a lo largo del tiempo, que se reanuda a veces por continuidad, a veces por apropiación, se explica por algunas relaciones intertextuales específicas. Es una narración fluida, que, además de reescribirse siempre, se desborda de su continente, asumiendo diferentes formatos.

Palabras clave: O Amigo da Onça; historietas; intertextualidad; continuidad; apropiación.

Abstract

The objective of the text is to show the permanence in the social imaginary one of the main references in the history of graphic humor and comics in Brazil, “O Amigo da Onça”, a character created by Péricles Maranhão in 1943 and published as a cartoon in the magazine O Cruzeiro. The hypothesis is that the survival of the character over the time - which is resumed at times for continuity, at times for appropriation - is explained by some specific intertextual relations. It is a fluid narrative, that, in addition to always being rewritten, it overflows from its continent, assuming different formats.

Keywords: O Amigo da Onça; comics; intertextuality; continuity; appropriation.

Considerações iniciais

E quando uma criação supera o criador?

Péricles Andrade Maranhão (1924-1961) certamente não tinha dimensão do que iria representar a criação de um personagem cômico fixo para o semanário O Cruzeiro (1928-1985). No início da década de 1940, o desenhista deu forma a uma versão brasileira da série “El Enemigo del Hombre”, produzida na Argentina poucos anos antes na revista Patoruzú1 . Nasceu, assim, “O Amigo da Onça”, figura que se tornou uma das principais referências da história do humor gráfico e dos quadrinhos no Brasil.

Pode-se dizer que a popularidade da série acompanhou a de O Cruzeiro, criada pelo empresário de comunicação Assis Chateaubriand (1862-1968) e que foi, por décadas, a mai relevante do país. A tiragem alta -que chegou a ter mais de 700 mil exemplares, segundo Scalzo (2004)- permitiu que “O Amigo da Onça” se tornasse figura familiar entre os leitores da revista. Não por acaso, a expressão que batizou o nome do personagem se encrustou no vocabulário do brasileiro, tradição que se manteve ao longo dos anos.

Ser “amigo da onça” seria reproduzir atitudes como a da criação de Péricles. Assim como em sua inspiração argentina, o personagem tinha como marca pôr alguém em situação embaraçosa, constrangedora, inconveniente, até mesmo perigosa. A regra era fazer alguma vítima de suas maldades, uma (ou mais de uma) a cada nova história. Essas atitudes podem ser sintetizadas pela palavra “sacana”, como defendem Carmelino (2018) e Carmelino e Flores (2018). Péricles criou mais de mil situações em que “O Amigo da Onça” sacaneava alguém, inclusive o criador. Vejamos um caso para ilustrar:

Figura 1 “O Amigo da Onça” (Péricles, O Cruzeiro, 17/01/1948, p. 43). 

A cena mostrada na Figura 1 é peculiar, ainda mais para uma introdução ao assunto, porque apresenta tanto o personagem quanto seu autor. “O Amigo da Onça” é quem aparece no canto superior esquerdo da página (na prancha do desenhista, apoiando o cotovelo no tinteiro), com seu habitual paletó branco e sua costumeira atitude sacana. No caso, a criatura dá um recado a Péricles, seu desenhista, que aparece autorretratado: “Só conte comigo quando melhorar a piada!...”. Ou seja, condiciona à qualidade do humor sua participação na história. O próprio cartunista se tornou vítima da mordacidade de sua criação. É esse o elemento-chave que gera o efeito de humor (interrompe o trabalho de Péricles pela recusa de tomar parte dele), ancorado no posicionamento maldoso (e esperado, já que era algo recorrente) de “O Amigo da Onça”. A produção consiste num texto multimodal, no qual se percebe o entrecruzamento de diferentes códigos semióticos (verbal, não verbal, plástico).

A questão levantada no início desta seção indica que “O Amigo da Onça” tomou proporções inesperadas. Trata-se de uma narrativa que sempre é recuperada. Com base nisso, este texto objetiva mostrar a permanência no imaginário social2 de uma das referências da história do humor gráfico no Brasil, considerando-se apenas as retomadas do personagem nos gêneros dos quadrinhos. Parte-se da hipótese de que a sobrevivência dele -resgatado tanto pela continuidade quanto pela apropriação- é explicada por determinadas relações intertextuais. Para tratar sobre intertextualidade, adotamos os pressupostos da Linguística Textual, cujos trabalhos contemporâneos têm se ancorado nas reflexões da crítica literária francesa Piègay-Gros (1996).

Formas intertextuais em questão

A produção de sentido nas diferentes práticas comunicativas depende em grande parte da percepção do diálogo que um texto estabelece com outros previamente existentes. Um dos nomes dados a esse processo é intertextualidade. Embora não seja objetivo deste texto fazer um percurso histórico do conceito, é importante não apenas lembrar a origem da noção, mas também explicitar os pressupostos adotados pela teoria na qual este artigo se ancora. O termo intertextualidade foi proposto no campo da Teoria Literária, na década de 1960, por Júlia Kristeva, para quem “qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é a absorção e transformação de um outro texto” (1974, p. 60). O postulado de que parte a autora é o dialogismo de Bakhtin (1992), no qual todo texto está em diálogo com outros. Kristeva defende que a obra literária redistribui textos anteriores em um só, sendo necessário pensá-la como um “intertexto”, numa sucessão de produções já escritas ou que ainda serão.

Sob o olhar da Linguística Textual, perspectiva teórica aqui adotada, a intertextualidade é concebida como um fator de textualidade, “compreende as diversas maneiras pelas quais a produção/recepção de um dado texto depende do conhecimento de outros textos por parte dos interlocutores” (Koch, 2004, p. 42). Nessa abordagem, que também incorpora o postulado dialógico bakhtiniano, o fenômeno é visto de dois ângulos: a) em sentido amplo (lato sensu), como um princípio constitutivo de todo e qualquer texto; e b) em sentido restrito (stricto sensu), quando, em um texto, é inserido outro anteriormente produzido e que faz parte da memória social dos interlocutores.

No que tange ao sentido amplo, a intertextualidade pode ser compreendida como uma condição de existência de qualquer texto, já que todo dizer remete a enunciados anteriores. Contudo, é necessário ponderar que essas relações estabelecidas não se restringem aos enunciados isolados, mas incluem “modelos gerais e/ou abstratos de produção e recepção de textos/discursos” (Koch; Bentes; Cavalcante, 2007, p. 85), isto é, diversos gêneros. Desse modo, as autoras propõem a existência de uma intertextualidade intergenérica, quando um gênero exerce a função de outro.

Quanto ao sentido restrito, em que se atestam em níveis variáveis as marcas identificáveis e delimitáveis do intertexto (sinais tipográficos e índices semânticos), Koch, Bentes e Cavalcante (2007) destacam os seguintes tipos: intertextualidade temática, quando textos distintos compartilham os mesmos temas; estilística (por estilização) quando certos estilos ou variedades linguísticas são repetidos ou imitados; explícita, quando há a exposição da fonte do intertexto, caso de citações, referências; e implícita, quando não se explicita a fonte do intertexto, como nas alusões, paródias, paráfrases. Todas essas formas, registram as autoras, podem coexistir.

Em trabalhos contemporâneos, estudiosos da Linguística Textual têm retomado com certa frequência uma das propostas tipológicas intertextuais filiadas à teoria literária, a de Piègay-Gros (1996). As classificações da autora interessam em virtude de sua produtividade para a construção de sentidos, não apenas de textos verbais, mas, sobretudo, os multimodais, caso de nosso objeto de análise. Passemos a um breve resumo da proposta.

Piègay-Gros (1996), rediscutindo a proposta de Genette (1982), divide as relações intertextuais em dois grupos: a copresença, na qual se observa, em distintos níveis de evidência, a relação entre dois ou vários textos; e a derivação, quando se verifica que um texto deriva de outro anteriormente existente. Com o intuito de estudar as diferentes formas intertextuais em sua singularidade, a autora destaca subtipos em ambos os casos.

As relações intertextuais por copresença podem ser explícitas ou implícitas. Naquelas enquadram-se a citação, que pode vir marcada ou não por sinais tipográficos diversos (aspas, recuo, itálico, diminuição da fonte), e a referência, em que se observa a remissão a outro (autor, personagem, obra) sem que haja necessariamente citação. Nestas, são abrigados o plágio, tipo de citação não marcada, ou seja, uma apropriação do texto alheio, e a alusão, referenciação indireta (retomada discreta, sutil) que exige maior capacidade de inferência por parte do leitor.

As relações intertextuais por derivação são caracterizadas pela transformação ou pela imitação de um texto. No caso, a autora destaca três tipos. A paródia, com diversos propósitos, consiste na transformação de um texto-fonte, no qual se altera o conteúdo, mas o estilo é mantido. O travestimento burlesco, com finalidade satírica, consiste na reescritura do estilo de um texto cujo conteúdo é preservado. O pastiche caracteriza-se pela imitação do estilo de um autor ou dos traços de sua autoria, sem caráter depreciativo. Às relações intertextuais de derivação de Piègay-Gros (1996), Cavalcante (2012) acrescenta a paráfrase, vista como a repetição de um texto a fim de esclarecê-lo.

Do exposto, convém dizer que as retomadas de “O Amigo da Onça” ao longo do tempo, que tornam a narrativa gigantesca, devem-se a alguns processos intertextuais específicos. Consideramos a hipótese de que a série é recuperada de duas formas distintas: ora pela continuidade, ora pela apropriação do personagem. No primeiro caso, as relações intertextuais envolvidas são a estilização, nos termos de Koch, Bentes e Cavalcante (2007), e o pastiche, definido como um tipo de derivação por Piègay-Gros (1996). Já no segundo caso, nota-se, além do pastiche, a intertextualidade por copresença explícita (pela referência) e a implícita (pela alusão), segundo a classificação de Piègay-Gros (1996). Passemos à verificação dos dados.

“O Amigo da Onça”: sobre a criação do personagem

Como mencionado, “O Amigo da Onça” foi criado no início da década de 1940 por Péricles de Andrade Maranhão. Péricles, forma como o artista assinava seus desenhos, nasceu em 14/08/1924 em Recife (capital do estado de Pernambuco, no nordeste do Brasil), onde viveu até os 18 anos. Segundo Jota (1987, p. 5), publicou seus primeiros desenhos na revista do Colégio Marista, onde estudava, mas a primeira notícia dada sobre ele foi no Diário de Pernambuco, em 05/11/1940, pelo jornalista Aníbal Fernandes: “Guardem bem este nome. Péricles Maranhão. Quem viver verá se ali não está um artista, sobretudo se tiver ambiente para estudar e produzir”.

Dois anos depois, com uma carta de referência de Aníbal Fernandes, Péricles mudou-se para o Rio de Janeiro, onde começou sua carreira nos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, em 06/06/1942. Nesse mesmo ano, publicou “As aventuras de Oliveira, o trapalhão” em O Guri, revista em quadrinhos veiculada quinzenalmente pelo Diário da Noite (cf. Jota, 1987). No entanto, sua principal criação foi “O Amigo da Onça”. O personagem fixo estreou em O Cruzeiro em 1943. Apesar do sucesso profissional, a vida particular do cartunista seguiu outro caminho: solitário e tímido, embriagava-se com frequência, por conta da separação com sua mulher e da perda do convívio com o filho. Em 31/12/1961, suicidou-se (cf. Carvalho, 2001).

Quanto às histórias de “O Amigo da Onça”, é importante registrar que elas foram publicadas semanalmente de 23/10/1943 a 03/02/1962, pouco após a morte do desenhista. Apresentadas ao leitor em um espaço retangular, equivalente ao de uma página do periódico, as narrativas funcionavam como cartum, gênero do humor gráfico que tem como marcas centrais a criação de uma situação humorística com um personagem regular ou não, baseada em temas cotidianos, sem que dialoguem com fatos do noticiário (cf. Ramos, 2010). Esse tipo de produção faz muitas vezes uma crítica de costumes, podendo funcionar como instrumento de reflexão e formação de opinião. É o que se verifica nos exemplos das Figuras de 2 a 5.

Figura 2 Primeira publicação de “O Amigo da Onça”, de Péricles (O Cruzeiro, 23/10/1943, p. 39). Legenda: “- Foi esse aí mesmo, seu trocador. Só botou ‘um’ tostão!” Figura 3. “O Amigo da Onça” (Péricles, O Cruzeiro, 16/04/1949, p. 27). Legenda: “... Mas quando você nasceu nesta casa, ela estava nova em fôlha!...” [sic] Figura 4. “O Amigo da Onça” (Péricles, O Cruzeiro, 30/04/1955, p. 19). Sem legenda. Figura 5. Última publicação de “O Amigo da Onça” de Péricles (O Cruzeiro, 03/02/1962, p. 35). Legenda: “Se quiser atravessar, aproveite agora que eu já o perdi de vista.” 

Veem-se quatro situações distintas vividas pelo personagem, ao longo de 18 anos de produção. A primeira mostra sua estreia em O Cruzeiro, em 23/10/1943 (Figura 2), na qual já começa dedurando um usuário do bonde, que não teria pago o dinheiro completo da passagem (“- Foi esse aí mesmo, seu trocador. Só botou ‘um’ tostão!”). Se a falha não havia sido percebida por quem cobrava, passou a ser. Na segunda história (Figura 3), produzida seis anos depois (16/04/1949), a indelicadeza é com relação à idade de sua interlocutora. Ao mostrar uma casa velha, com o ano de 1890 cravado no alto, e dizer que, quando a mulher havia nascido ali, a construção “estava nova em fôlha!...” [sic], na prática ele a está chamando de velha e acabada, malcuidada. Por ter sido publicada em 1949, depreende-se que ela devesse ter 59 anos.

A terceira história (Figura 4), publicada doze anos após a data da estreia (30/04/1055), tem o diferencial de não apresentar diálogo, representado nos casos anteriores por meio de balão de fala. Na cena, um homem sai de um cassino somente com a roupa de baixo, meias e sapatos. Fica sugerido que ele tenha perdido tudo o que tinha nas jogatinas, vestimentas inclusive. O que “O Amigo da Onça” oferece a ele é um revólver, possivelmente para que a vítima tire a própria vida. Ao invés de conforto, propõe suicídio. O quarto exemplo (Figura 5), impresso em 03/02/1962, é também o último produzido por Péricles para a revista. Na derradeira situação criada por Péricles, o protagonista avisa o outro banhista de que o tubarão que rodeava a ilhota já estava fora de vista e que, portanto, seria seguro atravessar a nado até a margem. O senão é que o bicho estava bem próximo. Havia perigo real, portanto. Como se pode observar, no que concerne à composição do tipo físico do personagem, “O Amigo da Onça” apresentava-se magro, de estatura baixa, com bigode pequeno e cabelo penteado para trás. Na maior parte das narrativas, aparecia vestido de paletó branco (cf. Figuras 1, 3 e 4), calças pretas e gravata borboleta, isso significa que mudava eventualmente de traje (cf. Figuras 2 e 3). Mostrava-se com uma expressão neutra, sem explicitar emoções. Assumia diferentes papéis sociais (filho, noivo, conhecido) e ocupações profissionais (médico, vendedor, comandante, delegado). As idades também variavam, podia ser adulto ou criança. No entanto, o traço mais peculiar do personagem era de ordem comportamental: a maldade, que lhe dava vantagens sobre o outro. Era mestre em colocar alguém numa situação difícil, como visto nos exemplos.

O nome atribuído ao personagem não levanta dúvidas de que esteja associado à expressão popular “amigo da onça”, que, no Brasil, diz respeito àquele que se mostra amigo, mas não o é de fato. Trata-se de alguém em quem não se pode confiar e que tende a colocar os outros em situações embaraçosas. Seria alguém debochado, mau caráter, enganador, irômico, impiedoso, galhofeiro (cf. Serra e Gurgel, 1988). A explicação da expressão é creditada a uma piada de muito sucesso na época, que mostra um tipo esperto, que parece não se importar com o outro.

“O Amigo da Onça”: sobre a continuidade do personagem

O sucesso do personagem de Péricles não durou apenas 18 anos, isto é, o tempo em que o artista produziu seus desenhos até se suicidar. A revista deu continuidade à série, primeiro reeditando histórias marcantes feitas por Péricles, de 10/02/1962 a 31/03/1962, depois, a partir de abril daquele ano, a narrativa passou a ser produzida por Carlos Estêvão (1921-1972), integrante da equipe de cartunistas do semanário (e amigo de Péricles) e que permaneceu como o responsável pelas histórias até morrer (cf. Silva, 1989; Jota, 1987).

Carlos Estêvão de Souza iniciou seu ofício com o desenho técnico. Procedente de Pernambuco, chegou ao Rio de Janeio em 1940. Em 1948, ingressou nos Diários Associados. Teve a maior parte de seus desenhos publicada na revista O Cruzeiro. Entre caricaturas, ilustrações, charges e séries (“As aparências enganam”, “Perguntas inocentes”, “As duas faces do homem”, “Palavras que consolam”), ganham destaque as narrativas de “Ignorabus, o contador de histórias” (um ignorante romancista, cuja função era reformar a moral por meio de jogo de aparências e poderes dos que transitavam na capital federal) e de “Dr. Macarra” (um gozador que aplicava golpes para viabilizar sua sobrevivência).

Com um humorismo que caiu no gosto popular, segundo registra Person (2011), Estêvão tinha um traço personalíssimo (comparado em muitos aspectos ao do cartunista francês Albert Dubout), apreendido no interior da força de sua representação do social, que se resume no retrato da cidade, especificamente na documentação do cotidiano.

Quanto à tarefa que lhe foi incumbida, a de continuar o “Onça”, os testemunhos dão conta da resistência e espanto de Estêvão, que demonstra ao menos dois motivos. O primeito estaria ligado à responsabilidade: “Eu substituir o Péricles? Vocês estão ficando loucos?” (Jota, 1987, p. 7). O segundo seria pelas características antiéticas do personagem, distantes da natureza da sua produção: “Ele é mau, sádico, ri da desgraça alheia. Qualquer dia eu o mato!” (O Cruzeiro, 02/08/1972, in Person, 2011, p. 48).

A continuidade do sucesso da produção do Onça pode ser explicada tanto pelo enraizamento no cotidiano dessa criação (sem preocupação de ordem ética, já que não reflete alguém real, dispensa a razão e se expressa sem pudor) quanto pelo desenho de fácil comunicabilidade para com a massa, que o traço espontâneo de Carlos Estêvão fazia emergir. Segundo Person (2011, p. 44), a criatividade do desenhista permitu a manutenção do personagem, ao qual imprimiu “costumes, indumentária e ação renovados”. Vejamos alguns exemplos, levando em conta a produção do autor ao longo de quase dez anos.

Figura 3 Primeira publicação de “O Amigo da Onça - criação imortal de Péricles”, de Carlos Estêvão (O Cruzeiro, 07/04/1962, p. 35). Legenda: “Ah! Seu telefone vai ser instalado hoje!” Figura 7. “O Amigo da Onça - criação imortal de Péricles” (Estêvão, O Cruzeiro, 04/04/1964, p. 51). Legenda: “... E posso dizer que, com nova Miss, ninguém dirá, lá fora, que o Brasil é um país de subdesenvolvidos!!!” Figura 8. “O Amigo da Onça - criação imortal de Péricles” (Estêvão, O Cruzeiro, 16/04/1967, p. 78). Legenda: “Podem até se alegrar porque o vosso querido tio morrerá em paz... eu o convenci a doar tôda a sua fortuna às obras de caridade!” Figura 9. “O Amigo da Onça (Estêvão, O Cruzeiro, 19/01/1972 , p. 104). Sem legenda. 

Os quatro exemplos mostram que o desenhista pode ter mudado, mas o personagem, não, considerando, é claro, as suas maldades. Na primeira história (Figura 6), estreia de Carlos Estêvão na série (07/04/1962), “O Amigo da Onça” exerce o papel social de secretário do governador, prometendo a alguém a instalação de linha telefônica naquele mesmo dia. A garantia, no entanto, é dada em 01º/04, data que, no Brasil, ficou conhecida como o “dia da mentira”. Ou seja, ele não disse a verdade. Na situação seguinte (Figura 7), história publicada dois anos após a estreia, o personagem-título é indelicado com a “Miss Brasil 1964”. Por ser mais rechonchuda e estar acima do peso, ele diz à plateia que “ninguém dirá, lá fora, que o Brasil é um país de subdesenvolvidos”. A moça seria, portanto, bastante desenvolvida, ao menos fisicamente.

As atitudes imprevisíveis e inconvenientes estão presentes também nas outras duas histórias, impressas respectivamente cinco e nove anos após a estreia. Na mostrada na Figura 8, ele conforta a família, afirmando a todos que acabara de convencer o recém-falecido a doar a fortuna “às obras de caridade”. Visivelmente incomodados, os parentes esperavam receber a herança. Na Figura 9, um grupo de pessoas se desespera para salvar o que entendem ser um banhista se afogando -eles podem ver somente a mão da pessoa. Boia é atirada ao mar, um homem se joga na água com roupa e tudo. O que não sabem é que a mão é apenas a ponta de um cabo, mantido pelo protagonista sacana de forma submersa apenas para enganar todos. Ninguém estava em perigo.

Embora Estêvão tenha atualizado o personagem e suas histórias, dando qualidade à série devido à capacidade do artista -“não há dúvida sobre a dimensão no espaço que Estevão ocupava na importância da manutenção do personagem” (Person, 2011, p. 44)-, os traços foram mantidos. Essa forma de retomada que reproduz não apenas o estilo, mas também um conjunto dos procedimentos do discurso de outro, é conhecida como intertextualidade estilística. A estilização, que pode ser polêmica ou contratual, segundo registra Fiorin (2003, p. 31), é o “conjunto de recorrências formais tanto no plano da expressão quanto no plano do conteúdo (manifestado, é claro) que produzem um efeito de sentido de individualização”.

A análise dos exemplos (não só dos mencionados neste texto) permite verficar uma série de recorrências formais para se constatar que a produção de Estêvão se dá por estilização (cf. Koch, Bentes e Cavalcante, 2007). No plano do conteúdo, nota-se a manutenção dos temas das histórias (atemporais, refletem questões do cotidiano, espelhando os costumes da época), do comportamento do personagem (impiedoso, controla a situação e mostra as fragilidades do outro) e a forma como dispõe o leitor -detentor da situação e de suas consequências, transforma-se em cúmplice da ação do Onça. Quanto ao plano da expressão, observa-se a permanência de muitos elementos, como:

- o gênero: dentre as produções de humor gráfico, a série se enquadra no que se chama cartum, no Brasil;

- o formato: fixo e padronizado, a história é construída em um único quadro retangular, exposto no sentido vertical, cujas medidas equivalem à de uma página do periódico (22,4 cm x 29,5cm);

- o suporte: a forma de registro, armazenamento e transmissão de informação continua sendo a revista impressa O Cruzeiro;

- os elementos composicionais e a linguagem: compostas por seres humanos em espaço público, as cenas contemplam título (na parte superior do quadro), legenda e mesclam signos verbais escritos e não verbais em sua constituição; há presença de personagem fixo; uso de signos plásticos (com poucas exceções, os desenhos são coloridos), icônicos (metáforas visuais, como a nuvem que indica impulso para mergulhar rapidamente, vista no exemplo da Figura 5, ou as gotas acima das cabeças das pessoas que indicam desespero, na Figura 8) e de contorno (linhas que emolduram o quadro das cenas desenhadas); além disso, nota-se a presença de linhas e traços que indicam movimento ou sentimentos;

- o aspecto físico do personagem: representa um homem comum (sem traços exagerados), de estatura baixa, magro, de bigode e cabelo penteado para trás, que comumente aparece vestido de paletó branco com gravata borboleta e calça preta; demonstra superioridade física (mais esbelto, mais bem vestido, maior beleza) na relação com os outros;

- a produção do humor: manifestada na maioria dos casos por elementos imagéticos e verbais.

No processo de estilização, não há efeito de inadequação de tons de voz entre o texto imitado e o que imita (cf. Koch, Bentes e Cavalcante, 2007). Em muitas das produções, se não se atentar ao título (em que Estêvão credita a criação a Péricles), convence-se facilmente de que se trata dos cartuns do criador, tamanha a semelhança entre eles. É o que pode ser conferido observando-se as Figuras 6 e 3 (especialmente a posição da cabeça e olhar do personagem) ou 7 e 4 (nas quais o personagem aparece de corpo inteiro), em que a feição dada ao Onça por Estêvão em quase nada se diferencia da produzida por Péricles.

Por meio de tal estilização, Estêvão mantém com as narrativas de Péricles relações contratuais, não polêmicas. Em nenhum momento, nota-se a intenção de subverter, apenas de captar, imitar, fazer “à maneira de”, no caso, à moda de Péricles. Tais dados podem ser percebidos no título de muitos cartuns de Estêvão, em que o desenhista faz questão de dar crédito à invenção de Péricles, como em “O AMIGO DA ONÇA -criação imortal de Péricles” (Figura 6) ou “O AMIGO DA ONÇA- criação de Péricles, original de Carlos Estêvão” (Figura 8).

Após a morte de Carlos Estêvão, ouviu-se o rumor sobre a possibilidade da finitude do personagem. A revista O Cruzeiro fez uma pesquisa para saber se deveria ou não matar “O Amigo da Onça”, encerrando a publicação. A grande maioria dos participantes - leitores de diferentes Estados do país que se manifestaram por meio de cartas - votou pela continuidade, demonstrando o desejo de ver o seguimento do trabalho de Estêvão. Mostrando-se surpresa pela resposta que obteve do público, a revista assim se pronuncia na coluna “Escreve o leitor”:

Quando perguntamos a nossos leitores se o Amigo da Onça devia continuar, sabíamos que o personagem de Péricles e Estêvão era muito querido, mas não calculávamos receber um sim quase unânime de nossos leitores. Das numerosas cartas que a todo instante chegam à redação, até agora só duas pessoas votaram pelo desaparecimento do Onça. Sem a menor dúvida, a vontade do povo é que O Amigo da Onça continue e nós não iremos decepcioná-lo (O Cruzeiro, 16/08/1972, p. 46).

O desaparecimento dos autores e a sobrevivência do personagem trouxe à tona o julgamento sobre a aceitação do “Onça” tanto de Péricles quanto de Estevão. O problema agora era outro: quem substituiria Estêvão? O esforço para encontrar um sucessor à altura e os desafios que implicava eram sintomáticos na voz do chefe de reportagem, Ubiratan Lemos: “Nós estamos espremendo a cuca para compor os últimos retoques do personagem (...) atingindo a velha e a nova geração. Um Onça cibernético. Fazendo rir. É muito mais pra frente” (O Cruzeiro, 09/08/1972, p. 14). Por meio da votação dos cartunistas brasileiros da época, na edição seguinte do jornal, foi anunciado o nome do novo pai de “O Amigo da Onça”: o mineiro Fritz Granado (?-2006), que produziu o personagem até o final de 1972. Fritz, além de colaborar com as revistas O Cruzeiro e Manchete, trabalhou para os jornais Última Hora, Jornal dos Sports e O Globo (cf. Zé Arnaldo, 2010; O Cruzeiro, 16/08/1972). A primeira história do personagem feita por Fritz já saiu na edição seguinte da revista (Figura 10). Vejamos alguns exemplos da produção do autor.

Figura 4 “O Amigo da Onça” (Fritz, O Cruzeiro, 23/08/1972, p. 13). Legenda: “Qualé “bicho”!O “grilo” da corda já era...” Figura 11. “O Amigo da Onça” (Fritz, O Cruzeiro, 30/08/1972, p. 13). Legenda: “Diga-me, seu verme: quem incluiu Londonderry nesse roteiro?” Placa atrás de “O Amigo da Onça”: “Conheça o velho mundo em suaves prestações mensais”. 

Figura 5 “O Amigo da Onça” (Fritz, O Cruzeiro, 22/11/1972, p. 115). Legenda: “Ei, Rocha! O desfile de monoquini está uma curtição: você não vai ver?” Figura 13. “O Amigo da Onça” (Fritz, O Cruzeiro, 29/11/1972, p. 118). Legenda: Placa “Assista o comício e concorra a uma TV a cores!” 

Dos exemplos citados, casos a que se pôde ter acesso, foram escolhidos os que apresentaram maior clareza e legibilidade para ilustrar os traços de Fritz. A terceira versão de “O Amigo da Onça” apresenta um verniz visual diferente, como será comentado adiante, mas suas marcas centrais foram mantidas. Ou seja, o Onça continua a pôr os outros em situações inusitadas. Na Figura 10, ele diz a dois homens que a corda a que estão agarrados em um penhasco “já era”, ou seja, que estava prestes a se romper. O senão é que ela estava bem presa. O único perigo era a faca que tinha à mão e que, tudo indica, seria usada para cortar a corda. Na Figura 11, ele teria incluído um roteiro imprevisto (“Londonderry”) à viagem de um passageiro, que fica furioso. No exemplo seguinte (Figura 12), o protagonista convida um homem casado, em frente à esposa, para ver um desfile de mulheres de monoquíni. No último exemplo (Figura 13), “O Amigo da Onça” atrai a multidão de um comício eleitoral para o do concorrente. A estratégia foi propor um sorteio de TV em cores a quem assistisse ao do outro candidato.

Assim como Estêvão, Fritz também atualizou as piadas, mas, diferentemente daquele, diversificou a forma física e o traje do personagem e inovou na apresentação de alguns procedimentos plásticos. O novo Onça não veste paletó branco, gravata borboleta e calça preta, também não se apresenta tão magro. No caso, não mostra certa superioridade física (mais esbelto, melhor vestido, maior beleza) na relação com os outros, como visto na produção de Péricles e Estêvão. Além disso exibe variações na forma e cor do cabelo: crespo e preto (Figuras 10 e 13), loiro (Figura 11) e ruivo (Figura 12). O procedimento plástico na elaboração do cartum exibe algumas mudanças. O título da série, a exemplo, aparece alternando duas ou três cores (Figuras 12 e 13).

Desse modo, ainda que muitos traços tenham sido mantidos (logo, imitados) na continuidade do personagem -caso da alma sacana ou do comportamento maldoso da criatura; do gênero; do formato; do suporte; de alguns dos elementos que compõem as histórias e da linguagem; e do modo de produção de humor-, a figura do Onça sofreu alterações. Nesse sentido, o processo intertextual que melhor explica a sequência do personagem dada por Fritz não seria a estilização, mas o pastiche. Caracterizado pela imitação do estilo de um autor, sem caráter depreciativo, o pastiche, segundo Piégay-Gros (1996), consiste numa forma de intertextualidade em que a imitação não supõe a retomada literal do texto. No caso, podemos considerar que a série parece ser à moda de Fritz, não à maneira de Péricles, como vimos na produção de Estêvão. Guardando marcas individuais de autoria, Fritz extrai, com certa precisão, algumas particularidades da criação de Péricles: apresenta uma imitação, não em sua totalidade, do estilo da produção gráfica e do personagem da série que não chega a ser satírica (como o travestimento burlesco) nem grotesca.

A continuidade de “O Amigo da Onça” pode ser explicada por mais de um modo. Em termos de linguagem, foi possível graças a duas formas de estabelecer diálogo com um texto-fonte, isto é, dois tipos de relações intertextuais: aquela que reproduz o estilo, bem como um conjunto de procedimentos do discurso de outro, vista aqui como estilização, e aquela que embora imite um estilo não o retoma literalmente, caso do pastiche. Em termos socioculturais, foi possível graças à popularidade e à força que a criação impôs sobre o criador.

“O Amigo da Onça”: sobre a apropriação do personagem

Não são poucas as produções que se apropriam de “O Amigo da Onça”, fazendo com que a criação de Péricles sobreviva ao tempo. Aqui destacamos alguns exemplos, considerando-se apenas casos de gêneros dos quadrinhos. Quadrinhos ou história em quadrinhos (HQs) são narrativas que articulam elementos verbais visuais e não verbais e que, comumente, apresentam-se configuradas em (sequências de) quadro(s) (cf. Cagnin, 1975; 2000).

Segundo Mendonça (2003), ao se considerarem os elementos que podem entrar na composição dos quadrinhos - predominância do tipo narrativo; mescla de signos verbais escritos e não verbais; presença de personagens fixas ou não; uso de signos plásticos (cor, textura e forma), icônicos e de contorno (balões que representam fala, pensamento, emoção); presença de linhas e traços (que indicam movimento, padrões para sons, cheiros, sentimentos), onomatopeias e léxico característico (cf. Cagnin, 1975; Ramos, 2010) -, é possível situá-los numa constelação de gêneros.

Como exemplo dessa constelação, Mendonça (2003) destaca a caricatura, a charge, o cartum, as histórias em quadrinhos e as tiras, salientando que distinguir tais gêneros é difícil até para profissionais da área. Com exceção da caricatura (retrato humano ou de objetos que exageram ou simplificam traços), “O Amigo da Onça” aparece retomado nos demais gêneros. É o que se mostra a seguir.

a. Cartum

Figura 6 Cartum de “O Amigo da Onça” produzido por Jal e Cariello (Semanário, 1990) 

Este caso chama mais a atenção não pela apropriação de outro gênero, mas, sim, por uma retomada pontual do personagem quase 20 anos depois. “O Amigo da Onça” teve uma nova história produzida em 1990 e publicada na revista Semanário (1988-1992). Os autores, a dupla Jal (José Alberto Lovetro) e (Octávio) Cariello tomou o cuidado de recuperar as mesmas marcas de estilo que marcaram a série nas páginas de O Cruzeiro. Além do gênero em si, o cartum, reprisaram o formato da história, o título, a menção ao autor original (“Uma criação imortal de Péricles”), as cores, e, claro, o protagonista. O conteúdo também dialogava com as narrativas de décadas anteriores. As vítimas da vez eram pilotos de um avião em queda. Em vez de ajudar, o Onça pede que eles falem “mais perto do microfone da caixa-preta”, instrumento que registra todos os momentos de um voo e importante para explicar desastres aéreos.

Embora não seja um caso de continuidade da série, mas, sim, de retomada, a exemplo do visto com o trabalho de Fritz, a relação de intertextualidade estabelecida é a de pastiche. O recurso, já comentado, imita o estilo, sem recuperá-lo literalmente (cf. Piégay-Gros, 1996).

b) Tira cômica

Figura 7 Tira de “O Amigo da Onça” produzida por Jal e Gual (Folha da Tarde, 1989). 

No exemplo da Figura 15, “O Amigo da Onça” aparece em uma tira cômica produzida por Jal e Gual (Gualberto Costa) para o jornal Folha da Tarde (1989). Esse gênero dos quadrinhos, conforme Ramos (2010), consiste em uma narrativa tendencialmente curta (dada à restrição do formato retangular), construída em um ou mais quadrinhos, com a presença de personagens fictícios (fixos ou não) e desfecho inesperado.

Atuando como patrão, ouve do empregado um lembrete sobre seus três meses de salário atrasado. Para introduzir o pedido, dirige-se ao superior com uma sinalização de desculpas pelo teor de sua fala ser o de uma cobrança. Ouve como resposta, bem ao estilo do personagem, que estaria desculpado (no caso, desculpado de não receber o dinheiro a que tinha direito).

No caso em análise, a menção à série aparecia no título da tira, não reproduzido na Figura 15. Seria uma primeira pista para o leitor vincular o personagem à criação de Péricles. Outros elementos estavam na caracterização visual dele (traços fisionômicos, marcas peculiares do penteado e do bigode) e nas atitudes. A tira cômica estabelece com a série uma relação intertextual por referência, forma explícita de intertextualidade (cf. Piègay-Gros, 1996). No caso, embora não cite o texto-fonte, expõe diretamente o texto a que remete.

c) História em quadrinhos

Figura 8 História em quadrinhos de Luiz Gê (Folha de S.Paulo, 27/02/2017). 

Produzida por Luiz Gê e publicada no jornal Folha de S.Paulo, em 27/02/2017, a história em quadrinhos da Figura 16 também se apropria da criação de Péricles. Difere dos demais exemplos analisados até aqui por ser formada por vários quadros que se sucedem, compondo uma narrativa maior. De acordo com Ramos (2010), elas tendem a usar o formato mínimo de uma página e costumam ser identificadas pelo tema abordado, no caso, o humor. Para visualizar melhor o trecho da história em quadrinhos de humor a ser abordado, separamos apenas a sequência em que “O Amigo da Onça” é mencionado na narrativa:

Figura 9 Trecho de história em quadrinhos de Luiz Gê (Folha de S.Paulo, 27/02/2017). 

No exemplo em questão, “O Amigo da Onça” é recuperado pelo desenhista, mas não há pistas verbais para isso. A percepção é visual, a partir da semelhança entre os traços do rosto do personagem no modo como foi criado por Péricles décadas antes. Desse modo, em termos intertextuais, como a retomada é implícita, indireta, sendo recuperada pela memória do leitor a partir das sinalizações dadas pelo desenhista, ela se dá por alusão (cf. Piègay-Gros, 1996). O leitor deve inferir que um dos personagens da história é o “Onça”. Do ponto de vista do conteúdo, surge outro elemento vinculado ao personagem: a atitude de vitimizar alguém. No caso, o alvo é o povo brasileiro. O comentário feito por ele no balão de fala é que a “ponte para o futuro” -um dos lemas adotados por Temer- seria o congelamento por 20 anos dos recursos para “a saúde e a educação”. É motivo de riso para as pessoas de seu círculo de poder. A menção à expressão usada pelo governo, casada com a austeridade fiscal adotada na época, leva à vinculação entre o personagem e o presidente brasileiro. Essa associação fica mais clara na sequência, em que o rosto do político se metamorfoseia no protagonista da série de O Cruzeiro. Em outros termos: o que Luiz Gê procura demonstrar é que Michel Temer age, com suas medidas, da mesma forma que “O Amigo da Onça”. Sua intenção seria a de prejudicar, pôr o outro, o povo, numa situação (ainda) pior do que a que se encontra.

d) Charge

Figura 10 Charge de Sinovaldo (Jornal NH - RS, 06/09/2015). Figura 19. Charge de Mariano (Chargeonline, 08/09/2015). 

Figura 11 Charge de Aroeira (O Dia - RJ, 09/09/2015). 

Os exemplos das Figuras 18, 19 e 20 são de charges, texto humorístico que aborda criticamente um fato, tema ou acontecimento ligado ao noticiário jornalístico, por isso tende a trabalhar com figuras reais representadas de forma caricata, como os políticos (cf. Ramos, 2010). Dentre os gêneros dos quadrinhos, é o que mais apresenta situações de apropriação de “O Amigo da Onça”.

Todos os casos selecionados foram produzidos e publicados no segundo semestre de 2015. O período coincide com as tensões políticas enfrentadas pela então presidenta Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores, que havia iniciado em janeiro daquele ano seu segundo mandato. Com problemas econômicos por um lado e uma ferrenha oposição, por outro, ela vinha demonstrando forte desgaste à frente do cargo.

Um dos aliados vinha, então, dando sinais dúbios, ora de apoio, ora de possível rompimento. Tratava-se de seu vice, Michel Temer, o mesmo analisado no item anterior. As atitudes dele, próximas às de uma pessoa não confiável, ajudaram a vincular as duas personagens, a real e a ficcional. As três charges usam esse recurso intertextual para a produção das críticas sobre aquele momento vivido no país.

A mostrada na Figura 18 apresenta uma versão caricata de Dilma Rousseff (à esquerda) e, ao lado dela, o próprio Onça ornado com a faixa presidencial dela. “Chamou?”, pergunta a ela, em tom melódico (indicado pela metáfora visual de uma nota musical), sugerindo estar disposto a deixar de ser vice e ocupar o cargo da aliada de fachada. Dado o momento histórico, não seria equivocado reclassificar o personagem como sendo o próprio Temer, materializado na forma da criação de Péricles.

Na Figura 19, o que se sugere é que seja o próprio “Amigo da Onça” quem dá conselhos ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Do mesmo partido de Dilma e dono de uma popularidade altíssima à época das duas eleições disputadas por ela, foi um dos responsáveis pela vitória da colega. Na situação criada na charge, Lula recebe o conselho de retornar à oposição, abandonando a colega e se desvinculando dos problemas enfrentados por ela. Diferente dos dois exemplos anteriores, o da Figura 20 usa o rosto do próprio Michel Temer. Mostrado de forma caricata, ele aparece em um corpo trajado da mesma forma que “O Amigo da Onça” (paletó branco, gravata borboleta preta). Um leitor mais familiarizado com os trabalhos de Péricles possivelmente poderia captar a referência por meio dos recursos visuais ali apresentados. Aos demais, havia uma menção a isso, registrada na parte debaixo do desenho, no canto direito: “sobre a imortal criação de Péricles, e depois de todo mundo...”.

Ao assumir que se valeu do personagem, o autor, Aroeira, também explicitou que não tinha sido o primeiro a fazer isso, algo que as duas charges anteriores ajudam a corroborar. Na cena criada pelo desenhista, o vice-presidente é questionado, possivelmente por jornalistas, se ele é “amigo da onça”. Visualmente caracterizado como o personagem, ele já indicava que era. Na resposta, confirmou: “Sou, sim. Na verdade, o único que ela tem...”. Os exemplos mostram que o diálogo com a série de Péricles se dá por processos intertextuais distintos, mais ou menos explícitos: enquanto as charges das Figuras 18 e 19 aludem ao Onça, a da Figura 20 faz referência ao personagem. Naquelas, a referenciação indireta, vista somente pela imagem dele, exige maior capacidade de inferência por parte do leitor. Nesta, não é apenas a imagem de Temer que é associada fisicamente ao do Onça, mas também a presença de enunciados verbais escritos que garantem mais explicitude ao texto-fonte (cf. Piègay-Gros, 1996).

Ainda que distintos, já que se configuram em diferentes gêneros dos quadrinhos (cartum, tira cômica, história em quadrinhos e charge), os exemplos apresentam algo em comum: todos se apropriam de um dos ícones da história do humor gráfico e dos quadrinhos no Brasil para dar vida às suas narrativas. Ao fazerem isso, colaboram para eternizar a criação de Péricles.

Considerações finais

Este texto buscou mostrar como um dos principais personagens do humor gráfico no Brasil, “O Amigo da Onça”, inventado por Péricles Maranhão na década de 1940, permanece no imaginário social do país quase oito décadas depois. Em termos socioculturais, trata-se de criação que se impôs sobre o criador. Para evidenciar um pouco da proporção que a narrativa ganhou ao longo do tempo, tomaram-se como corpus de análise apenas exemplos de produções referentes aos gêneros dos quadrinhos que retomam a série.

A hipótese defendida foi a de que um método de permitir a sobrevivência do personagem pode ser explicado por certos processos intertextuais, tendo em vista que a narrativa é recuperada tanto pela continuidade quanto pela apropriação do personagem. Observou-se que a continuidade geralmente se dá graças à intertextualidade estilística e ao pastiche; já a apropriação é feita mediante o pastiche, a referência e a alusão.

Parte das retomadas do personagem, como visto, costuma ser acompanhada de expressões que remetem à “imortal criação de Péricles”. Lida ao pé da letra, a imortalidade é uma ideia impossível de ser medida, dado que seria necessário um inexistente passo ao futuro para olhar o passado e, somente assim, aferir o quão duradouros foram os resgates de “O Amigo da Onça”. Mas, tida em uma acepção mais comum, a palavra alude à relevância que uma obra, autor ou criação obteve em um espaço de tempo mais amplo. Parece ser o caso da criação de Péricles. Ou melhor, da imortal criação do desenhista.

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1 Carmelino e Flores (2018) demonstraram que o Onça de Péricles foi inspirado na série argentina “Enemigos del Hombre”, feita por Guillermo Divito (1914-1969) e publicada a partir de 1938 na revista Patoruzú (1936-1977), editada em Buenos Aires. A certificação dos dados se deu por meio de pesquisa documental, que buscou comparar as histórias por meio de certas categorias.

2Imaginário social consiste no conjunto de relações imagéticas que atuam como memória afetivo-social de uma cultura e que nos permitem observar a vitalidade histórica das representações e das ideias (cf. Baczko, 1984). O sucesso (e a constante retomada) de “O Amigo da Onça” pode ser explicado pelo enraizamento no cotidiano da representação de seu comportamento: alguém em qam não se pode confiar.

Received: November 01, 2020; Accepted: December 01, 2020; pub: March 01, 2021

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