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Sociedad y religión

versión On-line ISSN 1853-7081

Soc. relig. vol.23 no.39 Ciudad Autónoma de Buenos Aires ene./jun. 2013

 

ARTÍCULO

 

Um olhar etnográfico para o estudo das relações entre governo e religião na promoção de políticas públicas

An ethnographic eye to the study of the relations between government and religion in the promotion of public policies.

Norberto Decker (UFRGS)

Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Rua Veríssimo Rosa, 390. Partenon. CEP: 90610-280. Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil.
decker.norberto@gmail.com

 

Fecha de recepción: 15/08/2012

Fecha de aceptación: 14/11/2012


Resumen

Este ensaio dedica-se a refletir sobre as práticas que conformam as religiões no universo das sociedades contemporâneas. A partir de uma discussão sobre a problemática do governo e da soberania, busca-se empreender uma análise do conceito de Estado liberal moderno e suas relações com as ações humanitárias e assistenciais. O foco específico do trabalho encerra-se em saber o modo como se dá a inserção da religião no espaço público, especialmente nas situações de promoção de políticas públicas. Procura-se apontar também para o papel da antropologia, o tipo de conhecimento oferecido por essa disciplina e, por fim, para a relevância (política) de um olhar etnográfico nas análises voltadas ao estudo das interfaces entre estado, política, religião e assistência.

Palabras claves: Religião; Política; Estado; Assistência.

Abstract: An ethnographic eye to the study of the relations between government and religion in the promotion of public policies. This essay is dedicated to reflect upon the practices which conform religions in the universe of the contemporary societies. Based on a discussion about the problematic of government and sovereignty, we intend to do an analysis of the modern liberal state and its relation with humanitarian and assistance actions. The specific focus of this work is to acknowledge the way through which occurs the insertion of the religions in the public space, especially in the promotion of public policies. We observe also the role of anthropology, the type of knowledge produced by this discipline and, finally, the (political) relevance of an ethnographic eye in the analysis aimed at the study of the interfaces between state, politics, religion and assistance.

Key Words: Religion; Politics; State; Assistance.


 

Este ensaio busca aproximar-se de uma problemática a qual alguns antropólogos brasileiros (mas não somente) vêm se dedicando com especial afinco nos últimos anos. Trata-se de investigar as fronteiras e os fluxos entre determinados domínios sociais - "cultura", "religião" e "política" - com vistas a analisar as práticas que conformam as religiões no mundo das sociedades modernas contemporâneas. Não se adota aqui como objeto o que tradicionalmente nas ciências sociais ficou conhecido como a "esfera religiosa": nossas questões buscam, na verdade, perceber como alguns domínios sociais - neste caso, Estado, pobreza, políticas sociais, etc. - vem se constituindo através de e/ou com a contribuição de práticas religiosas.

Na primeira parte do trabalho, apresenta-se a problemática do governo e da soberania com o intuito de se pensar o conceito de Estado liberal moderno e a relação deste com ações humanitárias e assistenciais. Na sequência, analise-se o modo como as religiões atualmente se inserem no espaço público brasileiro - particularmente nos casos de proposição de políticas públicas e na temática "violência". Por fim, faz-se uma breve reflexão acerca do papel e do potencial da antropologia neste campo de estudos, tentando, com isso, pensar o tipo de conhecimento oferecido por esta disciplina e sua (provável) relevância política.

Governo e soberania: uma reflexão acerca do liberalismo

Para se pensar as formas de governo e o conceito de soberania, é importante resgatarmos alguns apontamentos feitos pelo filósofo Michel Foucault. O primeiro deles diz respeito à ênfase em compreender o governo de Estado como "o governo em sua forma política". A novidade trazida no final do século XVIII pela era moderna, comparado com o antigo regime ou com a Antiguidade, concerne justamente ao fato de que governar um Estado significa, a partir de então, inserir a economia no âmbito geral do Estado, isto é, "ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos individuais e coletivos, uma forma de vigilância, de controle tão atenta quanto à do pai de família" (1979: 281). Dentro desta nova ciência de governo, o enfoque não se dá exatamente na obediência e na imposição de leis (finalidade da soberania), mas na disposição das coisas (utilizando-se as leis, sobretudo, como táticas). Surge daí, de acordo com Foucault, o problema da população, um dos principais fatores envolvidos no "desbloqueio" da arte de governar.

O conceito de governamentalidade refere-se, assim, às instituições, análises, mecanismos e táticas que configuram uma nova forma de exercício de poder cujo fim é o controle da população. Se, na época clássica, temos o poder soberano capaz de fazer morrer ou de deixar viver, com a modernidade temos um poder regulamentador capaz de fazer viver e/ou deixar morrer. Esta nova técnica de poder não vai mais ter o corpo como seu principal alvo (de repressão, por exemplo), mas a vida dos homens, o homem como ser vivo. Trata-se, em suma, de uma biopolítica da espécie humana, que elege a população como um problema científico, político e biológico, procurando mensurá-la estatisticamente mediante o controle dos processos de natalidade, mortalidade, longevidade, etc.

É importante, contudo, frisar que não se trata de uma substituição de um poder pelo outro: a soberania e sua série centrada no corpo, na disciplina, no organismo e nas instituições não desaparece frente ao poder regulamentador assentado na população, nos processos biológicos e no Estado. Ao contrário, deve-se prestar atenção ao modo através do qual ambos estão articulados. Vemos aqui a noção de norma e o nascimento da "sociedade de normalização", vale dizer, uma sociedade baseada na norma da disciplina e na da regulamentação.

A partir do século XVIII, surge igualmente a ideia de um governo "frugal" - liberalismo - e a do mercado como um espaço de produção da verdade. A razão governamental vai concentrar seu interesse na constituição de um poder público capaz de responder uma das principais questões acerca da utilidade da mediação do Estado liberal: "qual o valor de utilidade do governo e de todas as [suas] ações numa sociedade em que é a troca que determina o verdadeiro valor das coisas?" (Foucault, 2008: 63-64).

Neste sentido, Nikolas Rose (1999) dedica-se ao estudo das estratégias, táticas e técnicas através das quais se dá o governo das populações e dos indivíduos nas sociedades ocidentais, preocupando-se, antes de tudo, em distinguir a ideia de governo da noção de dominação, pois:

To dominate is to ignore or to attempt to crush the capacity for action of the dominated. But to govern is to recognize that capacity for action and to adjust oneself to it. To govern is to act upon action... Hence, when it comes to governing human beings, [it] is ... presupposed the freedom of the governed. To govern humans is not to crush their capacity to act, but to acknowledge it and utilize it for one´s own objectives(Rose, 1999: 4).

Um dos valores fundamentais desta nova prática de governo é a liberdade. Mas não estaríamos aqui, ao lidarmos com a ideia de governo e de liberdade, caindo em um paradoxo? A respeito disso, Rose pondera da seguinte forma:

Freedom appears, almost by definition, to be the antithesis of government: freedom is understood in terms of the act of liberation from bondage or slavery, the condition of existence in liberty, the right of the individual to act in any desired way without restraint, the power to do as one likes. The politics of our present, to the extent that it is defined and delimited by the values of liberalism, is structured by the opposition between freedom and government. As Barry Hindess points out, liberalism "is commonly understood as a political doctrine or ideology concerned with the maximization of individual liberty and, in particular, with the defence of that liberty against the State". It is because this dialectic is at the centre of so much of the politics of our present that the problem of freedom lies at the heart of contemporary analytics of governmentality. But the critical force of these investigations does not arise from the familiar paradox that to make humans free it has been necessary to subject them to all manner of compulsion, from the authority of their parents through compulsory schooling to regulations on food hygiene, sewerage and criminal activity (Rose, 1999: 62)

 

É necessário, então, recuperarmos a distinção feita por Isaiah Berlin (1969 apud Rose, 1999: 67-68) entre "liberdade positiva" e "liberdade negativa", pois enquanto esta se caracteriza pela ausência de qualquer forma de interferência na ação dos indivíduos (que agem orientados segundo seu próprio desejo), aquela se baseia no esforço dos governantes em tornar as pessoas livres por meios coercitivos em nome da justiça, da racionalidade e do progresso social. Foi desta última forma, segundo Rose, que uma série de "despotismos" - educação compulsória, saúde pública e políticas moralizantes - vieram a se identificar com a noção de liberdade, concebida, a partir de então, como uma norma de civilidade. Com isso, resgata-se o entendimento de Foucault, segundo o qual o liberalismo não se caracteriza essencialmente por um período histórico ou por uma doutrina específica, mas sim por um determinado ethosde governar. A formação de um sujeito liberal e a ideia de um mercado livre pressupõem uma determinada forma de ação econômica que, para lembrar Max Weber (2004), encontra suas raízes em uma ética religiosa de matiz protestante.

Com efeito, AihwaOng (2003), em seu estudo etnográfico com os imigrantes asiáticos na Califórnia, sinaliza que a associação entre a ideia do indivíduo burguês e a ética protestante é operacionalizada pelos agentes da governamentalidade, de tal forma que o indivíduo do liberalismo e a própria concepção estadunidense de sujeito livre configuram-se como um produto da governamentalidade, que se assenta em alguns pressupostos religiosos e culturais. Seu foco de análise procura justamente apontar a tensão entre a ética individualista das técnicas biopolíticas do Estado moderno e a ética religiosa e cultural dos imigrantes cambojanos por ela examinados. Em linhas gerais, investiga-se como tecnologias relacionadas à ética, ao corpo, à religião, ao trabalho e ao gênero constituem categorias particulares através da ação de alguns profissionais (os experts da subjetividade, segundo a terminologia de Rose) e autoridades locais responsáveis pela problemática do governo e por determinadas micropolíticas. Trata-se, em outras palavras, de atores sociais que traduzem discursos dominantes em micropráticas, formalizando e classificando determinadas categorias (refugiado, p.ex.) com o intuito de alocar os sujeitos em categorias mais "desejáveis".

Embora a instituição do Estado de Bem-Estar social (welfare-state) tenha supostamente o objetivo de atenuar as desigualdades sociais, Ong sustenta que a maneira pela qual os "pobres" inserem-se na sociedade civil, acaba, na maior parte das vezes, disseminando ainda mais preconceitos associados a categorias como pobreza, raça e cidadania. Assim, seu argumento é que formas globais estariam articuladas a situações específicas, numa relação em que discursos e práticas são constantemente redefinidos, configurando tais casos como um problema eminentemente antropológico. Trata-se de global assemblages, ouseja:"domains in which the forms and values of individual and collective existence are problematized or at stake, in the sense that they are subject to technological, political, and ethical reflection and intervention".(Ong, 2003: 4). Um fenômeno social global teria a capacidade peculiar de se descontextualizar e recontextualizar em variados domínios culturais, produzindo efeitos significativamente comparáveis. É relevante, todavia, prestarmos atenção para os dois termos da expressão, já que:

In relationship to "the global", the assemblage is not a "locality" to which broader forces are counterposed. Nor is it the structural effect of such forces. An assemblage is the product of multiple determinations that are not reducible to a single logic. The temporality of an assemblage is emergent. It does not always involve new forms, but forms that are shifting, in formation, or at stake. As a composite concept, the term "global assemblage" suggests inherent tensions: global implies broadly encompassing, seamless, and mobile; assemblage implies heterogeneous, contingent, unstable, partial, and situated (Ong, 2003: 12).

Se o liberalismo é definido como uma política de governo que se fundamenta em atores sociais livres e racionais orientados por uma lógica de mercado, chama-se atenção para o fato que sua atual denominação (neoliberalismo) tem-se mostrado dotado de uma alta capacidade de expansão e mobilidade.

Estados-nação, políticas humanitárias e a esfera dos direitos do homem

Neste ponto, procura-se avançar mais a discussão, utilizando-se da análise feita pelo filósofo italiano Giorgio Agamben (2007) acerca do atual contexto biopolítico. Mais especificamente, chamamos a atenção para a relação (inicialmente feita por Hannah Arendt) entre as diversas declarações e convenções de direitos dos homens e a emergência do conceito de Estado-nação. Para Agamben, os direitos dos homens sinalizam a entrada da vidanua (vida matável e insacrificável do homo sacer) no universo jurídico e político do Estado moderno, representando o fundamento da soberania nacional e seu elo com o conceito de cidadania.

A figura do refugiado, segundo seu argumento, é problemática porque significa justamente a ruptura desta associação entre homem (nascimento) e cidadão (nacionalidade). Aspecto que coloca em xeque a soberania moderna, na medida em que, para ser reconhecido como "homem de direitos", o refugiado necessita estar deslocado do contexto de cidadania, razão pela qual sua definição política é de difícil análise. Estaríamos passando por um período de separação entre o humanitário e o político (entre os direitos do homem e os direitos do cidadão), de modo que, com a crise do Estado-nação, os direitos do homem também entrariam em declínio, tornando urgente a tarefa de revisão dessas próprias categorias.

Didier Fassin (2007) apresenta outro aspecto bastante importante nesta discussão: no domínio da razão humanitária é o corpo que atribui direitos. Mais do que um biopoder, trata-se de umabiolegitimidade. Em sua proposta de uma economia moral da ilegitimidade, Fassim sustenta que os dominados empregam seu corpo como fonte de direitos, sendo necessário investigar os argumentos morais em que se baseiam as decisões políticas ligadas a esse contingente. O autor chega a afirmar que se trata de "decisões patéticas" na medida em que nelas se associam a ideia de escassez de recursos, casos de vida ou morte e aproximação estreita com o sofrimento do outro, mesclando em ordem crescente de relevância valores de justiça, piedade e compaixão. Caridade pública e razão humanitária implicariam, em última análise, numa sentimentalização da relação de assistência devido à imposição, por parte do Estado, de uma espécie de "confissão laica" (ou exame de consciência) àqueles que pedem sua ajuda. Neste ponto, Fassin discorda do argumento de Agamben, segundo o qual política e humanitarismo estariam se separando. Em sua visão, ao contrário, haveria uma evidente associação entre ambos tanto nos espaços governamentais quanto não governamentais (posição esta, aliás, que compartilhamos). Além disso, as organizações humanitárias seriam responsáveis, segundo ele, pela imposição de um regime de verdade - a das vítimas - inaugurando uma nova distinção entre sujeitos (as testemunhas das mazelas e desgraças do mundo) e objetos (os desafortunados e miseráveis).

A ideologia dos movimentos humanitários, vale lembrar, está fortemente ligada à questão da pobreza, a qual, durante muito tempo, dizia respeito a preocupações éticas e religiosas. Contudo, a partir do século XIX, conforme aponta Jacqueline Ferreira (2010), a caridade cristã foi sendo gradativamente diluída pelas noções de política social, interesse coletivo e pela intervenção estatal, de forma que hoje se observa uma coexistência da filantropia religiosa com princípios laicos da assistência pública e privada. A ideia de humanitário, baseada no princípio de igualdade e universalidade dos direitos humanos, não concebe a assistência mais como doação, mas como uma questão de responsabilidade social, um direito. Neste sentido, é interessante perceber o modo como, no Brasil, relacionam-se movimentos humanitários e religiosos:

O humanitário aqui [Brasil] não tem a mesma visibilidade que na Europa - o que pode ser explicado pelo fato de que no contexto local a assistência ao outro de forma desinteressada é marcada pelo campo religioso, sobretudo pela Igreja Católica, que construiu sua visibilidade e seu reconhecimento social nesse domínio. A expansão de outros movimentos, como as igrejas pentecostais nos anos 90, também trouxe notáveis transformações no campo religioso e na dimensão da assistência[...]. Ao mesmo tempo, o espiritismo, célebre por seus princípios de caridade e voluntariado, torna-se mais visível. Surge igualmente uma série de religiões afro-brasileiras engajadas em projetos sociais relacionados às ações afirmativas em favor dos negros e excluídos. Assim, no Brasil, o ideal de prestar ajuda ao outro sem distinção é englobado pela religião, enquanto na Europa esse papel é assumido pelas organizações humanitárias (Ferreira, 2010: 30-31)

A autora lembra ainda que durante as décadas de 1970 e 1980, a sociedade civil passou por profundas transformações com a emergência de novos movimentos sociais (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, comunidades eclesiais de base, organizações de defesa de minorias étnicas e sexuais, etc.) que lutavam em nome dos direitos civis e políticos, culminando no surgimento de novos sujeitos políticos no contexto de redemocratização do Estado nacional. Na década de 1990, muitos desses movimentos acabaram se transformando em organizações não-governamentais (ONGs), mantendo fortes vínculos e parcerias com igrejas, entidades governamentais e organizações internacionais comprometidos com a resolução das "questões sociais". Com isso, tornou-se bastante ambígua e de complexa análise a relação entre Estado e ONGs no país, pois:

de uma parte, as ONGs têm projetos que exigem uma parceria com os Estados que administram as populações beneficiárias. De outra, os estados necessitam de mediadores tais como as ONGs para a implantação de projetos de desenvolvimento ou para a obtenção de financiamentos, o que significa que as fronteiras entre o Estado e a definição do que é ou não governamental é muito variável (Ferreira, 2010: 34).

Neste contexto, a ajuda humanitária não se restringiu mais ao atendimento a pessoas refugiadas em situação de guerra - desenho original do movimento. Sua atuação hoje se dá em diferentes frentes de ação com pessoas classificadas como potencialmente vulneráveis (moradores de rua, populações indígenas, crianças e adolescentes, deficientes físicos, etc.) na defesa e promoção dos direitos humanos. Há, no entanto, várias visões e posicionamentos críticos em relação ao humanitarismo no âmbito global. Saillant ressalta ao menos quatro autores com perspectivas contrárias a esta ideologia: Noam Chomsky, Bernard Hours, Giorgio Agamben e MariellaPandolfi. Em linhas gerais, estes afirmam que o humanitário é uma nova forma de neocolonialismo a serviço da lógica capitalista de predação. Para Hours, por exemplo, no contexto da ajuda humanitária "as populações vulneráveis seriam reduzidas a simples receptores de ajuda, 'recipientes vazios', nos quais as necessidades, que raramente são formuladas pelos atores, se tornariam necessidades técnicas". Os discursos produzidos "falam de dependência de indivíduos e de grupos que estão limitados a esperar a dádiva que lhes distribuem generosamente nossos telespectadores da fome divulgados via satélite pelos novos humanistas' (Hours, 1998: 38 apud Saillant, 2010: 58-59). O humanitarismo estaria perpassado por sentimentos de compaixão e pela ideologia terceiro-mundista, determinando, por isso, seu perfil neocolonialista. Sob uma perspectiva relativamente parecida, DelmaPessanha Neves (2010) sublinha que a defesa dos sujeitos como portadores de direitos acabou propiciando diversas "versões de vitimização" - presente na ideia de carência das práticas filantrópicas de voluntarismo militante. Estaríamos, assim, inseridos em uma "sociedade de vítimas" (expressão cunhada por GuillaumeErner, 2006) em que se disseminam variadas categorias referentes à noção de falta: "excluídos", "sem terra", "população de rua", "jovens em situação de risco", etc.

A seguir, discute-se como essas noções de carência são inscritas no interstício das práticas de assistência promovidas pelo Estado e pelas instituições filantrópicas da sociedade civil, motivadas pelo ideário político da cidadania e da solidariedade como instrumentos de consolidação de valores democráticos. O interesse específico nesta temática ocorre em virtude da relevância de maiores análises antropológicas que procurem repensar as fronteiras e os vínculos entre política, estado, religião e ação social no contexto de formulação e implementação de políticas públicas e sociais.

Estado, religião e políticas públicas

O desafio aqui proposto consiste em investigar a interação entre governos e entidades religiosas na implementação de programas sociais e a representação destas em espaços laicos da política e das ações governamentais (fóruns, conselhos, agências governamentais e ONGs). Dentro de um contexto neo e pós-liberal, uma reflexão acerca do modo pelo qual valores como democracia, cidadania e participação se equilibram nas sociedades latino-americanas mostra-se de fundamental importância às ciências sociais. Com isso, almeja-se perceber como a conflitividade das lógicas culturais (dentre as quais, religiosas) insere-se no cotidiano dos debates públicos do governo e da representação política.

A perspectiva desta análise é cara a contribuições de autores como José Casanova (1994), Charles Taylor (2007) e TalalAsad (2008), dedicados a pensar a questão do secular e da secularização no mundo ocidental. A origem do Estado moderno, para TalalAsad, seria marcada, assim, pelo estabelecimento de uma argumentação secular (entendida como a incorporação de uma razão universal) e pela marginalização de todas as crenças religiosas. O secularismo não se definiria precisamente pela diferenciação das esferas seculares e religiosas, mas, sobretudo, pela instituição do poder soberano dos Estados nacionais modernos - aspecto que, em última análise, nos remete a Foucault e seu conceito de governamentalidade. O secularismo é visto como parte de um projeto moderno conduzido pelos sujeitos que estão no poder e pelo desejo histórico da Europa ocidental de moldar o mundo segundo sua imagem - sendo justamente a assimetria de poder entre o Estado secular e o que é por ele definido como "religião" o elemento articulador do poder soberano dos Estados nacionais contemporâneos.

O modo como se deu, no Brasil, a construção da legitimidade da presença da religião no espaço público e, sobretudo, de que modo se definiu a própria categoria "religião" configuram-se como uma problemática relevante no cenário da antropologia brasileira contemporânea. Neste sentido, Paula Montero (2009), a partir de reflexões de autores como Habermas, propõe um olhar mais atencioso para a maneira através da qual se elaborou no país a distinção entre as esferas pública e privada no contexto do amplo debate político-científico conduzido pelo Estado no final do século XIX em torno do reconhecimento do pluralismo religioso e do que poderia (ou não) ser definido como uma prática religiosa. Com isso, seu objetivo é compreender "onde, quando, como e pelas mãos de quem um sistema de classificações se move para tornar certas práticas legítimas e aptas a serem incluídas naquilo que uma sociedade entende como religião" (Montero, 2009: 11).

Emerson Giumbelli (2008) aponta igualmente para o fato de que algumas formas de presença das religiões na esfera pública não ocorreram em contraposição à secularização, mas se deram no interior do sistema jurídico alçado por um Estado envolvido com os princípios de laicidade - cabendo destacar o papel histórico da Igreja católica na mediação das relações entre Estado e religiões no Brasil. Nesta mesma linha de argumentação, Paula Montero (2009) salienta ainda a referência do catolicismo na constituição do imaginário político nacional, pois, de acordo com ela, termos como "caminhada", "comunidade", "libertação", "pobre", que compõe um vocabulário comum na mobilização política dos movimentos sociais, encontram sua origem no modo de organização das instituições católicas.

Fatores como esses demonstrariam uma certa desigualdade na forma como é reconhecida a legitimidade da ação das religiões no espaço público, uma vez que a Igreja Católica ainda deteria grande poder simbólico e político na transformação de valores em sistemas normativos. Além disso, a autora sublinha que o sistema jurídico republicano, ao não ter reconhecido inicialmente as práticas não cristãs como "religiosas", transferiu-as para o domínio da filantropia, o que resultou na disseminação da prática religiosa no conjunto da sociedade. No caso do espiritismo, Giumbelli frisa que a categoria "caridade" foi fundamental para a definição das práticas terapêuticas mediúnicas como "religiosas". Neste caso, a noção de caridade associou-se à ideia de "cidadania" e à atividade de assistência social, mediante as quais os indivíduos "pobres" tornaram-se "sujeitos de direitos" e não mais objeto de esmola ou benemerência.

A ampliação das iniciativas religiosas para o domínio da assistência social e a re-significação do termo caridade permitem destacar a relevância do discurso religioso nos processos de legitimação das políticas de "ação social" empreendidas no Brasil sobretudo no contexto de redemocratização dos anos 1980.

Nesta conjuntura de aproximação entre Estado e religiões, estudos recentes vêm apontando para o interesse de agências governamentais e organizações não-governamentais em firmarem parcerias com instituições religiosas nas atividades voltadas à promoção da cidadania e inclusão social, com especial destaque para o campo das políticas públicas. Assim, o cientista político JoanildoBurity (2008) defende que as mudanças associadas ao atual campo religioso brasileiro indicariam uma maior presença pública das religiões (inclusive das minoritárias) e que o processo de valorização da cultura local e regional permitiu aos governos e agências internacionais identificarem as religiões como um importante aliado na execução de projetos e programas de desenvolvimento social.

Na discussão a respeito do caráter laico e/ou religioso do estado e da sociedade brasileiros, Patrícia Birman (2012) lança uma importante reflexão a partir do campo empírico da questão da violência na cidade do Rio de Janeiro. A autora afirma que os sentidos e as transformações pelas quais passaram as categorias "violência" e "crime" no Brasil fizeram com que ambas funcionassem como um elemento de destaque para se compreender o governo das populações urbanas. A noção de violência, por exemplo: "se impôs como uma das justificativas centrais para reordenações dos espaços da cidade, desdobrando-se em políticas de repressão, de controle, de vigilância e também de medidas sócio-morais dos sujeitos que seriam seus alvos preferenciais" (Birman, 2012: 211).

Em virtude da participação e mediação de atores religiosos na problemática da "violência", uma das questões é saber como os dispositivos elaborados para governar a cidade articulam-se com o religioso e com o secular. O atributo diferencial dos atores religiosos seria, neste sentido, a habilidade destes em "realizar rituais e engendrar por meio desses uma disposição subjetiva contrária à violência" operando como um verdadeiro "cimento" da sociedade brasileira (Birman, 2012: 213).

Durante as últimas décadas, disseminou-se a ideia de que a violência seria um problema do qual a cidade como um todo estaria sofrendo, problema este cujas fontes dar-se-iam nas chamadas zonas de precariedade onde residem os "indesejáveis" da sociedade. Coexistiram nestes locais ações armadas de combate a estas populações, bem como iniciativas com fins sociais e pedagógicos, promovidas por ONGs numa tentativa de civilizar/moralizar seus habitantes. Embora muitas vezes antagônicas, essas duas políticas ("de guerra" e "de paz"), de acordo com a autora, aliaram-se no que recentemente ficou conhecido como "pacificação" das favelas cariocas (locais circunscritos às margens1 da sociedade).

Investigar as práticas de governo em suas margens implica em acompanhar e mapear redes e fluxos bastante complexos. As fronteiras e os vínculos entre motivações religiosas e laicas nem sempre são de fácil distinção, já que ambas podem se inscrever tanto no Estado quanto fora dele; suas atividades podem ser classificadas como seculares, mas também como religiosas. Birman sintetiza de uma forma bastante satisfatória este quadro complexo quando afirma que:

O reconhecimento das populações de favelas e periferias da cidade como regiões morais que demandam tratamentos específicos tem, em consequência, dado lugar a inumeráveis projetos nos quais as carências sociais são conjugadas a faltas morais e espirituais. Longe de termos os vários serviços e agências do estado" secular nitidamente separados daqueles da "sociedade", vemos que os primeiros estão continuamente submetidos a práticas religiosas e morais que moldam, adaptam e agem em suas instituições de forma a dar aos seus serviços as faces religiosas que consideram necessárias. Essas políticas no seu conjunto parecem operar no sentido de transformar aqueles considerados inimigos da sociedade em pessoas a salvar/civilizar. Assim, as figuras de alteridade associadas à violência, e situadas nas favelas e periferias, são objetos de políticas públicas cujos projetos não podem ser definidos como exclusivamente seculares, nem como puramente religiosos mas como fruto de uma conjugação ativa e performativa dos dois aspectos (Birman, 2012: 218-219).

Educar/civilizar/moralizar os "indesejáveis" da sociedade coloca um grande desafio para as ciências sociais, em geral, e para antropologia, em particular, qual seja: analisar como atores religiosos e laicos envolvidos em projetos de desenvolvimento social articulam categorias como cidadania e democracia, investindo-lhes múltiplos sentidos e significados nas práticas de gestão das populações marginalizadas através de dispositivos acionados pelo Estado. Eis aí um projeto de pesquisa tão promissor quanto incerto.

Considerações finais

Reservamos para o final deste ensaio uma breve reflexão sobre o papel político da antropologia (e a política da antropologia), especialmente nos casos de formulação de políticas públicas.

Assim, cremos ser importante a ressalva de Veena Das e Deborah Poole quando afirmam que os antropólogos têm muito que apreender com as sugestões de Michel Foucault e Giorgio Agamben. No entanto, é preciso ter cuidado em não aplicar compulsiva e insensatamente as categorias de análise desses autores nas situações empíricas concretas. A tarefa consiste, como afirmam, em elaborar e reconstruir genealogias e histórias de socialidade particulares, com o objetivo de perceber o modo como diferentes desejos, esperanças e medos modelaram as diversas experiências do Estado biopolítico (Das & Poole, 2004: 30).

É importante também, conforme adverte James Clifford (1998), que os antropólogos se esforcem em não representar abstrata e a-historicamente os "outros", já que o desafio proposto à disciplina é o de (re)construir imagens concretas e complexas de seus "objetos" de estudo, levando-se em conta relações de poder e conhecimento dentro de situações históricas particulares de dominação e diálogo. Sendo assim, é bastante elucidativa a sugestão do autor em considerar, a exemplo de Gilles Deleuze e Michel Foucault, as experiências de escrita etnográfica como uma "caixa de ferramentas" capaz de auxiliar o profissional envolvido no árduo aprendizado lingüístico imbricado na observação participante.

Requer-se, com isso, algum tipo de debate político-epistemológico acerca das noções de escrita e alteridade. Assim, TalalAsad (2008) pondera que a etnografia não deve ser exatamente entendida como a experiência e a interpretação de uma "outra" realidade específica, mas, sobretudo, como um processo de negociação e diálogo entre sujeitos politicamente significativos. É neste sentido também que Crapanzano (1980) compreende a etnografia como uma ação dialógica na qual os interlocutores negociam uma perspectiva compartilhada de realidade e que Ingold (2011) afirma ser a antropologia não um estudo sobre, mas um estudo com as pessoas envolvidas em seu ambiente; uma prática de observação assentada em um processo participativo de diálogo. Em outras palavras, trata-se de uma filosofia feita nas ruas (we do ourphilosophy out ofdoors) e cujo processo de educação e formação pede que a atenção seja dirigida a outras possibilidades e formas de ser. Em suma: "o antropólogo não pode simplesmente 'aprender' uma nova cultura e situá-la ao lado daquela que ele já conhece; deve antes 'assumi-la' de modo a experimentar uma transformação de seu próprio universo" (Wagner, 2010: 37).

 

Chamar atenção para a importância de um "olhar etnográfico" para questões como política, estado, religião e assistência é relevante, na medida em que os efeitos sociais e políticos da introdução de novas tecnologias em contextos marcados por "pessoas que navegam nos emaranhados contemporâneos de poder e conhecimento" precisam, como nos diz Biehl (2011), de investigaçõescentradas nas pessoas. O cuidado com a forma pela qual as políticas são elaboradas e geridas institucionalmente, bem como a atenção à forma com que estas se adaptam a contextos de desigualdade social precisam ser compreendidos como requisitos da própria formação profissional do antropólogo. Sua contribuição para o avanço do conhecimento produzido nesta área é trazer visibilidade a processos estruturais e a peculiaridades institucionais inerentes às sociedades modernas, tornando inteligíveis, assim, as novas configurações globais. Em síntese (e para recuperar a ideia de Agamben), talvez seja este um meio possível de restituir o pensamento a sua vocação prática.

 

Referências bibliográficas

1. Agamben, G. (2007). Homo Sacer. O poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Editora da UFMG.         [ Links ]

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Notas

1 . Para uma compreensão mais precisa do conceito de "margem", vide Das &Poole (2004)

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