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Sociedad y religión

versión On-line ISSN 1853-7081

Soc. relig. vol.25 no.43 Ciudad Autónoma de Buenos Aires mayo 2015

 

ARTÍCULO

Espiritualidade que faz bem. Pesquisas, políticas públicas e práticas clínicas pela promoção da espiritualidade como saúde

Spirituality that is good: research, public policy and clinical practice for the promotion of spirituality as health.

 

Rodrigo Toniol

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.

Rua Hugo Ribeiro, n.117/ apt. 14, Menino Deus, Porto Alegre - Rio Grande do Sul/ Brasil. CEP: 90150-080

rodrigo.toniol@gmail.com

 

Recibido: 26-05-2014

Aceptado: 12-09-2014


 

Resumen

Dedico-me neste artigo a analisar a produção da espiritualidade como uma dimensão da saúde humana no âmbito das ciências médicas, das políticas públicas em saúde e da prática clínica. Trata-se de analisar o interesse das ciências médicas pela espiritualidade, ou ainda, por alguns dos modos pelos quais a espiritualidade tem sido acionada por pesquisadores e profissionais que respondem a uma agenda de investigações e de interesses preocupada com a manutenção da saúde humana.  Para tanto, dedico-me, em um primeiro momento, a apresentar a intensificação do uso da noção de espiritualidade nas ciências médicas desde a década de 1970. Na sequência, procuro demonstrar como os termos espiritualidade e holismo têm sido acionados enquanto princípios de justificação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, que prevê a incorporação de terapias alternativas no sistema público de saúde brasileiro. Na seção final exploro a emergência de especialistas na organização da espiritualidade como uma das consequências desse processo que a conecta com um ideal de saúde.

Palavras-chave: Espiritualidade; saúde; terapias alternativas; ciências médicas; SUS

 

Abstract

In this article I analyze the production of spirituality as a dimension of human health within the medical sciences, public health policies and clinical practice. I analyze the interest of medical science in spirituality, or in some of the ways in which spirituality has been recognized by researchers and practitioners that respond to an agenda of research and concern with maintaining human health. For this, I first show the intensified use of the concept of spirituality in medical sciences since the 1970s. Subsequently, I try to show how the terms spirituality and holism have been used as principles of justification for a National Policy on Integrative and Complementary Practices, which provides the incorporation of alternative therapies into Brazil’s public health system. In the final part, I explore the emergence of specialists in the organization of spirituality as one of the consequences of this process that connects spirituality with an ideal of health.

Keywords: Spirituality; health; alternative therapies; medical sciences; SUS

 


 

1. Introdução1

Em março de 2013 mais de 500 pesquisadores e médicos subscreveram um documento enviado à Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) em que solicitavam a aprovação e incorporação, na entidade, do Grupo de Estudos em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular (GEMCA). Conforme a proposta, o Gemca funcionaria tal e qual os outros 11 grupos de estudos daquela sociedade médica, como um fórum de debates e uma instância para o fomento de pesquisas. O documento foi recebido pela diretoria da SBC e a solicitação deferida. Assim, o Gemca adquiriu apoio institucional, a possibilidade de organizar atividades durante os congressos anuais da SBC e, ao mesmo tempo, autonomia para estabelecer sua própria rede de associados. Vinculado ao Departamento de Cardiologia Clínica, assim como os grupos de Valvopatias, o de Circulação Pulmonar e o de Coronariopatias, o Gemca logo em seus primeiros meses de funcionamento atraiu a atenção da imprensa. Naquele ano, a maior parte de suas atividades públicas ganhou repercussão em jornais e em portais de notícias da internet. O médico Álvaro Avezum, diretor do grupo, foi inicialmente o principal porta voz dos objetivos, interesses e expectativas nutridas pelos pesquisadores associados. Numa dessas ocasiões Avezum foi taxativo ao prognosticar os desdobramentos que as pesquisas sobre espiritualidade deverão ter para os cuidados com a saúde nos próximos anos:

Hoje posso dizer com segurança a um paciente que se ele fuma, tem maior possibilidade de sofrer um infarto que um não fumante. Provavelmente há de chegar um dia que com a mesma certeza poderemos dizer ao paciente que se ele for espiritualizado e souber lidar adequadamente com suas emoções, poderá evitar doenças cardiovasculares. (...) [mas] é importante esclarecer que não estamos falando de religião, que é o sistema de crenças e dogmas, nem de religiosidade, que é quando a pessoa se dedica à religião. (Guerchenzon, Y, 2013. Grifos meus).

Apesar de significativa por ter sido realizada no âmbito de umas das mais tradicionais entidades médicas brasileira, a criação de um grupo de estudos sobre espiritualidade e medicina cardiovascular não foi, nem de perto, um ato excepcional de aposta na correlação entre espiritualidade e saúde no país. Pelo contrário, ele se associa com outros enunciados das ciências médicas que têm investido nessa conexão e a desdobrado em dimensões múltiplas, cujas modulações entre os termos, apesar de relativas ao mesmo par, são plurais. À exemplo do Gemca, considerando por ora apenas casos brasileiros, pudemos observar na última década: o estabelecimento de divisões de pesquisas sobre espiritualidade2 e a criação de grupos de discussão para o assunto em hospitais,3 o surgimento de congressos dedicados exclusivamente ao tema,4 a oferta de disciplinas de “medicina e espiritualidade” em cursos de graduação de universidades públicas5 e a constituição de linhas de pesquisas como “Epidemiologia da religiosidade e saúde” em programas de pós-graduação.6 Fora do país as formas de crescimento dessa relação parecem ser ainda mais abrangentes:  o número de centros de pesquisas, laboratórios e departamentos ligados a universidades dedicados a ela é cada vez mais expressivo,7 assim como a quantidade de artigos que a tematizam aumentou exponencialmente nos últimos 40 anos. Desde 1980 também se intensificaram as recomendações sobre a dimensão da espiritualidade para a manutenção da saúde em documentos das agências de governança global, como a Organização Mundial de Saúde (OMS). Ao apresentar esse extenso e variado engajamento das ciências médicas no tópico, não estou interessado simplesmente em repercuti-lo ou dele derivar hipóteses sobre amplas transformações nos princípios ontológicos da medicina ocidental em direção a novos paradigmas. Como alternativa a isso, empenho-me neste texto em acompanhar parte dos efeitos de poder derivados da progressiva legitimação do par espiritualidade e saúde.

Assumo como ponto de partida deste texto que o uso do termo espiritualidade nesse universo de produção de conhecimento não é aleatório.No mesmo passo também identifico a existência de uma genealogia do conceito forjada no âmbito das próprias ciências médicas. O que está em jogo, portanto, é investigar a espiritualidade a partir dos termos em que ela se faz pertinente para cardiologistas, terapeutas holísticos e gestores de saúde, o que significa não inscrevê-la a priori no campo das religiosidades da nova era, por exemplo. Minha sugestão é a de que esse posicionamento não encerra as possibilidade de diálogos com as ciências sociais da religião, mas, pelo contrário, os torna mais promissores. Ao deter-me em algumas das modalidades recentes de inscrição da espiritualidade no campo da saúde terminoreferindo-me ao termo num sentido duplo. Por um lado, enquanto objeto de análise, na medida em que interessa perceber como o termo é acionado e opera nas/pelas ciências médicas. E, por outro, faço referência ao termo enquanto demarcador de uma matriz discursiva específica, presente nos casos aqui analisados, mas que também transcende a eles.

O texto que segue está dividido em três partes. Na primeira delas apresento a intensificação do uso da noção de espiritualidade nas ciências médicas a partir da década de 1970. O tipo de pesquisa que a temática ensejou e seus desdobramentos em organismos de governança global, como a Organização Mundial de Saúde, são centrais para essa discussão. Em um segundo momento trato do caso da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, que prevê a incorporação de terapias alternativas no sistema público de saúde brasileiro. Nessa seção procuro demonstrar como os termos espiritualidade e holismo têm sido acionados enquanto princípios de justificação dessa política e, ainda, como ambos têm sido mobilizados na prática clínica. Por fim, numa seção final, opto por refletir sobre alguns dos efeitos dassentenças espiritualidade é saúde e espiritualidade faz bem para saúde. Procuro concluir apontando para a emergência de certos modos “prescritivos de espiritualidade”, associado com uma série de experts que passam a ser habilitados a dizer afinal, o que é espiritualidade e como ela deve ser vivida para contribuir com o cultivo de uma vida saudável.

 

2. A produção da espiritualidade como saúde

A espiritualidade é um tópico de interesse crescente para os pesquisadores das ciências médicas. Essa afirmação é um lugar comum nos artigos dos médicos e cientistas que se dedicam ao tema. Peter Hill e Keneth Pargament (2003) são pioneiros na investigação dos efeitos da espiritualidade na saúde e relatam como esse campo tem se adensado e se diversificado nas duas últimas décadas. Harold Koenig, num texto mais recente - Concerns About Measuring ‘Spirituality’ in Research (2008) - também confirma esse boom das pesquisas sobre o assunto e indica que, apesar da expansão ter sido mais substancial nos anos 2000, desde 1980 era possível observar um interesse progressivo sobre ele. Nesse artigo, Koenig argumenta que uma prova incontestável da maior legitimidade e atenção que o tema vem recebendo por parte dos pesquisadores é o número de trabalhos publicados que associam as palavras “saúde” e “espiritualidade”. A partir de gráficos e de séries históricas comparativas, Koenig demonstra esse crescimento tomando como referência os textos indexados na base de dados Medline8. Sugestionado pelo autor repliquei seu levantamento atualizando-o com as informações referentes a primeira década dos anos 2000. O resultado, expresso no gráfico abaixo, indica o número de ocorrências da correlação em cada década, desde 1970 até 2010.

 

Cuadro 1

 

Entre 1970 e 1979 apenas um artigo mencionou o “fator espiritualidade”. Na década seguinte o número saltou para 89 ocorrências. Entre 1990 e 1999 foram 293 e, finalmente, entre 2000 e 2009 o aumento foi emblemático, 2513 trabalhos relacionaram espiritualidade à saúde. A evidente expansão no número de periódicos, livros e textos científicos nesse período não diminui a relevância desses números, pelo contrário, a reforça. Na comparação entre o crescimento percentual da totalidade de textos indexados na Medline e dos materiais que estabelecem a associação aqui tematizada, encontramos os seguintes dados: na comparação entre 1980 e 1990 o número geral de publicações cresceu 177% e o específico (espiritualidade + saúde) 229%; nas décadas seguintes o aumento foi de 55% para um e 757% para o outro.

A progressão nos números de publicações e os significativos incrementos em todos os intervalos é, de fato, um argumento contumaz de Koenig para fundamentar a percepção generalizada de que há um maior interesse das ciências médicas pela espiritualidade. Entretanto, da convergência na associação dos termos não se pode derivar a coincidência no conteúdo dos textos, em suas hipóteses e argumentos. Isso é, o pleno aumento quantitativo das produções médico-científicas também veio acompanhado por uma acentuada diversificação temática e metodológica. 

Em razão dos objetivos mais gerais deste artigo e do volume do conjunto desses trabalhos é inviável que me empenhe aqui num prolongado exercício de depuração e de análise das especificidades de cada um dos textos inventariados. A revisão e leitura que fiz de parte deles, no entanto, permitiu que identificasse características gerais dessa literatura, bem como que reconhecesse algumas das pesquisas que tiveram maior impacto no campo. Na tentativa de apresentá-las sugiro como ponto de partida uma divisão provisória e pouco rígida que estabelece três marcos cronológicos: pré-1970, entre 1970 e 1990, pós-1990.

No primeiro período, pré-1970, estão os trabalhos de pesquisadores que estabeleceram categorias chaves para a posterior inclusão da espiritualidade como indicador de saúde em pesquisas clínicas. Hans Baer (2004), antropólogo estadunidense dedicado ao tema das práticas religiosas de pacientes e médicos, chama a atenção para a importância do desenvolvimento de dois conceitos naquele momento: holismo e bem-estar. Ambos tiveram grande repercussão em trabalhos realizados na década de 1970 e têm como marcos fundacionais duas obras.

A primeira delas é o livro Psychosomatic diagnosis (1943) de Helen Flanders Dunbar. Dunbar é considerada uma das fundadoras da medicina psicosomática nos Estados Unidos. Doutora em filosofia pela Universidade de Columbia, graduada em teologia e em medicina pela Universidade de Yale, a autora descreveu nesse livro casos clínicos que permitiram argumentar a composição simultaneamente psíquica e orgânica dos processos de adoecimento. O funcionamento holista do corpo humano - palavra que tem uma de suas primeiras ocorrências na literatura médica no próprio livro de Dunbar - imporia aos profissionais da saúde uma necessária atenção aos aspectos não-orgânicos das doenças e também a criação de métodos de tratamento que tivessem uma abordagem igualmente holística. Nesse caso, o holismo é um princípio de compreensão do corpo, assim como uma proposta terapêutica (que, apesar de anunciada, foi pouco desenvolvida pela autora).

Sobretudo por conta de resistências a ideia não-fisiológica de saúde/doença proposta por Helen Dunbar, o livro não teve popularidade imediata entre os médicos e pesquisadores. Quinze anos depois, no entanto, Halpert Dunn publicou a obra High level wellness (1961)e a perspectiva holista de Dunbar foi reabilitada, adquirindo maior visibilidade. Dunn se destacou como um dos bioestatísticos responsáveis pela produção de dados para institutos norte americanos de pesquisa sobre saúde. Com esse livro fundou o chamado wellness movement, que parte de uma compreensão holista sobre o corpo e a associa com o conceito de bem estar, que incorpora e ultrapassa a ideia orgânica de saúde. Além de introduzir o conceito na literatura científica, Halpert Dunn também fez da categoria uma variável nos surveys norte americanos sobre saúde/doença, inaugurando uma série de pesquisas que procuram estabelecer gradações e índices de bem-estar.

Holismo e bem-estar são dois termos chaves para a compreensão do desenvolvimento das pesquisas que correlacionam saúde e espiritualidade. O primeiro foi a “senha” para a legitimação de pesquisas sobre terapêuticas que se baseavam no princípio de uma conexão entre corpo e mente. O segundo, que se estabeleceu como um importante indicador de saúde nos instrumentos estatísticos de controle da população, incorporou, na década de 1990, a variável “espiritualidade” para a composição de seus resultados.

No início do período seguinte da cronologia aqui sugerida, entre 1970 e 1990,  um dos pesquisadores que teve maior impacto na produção acadêmica sobre o tema foi o cardiologista e professor da Universidade de Harvard, Herbert Benson. Em 1975 Benson publicou o livro The relaxation response, que sistematiza os resultados de quase uma década de suas pesquisas iniciadas na década de 1960 sobre a possibilidade de práticas meditativas controlarem processos químicos-fisiológicos do corpo. Operando de forma latente nessa proposta está o princípio do holismo descrito inicialmente por Helen Dunbar, que pode ser reconhecido na síntese dos argumentos de Benson: corpo e mente são mutuamente dependentes para a manutenção da saúde; essa interdependência pode ser usada como fundamento para a criação de modelos terapêuticos. Ainda que longo, vale citar o trecho de um artigo no qual Herbert Benson explicita um de seus experimentos e em que narra como iniciou suas pesquisas.

No começo de minha carreira como cardiologista eu estava intrigado com a observação do aumento da pressão sanguínea de pacientes em situação de stress. A relação já era parte do conhecimento popular que dizia que se você estivesse estressado sua pressão sanguínea aumentaria. Essa ideia era compartilhada por médicos e leigos. Mas poucas pessoas tinham conhecimento da natureza desta ligação ou qual era a melhor forma de combatê-la.  Então, se o seu médico descobrisse que sua pressão sanguínea estava alta, você provavelmente teria que ser tratado com medicação. Isso significava que mesmo as pessoas que tinham pressão alta somente por conta de preocupações pontuais precisariam ser expostas aos enormes efeitos adversos dos medicamentos da época.

Interessado por esta relação entre mente e corpo e inspirado pela possibilidade de simplificar o tratamento de pressão alta induzida por stress, eu decidi que iria trabalhar nesta área depois que terminasse minha formação como cardiologista no laboratório Thorndike, em Harvard. E assim aconteceu. Quando comecei a trabalhar no departamento de psicologia da escola médica, empreendi uma série de estudos, entre 1967 e 1969, nos quais eu utilizava técnicas de biofeedback para treinar macacos a controlarem sua pressão arterial.

O que fazíamos era uma simples aplicação dos princípios do biofeedback, mas os resultados foram surpreendentes. Meus colegas e eu monitorávamos a pressão de cada animal e sempre que ela começava a subir nós acendíamos uma luz branca. Quando a pressão do animal baixava, nós mostrávamos uma luz azul. Usando algumas recompensas nós conseguimos treinar os animais para que alterassem sua pressão arterial - para aumentá-la e para diminuí-la.

O resultado deste trabalho ficou conhecido e alguns jovens praticantes de meditação foram até mim e disseram "Por que você está trabalhando com os animais? Por que você não estuda seres humanos? Nós achamos que podemos controlar a nossa pressão arterial com meditação".

Na ocasião eu agradeci o interesse, mas não estava disposto a me envolver com qualquer coisa que me deixasse fora do mainstream acadêmico, como seria o caso se decidisse pesquisar meditação. Mas eles foram bastante persistentes e voltaram muitas vezes ao laboratório.

A verdade é que eles me convenceram que valeria a pena estudar os possíveis efeito da meditação na pressão arterial. Então, meus colegas e eu montamos uma pesquisa que nos permitiria observar os efeitos da meditação no funcionamento fisiológico do corpo humano. Em 1968, convidamos algumas pessoas que praticavam meditação para serem monitoradas. Montamos uma série de equipamentos e até mesmo colocamos cateteres nas veias dessas pessoas para registrar mudanças fisiológicas - da taxa de respiração ao padrão de ondas cerebrais - durante a meditação.

A pesquisa com os meditadores estava dividida por etapas. Primeiro pedíamos que os voluntários ficassem sentados em silêncio por 20 minutos, sem que meditassem. Depois desse período inicial fazíamos algumas medições. Então, pedíamos para que eles, sem mudar de postura ou qualquer outra coisa, começassem a meditar. Vinte minutos depois fazíamos uma nova medição e solicitávamos aos voluntários que parassem de meditar,

mas que continuassem na postura em que estavam. Depois de 20 minutos realizávamos outra medição e terminávamos a experiência.  

Os resultados que encontramos foram impressionantes. As mudanças fisiológicas nestes três momentos - pré-meditativo, meditativo e pós-meditativo - foram dramáticas. E percebemos que a meditação poderia ser um caminho para controlar a pressão arterial e muitas outras funções metabólicas(Benson, 1993: 234-235).

 

As pesquisas de Herbert Benson, como está expresso no trecho citado, testaram a meditação como recurso terapêutico. No entanto, mesmo identificando a capacidade da prática meditativa em produzir efeitos positivos para a manutenção da saúde e, ainda, contribuir com a desmedicalização, Benson sugeriu que o conteúdo dos pensamentos durante a meditação importam menos do que a forma pela qual eles são conduzidos. Em suma, para Benson, é a prática da meditação que produz resultados e não os termos a partir dos quais se medita.

O desenvolvimento dessas pesquisas resultou numa técnica terapêutica chamada por Benson de relaxation response. O médico baseou a relaxation response em dois “padrões universais da meditação”: a repetição de sons e a evitação de pensamentos que atrapalhem a concentração - ou, em seus próprios termos, pensamentos intrusivos. Apesar de ter entrevistado religiosos, iogues e praticantes de “meditação transcendental” para desenvolver sua técnica, a sugestão do pesquisador era a de que não havia naqueles exercícios “elementos religiosos”. Como prova de ter desenvolvido uma prática não-religiosa, sem apelo ao transcendente, Benson replicou seu roteiro meditativo a católicos, budistas, evangélicos e ateus, obtendo resultados semelhantes nos três grupos (Benson, 1975). Anos depois, o próprio Benson afirmaria que a virtude a-religiosa da relaxation response era uma qualidade necessária para que a prática pudesse incidir na dimensão espiritual da saúde, resumida pelo sentimento de segurança e de tranquilidade que garante uma vida emocional estável (Benson, 1993).

A repercussão dos trabalhos de Herbert Benson foi ampla e na década de 1980 o médico cardiologista seguiu investindo na descoberta de métodos terapêuticos holísticos e não-medicalizantes de cuidado com a saúde. Nesse período Benson se aproximou de algumas modalidade de terapias alternativas, sobretudo da Medicina Tradicional Chinesa, e foi pioneiro na defesa de sua oferta em hospitais dos Estados Unidos. Em 1988 a popularidade do médico, que atraia estudantes e outros cientistas interessados em seu trabalho, permitiu que ele fundasse o Mind/Body Medical Institute, vinculado ao Hospital de Massachusetts, da escola de medicina de Havard. Foi no âmbito das atividades desse Instituto, dedicado à pesquisa sobre as conexões entre mente e corpo, que Benson e o médico David Eisenberg fizeram sua primeira viagem à China para conhecer a medicina praticada naquele país. Eisenberg terminou se tornando um dos primeiros norte-americanos a atender em um hospital de Beijing utilizando técnicas da Medicina Tradicional Chinesa. De volta aos Estados Unidos, Eisenberg fundou a divisão de ensino e pesquisa em complementary and alternative therapies (CAM) do departamento de medicina de Harvard.

A trajetória de pesquisa de Benson, de Eisenberg e da própria criação do Instituto Mente/corpo são emblemáticas e importantes para a caracterização do modo pelo qual a “espiritualidade” passou a ser inserida como um tópico de investigação das ciências médicas entre 1970 e 1990. Eles encarnam três movimentos centrais para os trabalhos publicados naquele período. Primeiro, a ênfase sistemática de Hebert Benson sobre a necessidade de uma atenção holística nos cuidados com a saúde fundamentou pesquisas que inseriram a dimensão espiritual dos pacientes como parte da totalidade que os compõem. Muitas dessas pesquisas, no entanto, apesar de fazerem referência ao “espiritual” pouco descreviam o significado do termo ou, quando o faziam, apenas contrastavam sua universalidade com a especificidade cultural das religiões.

Segundo, ao abrir a possibilidade do ensino de CAM no departamento de medicina de Harvard, David Eisenberg contribui de modo definitivo para a legitimação dessas terapias e para a realização de pesquisas interessadas em avaliar seus resultados. Alguns trabalhos das décadas de 1970 e 1980 avaliam, justamente, como as terapias alternativas/complementares permitiriam um acesso privilegiado a espiritualidade dos usuários. Por fim, o Mind/Body Medical Institute prenunciou a formação de vários outros centros de pesquisa semelhantes nos Estados Unidos, que foram verdadeiros incubadores de projetos e de investigações sobre o impacto da espiritualidade na saúde. Em alguma medida foi por conta do fortalecimento desses institutos em universidades e em centros de pesquisas nas décadas de 1980 e 1990 que experimentamos o significativo aumento no número de publicações sobre o tema nos anos seguintes.

O período de produção pós-1990 é marcado por pesquisas cada vez mais diversas sobre a dimensão espiritual e o seu impacto na saúde. Ao menos em quantidade são dois os tipos de textos que caracterizam esse período de maior visibilização do tema: os que apresentam testes clínicos que estabelecem relações entre o nível de espiritualidade dos sujeitos e as doenças ou a capacidade de recuperação que eles têm; e os que investem na elaboração de instrumentos capazes de captar o índice/grau de espiritualidade dos sujeitos pesquisados.

Sobre o primeiro conjunto, cito as correlações estabelecidas em alguns dos artigos revisados. Garssen, Uwland e Visser (2014) sugerem a existência de uma associação positiva entre a espiritualidade do paciente com câncer e bem estar. Brewer-Smyth e Koenig (2014) reconhecem que, em casos de traumas infantis, a resiliência de pessoas mais espiritualizadas é maior do que a de não espiritualizados. Berntson, Norman, Hawkley e Cacioppo (2008) afirmam que há uma correlação significativa entre espiritualidade e controle cardíaco autonômico. Bell e Troxel (2001), por sua vez, afirmam que a atenção à espiritualidade de pessoas com demência é um fator significativo na qualidade de vida dos doentes. Estudos anteriores já faziam afirmações como as de que a espiritualidade é uma variável determinante para a plena recuperação de: pacientes que fizeram cirurgia cardíaca (Ai, Dunkle, Peterson e Bolling, 1998), idosos hospitalizados (Koenig, George e Peterson, 1998), idosas com fratura de quadril (Pressman, Lyons, Larson e Strain, 1990), homens com deficiências graves (Idler e Kasl, 1997), viúvos recentes (Siegel e Kuykendall, 1990) e pacientes transplantados renais (Tix e Frazier, 1998).

Embora não possa me deter aqui na descrição pormenorizada dessas pesquisas, importa assinalar que nelas a espiritualidade não é tratada como uma característica eletiva, que as pessoas podem ou não possuir, mas trata-se de uma elemento substancial, invariavelmente compartilhado entre todos ou, na citação literal de um dos artigos recentes de maior impacto na área, “um componente inerente do ser humano” (Tanyi, 2002: 509).Todos têm espiritualidade, porém, há diferenças nos graus de desenvolvimento. Não fosse assim, sua importância na saúde da população seria nula, já que constante e universal. Foi esse entendimento que animou o segundo conjunto de produções sobre o tema no período pós-1990, caracterizado pela criação de instrumentos para a “medição da espiritualidade”.

Esses instrumentos têm características bastante variadas, alguns deles são genéricos e deveriam ser capazes de captar a “situação da espiritualidade” de qualquer um. Outros são mais específicos, voltados para pacientes com perfis clínicos determinados. Daqueles que podem ser amplamente utilizados, certamente o mais frequente é o WHOQOL Spirituality, Religiousness and Personal Beliefs (SRPB), desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde em 2002 com a colaboração de profissionais ligados a 18 centros de pesquisa de diferentes continentes.

O instrumento tem 142 questões, diante das quais os sujeitos pesquisados devem responder, num gradiente que vai de “nada” a “muito importante”, perguntas como: Até que ponto a conexão com um ser espiritual pode ajudá-lo a passar por momentos difíceis?; Até que ponto você sente a existência de uma força espiritual interior?; Até que ponto a fé contribui para o seu bem-estar?; Até que ponto você sente alguma conexão entre sua mente, corpo e alma?; Quão satisfeito você está com relação a seu equilíbrio entre mente, corpo e alma?

Entre os instrumentos específicos mais utilizados cito dois. Primeiro, o Functional Assessment of ChronicI llness Therapy-Spiritual Well-Being (Brady, Peterman, Fitchett, Mo e Cella, 1999), aplicado nos estudos envolvendo a espiritualidade de pacientes com câncer. O índice desse instrumento é resultante do nível de identificação do paciente diante de 12 declarações, tais como:  Eu me sinto tranquilo comigo mesmo; Eu tenho uma razão para viver; Eu reconheço um sentido e propósito para a minha vida; Eu sou capaz de me sentir bem quando estou sozinho; Eu sinto uma sensação de harmonia dentro de mim; Eu sei qual é o estado da minha doença e sei que as coisas vão ficar bem.

Já nas pesquisas sobre saúde mental o índice mais utilizado é o Daily Spiritual Experiences Scale (Underwood e Teresi, 2002), cujo principal objetivo é “captar a experiência cotidiana da espiritualidade”. As alternativas às 14 afirmações apresentadas aos pesquisados são de frequência (muitas vezes ao dia; todos os dias; muitos dias; alguns dias; de vez em quando; nunca ou quase nunca). E entre as afirmações estão: Eu sinto paz e harmonia em meu interior; Eu sinto a presença de Deus; Durante o culto, ou em outros momentos, quando conecto-me com Deus, sinto uma alegria que afasta minhas preocupações diárias; Eu me sinto espiritualmente tocado pela beleza da criação.

Esses são apenas alguns dos lineamentos mais panorâmicos da produção das ciências médicas sobre o par saúde-espiritualidade. Optei por destacar as características e argumentos que, conforme minha revisão, são comuns a diversos trabalhos dos períodos descritos. Vale sublinhar, no entanto, que a proposta de um recorte temporal para compreender esse interesse da ciência pela espiritualidade é apenas uma das possibilidades analíticas, desdobrada aqui como um modo de aprofundar o entendimento do gráfico apresentado no início desta seção. Outro caminho seria, por exemplo, tratar desse conjunto de trabalhos a partir dos impactos diferenciados que eles tiveram nos distintos campos da saúde: medicina, psicologia, enfermagem, etc. Igualmente pertinente seria dar foco ao fenômeno do notável crescimento do mercado editorial da medicina holista e das terapias alternativas/complementares. Isso ocorreu sobretudo a partir da década de 1990, quando alguns centros de pesquisa e departamentos especializados, tal como o Mind/Body Medical Institute, criaram suas próprias revistas e selos editoriais.Na breve revisão apresentada anteriormente, considerei apenas os textos indexados na Medline, mas não explicitei o tipo de periódico em que foram publicados, o que seria ainda uma outra possibilidade de caracterização desses trabalhos. Assim, reconheço que uma análise mais abrangente (e menos dirigida a questões específicas) da literatura médico-científica dedicada ao tópico “espiritualidade” ainda está para ser feita.

No entanto, em que pese a parcialidade do conjunto de textos aqui apresentados, em face de um universo de produção cada vez maior e diverso, é possível identificar três aspectos comuns nessas pesquisas que ajudam a encaminhar as reflexões deste capítulo. 1) Espiritualidade é uma dimensão orgânica do corpo, universalmente compartilhada, mas variável em seu grau de desenvolvimento. Tal sentença, que funciona como uma premissa dessas investigações, é também o princípio elementar das variadas definições do termo. 2) Espiritualidade faz bem para a saúde. Essa é, ao mesmo tempo, a hipótese que mobiliza as pesquisas sobre o assunto e o resultado que, num círculo tautológico, sempre se confirma. Na maioria dos textos que revisei, a correlação encontrada entre espiritualidade e cura/recuperação/bem estar da pessoa foi significativa. Foram poucas as ocorrências em que a relação não pôde ser comprovada e em nenhum caso a hipótese foi refutada, o que, se acontecesse, resultaria na sentença “espiritualidade faz mal”. 3) A dimensão espiritual incide tanto na saúde física como mental dos indivíduos. Isso é, espiritualidade tem a capacidade de transpassar as possíveis fronteiras entre essas “partes”, encarnando de modo emblemático o caráter holístico da saúde humana.

Ao ser mobilizada como um valor universal, enquanto uma dimensão inerente a todos os humanos e como invariavelmente positiva à saúde, a espiritualidade, nas pesquisas médicas, deixa de ser um objeto de investigação para tornar-se uma recomendação. Foi nessa direção que a própria Organização Mundial de Saúde, em janeiro de 1998, por sugestão de seu comitê executivo, inseriu a espiritualidade como uma quarta dimensão em seu conceito de saúde que, desde então, passou a ser: “saúde é um estado dinâmico de completo bem estar físico, mental, espiritual e social, e não simplesmente a ausência de doença ou de enfermidade” (grifo meu). E ainda que políticas públicas em saúde passaram a reconhecer a espiritualidade como uma dimensão importante para ser considerada e, de alguma maneira, cultivada e orientada. A essas questões me detenho na próxima seção.

 

3. Em nome da saúde

Sentado nos bancos da sala de espera do único posto de saúde de Severiano de Almeida, no interior do estado brasileiro do Rio Grande do Sul, Lucas, um menino de oito anos aguarda sua mãe sair do consultório de Jorge, o parapsicólogo que acabara de atendê-lo. Com duas folhas nas mãos o garoto balbucia a leitura do conteúdo de uma delas, uma espécie de mantra popularizado com a divulgação do Ho’oponopono, uma prática havaiana de libertação do passado. Depois de repetir algumas vezes as frases “Sinto Muito. Me perdoe. Te amo. Sou Grato”, conforme havia sugerido o parapsicólogo, Lucas abaixou as folhas e continuou esperando. Na mesma tarde, Paulo, o prefeito da cidade, foi ao posto para anunciar que o projeto Saúde Integrada: Formando Cidadãos, que prevê a oferta da parapsicologia e a manutenção de 14 hortas de plantas medicinais, havia sido escolhido pelo Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Rio Grande do Sul como uma das dez experiências mais exitosas da saúde pública do Estado. Com tal eleição, o município não somente apresentaria sua experiência em um evento estadual, que reuniria secretários de todas as cidades gaúchas, como também estava convidado a participar da mostra nacional que ocorreria em Brasília.

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A oferta mais recente de terapias alternativas no âmbito da saúde pública brasileira está relacionada com o lançamento de uma portaria interministerial que, em 2006, instituiu a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC). Tal política tem por finalidade assegurar e promover o acesso, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), à medicina tradicional chinesa, à homeopatia, à fitoterapia, ao termalismo e à medicina antroposófica. Resultado de demandas das conferências nacionais de saúde e de orientações da Organização Mundial de Saúde, a PNPIC desencadeou a formulação de outras políticas, estaduais e municipais, empenhadas em promover terapêuticas afins aos princípios do holismo e da integralidade.  As quatro cenas brevemente descritas acima são resultados da implementação dessa política em postos de saúde, ambulatórios e hospitais públicos no Rio Grande do Sul. O que sugiro é que a incorporação de terapias alternativas/complementares9 no SUS está associada com esse

movimento discursivo que conecta, a partir de pesquisas clínicas, saúde e espiritualidade. Entre as justificativas para que tal empreendimento se dê via a utilização de terapias alternativas/complementares está, entre outras razões que não poderei me aprofundar aqui, a afinidade desse modo de tratamento com princípios holistas de compreensão dos processos de saúde e de adoecimento. A seguir procuro demonstrar, primeiro, como as noções de holismo e de espiritualidade têm servido para justificar formalmente essa política pública e, segundo, como a espiritualidade, enquanto dimensão humana, tem sido objeto de atenção clínica em um posto de saúde gaúcho.

 

Da integralidade ao holismo

Em meados de 1978 a Organização Mundial de Saúde realizou na cidade de Alma Ata, atualmente território do Cazaquistão, a primeira conferência sobre atenção primária.  Embora contenha diretrizes de caráter diversos, o relatório final dessa conferência está significativamente marcado pelo contexto da Guerra Fria e pela sistematização de dados que explicitam a oferta desigual de tecnologias em saúde, profissionais e instituições hospitalares nos diferentes países do mundo. Foi justamente a partir do reconhecimento da indisponibilidade desses recursos para dois terços das nações do globo que a OMS reconheceu a Medicina Tradicional como uma ação em saúde. Assim, se, por um lado, esse reconhecimento contribuiu para a legitimação de saberes tradicionais sobre saúde e doença no âmbito de um organismo de governança global, por outro lado, tal ação está relacionada com a tentativa da OMS em tornar curandeiros, parteiras e médicos tradicionais como parte integrante de seu próprio projeto de promoção à saúde como um direito humano universal.  Ao considerar a medicina tradicional um modo de atenção primária, a OMS pôde “suspender a relevância” da informação sobre a falta de acesso às tecnologias em saúde  e anunciar que a maior parte da humanidade dispunha da oferta de métodos, tradicionais ou não, socialmente aceitáveis para a assistência à saúde. Foi com o intuito de promover a integração da Medicina Tradicional e Complementar/Alternativa nos sistemas nacionais de atenção à saúde que esse organismo criou, naquelemesmo ano, o Programa de Medicina Tradicional que, em 1980, se converteria em um departamento da OMS.

Aos poucos, as terapêuticas compreendidas pelas ações desse departamento deixaram de estar restritas às práticas tradicionais e passaram a abarcar também terapias que ganharam maior visibilidade no contexto da contracultura em países como Estados Unidos e Inglaterra, tais como a cromoterapia e a radiestesia. Desse modo, a partir de meados dos anos de 1990, a definição oficial de medicina tradicional elaborada pela OMS passou a incluir uma ressalva relativa às Práticas Integrativas e Complementares (PICs). No livro de Orientações gerais para metodologias em pesquisa e avaliação de medicina tradicional, lançado em 2000, por exemplo, a seguinte definição é apresentada:

A medicina tradicional tem uma longa história. É a soma total do conhecimento, habilidades e práticas baseadas nas teorias, crenças e experiências nativas de diferentes culturas, explicáveis ​​ou não, usadas na manutenção da saúde, bem como para a prevenção, diagnóstico, melhoria ou tratamento de doenças físicas e mentais. Os termos medicina complementar/alternativa/não-convencional são utilizados alternadamente com o medicina tradicional em alguns países. Medicina Complementar e Alternativa (CAM) é o termo usado em alguns países para se referir a um amplo conjunto de práticas de saúde que não fazem parte da tradição do próprio país e não estão integradas no sistema dominante de saúde. (Who, 2000:1, minha tradução)

No Brasil, a PNPIC está mais dirigida àquilo que a OMS chama de Medicina Complementar e Alternativa do que às Medicinas Tradicionais. As justificativas para o reconhecimento dessas terapêuticas parecem encontrar um importante respaldo no princípio da integralidade, que está presente no contexto da saúde pública brasileira, pelo menos, desde o Movimento pela Reforma Sanitária das décadas de 1970 e 1980.Na trajetória do uso político do conceito, segundo Ruben Araújo de Mattos (2005), pode-se identificar a referência a três aspectos. Primeiro, para designar um modo horizontalizado de elaboração e execução de políticas de saúde no país. A integralidade, nesse caso, diz respeito à integração entre demandas programadas e espontâneas no âmbito do funcionamento do SUS. Um segundo eixo de sentido do termo integralidade dirige-se à ideia de totalidade, referindo-se, sobretudo, às políticas que procuram oferecer respostas a determinados problemas de saúde levando em conta aspectos sociais e econômicos dos sujeitos que por eles são acometidos. Por fim, segundo Mattos (2005), a integralidade consistiria em um modo de cuidado que extrapolaria as necessidades relativas a saúde do paciente e que também estaria atento àquelas de outras ordens.

Embora plural, a demanda pela integralidade constituiu-se como um aspecto amplamente defendido por diversos movimentos sociais nas Conferências Nacionais de Saúde destinadas a conceber a estrutura de funcionamento do SUS. Com isso, a integralidade foi incorporada na formulação dos princípios que ordenam o SUS enquanto um de seus aspectos doutrinários, ao lado da equidade e da universalidade. Na lei que instituiu o SUS, em setembro de 1990, assim como na primeira cartilha lançada pelo Ministério da Saúde com a finalidade de apresentar o sistema aos brasileiros, a integralidade é discriminada do seguinte modo:

1. Cada pessoa é um todo indivisível e integrante de uma comunidade;

2. As ações de promoção, proteção e recuperação da saúde formam também um todo indivisível e não podem ser compartimentalizadas;

3.  As unidades prestadoras de serviço, com seus diversos graus de complexidade, formam também um todo indivisível configurando um sistema capaz de prestar assistência integral. (Brasil, 1990b).

O princípio da integralidade, portanto, remete tanto a um sistema organizacional que deve operar plenamente, integrando/articulando diferentes esferas, como também refere-se à totalidade da pessoa (ver, Toniol, 2014).

A relevância dessa breve explicitação para os fins deste texto reside no fato de que esse princípio doutrinário respaldou amplamente a formulação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Contudo,  diferentemente do sentido impresso sobre ele na lei e na cartilha citadas acima, a integralidade apareceu, no contexto de promoção das PICs, articulada com uma ideia ausente nos documentos até agora apresentados, o holismo. Alguns trechos do relatório do I Seminário Internacional de Práticas Integrativas e Complementares, promovido pelo Ministério da Saúde, em 2009, ajudam a dimensionar a maneira pela qual o holismo, a partir de sua articulação com a integralidade, contribuiu para inserir temas característicos das terapias alternativas/complementares na discussão sobre saúde no Brasil.

A medicina complementar possui uma visão holística, pela qual o indivíduo é visto em sua totalidade. A doença, seu diagnóstico e tratamento devem ser vistos sob aspectos físicos, emocionais, espirituais, mentais e sociais, simultaneamente (Brasil, 2009: 56) (grifos meus).

Já nas PICs e na medicina tradicional, de maneira geral, uma abordagem totalizante (holística) é realizada, de forma a abranger aspectos físicos, emocionais, mentais e ambientais relativos ao paciente, de forma simultânea. Assim, o ato de curar pode ser visto […] como uma harmonização (Brasil, 2009:18).

Como se pode observar nos trechos citados, a promoção de um tratamento totalizante aos pacientes, antes amparada pela ideia de integralidadeque, como princípio referia-se à integração do sistema de saúde ou ao sujeito como partícipe de uma sociedade, desliza, no contexto das PICs, para o conceito de holismo. O que estou sugerindo é que a aproximação entre o holismo e o princípio doutrinário da integralidade, presente no SUS desde sua formulação, foi um passo importante no processo de legitimação dessas terapias na saúde pública do país.Contudo, ainda que  a convergência entre o princípio da integralidade e o do holismo tenha se dado, na política nacional das PICs, por meio da ideia de totalidade, há uma diferença na abrangência do que seja esse referido total em cada um desses conceitos. Enquanto na perspectiva da integralidade a totalidade refere-se a um sujeito que não somente é um todo indivisível, como também umintegrante de uma comunidade, no holismo, o que está em jogo é uma totalidade individualizante, cuja marca é sintetizada pela tríade corpo-mente-espírito. Isso é, se a totalidade da primeira inclui um pertencimento à comunidade, a da segunda incide em um sujeito que pode ser descrito como uma espécie de mônada, encerrado em si mesmo.

Na sua versão holística, a espiritualidade é parte da totalidadedo ser, uma dimensão que merece a atenção dos profissionais de saúde. Nesse caso, as terapias alternativas/complementares teriam uma espécie de acesso privilegiado ao sujeito que passou a ser descrito em comunicações oficiais do ministério da saúde após 2006, como bio-psico-social-espiritual.

 

A organização da espiritualidade como forma de tratamento

Severiano de Almeida é um pequeno município do extremo norte gaúcho cuja principal atividade econômica são as agroindústrias familiares. Sua população é formada por menos do que 4.000 habitantes e mais de dois terços deles vivem na zona rural. Afastado dos principais polos de desenvolvimento econômico do estado, o município experimenta, desde os anos de 1990, um agravamento em suas perspectivas de crescimento por conta da migração massiva dos jovens para as cidades da serra e para a capital. Nos últimos anos, prolongados períodos de estiagem comprometeram a produção de erva-mate, de soja e de eucaliptos, principais culturas agrícolas da região. Em contraste com esse quadro que retrata o município a partir de seu baixo impacto econômico, político e administrativo para o estado, está a experiência em saúde pública de Severiano de Almeida que tem sido uma das mais divulgadas e premiadas da região sul.

Considerando somente o intervalo entre janeiro de 2013 e julho de 2014,  a cidade foi eleita por duas vezes, pelo Conselho das Secretarias Municipais de Saúde (Cosems/RS), como tendo uma das dez experiências mais exitosas do SUS do Rio Grande do Sul, a secretária de saúde foi convidada pelo ministério para expor seus projetos na mostra nacional de atenção básica, e o município tematizou duas mesas redondas no I e II Seminários Sul Brasileiro de PICs. Nesse mesmo período, 15 gestores municipais de todo o Brasil foram até o norte gaúcho para conhecer e observar a Unidade de saúde da cidade, bem como um enfermeiro e uma técnica de enfermagem da UBS de Severiano viajaram para Cuba e Uruguai, à convite dos governos desses próprios países, para apresentar a experiência local em encontros nacionais de saúde pública. Entre os principais resultados que dimensionam esse expressivo interesse pela gestão do SUS numa região que tem apenas uma UBS e um pequeno hospital, está a diminuição no consumo de medicamentos psicoativos em 30%10 e a redução no número de consultas médicas em 38%11.

O projeto ao qual se atribui a responsabilidade por essas significativas transformações, intitulado Saúde integrada - Formando cidadãos, está balizado por três diretrizes: o apoio à instalação de hortos medicinais; a formação de grupos voltados para pacientes com perfis específicos (diabéticos, hipertensos, grávidas, etc.); e a oferta de práticas integrativas e complementares na rede de atendimento primário.  Concretamente, os usuários têm sido encaminhados para grupos afins ao seu estado de saúde/doença e que,  sob a coordenação de um técnico, trabalham coletivamente para compartilhar experiências e tratamentos, “fortalecendo laços e permitindo a maior aproximação de todos os atores envolvidos no processo de construção de cidadania em saúde” (Fonte: Projeto Saúde Integrada-Formando Cidadãos). Conforme essa proposta, foram criados os grupos: “Amigos da Vida”, para pacientes com câncer; “Reaproveitamento de Alimentos”, que oferece orientações nutricionais; “Alcool e Drogadição”, destinado a dependentes e seus familiares; “Hipertensos e Diabéticos”; e “Horto e Plantas Medicinais”, que incentivou a construção de 14 hortos de plantas medicinais na cidade e que tem promovido palestras para capacitar os usuários para a produção caseira de fitoterápicos.  Com relação ao uso de terapias alternativas/complementares nas unidades de saúde, o município contratou um médico acupunturista, uma técnica em terapias holísticas e dois parapsicólogos. No projeto,a contratação desses últimos profissionais é justificada nos seguintes termos:

Cada núcleo profissional desenvolve suas atividades priorizando a humanização e o conhecimento prévio dos usuários, além da escuta terapêutica como facilitador na busca por qualidade de vida. A presença de dois parapsicólogos contribuem para a formação intelectual, social e espiritual dos usuários da Unidade Básica de Saúde (UBS). (grifos meus, Fonte: Projeto Saúde Integrada-Formando Cidadãos).

À atuação dos parapsicólogos é atribuída boa parte da diminuição no uso de psicofármacos na cidade. Crianças com problemas de atenção, donas de casa deprimidas e jovens alcoolistas têm sido encaminhados para esse tipo de atendimento. Os parapsicólogos, que são acionados pela equipe de saúde para conduzir psicoterapias, contam com uma característica que os coloca em vantagem com relação a psicóloga que também atende na UBS, eles também podem ajudar na espiritualidade do paciente. Constantemente essa justificativa vem acompanhada da afirmação de que “pesquisas recentes mostram que a espiritualidade é importante para a saúde”. Apesar de ser uma menção que raramente faz mais do que evocar o fato da espiritualidade ter se tornado um objeto de pesquisa das ciências médicas nos últimos anos, ela contribui para a legitimação de tratamentos conduzidos por especialistas no assunto.

Alexandre é um dos parapsicólogos contratados. Além dos atendimentos pela secretaria de saúde também tem seu consultório particular em Erechim, a maior cidade da região de Severiano de Almeida. Exerce a função há pouco menos que 10 anos, mas, como ele mesmo frisa, “tem certa autoridade para trabalhar com esses temas.” A referida autoridade está associada com a tarefa que exerceu durante 8 anos na cidade, a de pároco. Alexandre tem formação e foi padre diocesano em diferentes paróquias da região. Conhecido por sua sensibilidade com temas psíquicos e com fenômenos paranormais, Alexandre decidiu dedicar-se exclusivamente a parapsicologia depois de ter deixado de exercer o ministério do sacerdócio. Conhecido por todos na cidade, ainda é chamado de “padre” por alguns, mas pouco a pouco o tratamento de “doutor” torna-se dominante.

Apesar de reconhecer a importância que a experiência dos anos de sacerdócio lhe deram, o parapsicólogo faz questão de frisar que seus atendimentos não são religiosos, mas espirituais. A diferença, nesse caso, é fundamental porque necessariamente amplia os aspectos aos quais deve atentar em seus atendimentos.  E é nesse caráter extensivo da espiritualidade, que compreende, inclusive, a religião, que reside sua complexidade. 

A espiritualidade é ampla, está presente em todas as religiões. E a religião é uma maneira mais especifica de manifestar a espiritualidade. Então a espiritualidade é uma dimensão do ser humano, a religião é um meio especifico da manifestação disso. É uma forma, mas não é a única. Agora, a espiritualidade está na essência do ser humano. Nosso ser é espiritual, nós somos espiritualidade, nós somos espirituais. Mas não necessariamente somos religião. Então a religião é uma forma, um caminho, um estilo, uma manifestação dessa espiritualidade. Aí entra também a doutrina da religião, entra normas, regras, que organizam aquela instituição enquanto tal. A espiritualidade não tem isso, ela extrapola qualquer doutrina, ela vai além. Ultrapassa infinitamente qualquer estrutura. Por isso é que precisa de alguém para ajudar a organizá-la e é isso o que eu procuro fazer.

Essa organização da espiritualidade para que ela “trabalhe a seu favor”, como explicou Alexandre, é o “passo mais importante para essa energia tão maravilhosa que as pessoas têm não se volte contra elas, as destruindo e produzindo situações adversas, como uma doença”. As técnicas de organização da espiritualidade são diversas e dependem de cada caso: exercícios de relaxamento, respiração profunda, domínio da imaginação e imposição de mãos são algumas dessas técnicas, que vêm sempre acompanhadas por outras de cultivo de pensamento positivo. Tais pensamentos são estimulados a partir de exercícios meditativos individualmente planejados. Assim, de acordo com a necessidade, o parapsicólogo ajuda a organizar a espiritualidade da pessoa preparando “uma oração, que deve ser repetida algumas vezes ao dia e que vai trabalhar a mente positiva”. Em que pese os diferentes conteúdos, a repetição e a concentração são características invariáveis do tratamento.

Como descrevi em uma das cenas no início desta seção, as frases “Sinto Muito. Me perdoe. Te amo. Sou grato” é uma dessas orações.Outra oração distribuída em alguns casos é a chamada “Renovar a confiança e a paz”, cujo um dos trecho transcrevo: “Sei que a resposta aos meus problemas reside no meu Deus interior. Vou acalmar-me e relaxar. Estou em paz. (...) Penso na solução e não nos problemas. Vivo agora com a mesma disposição e alegria que teria se houvesse resolvido todos os meus problemas (...)”.

A ajuda na organização da vida espiritual dos usuários do SUS de Severiano de Almeida tem produzido efeitos na manutenção da saúde dessas pessoas. Esse é um dos dados apontados pelos relatórios anuais do programa “Saúde Integrada. Formando Cidadãos”. Não faltam casos de hipertensos que com os exercícios meditativos puderam parar de tomar medicamentos alopáticos, de usuários de antidepressivos que também deixaram de usar os psicofármacos e, ainda, de crianças que melhoraram seus rendimentos escolares depois do acompanhamento feito por Alexandre. Para Alberto, enfermeiro da UBS, vice-secretário de saúde e vereador do município, “Fazer um atendimento voltado para a espiritualidade, não é uma coisa de outro mundo. É seguir uma recomendação da OMS. É ter uma visão holista e integral do paciente. É tentar colocar as pesquisas que estão aí na prática”. 

 

Conclusão

A relação entre as pesquisas clínicas sobre espiritualidade, os relatórios da OMS que citam o termo, o princípio da integralidade do SUS, a ideia de holismo na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, e o modelo terapêutico adotado pela administração de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul para organizar a vida espiritual de seus habitantes não é evidente e nem imediata. Possivelmente os técnicos e gestores que elaboraram a PNPIC não conhecem os desdobramentos das publicações mais recentes sobre o “fator espiritualidade” na saúde humana. Tampouco acredito que pesquisadores das ciências médicas tenham conhecimento da experiência de Severiano de Almeida. Ou ainda que os parapsicólogos daquele município reconheçam as políticas de saúde que têm apoiado terapêuticas dirigidas a concepções holísticas dos processos de saúde e doença. A esses desencontros, poderíamos ainda somar o reconhecido dissenso sobre o que seja a referida espiritualidade. Contudo, o que sugiro ao argumentar pela possibilidade de conexão entre os casos aqui tratados é que a força da ideia de espiritualidade no campo da saúde reside, justamente, em sua forma plural e difusa de multiplicação. Isso porque a possibilidade de associação entre o laboratório, a política e a prática aqui descritas não está no engajamento dos atores em responder “O que é espiritualidade?”, mas, antes, nos efeitos de poder da conjunção “e” entre as palavras saúde “e” espiritualidade. O que mobiliza cientistas, políticos, médicos e terapeutas não é propriamente a espiritualidade, mas sim as consequências da espiritualidade ter sido produzida como uma questão de saúde. Nesse caso, uma pergunta mais adequada do que “o que é espiritualidade?” seria “quem pode dizer o que é espiritualidade quando ela se torna um tópico de saúde”?

Mensurar a espiritualidade, reconhecê-la como bem estar, fazer dela a quarta dimensão da definição de saúde, incluí-la em políticas públicas, apoiar terapêuticas mais adequadas para uma visão holística e apostar na organização da vida espiritual como um caminho para um combate a hipertensão são parte desse processo de institucionalização dos cuidados com a espiritualidade em nome da saúde. Mais do que as especificidades da cidade gaúcha, portanto, o que interessa aqui é o modo pelo qual a espiritualidade pôde se tornar visível, inscritível e avaliável no âmbito da rotina de uma Unidade de Saúde. Minha sugestão é a de que, embora particular, a institucionalização da PNPIC em Severiano de Almeida, por meio do qual a contratação de um parapsicólogo pôde ser justificada, anuncia a emergência da espiritualidade como uma expertise no campo da saúdeIsso é, no mesmo passo em que a espiritualidade se torna inteligível e praticável, um corpo de pessoas se empenha para demarcar a autoridade social de quem pode exercer um olhar diagnóstico sobre ela, reivindicar a verdade e a eficácia técnica de seus conhecimentos. O tema, antes abjeto e cuja própria menção era capaz de estabelecer o limite entre o olhar clínico que descortina o organismo real e a crença de quem irresponsavelmente mistura o físico e o metafísico, ganhou novos contornos na medida em que a sentença espiritualidade é saúde passou a gozar, quando não da concordância, ao menos, da legitimidade do debate.

A importância de dar centralidade a essa cadeia associativa, que articula ciência / práticas integrativas e complementares / espiritualidade, é capital no âmbito dos estudos sobre terapias alternativas, na medida que implica uma ruptura com a perspectiva dominante. Explico a afirmação retomando um dos argumentos apresentados no início deste texto: a insistência em fazer da Nova Era a principal chave analítica para a compreensão das terapias alternativas ocultou importantes transformações empíricas desse campo.

Parece ser indicativo da pertinência de tal hipótese o fato de que ao longo de todo meu trabalho de campo entre os terapeutas da PNPIC jamais ouvi qualquer menção a Era de aquários, a Gaia ou a Esalen, mas tive que conversar bastante com meus interlocutores sobre artigos publicados em periódicos norte americanos, debater as metodologias das pesquisas voltadas para a espiritualidade e comentar o projeto de lei que tramita na Câmara federal para a regularização do ofício de terapeuta holístico. Essa postura também se estendeu para as narrativas históricas dos terapeutas sobre o desenvolvimento de suas práticas. Por exemplo, a maioria deles sequer se referiu ao período da contracultura - quando muitas de suas técnicas se estabeleceram no Ocidente - mas, em compensação, muitos sublinharam a importância de eventos como a criação de revistas científicas especializadas em Complementary and Alternative Therapies, a publicação de livros e a promulgação de legislações específicas.

A linguagem analítica da Nova Era ultrapassou o fenômeno que, em algum momento, ela procurou descrever. As terapias alternativas, assimiladas na literatura antropológica como a precipitação dos ideais dos new agers em técnicas de cura, parecem marcadas de modo definitivo pela hermenêutica da nova era. É certo que há um vínculo histórico entre essas terapias e os movimentos espirituais da contracultura, entretanto, não era essa a historicidade que meus interlocutores reclamavam para suas práticas. Era à ciência que eles se referiam como balizadora e legitimadora de suas terapêuticas.

O que pode esse cenário fazer pela antropologia e sociologia da religião? Além de insinuar um novo e promissor horizonte de investigações, minha impressão é de que também nos conduzirá a empreendimentos analíticos em direção a outras modalidades de associação e de inscrição da ideia de espiritualidade.

 

 

Notas

1. Uma versão inicial desse texto foi apresentada durante a XVII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, pelas discussões realizadas na ocasião, agradeço aos comentários de Leila Amaral,  Renée de la Torre, Cristina Zuñiga, Maria Mercedes Saizar, Carlos Steil, Raquel Liter Bastos e Cecília Galera.

2. Cito o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, instituição vinculada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que promove regularmente fóruns sobre Espiritualidade e saúde organizados por um grupo de funcionários, médicos, enfermeiros e outros profissionais, que se reúnem regularmente para debater o tema.

3. Cito o Núcleo de Estudos sobre Religiosidade - Espiritualidade em Saúde (NERES) do Hospital Israelita Albert Einstein de São Paulo. Cito, por exemplo, o "Simpósio de Saúde e Espiritualidade" promovido pelo departamento de neurologia e neurocirurgia da Universidade Federal de São Paulo desde 2009.

4. Cito, por exemplo, o "Simpósio de Saúde e Espiritualidade" promovido pelo departamento de neurologia e neurocirurgia da Universidade Federal de São Paulo desde 2009.

5. Cito a disciplina "Medicina e Espiritualidade" oferecida em 2009 na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará.

6. A linha de pesquisa “Epidemiologia da religiosidade e saúde”, junto com outras duas, "Experiências religiosas e espirituais" e "História e Filosofia das Pesquisas sobre Espiritualidade", integram o Programa de Pós de Pós-Graduação em Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora. Este Programa de Pós-Graduação também sedia o Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde.

7. Entre os mais destacados e tradicionais centros de pesquisas estão: Center for Spirituality, Theology and Health (Duke University); Program in Spirituality and medicine (Howard University Hospital); Center for Spirituality, Health and Disability (University of Aberdeen); Centre for Spirituality and healing (University of Minnesota); Spirituality Mind-Body Institute (Columbia University); Center for Spirituality and health (University of Florida).

8. Medline é um dos mais importantes banco de dados das ciências médicas do mundo. Ele organiza e armazena artigos, coleções de periódicos, resumos de congressos e citações relacionados ao campo da medicina.

9. Como estratégia narrativa para não invisibilizar a tensão nominal permanente nesse campo com relação ao termo mais adequado para designar tais práticas - como alternativas, tradicionais, complementares, integrativas ou não-biomédicas -, opto por utilizar neste texto o termo terapias alternativas/complementares. Privilegio os conceitos alternativas e complementares em detrimento de outros por considerá-los sintetizadores de modos de aceitação paradigmáticos destas terapêuticas. O primeiro, está associado sobretudo ao contexto em que tais terapêuticas são compreendidas a partir do movimento da Nova Era, fora das instituições estabelecidas de tratamento à saúde. O segundo remete a possibilidade de associação dessas terapias com modelos e procedimentos hegemônicos, biomédicos.

10. A diminuição é relativa ao número de medicamentos retirados na farmácia da UBS no período entre janeiro de 2011 e dezembro de 2012.

11. Nesse caso, a redução no número de consultas médicas indica que a equipe da UBS pôde encaminhar a resolução dos problemas apresentados pelos usuários a partir de outras modalidades de atenção à saúde. A diminuição de 38% torna-se ainda mais significativa se considerarmos que no intervalo do período analisado, entre janeiro de 2011 e dezembro de 2012,  houve um aumento no número de médicos disponíveis na UBS.

 

Documentos consultados

BRASIL. (2009). Relatório do 1º Seminário Internacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde - PNPIC. Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado de: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/seminario_praticas_integrativas_complementares_saude.pdf

WHO. (2001). General Guidelines for Methodologies on Research and Evaluation of Traditional Medicine. Genebra: WHO. Recuperado de: http://whqlibdoc.who.int/hq/2000/WHO_EDM_TRM_2000.1.pdf

Secretaria Municipal de Saúde de Severiano de Almeida. (2012). Projeto Saúde Integrada-Formando Cidadãos. Severiano de Almeida: cópia impressa.

Ministério da Saúde. (1990). ABC do SUS. Doutrinas e princípios. Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado de: http://www.pbh.gov.br/smsa/bibliografia/abc_do_sus_doutrinas_e_principios.pdf

Guerchenzon, Y. (2013, 06 de junho). Especialistas estudam efeitos da espiritualidade à saúde do brasileiro. Notícias UOL. Recuperado de: http://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2013/06/09/especialistas-estudam-os-efeitos-da-espiritualidade-sobre-a-saude.htm?cmpid=cgp-saude-news

 

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