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Estudios Socioterritoriales

versión On-line ISSN 1853-4392

Estudios Socioterritoriales vol.21  Tandil jun. 2017

 

ARTÍCULO CIENTÍFICO

Expansão da fronteira agrícola capitalista no Baixo Araguaia Brasileiro (MT): alterações ambientais e conflitos socio-territoriais

Expansion of the capitalist agricultural frontier in the Baixo Araguaia Brasileiro (MT): environmental amendments and socio-territorial conflicts

Aumeri Carlos Bampi(*)
Mara Maria Dutra(**)
Carlos Alberto Franco da Silva(***)
Almir Arantes(****)
Claudete Ines Sroczynski(*****)

(*) Doutor em Filosofia e Ciências da Educação. Docente dos Programas de pós-graduação em Ciências Ambientais (PPGCA) e Geografia (PPGEO) da Universidade do Estado de Mato Grosso. Av. dos Ingás, 3001. Campus de Sinop, Sinop/MT, Brasil, aumeribampi@gmail.com
(**) Mestre em Ciências Ambientais. Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso. Campus de Confresa. Av. Vilmar Fernandes, 300, Confresa/MT, Brasil, mara.dutra@cfs.ifmt.edu.br
(***) Doutor em Geografia Humana. Docente do Programa de pós-graduação em Geografia (mestrado e doutorado) da Universidade Federal Fluminense. Av. Gal. Milton Tavares de Souza, s/nº. Campus da Praia Vermelha. Boa Viagem. Niterói/RJ, Brasil, carlosfds1963@gmail.com
(****) Doutor em Desenvolvimento Regional. Docente da Faculdade de Educação e Linguagem da Universidade do Estado de Mato Grosso. Av. dos Ingás, 3001, UNEMAT . Campus de Sinop. Sinop/MT, Brasil, almir.ski@hotmail.com
(*****) Doutora em Educação. Docente da Faculdade de Educação e Linguagem da Universidade do Estado de Mato Grosso. Av. dos Ingás, 3001, UNEMAT. Campus de Sinop. Sinop/MT, Brasil, claudete_ski@hotmail.com

Recibido: 27 de junio 2016
Aprobado: 15 de febrero 2017


Resumo

O estudo trata da expansão da fronteira agrícola capitalista e suas consequências no Baixo Araguaia, Mato Grosso, Brasil. Para tanto, foi feita uma revisão bibliográfica e uma busca em registros históricos e geográficos, analisando-os quantitativamente. Os primeiros habitantes do Baixo Araguaia foram comunidades indígenas, porém, entre 1910 a 1940, pequenos posseiros ali chegaram. Dois momentos modificaram profundamente a região: a chegada do latifúndio para pecuária nas décadas de 1950 e 1960, que se fez sobre diversas áreas indígenas e dos pequenos posseiros porque grandes empreendimentos agropecuários inseriram o ordenamento capitalista, desestruturando o ambiente e a sociedade. A segunda etapa tem como marco a colonização em 1970, que teve como tônica o desmatamento civilizador, inserindo migrantes sulistas naquele espaço. Na atualidade, a paisagem é adulterada pela inserção da monocultura da soja ligada às corporações do agronegócio.

Palavras chave: Conflitos socioambientais; Baixo Araguaia; Fronteira capitalista

Abstract

The study aimed at verifying the expansion of capitalist agricultural frontier and its aftermath in low Araguaia, Mato Grosso, Brazil. Literature review and search of data in historical and geographical records were used as methodology with a qualitative analysis. The first inhabitants of this area were indigenous communities and between 1910 and 1940 little squatters stepped into the region. Two phases modified the region profoundly: the first was the arrival of large cattle farms in the 1950s and 1960s on indigenous areas. Large farming enterprises inserted the capitalist system, causing severe socio-environmental disruption and environmental degradation. The second, in 1970, had as its keynote the entering of Southern migrants that brought deforestation in the area. Nowadays the landscape transformation is enhanced by the inclusion of soy monoculture linked to agribusiness corporations.

Key words: Socio-environmental conflicts; Baixo Araguaia; Capitalist frontier


Introdução

A região do Baixo Araguaia, cujo nome origina-se em virtude do rio Araguaia, é composta por 15 municípios e está localizada em uma área onde parte da vegetação pertence ao bioma cerrado e outra ao bioma amazônico. Pode-se dizer, então, que é uma região de transição entre o Cerrado e a Floresta Equatorial, muito embora, por vezes, apareça a predominância de um bioma em relação a outro.

O Baixo Araguaia abrange uma área de 116.040,30 km², correspondendo a 11,4 % da área total do Estado de Mato Grosso; porém, abriga pouco mais de 4 % da população total do Estado segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2014), com aproximadamente 130 mil habitantes, evidenciando uma baixa densidade populacional. No entanto, apresenta uma população rural bastante expressiva com 41,04 % (51.355 habitantes rurais) se considerado que apenas 15,65 % do total da população brasileira é rural (IBGE, 2010)(1).

Nas últimas décadas, essa região passou por intensa modificação da sua paisagem natural e social, em um processo de transformações socioambientais das territorialidades preexistentes, a partir da lógica dos grandes empreendimentos capitalistas incentivados pelo Estado. Duas situações, no entanto, servem como marco à região: 1) a implantação de grandes projetos agropecuários e a monocultura de pastagens a partir da década de 1950; 2) ida de migrantes via colonização oficial e privada pós 1970 e a implantação da produção de larga escala da monocultura da soja, intensificada na década de 1990. Tais momentos foram acompanhados por fortes conflitos de territorialidades e transformação socioespacial da paisagem regional.

Assim, diante de tal problemática, este estudo busca apresentar a produção dos conflitos socioambientais na expansão da fronteira agrícola na região do Baixo Araguaia. O estudo justifica-se e adquire relevância por tratar-se de uma região transformada por forças capitalistas, que, de maneira contínua e gradual alteraram drasticamente as realidades produtivas e culturais de diversas comunidades. Essas ingerências produziram degradação ambiental e conflitos socioambientais que perduram até a atualidade.

A fim de dar conta de tal problemática, o estudo apoia-se, em termos teóricos, no conceito de território. Além disso, o estudo recorre aos processos de abertura da fronteira agrícola capitalista e da expansão do agronegócio como forças de transformação do Baixo Araguaia em novas bases capitalistas para a produção de commodities.

De início, vale dizer que o território é tratado no texto como manifestação de um campo de forças em que práticas do exercício do poder estão atreladas às dimensões econômicas, culturais, simbólicas e ambientais entre grupos que disputam áreas e anunciam estratégias de controle e transformações socioespaciais, bem como de reexistências de formas alternativas de vida à dinâmica do capital. No embate do exercício de poderes assimétricos, o resultado é a expropriação e a afirmação do domínio de um grupo social sobre outros, apesar das resistências que se apresentam. No campo brasileiro, tal situação é sintomática diante das redes políticas e recursos de poder dos atores constitutivos do agronegócio. O espaço de manobra e resistência de pequenos produtores, ribeirinhos, quilombolas e comunidades indígenas é reduzido, mesmo em um cenário de lutas por direito à terra como premissa ao direito à vida na sua diversidade territorial. De qualquer modo, há, contudo, espaço para conquistas e afirmação de uma via alternativa ao agronegócio (Santos, 2007 e Silva, 2007).

O agronegócio pode ser definido como um processo social, cuja materialização dos princípios da modernidade ocorre sobre estruturas sócio-produtivas agrárias tradicionais campesinas, indígenas ou capitalistas, de modo a afirmar um arranjo produtivo marcado por uma urbanidade e uma urbanização sob a égide do modo de reprodução social da acumulação capitalista. O agronegócio é a projeção da modernidade no espaço agrário a partir da ideologia geográfica da modernização das estruturas produtivas preexistentes ou não. Em suma, o agronegócio é um fenômeno decorrente da sociedade capitalista (Silva, 2007).

Pode-se afirmar que o agronegócio projeta: 1) valores (progresso, eficiência técnica, saber científico, desenvolvimento e a tensão entre o moderno versus o atraso do outro); 2) discursos (desenvolvimentismo e ausência de alternativa fora do agronegócio); 3) ideologia geográfica da despolitização social via discurso da técnica e da modernização da agricultura; 4) poderes e saberes capazes de recompor territórios rurais capitalistas, destruir/integrar territorialidades campesinas e indígenas preexistentes e inserir, de modo precário, territorialidades e estruturas sócio produtivas. Em virtude de tais premissas do agronegócio, coloca-se a necessidade de novas formas e espaços de representação política e de interesses dos atores-rede do agronegócio e a intensa articulação campo-cidade nos esquemas de acumulação produtiva, mercantil e financeira, em diversas escalas geográficas.

A fronteira agrícola capitalista contribui para a afirmação do agronegócio. Ela seria o espaço de contato entre uma frente civilizatória do ideário capitalista e as formas tradicionais de produção social e material. A fronteira tem funcionado como um processo social de integração de áreas à dinâmica do capital nacional e internacional. A dimensão cultural, ideológica e simbólica da modernidade capitalista dá-se no processo de transformação de estruturas sócio-produtivas consideradas atrasadas e periféricas aos reclamos do capital. No tocante à confrontação cultural, a fronteira contempla representações e práticas coletivas diversas e em tensão. Algumas dessas representações forjam interesses hegemônicos de determinados grupos apartir do discurso da modernização, progresso e desenvolvimento. O choque de tais representações sobre territorialidades alternativas cria um cenário de instabilidade social, que é uma dimensão importante da fronteira. Isso porque a fronteira, como palco de disputa por espaços, resulta em conflitos culturais e sociais específicos, ou seja, de acordo com os grupos em tensão e em luta por recursos diversos. A fronteira não avança sobre terras vazias de conteúdo social. Assim, é na fronteira que se agudizam contradições que são parte da sociedade capitalista.

Em resumo, a expansão da fronteira agrícola capitalista, em áreas do território brasileiro sinaliza para processos de concentração fundiária, degradação ambiental, migração programada ou espontânea, transformação das relações de produção (êxodo rural e proletarização do pequeno produtor), conflitos fundiários, modernização da base técnico-produtiva, extensão da rede urbano-industrial, desterritorialização, reterritorialização e marginalização de grupos sociais e/ou lugares.

Definidos os objetivos, a justificativa da problemática espaço-temporal e o recorte teórico, vale ainda destacar que a temática em tela é analisada a partir de eixos de investigação enquanto premissa metodológica para fins de desenvolvimento do estudo das transformações por que passa o Baixo Araguaia diante da expansão da fronteira do agronegócio em áreas do Cerrado brasileiro. Para tanto, o texto é dividido em três partes. A primeira é uma contextualização histórico-geográfica das transformações recentes no Baixo Araguaia. As duas partes seguintes voltam-se para o estudo mais detalhado de dois atores em conflito com o agronegócio: as comunidades indígenas e os pequenos produtores. Por fim, são feitas considerações finais sobre a problemática em questão.

A integração à dinâmica do capitalismo nacional

A partir da segunda metade do século XX intensificaram-se os processos de inserção do capitalismo no interior do país. A alavanca dessas ações foi o próprio Estado com seu viés ideológico desenvolvimentista a partir de grandes planos, obras e projetos. Dentre as intervenções territoriais destacam-se a logística de interligação de eixos rodoviários, redes de comunicação e a busca de configuração de um mercado produtor-consumidor regional e sua posterior integração com o mercado nacional e internacional (Becker, 2007).

No caso do Baixo Araguaia (Figura 1), o uso e a ocupação não indígena tiveram início na década de 1910 (Soares, 2004), quando posseiros oriundos do Estado do Pará, e mesmo do Estado de Goiás foram pressionados pelos governos e pelo coronelismo latifundiário em suas áreas de origem. Com a regularização fundiária, a posse jurídica das terras devolutas passou a grandes fazendeiros e tal situação obrigou-os a sair dos locais que ocupavam (Velho, 2009). A alternativa foi adentrar ainda mais no interior do país. Nessa fase, ocorreu também o deslocamento de nordestinos por meio das "bandeiras verdes" que buscavam "áreas de mata virgem, de terras livres e férteis, à beira dos grandes rios" (Schlesinger y Noronha, 2006, p. 52-53). Em consequência, ocorreram conflitos ocasionais entre posseiros e as comunidades nativas indígenas.

Tal situação sofreu modificação a partir das políticas públicas emanadas do governo federal na década de 1940, no seio daquilo que se denominou de projeto geopolítico damarcha para Oeste. Tais políticas enunciavam que o país seria tomado em seu interior por um processo de desenvolvimento econômico planejado, e caracterizado pela exploração das riquezas naturais existentes e constituição de mercados regionais, poderia se conectar ao mercado exterior. Assim, desde 1940, foram constituídos programas e projetos que visavam dar ao Centro-Oeste brasileiro e ao Norte do Brasil uma conexão com a produção nacional, bem como visualizar a inserção no mercado externo. Fundamentou-se tal processo na implantação de grandes empreendimentos extrativistas vegetais e minerais e na produção pecuária por intermédio de latifúndio. Nesse período, a política do Governo Getúlio Vargas constituiu-se de um forte discurso ideológico que ecoou fortemente nas décadas subsequentes.

A partir de 1950 ocorreu, na região do Baixo Araguaia, o início de grande modificação da paisagem aliada à ampla modificação das relações sociais e políticas. Do ponto de vista do território, consolidou-se a hegemonia política do latifúndio, a sobreposição da pecuária sobre outras formas de existência e sobrevivência, em especial a agricultura de subsistência dos posseiros (Soares, L. 2004). Simultaneamente, a questão do exercício da territorialidade dos indígenas acabou sendo suprimida ou resistindo em espaços pressionados e confinados em meio a grandes fazendas e empreendimentos. De fato, esses povos sempre foram reféns do forte etnocentrismo da fronteira que tratava o indígena como um ser atrasado e que deveria ser integrado à civilização (Soares, L. 2004; e Silva, C. 2007).


Figura 1
. Região do Baixo Araguaia
Fonte: Garbin, 2011, apud IBGE, 2006 e SDT/MDA, 2009

Na década de 1970 já se manifestavam consequências do modelo agrícola desenvolvido e em crescente expansão à época, oriundo da revolução verde e da mecanização do campo: concentração de renda e terra. Diante disso, muitos agricultores familiares buscaram terra e sobrevivência, repetindo a caminhada que fizeram muitos imigrantes europeus, em especial italianos e alemães, ao vir ao Brasil no século anterior (Bampi, 2012). Destaca-se que os descendentes dos imigrantes, menos de um século depois, encontravam-se quase na mesma condição de mobilidade, necessitando de terra e de trabalho, tendo que migrar novamente. A partir desse contexto, os governos militares constituíram autocraticamente programas e projetos que os levaram ao cenário da Amazônia Legal. Em consequência de tais políticas territoriais do Estado militar, aproximadamente 26 mil famílias de agricultores familiares migraram em direção ao Baixo Araguaia.

No tocante à migração nacional, Mato Grosso foi palco, a partir de 1970, bem como outros Estados do Centro Oeste e da Amazônia, de amplo processo de interiorização de um modelo de desenvolvimento capitalista. Constituíram-se mercados regionais articulados à dinâmica do capitalismo internacional. Assim, diversas regiões deste Estado foram "rasgadas" por estradas abertas pelos colonizadores e, posteriormente, colocadas à venda aos colonos migrantes, que se dedicaram ao mesmo tempo à exploração de recursos florestais e à abertura de áreas para a agricultura, dentro da ótica de um país com "vocação agrícola". O fato é que tal pressuposto vocacional ocorreu com a indução da política agrícola e da modernização conservadora da agricultura brasileira iniciada no Sudeste e no Sul do país com a inserção da cultura da soja e do impulso das corporações do agronegócio.

O Estado de Mato Grosso e o Baixo Araguaia tornaram-se partes de uma peça desempenhada no cenário nacional, uma vez que os governos militares estabeleceram os traçados das rodovias que fariam as ligações dos "novos espaços" ou "espaços atrasados" com o Brasil já "civilizado e desenvolvido", de modo a fortalecer a integração do país e impulsionar o comércio exterior (Picoli, 2005).

Assim, quando os recursos de exploração inicial escassearam, adentrava a exploração a partir da fronteira da pecuária extensiva, depois a fronteira agrícola da soja, milho e posteriormente o algodão (monoculturas). Nesse formato, o que interessava era o processo de modificação do uso da terra em grandes extensões (latifúndios), em especial para as atividades que geram um fluxo de negócios dentro da cadeia produtiva instalada e conectada às grandes corporações agroindustriais.

Tal processo era parte integrante de uma estratégia nacional demandada pelas diretrizes do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND-1974-79): expansão dos complexos agroindustriais como uma das políticas territoriais de desconcentração produtiva do país e de industrialização da agricultura. Nesse processo, no Brasil, reproduziu-se o pacote ideológico e tecnológico da "revolução verde", consolidado no Sul-Sudeste, na década de 1970, e expandindo-se, na década de 1980, em direção aos biomas do Cerrado do Centro-Oeste e da Floresta Equatorial da Amazônia.

Ainda sobre a questão do modelo de desenvolvimento rumo ao Centro-Oeste e à Amazônia, ocorreu um processo de acumulação primitiva porque a capitalização não se realiza por processos produtivos industriais modernos, mas sim pela apropriação de terras, riquezas naturais e minerais e exercício de poder hegemônico sobre um território. Logo, o roubo, a usurpação, ou mesmo a compra de terras a preço baixo pelas empresas colonizadoras, grandes empresários ou por fazendeiros são exemplos da acumulação primitiva na contemporaneidade (Lencioni, 2012). Tal situação desterritorializou populações sobre o território ou mesmo as dizimou (Haesbaert, 2007). Vejamos como esse processo afetou dois atores em destaque: as comunidades indígenas e os pequenos produtores rurais.

O avanço sobre territórios indígenas

Na região do Baixo Araguaia, os primeiros habitantes foram membros de comunidades indígenas de etnias diversas, destacando-se os Xavantes, Tapirapés, Kaiapós e Karajás (Dutra, 2015). A chegada desses povos à região compreende uma história de pelo menos três séculos (Baldus, 1970).

Ocasionalmente, essas etnias entravam em disputa territorial, situação que as colocava em confronto pela ocupação das áreas nas quais exerciam sua sobrevivência. A Figura 2 revela que estavam estabelecidas entre o rio Araguaia e o rio Xingu, sendo os Kaiapós mais ao norte, os Tapirapés mais ao centro da região, os Karajás ao sul (sentido leste) e os xavantes ao sul (sentido oeste). Contudo, como se pode observar na Figura 3, as terras indígenas foram demarcadas, posteriormente, em espaços de resistência, mas tiveram seu território expressivamente diminuído.


Figura 2.
Localização das etnias indígenas do Brasil Central, em uma sobreposição ao Baixo Araguaia
Fonte: Wagley, 1988

 


Figura 3
. Municípios e terras indígenas (T.I.) do Baixo Araguaia na atualidade
Fuente: Elaboração Raphael Maia Aveiro Cessa, 2014

Entre 1910 e 1950 a situação foi alterada pela entrada da figura do posseiro no território. Pressionados, em especial no Estado de Goiás, pela regularização de terras das quais não possuíam documentos eles partem rumo ao sertão de Mato Grosso. Muitos posseiros também eram oriundos do Estado do Pará e mesmo tantos outros migrantes descendentes de nordestinos foram rumo à região do rio Araguaia, seguindo o caminho dos seus afluentes (Soares, 2004).

O convívio entre comunidades indígenas isoladas e não indígenas inseriu nas comunidades nativas epidemias de gripe, varíola e febre amarela, que quase levou ao extermínio o povo tapirapé, em diversas aldeias (Wagley, 1988). Nesse contexto, surgiram diversos povoados não indígenas (Casaldáliga, 1971), tais como: 1) Santa Terezinha, que se iniciou em 1910 e, no ano de 1931, já possuía igreja, escola e casas para os missionários; 2) Luciarae São Feliz, que tiveram seu povoamento iniciado por volta de 1934 e 1941, respectivamente. Muito posteriormente, tais localidades foram transformadas em municípios (Dutra, 2015).

Na atualidade, ainda é possível verificar a origem dos descendentes dos migrantes pela questão linguística (Brasil, MDA, 2006). Os nordestinos adentravam a Amazônia em virtude das possibilidades de vida e de busca pela terra (Velho, 2009). Tal questão é referente também à "bandeira verde", como crenças na profecia de que os nordestinos deveriam ir ao "sertão verde", associado às matas do Araguaia.

Os primeiros migrantes não detinham documentos de registro das terras que ocupavam, por isso foram chamados de posseiros (Soares, 2004). Essas pessoas exerciam uma relação de dependência com a natureza, pois retiravam dela o básico para a sua subsistência, não causando alteração significativa da paisagem. Eram praticantes de roças caipiras e de criação de animais, masfoi a partir de sua presença que diversos conflitos com indígenas eclodiram.

Do ponto de vista das relações sociais, não havia um estado de confrontos sistemáticos com as comunidades indígenas. Tal situação ocorria, na maioria das vezes, quando os posseiros adentravam territórios usados pelos indígenas para a exploração de recursos naturais.De qualquer modo, a territorialidade indígena foi afetada pela presença de novos atores, valores e costumes urbanos (Soares, 2004).

Por parte dos posseiros havia uma espécie de medo dos indígenas, uma vez que, além de estarem cientes da presença de diversas etnias na região, sabiam que em áreasalém do rio Xingu habitavam outros povos nativos. O receio existia também por parte dos indígenas, que temiam o confronto com caçadores, pescadores ou mesmo exploradores que adentravam suas terras (Soares, 2004).

A chegada do latifúndio pecuarista

A partir de uma política desenvolvimentista traçada no ideário da marcha para Oeste, o Centro-Oeste do Brasil e a Amazônia, a partir da década de 1950, passaram a ser territórios para o exercício de programas, projetos e ações que aliaram o governo federal ao capital privado.

No contexto de tais programas e projetos, os indígenas foram tratados como seres encobertos, invisíveis, não existentes, uma vez que o modelo de desenvolvimento não permitiu a sua presença e politicamente não convinha que se mantivessem nessas áreas. Frente ao processo de incorporação do território à economia capitalista, apareciam como entraves. Sequer foram ouvidos quando se tratava de desenvolver projetos ou empreendimentos que afetassem suas terras ou o entorno delas. A invisibilidade e o encobrimento foram propositais porque o interesse estava nas terras, tanto que fazendas foram estabelecidas sobre territórios indígenas. Muitos atestados de não existência de indígenas na região do Araguaia foram expedidos por intermédio do órgão oficial responsável pelos indígenas, nesse caso pelo SPI (Serviço de Proteção ao Índio). Tal atestado era condição necessária à implantação e ao financiamento do empreendimento. No entanto, mesmo com atestados fraudulentos ou não condizentes com a realidade, as comunidades indígenas estavam lá emuitas pessoasviveram nessas terras até sua remoção forçada, como foi o caso da fazenda Suiá-Missuno Baixo Araguaia.

A região do Baixo Araguaia estava aberta à exploração capitalista. A partir de 1950 tornou-se espaço para grandes empreendimentos latifundiários, os quais propiciaram conflitos socioambientais no território que comportava terras indígenas e terra de posseiros. Inseriu-se uma grave problemática, uma vez que os latifundiários vinham chancelados juridicamente, pois atestara o órgão oficial a não existência de indígenas.

Tal situação possibilitou a expulsão dos indígenas que, mesmo estando sob a tutela da União pela legislação da época, foram removidos de suas terras ancestrais. As terras indígenas foram tomadas por fazendas de grandes extensões. Dentre os projetos financiados estava a Agropecuária Suiá-Missu, conhecida como um dos maiores latifúndios do Brasil e que, com mais de meio milhão de hectares, foi instalada em áreas pertencentes ao povo xavante e sua sede construída sobre uma das aldeias.

Localizam-se na região a maior parte dos empreendimentos agropecuários "“ Fazendas ou companhias "“ aprovados pela SUDAM. Entre eles, a Suiá-Missu, Codeara, Reunidas, Frenova, Bordon, Guanabara, Elagro, Tamakavy, etc. [...] As áreas de alguns destes empreendimentos, em território da Prelazia, são absurdas. Destacando-se entre todas a AGROPECUÁRIA SUIÁ-MISSU S/A com 695.843 ha e 351 m² (Casaldáliga, 1971, p. 3 e 9).

Por inúmeras vezes as comunidades indígenas resistiram, constituindo o conflito em favor da reexistência (afirmação de existência) de seu território de vida, mas a ação da pistolagem(2) os amedrontava eeram obrigados a fugir para novas áreas. Com os posseiros a situação também originou inúmeros conflitos e violência.

Frente ao poder capitalista organizado, subsidiado juridicamente e amparado financeiramente pelo Estado brasileiro, a situação foi de alta fragilidade em relação aos indígenas e posseiros. À medida que a formação das pastagens e delimitação do espaço (com o uso de cercas de arame) avançava, as antigas aldeias eram deslocadas, ficando para trás suas roças, casas, cemitérios e outras referências, motivo de tensão e conflito entre a agropecuária e os indígenas. A solução encontrada em 1967 pelos grandes proprietários, em acordo com o extinto SPI, foi a transferência dos Xavantes para a Missão Salesiana de São Marcos e outras áreas como as de Sangradouro, Prabubure e Couto Magalhães.

Após essa mudança a maioria dos indígenas adoeceu e veio ao óbito, evidenciando a desesperadora situação dos Xavantes, bem como de outros povos como Tapirapé e Karajá, que sofreram de modo diverso o processo da violenta retirada de suas terras. Em 2004, por decisão judicial, a fazenda "“ hoje Terra Indígena Marãiwatsédé "“ foi devolvida ao povo Xavante.No entanto, os conflitos continuaram devido à permanência de grileiros, madeireiros e fazendeiros na área. Uma década após, no ano de 2014, foi realizada a chamada desintrusão, isto é, a retirada de todos os ocupantes não indígenas da área.

Diferentemente dos indígenas e dos posseiros, que eram destituídos de escolaridade, de conhecimento de legislação e de força política, os grandes empreendedores e fazendeiros possuíam amparo jurídico, conheciam as legislações e exerciam trânsito político em diversas esferas (em âmbito local, regional e, por vezes, por intermédio de suas representações, também em esfera nacional). Além disso, dispunham de força de polícia legal e ilegal (pistoleiros) para fazer valer o que consideravam suas propriedades pelo estado de direito (terra e riquezas dispostas).

Em relação à questão de direitos previstos e garantidos pela legislação brasileira para proteção de territórios, tanto indígenas (que estavam sob a tutela do hoje extinto SPI) quanto dos posseiros que não tiveram condição de exercer reação legal, na época, a proteção de seus espaços e de suas comunidades ocorreu apenas no nível pessoal, colocando-os na problemática linha de risco à integridade física. Aumentava, portanto, a tensão. Policiais e pistoleiros, a mando de fazendeiros e de capatazes, disseminaram a violência psicológica e física contra os posseiros e indígenas ao mesmo tempo em que o território-ambiente ia sendo devastado para dar lugar a grandes extensões de pastagens.

A questão central da disputa para os fazendeiros era a apropriação de fato da terra, riquezas florestais e minerais, enquanto que para os indígenas e para os posseiros era a realização da defesa de seu território de vida. Sem amparo jurídico, desprovidos de entendimento sobre seus direitos, sem políticas públicas que os respaldassem, restava-lhes recuar e fugir, quando podiam, do jogo da violência jurídica, da violência da usurpação do espaço, da violência física e psicológica (amedrontamento) implantada. Assim eram expulsos, removidos e, muitas vezes, mortos; porém, a violência não cessou. Do ponto de vista sociopolítico e trabalhista, estabeleceram-se na região, no período posterior a 1950/1960, relações de trabalho escravo e/ou em total desacordo com as regras trabalhistas vigentes no país envolvendo indígenas, posseiros e peões, coronelismo e controle sociopolítico a partir dos latifundiários (Souza, M. 2009).

Ao mesmo tempo, estabelecia-se uma forte pressão sobre as terras indígenas e a exploração ilegal de suas riquezas, em especial a madeira e a mineração do ouro. Destacam-se, em especial, as terras dos povos Tapirapé e Xavante, ocupantes da Terra Indígena Urubu Branco e Marãiwatsédé, respectivamente, que tiveram suas terras invadidas, tomadas e exploradas exaustivamente pela retirada de madeira e transformadas em áreas de pastagem. Tais áreas foram destinadas ao plantio de soja a partir da década de 1990 e houve a total descaracterização de seus territórios, os tornando inaptos ao modo de vida indígena e os obrigando a ressignificar sua agricultura, seu modo de subsistência e de relações com a natureza degradada (Ramos, 2014).

A reprodução do desmatamento civilizador: colonos migrantes no araguaia

Um marco legal que merece destaque na produção de um cenário de fortes transformações socioambientais para a Amazônia Legal, e também em específico para a região de estudo, foi estabelecido no ano de 1970 pelo governo federal brasileiro, por intermédio da criação do Programa de Integração Nacional (PIN). Instituído pelo Decreto-Lei Nº 1.106, teve o intuito de realizar a configuração de mercados regionais de produção de bens e serviços, legitimando o processo de integração na economia nacional. Possuía ainda, como fim, o financiamento de um plano de obras de infraestrutura das regiões situadas nas áreas de atuação das Superintendências de Desenvolvimento, no caso de Mato Grosso, a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM (Brasil, 1970). Com o PIN, foi intensificada a abertura de áreas consideradas inóspitas ou sem desenvolvimento, ou seja, "territórios vazios".

Repetiu-se a formação discursiva civilizatória em que, a um território vazio, levar-se-ia "gente" e desenvolvimento por intermédio dos eixos-rodoviários como "ocupação racional". Os meios de comunicação de massa expunham, na década de 1970, em especial rádio e televisão, a propaganda oficial que os caminhos em meio à "selva bruta e natureza indomada" eram preparados pelo governo e que a Amazônia era"uma área que se caracteriza por um vazio demográfico só comparável às desoladas regiões polares"(Brasil, Agência Nacional,1970).

Nesse processo, surgiram os movimentos migratórios sulistas ao vale do Araguaia, mas não de ordem espontânea como os primeiros da margem esquerda do rio Araguaia que foram povoados por nordestinos. Esses eram movimentos diretamente configurados por políticas públicas de Estado, de ordem induzida que angariavam trabalhadores e agricultores sulistas, em sua maioria, oriundos do campesinato, que estavam ávidos em busca de terra, trabalho e renda. Buscavam futuro na exploração das riquezas da Amazônia amplamente divulgadas.

Para os nordestinos, os caminhos de chegada à Amazônia haviam sido os rios; para os sulistas, que já vivenciavam o processo de modernização capitalista (ou os excluídos desta, no caso dos participantes dos assentamentos oficiais e despossuídos da terra na região de origem), os caminhos de chegada foram rodovias federais (BRs) e, no caso específico do Araguaia, a BR-158 e a BR-080, esta última, construída no contexto do PIN, cortou ao meio o atual Parque Indígena do Xingu.

Ressalta-se que, muito embora a propaganda governamental para abertura da Amazônia na década de 1970 era "fornecer terra ao homem sem terra do Nordeste brasileiro" (Brasil, Agência Nacional, 1970), a colonização ocorreu com base nos campesinos sulistas. Essas pessoas almejavam terra ou mesmo o aumento da extensão de sua propriedade no novo lugar da esperança de dias melhores: a Amazônia.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), criado em 1971, era "responsável pela colonização, pela implementação e pela autorização dos projetos privados de colonização da Amazônia" (Gawenda et al., 2011, p. 5). Dessa forma, os detentores do capital, como grandes empresários e proprietários nacionais e estrangeiros, receberam incentivos financeiros para realizar a colonização particular na Amazônia, implicando na ampliação da fronteira capitalista por parte da iniciativa privada "de forma legalizada". Várias empresas "colonizadoras" adquiriram grandes extensões de terras, as quais foram recortadas em lotes. Ocorreu, então, em especial na região Sul do Brasil, uma ampla divulgação da venda desses lotes, e assim se iniciava a migração colonizadora.

Nesse processo, um novo modelo de degradação foi inserido na região: o desmatamento civilizador. Milhares de agricultores "“em especial sulistas"“ em busca de terra e de trabalho, motivados por propagandas que traziam o ideal de progresso e desenvolvimento, seguiram rumo à região do Araguaia. Muitos agricultores familiares sulistas, com pequenas propriedades em seus locais de origem, ou mesmo sem terra, cuja maioria fora filhos, netos e bisnetos principalmente de migrantes italianos e alemães que manejavam a terra, tornaram-se migrantes contemporâneos, com o sonho de transformarem-se em grandes produtores e fazendeiros. Promoveram um intenso "desmatamento civilizador", replicando situações de intensa degradação ecológica, outrora vivenciadas e constituídas por eles e seus ancestrais em seus locais de origem, no Sul do Brasil, em especial nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná (Bampi, 2012). Houve na Amazônia a repetição da intensa agressão aos sistemas ecológicos. Nesse processo de migração,

a nova fronteira de colonização amazônica significava o "mel" para o colono sulista e nordestino. Era sinônimo de fartura, pois ele era a esperança de adoçar e alimentar suas vidas. Seus projetos de vida sempre foram represados por meio das condições de trabalho e moradia, da vida simples e difícil por seguidas gerações (Picoli, 2005, p. 71).

Nesse período, ocorreu também a inserção de vários programas de assentamento da reforma agrária promovidos pelo INCRA. No entanto,

...os projetos de assentamentos, por sua vez, não tiveram por objetivo promover mudança na estrutura fundiária da região, mas buscaram eliminar focos de tensão social ou simplesmente regularizar a situação de antigos posseiros. Entretanto, eles não foram acompanhados de um programa de desenvolvimento agrícola, o que deixou muitos assentados em situação precária, enfrentando todo tipo de problema, entre eles a falta de infraestrutura de estradas, escolas, saúde, armazéns, mercados, assistência técnica e financiamentos (Schlesinger y Noronha, 2006, p. 60).

A partir dos programas de assentamento, o Baixo Araguaia recebeu muitos migrantes de várias partes do país. Muitos deles "compravam lotes nas áreas de colonização ou eram assentados pelo Programa de Reforma Agrária ou simplesmente se apossavam da terra. Esse processo de ocupação fez grande parte do território ser ocupada por agricultores familiares" (Dutra, 2015, p. 55). Segundo a autora, existem na região mais de 26.000 famílias de pequenos agricultores, dispostos em 69 programas de assentamentos de reforma agrária regularizados pelo INCRA, bem como nos projetos da iniciativa particular.

Mas a colonização, longe de oferecer espaços de esperança, fortaleceu o ordenamento capitalista, pois partia da premissa de que a terra é uma mercadoria e poderia ser ofertada "no varejo", colocada à disposição de maneira mais ampla do que apenas aquela ofertada nas décadas de 1950 e 1960 aos grandes empreendimentos agropecuários.

A atividade de colonização foi realizada por intermédio de empresas particulares a agricultores capitalizados e por meio do INCRA àqueles que não possuíam condições de acesso e, assim, foram atraindo gente para a região. Os agricultores sulistas foram mobilizados pelas políticas indutivas e dissolveu-se qualquer possibilidade de participarem de movimentos sociais para mudança da estrutura agrária no país, de ações políticas de envolvimento em protestos ou reivindicações por terra em suas regiões de origem.

A solução estava dada pelo governo militar. A principal questão política do país era fortalecer a apropriação das riquezas florestais, minerais e o domínio capitalista da terra. Naquele período, no sul do país, intensificava-se uma política de tratar o agricultor não mais como um "colono", mas sim como um empresário do campo, um empreendedor com vistas à produção para o mercado. Suprimia-se assim a ideia de colono, camponês, relativa aos migrantes europeus de outrora radicados no sul no último quarto do século XIX, voltados ao policultivo e a venda do excedente.

No Araguaia surgiram novas áreas agrícolas e diversos municípios (Tabela 1) ao longo dos eixos das rodovias, facilitando a inserção de populações no território e a exploração de riquezas, em especial a madeira. Sem controle, o extrativismo depredatório acabou por fazer parte do dramático processo da história ambiental regional, pois deixou gravíssimos passivos ambientais, trabalhistas e de violência, bem como de concentração de renda e poder.

Tabela 1. Ano de criação dos municípios do Baixo Araguaia
Fonte: Dutra, 2014, a partir de dados do IBGE

O crime organizado tomou conta da exploração madeireira na região e a ilegalidade era ampla e amparada por grupos políticos locais. Assim, a economia da madeira não seria perenizada. Tal como em outras regiões do país, teve breve ciclo e foi apenas uma energia acumulada (matéria-prima a ser transformada em recurso econômico) que deveria ser modificada para gerar trabalho e riqueza inicial ao processo posterior de inserção da pecuária ou agricultura. Nesse contexto, ser madeireiro era apenas constituir parte de uma fase de negócio do que viria a ser posteriormente o produtor pecuarista ou agrícola.

Cabe destacar que para tornar a terra produtiva para as lavouras, inicialmente, os pequenos agricultores realizaram intenso desflorestamento e queimada das áreas com alto impacto ao ecossistema e aos grupos indígenas que ainda habitavam a região. Posteriormente à derrubada, os agricultores, mesmo oriundos de regiões agrícolas sulistas que não tinham intimidade com a pecuária de corte, introduziram pastagem destinada ao gado como se estivessem sintonizados com os grandes empreendimentos instalados na região, décadas antes.

Gradativamente essa pastagem foi sendo removida para o plantio de grãos, em especial a soja, na medida em que ia se fortalecendo a possibilidade do cultivo adaptado ao clima tropical e uma rede de negócios na década de 1990. Isto contribuiu para a formação de uma cadeia comercial e de logística que atendia a produção agrícola, sob o atento processo de estabelecimento das redes políticas das corporações do agronegócio no contexto do Mato Grosso e do Centro Oestedo país.

A soja chega ao araguaia: o latifúndio moderno

O Baixo Araguaia vivenciou, nas últimas décadas, grandes modificações em sua paisagem natural e social, as quais foram impulsionadas por um modelo de desenvolvimento capitalista, que consistiu na ocupação de novas terras para negócios, com destaque para a agricultura. Quanto a esse aspecto, o relevo foi uma variável que exerceu grande influência na forma de uso e de ocupação do solo. Terrenos planos apresentaram altas taxas de ocupação e isso favoreceu um processo de ocupação bastante significativo, pautado na utilização da mecanização agrícola, que facilitou a concentração de terras pela pouca necessidade de mão-de-obra. A região é uma das últimas fronteiras agrícolas do Estado de Mato Grosso, onde os "solos são classificados como latossolos, profundos, bem drenados, predominando relevo plano a suavemente ondulado", propícios para o cultivo mecanizado em grande escala. (Schlesinger y Noronha, 2006).

De acordo com Maitelliy Zamparoni (2007), as áreas de pecuária extensiva de pastagens cultivadas do norte mato-grossense estão progressivamente sendo convertidas em áreas de produção agrícola mecanizada. Dessa forma, extensas áreas de pastagens, anteriormente destinadas à pecuária, são removidas para a introdução da soja. Nesse sentido, cabe observar o intenso crescimento da área plantada do grão nos municípios da região, que hoje ultrapassa meio milhão de hectares e há um pouco mais de uma década eram de menos de 15 mil hectares.

Tal situação faz crescer a hegemonia política das corporações do agronegócio exportador expondo-o e apresentando-o como a única e grande solução política para o desenvolvimento econômico regional. Além disso, a região apresenta várias alternativas para o escoamento de grãos. Esses fatores, aliados aos negócios das grandes corporações e a disputa que exercem no comando desse território, contribuem para o aumento significativo da área plantada da soja, como pode ser observado na Tabela 2.

O processo também ocorre sobre o território da agricultura familiar. Com efeito, as lavouras modernas de soja e milho ofuscaram o desenvolvimento de culturas alimentares "tradicionais", como o arroz, a mandioca e o feijão e estão substituindo a pecuária extensiva por uma produção concentrada da pecuária.

Tabela 2. Área de soja plantada nos municípios do Baixo Araguaia "“ em hectares
Fonte: IBGE/SIDRA "“ Produção Agrícola Municipal. 2013

Para a implantação dos grandes latifúndios, desde a década de 1950, extensas áreas de cerrado e da floresta amazônica foram desmatadas em detrimento de pastagens cultivadas. A partir de 1990, foram transformadas em áreas de agricultura mecanizada para o cultivo da soja. Entretanto, vários são os problemas socioambientais provocados pela implantação do monocultivo da soja, dentre os quais podemos destacar: intensificação do desmatamento (Tabela 3), concentração fundiária, aceleração da perda da biodiversidade, erosão do solo, efeitos de substâncias químicas agrícolas sobre o meio ambiente e sobre a saúde humana, contaminação dos recursos hídricos, assoreamento de nascentes, córregos e rios.

Há na atualidade uma relação direta entre o aumento de área plantada de soja, o desmatamento na região do Baixo Araguaia e a consequente degradação ambiental, bem como a construção de uma dinâmica territorial exercida pela força das corporações de grãos sobre os agricultores familiares. É uma situação recorrente, tal como ocorreu na questão da pecuária para os colonos migrantes que chegaram a partir da década de 1970 em diante.

Schlesingery Noronha (2006) ampliam a lista dos problemas, quando afirmam que muitos pequenos produtores vendem suas propriedades, motivados pela oferta de dinheiro ou pelos problemas causados pelo desmatamento e uso intensivo de agrotóxicos das grandes fazendas no entorno.

O revigoramento territorial do latifúndio ocorre na região ao fazer uso de estratégias políticas, por intermédio de redes, com formas aparentemente "legalizadas". Na verdade, existe a exploração de mão-de-obra barata, bem como a incorporação cada vez maior de áreas da agricultura familiar (por intermédio de compra ou sistema de arrendamento) de pequenos agricultores, outrora migrantes da época da colonização e mesmo dos recentemente assentados (Silva, 2007).

Tabela 3. Dados do desmatamento nos municípios do Baixo Araguaia
Fonte: Elaborado Dutra, a partir de dados PRODES (2014)

Conclusão

Há um revigoramento do processo latifundiário na atualidade e eleocorre em virtude de que a expansão da fronteira agrícola moderna surge por meio da implantação da monocultura da soja, que disputa terras com a agricultura familiar e com a pecuária extensiva instalada na região desde as décadas de 1950 e 1960. Configura-se a ascensão de uma nova hegemonia política das corporações do agronegócio (grãos e carne) sobre outras formas de vida social. A demanda dessas commodities no cenário internacional pressiona a reconfiguração territorial e o avanço da fronteira capitalista.

A região do Baixo Araguaia é lócus de alta complexidade socioambiental por ser uma área de transição entre os biomas da Amazônia e Cerrado e por ser palco de formas diversas e confrontantes de reprodução social e de relação homem-natureza. Na atualidade, a região é ocupada e composta por diversos grupos sociais: indígenas, posseiros (de meados do século XX até ocupações recentes), pequenos agricultores ou agricultores familiares (migrantes do processo de colonização particular ou que ocupam grande número de assentamentos de projetos do INCRA), grandes fazendeiros, empreendedores agropecuários e empresários. Estes últimos exercem um poder desproporcional sobre a configuração social, política e ambiental da região em detrimento de outros grupos de parca ou menor influência.

Nesse contexto, é preciso dizer que o Baixo Araguaia é palco da barbárie da modernização conservadora da agricultura brasileira, em que o avanço da fronteira agrícola capitalista se realiza com a manutenção e reforço do exercício do poder dos latifundiários e corporações multinacionais (CARGILL, BUNGE, DREYFUS e ADM). A condição de atraso a que lugares e temporalidades estão sujeitos os coloca na rota da modernização dolorosa, nos termos de destruição de biomas e de territórios de vida alternativos ao agronegócio.

No tocante à questão socioambiental atual, acrescenta-se que se reafirmam os campos de força entre territorialidades excluídas ou precariamente inseridas na órbita do capital eda territorialização dos atores do agronegócio. Campos distintos explicitam concepções conflitantes da relação sociedade - natureza e sustentabilidade. De um lado seguem as lutas de comunidades indígenas e campesinas diante do avanço da fronteira agrícola sobre seus territórios de vida e reprodução sociocultural, assim como aparecem formas agroecológicas de produção de alimentos realizadas por pequenos produtores familiares. De outro ladocorporações e latifundiáriosque sinalizam outro campo de força que,mesmo com políticas mitigadoras de impactos ambientais e com marketing ambiental, prosseguem impulsionando a fronteira do devassamento.

A realidade demonstra que os diversos modelos de sociedade existentes no Baixo Araguaia constituem modos específicos de ação-interação sociedade-natureza. A configuração territorial vai desde os modelos de convivência e de cooperação com a natureza e entre si, até aos modos mais seletivos e predatórios que constituem processos de intensa agressão aos sistemas culturais diversos e aos sistemas ecológicos. A forma displicente como é tratado esse cenário implica um controle cada vez maior do território por um número diminuto de habitantes com a produção baseada na monocultura destinada ao comércio nacional ou externo que usa pouca mão de obra local. Há também, neste caso, estreita relação entre concentração de terra, renda, podere pressão sobre os sistemas ecológicos.

Apresenta-se tal situação a partir do ordenamento capitalista do latifúndio de pastagens (décadas de 1950, 1960), da colonização (1970) e da inserção da monocultura de larga escala da soja (1990). A cultura dessas espécies exógenas, que foram inseridas no bioma amazônico e no Cerrado, resultou na destruição da biodiversidade da paisagem regional, restando hoje o domínio das pastagens e da soja.Tal domínio da paisagem é consequência de uma ação política da sociedade sobre a natureza em dado território.

As formas de relações entre as sociedades e grupos diversos no contexto do Baixo Araguaia apresentam-se ainda altamente conflitivas, uma vez que aterritorialização capitalista implica resistência paraos indígenas, posseiros e agricultores familiares. A terra, a água, a fauna e a flora nativa e suas produções diferenciadas representam vida, já para o latifundiário interessa o negócio eos recursos financeiros, sem se preocupar com os passivos socioambientais realizados por seu modo de exploração das riquezas e produção para com aquelas populações.

A hegemonia política do latifúndio e das monoculturas (quer da pecuária, quer da cultura da soja) exerce-se à força sobre os habitantes de menor poder político-econômico dos espaços de reexistência (indígenas, posseiros e agricultores familiares) e seu território-ambiente.

Há mais de seis décadas, o poder político-econômico (grandes empreendimentos, grupos econômicos e corporações aliados em redes políticas com o Estado) tenta impor o latifúndio (quer da pecuária, quer da monocultura da soja) como forma hegemônica de existência e de produção social em áreas do Cerrado brasileiro e Amazônia.

Notas

(1) Nesse caso, para fins de cômputo, no Brasil denomina-se de urbano qualquer habitante que esteja com residência junto à sede dos municípios. Embora muitos pequenos municípios não possuam populações eminentemente urbanas, suas atividades são rurais ou os espaços administrativos dos municípios (cidades) carecem de estrutura urbana.

(2) Caracteriza-se pelo exercício de práticas ilegais de uso da violência psicológica e física por pessoas ou grupos contratados a mando dos interessados na desocupação de áreas de terras, através das quais muitos empresários e fazendeiros se valeram. Durante o processo de ocupação do território aprática foi intensamente utilizada para o domínio legal e ilegal de áreas nos processos de grilagem, tomada de posse e mesmo da colonização no Centro-Oeste e Amazônia. O Estado favorecia a situação em virtude da sua fraca presença, bem como, em seus diversos entes e órgãos, optava por considerar o processo de integração econômica em sua dinâmica (Loureiro y Guimarães, Ed Carlos, 2007). O termo pistolagem tem origem em que seus praticantes diretos faziam uso de armas de fogo, pistolas, revólveres ou espingardas a fim de amedrontar, expulsar ou exterminar as populações pré-existentes nas áreas.

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