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versión On-line ISSN 1853-9912

Palabra clave vol.11 no.2 Ensenada abr. 2022

http://dx.doi.org/https://doi.org/10.24215/18539912e158 

Notas para el debate

Biblioteca pública e o lugar de si e do outro: lugar antropológico ou não-lugar?

Public library and the place of the self and the other: anthropological place or non-place?

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro / Secretaria de Educação do Rio de Janeiro, Brasil

2Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Departamento de Biblioteconomia / Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Memória Social / Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Biblioteconomia, Brasil

3Universidade de São Paulo (USP-Ribeirão Preto). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras / Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Pós-Graduação em Ciência da Informação, Brasil

Resumo

Objetivo: apresenta a biblioteca pública como um espaço público e democrático que proporciona a convivência e o desenvolvimento do indivíduo, sob a perspectiva dos conceitos de lugar antropológico e não-lugar teorizados pelo antropólogo Marc Augé. Reconhece a pouca aderência social da biblioteca pública na realidade brasileira. Expõe eventos históricos sobre a construção desta instituição no Brasil, marcada pela cultura do privilégio. Classificação da Pesquisa: social, de cunho teórico, com delineamento metodológico exploratório e qualitativo. Método: pesquisa bibliográfica. Principais resultados: revisão de um problema epistemológico: a desconexão entre o que a biblioteca pública é em face o que ela deveria ser. Apontamentos relativos à função da biblioteca pública com o conceito de lugar antropológico a partir do estabelecimento com a comunidade, formando vínculos e estreitas relações. Associação da biblioteca pública como não-lugar, constatando o distanciamento da instituição com o cotidiano do cidadão, revelando a falta de aderência e ressonância social. Conclusão: o conceito de biblioteca pública pode ser configurado como lugar antropológico ou não-lugar; novas perspectivas sobre o conceito, valorizando a instituição enquanto espaço podem ser exploradas; contribui para o enriquecimento de reflexões e questionamentos acerca da popularização da biblioteca pública no Brasil, aliando teoria e prática almejando um maior alcance, aderência e impacto social.

Palavras-chave Biblioteca pública; Lugar antropológico; Não-lugar

Abstract

Objective: presents the public library as a public and democratic space that provides coexistence and development of the individual, from the perspective of the concepts of anthropological place and non-place theorized by the anthropologist Marc Augé. It recognizes the little social adherence of the public library in the brazilian reality. It exposes historical events about the construction of this institution in Brazil, marked by the culture of privilege. Research Classification: Social, theoretical, with exploratory and qualitative methodological design. Method: Bibliographical research. Main results: review of an epistemological problem: the disconnection between what the public library is and what it should be. Points related to the function of the public library with the concept of anthropological place from the establishment with the community, forming bonds and close relationships. Association of the public library as a non-place, noting the distancing of the institution from the daily life of the citizen, revealing the lack of social adherence and resonance. Conclusion: the concept of public library can be configured as an anthropological place or non-place; new perspectives on the concept, valuing the institution as a space can be explored; it contributes to the enrichment of reflections and questionings about the popularization of the public library in Brazil, combining theory and practice aiming at a greater reach, adherence and social impact.

Keywords Public library; Anthropological place; Non-place

Resumen

Objetivo: presenta la biblioteca pública como un espacio público y democrático que proporciona la convivencia y el desarrollo del individuo, desde la perspectiva de los conceptos de lugar y no-lugar antropológico teorizados por el antropólogo Marc Augé. Reconoce la poca adhesión social de la biblioteca pública en la realidad brasileña. Expone acontecimientos históricos sobre la construcción de esta institución en Brasil, marcada por la cultura del privilegio. Clasificación de la investigación: Social, teórica, con diseño metodológico exploratorio y cualitativo. Método: Investigación bibliográfica. Principales resultados: revisión de un problema epistemológico: la desconexión entre lo que la biblioteca pública es y lo que debería ser. Planteos que relacionan la función de la biblioteca pública con el concepto de lugar antropológico desde el establecimiento con la comunidad, formando vínculos y relaciones estrechas. Asociación de la biblioteca pública como un no-lugar, señalando el alejamiento de la institución de la vida cotidiana del ciudadano, para revelar la falta de adhesión y resonancia social. Conclusión: el concepto de biblioteca pública puede configurarse como lugar o no-lugar antropológico; se pueden explorar nuevas perspectivas sobre el concepto, valorando la institución como espacio; ello contribuye al enriquecimiento de las reflexiones y cuestionamientos sobre la popularización de la biblioteca pública en Brasil, combinando teoría y práctica con el objetivo de obtener mayor alcance, adhesión e impacto social.

Palabras clave Biblioteca pública; Lugar antropológico; No-lugar

1. Introdução

A partir dos objetivos traçados pela IFLA/UNESCO (1994), a biblioteca pública tem sido definida como uma instituição social democrática que deve prestar serviços em prol da alfabetização, educação e cultura. O conceito atribuído pela IFLA/UNESCO (1994) vem sendo utilizado por pesquisadores e profissionais da área como um guia. O conceito define que as bibliotecas públicas são espaços democráticos de acesso à informação e ao conhecimento. Além disso, Sánchez (2017), ao refletir sobre a noção de biblioteca pública, declara que deve ser transformada em centro de cultura, ócio e educação permanente; integrar socialmente; fomentar a solidariedade, liberdade de pensamento; diminuir ou até mesmo extinguir as barreiras religiosas, sociais, ideológicas; possibilitar a imaginação e a criatividade, bem como exercer uma formação cidadã e comunitária.

De tempos em tempos, com as transformações sociais, econômicas, políticas, culturais e informacionais, ocorridas em virtude do capitalismo e da globalização, novas formas de acesso, uso e produção da informação e conhecimento são oferecidas aos sujeitos. Isso afeta o modo de organização social e, obrigatoriamente, traz consequências para o processo de construção dos modos de vida. Além disso, os processos de formação e manutenção das instituições sociais devem passar por mudanças estruturais para garantir a satisfação das necessidades e demandas sociais. Nesse sentido, repensar a noção, o conceito, a função e os usos da biblioteca pública têm se tornado uma reflexão imperativa na contemporaneidade.

Ao problematizar essas questões hodiernas. Este artigo apresenta a biblioteca pública sob o viés do antropólogo francês Marc Augé entendendo, genericamente, a biblioteca como espaço. O teórico em seu livro “Non-lieux: introduction à une anthropologie de la sumodernité”, publicado em 1992, constrói perspectivas propondo uma antropologia que tem o objetivo a compreensão da supermodernidade, introduzindo dois importantes conceitos: lugar antropológico e não-lugar.

Nesta perspectiva, lugar antropológico e não-lugar se apresentam como espaços produzidos pela sobremodernidade, termo usado por Augé para representar a dinâmica moderna que envolve os excessos que permeiam o relacionamento entre o cidadão e os espaços das cidades. Lugar antropológico e não-lugar são produzidos de acordo com relacionamento construído entre sujeito e lugar. Com vistas nesse panorama teórico, a investigação desenvolvida trabalha com a questão nocional e conceitual de biblioteca pública na atualidade, por esse motivo foi necessário iniciar as reflexões configurando essas instituições como não-lugar, o que resultou na comunicação oral apresentada no XXVIII Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação (Achilles & Silva, 2019). Para repensar o conceito, optou-se por ampliar a pesquisa correlacionando o conceito biblioteca pública com o lugar antropológico e o não-lugar. Dito isto, essa pesquisa se caracteriza como social de cunho teórico, tendo como objetivo metodologia exploratória com delineamento qualitativo. Assim, essa investigação emerge, inicialmente, de um problema epistemológico: o descompasso entre o que a biblioteca pública é, em face do que ela deveria ser. Tal problema pode ser visualizado em virtude da falta de aderência e ressonância social que as bibliotecas públicas brasileiras vêm sofrendo ao longo do tempo e que se intensificaram na contemporaneidade pela cultura da convergência que valoriza as novas tecnologias da informação e comunicação.

Desse modo, alertar para esse descompasso ou desigualdade, suscitou outros questionamentos, tais como: qual o sentido dessas instituições para a sociedade? Qual o impacto que elas têm na formação do sujeito? Como elas podem promover a transformação dos cidadãos? Como podem funcionar enquanto espaço de apoio ao desenvolvimento social? Este artigo não tem a proposição de responder todas essas questões, mas indicar possibilidades para a problematização, para a reflexão teórica a respeito desses questionamentos.

As bibliotecas públicas brasileiras, em sua maioria, estão desconectadas do cotidiano e, mais profundamente, da realidade dos sujeitos sociais por vários motivos como, por exemplo, a enorme capilaridade geográfica federativa que marca diferenças culturais e sociais, mas também grandes diferenças econômicas e políticas que exercem impactos diretamente nos espaços públicos e nos equipamentos culturais. Essa desconexão com a realidade fomenta caminhos teórico-reflexivos sobre o “como” essas instituições podem metamorfosear o quadro de crise institucional em instituições atuantes como aponta Achilles (2018). Uma biblioteca pública pode e deve fomentar ações em prol do fortalecimento social e boas práticas, como por exemplo, desenvolvendo o letramento informacional, contribuindo para a formação de sujeitos mais conscientes dos seus papéis políticos, econômicos, culturais e sociais. Isso significa dizer que esse tipo de biblioteca poderá interferir de maneira direta e efetiva nos processos de construção dos modos de vida e de organização social.

As diferenças sociais pautadas na cultura do privilégio, e meritocracia, geraram desde a criação da primeira biblioteca pública brasileira, construída em Salvador, na Bahia, em 1811, hierarquias no que tange o acesso à informação conformadas pelas estruturas de poder vigentes nesta época. Ao longo do tempo, essas bibliotecas apresentaram algumas modificações, mas o seu formato tem muitas semelhanças com os elementos de sua origem, adotaram outras influências para sua estrutura, mas ainda estão localizadas nos centros urbanos e são frequentadas pela minoria da população. Nesse sentido, o biopoder aparece na geografia das cidades e nas construções, bem como no funcionamento das bibliotecas onde a percepção das diferenças sociais e culturais é aumentada pela falta de vias comunicação que possibilitam o trânsito da vida, o ir e vir, e, mais pontualmente, o trânsito das ideias. Nesse sentido, a cultura do privilégio exercita seu papel de continuidade impondo traços constituintes de uma história única (Adichie, 2019).

A cultura do privilégio, marcada desde a colonização portuguesa em território brasileiro, estabeleceu uma sociedade profundamente hierarquizada fundada em privilégios, em irracionalidade específica, injustiça social, privilégios hereditários, prestígio social. O privilégio acabou criando em parcela significativa da sociedade a passividade ética e moral (Holanda, 2006). Essa cultura teve sua extensão ao direito e ao acesso à informação, à cultura e ao lazer nos equipamentos culturais. O que faz com que alguns estabeleçam vínculos ou não com esses espaços. Ao trabalhar com as perspectivas de Augé (2012) tenciona-se trilhar um novo caminho, provendo uma perspectiva conceitual para biblioteca pública que revela outro olhar para essas instituições, motivando assim a reflexão de seu conceito e função à luz da cultura do privilégio.

Nesta trilha complexa, mas necessária, o objetivo desse artigo é apresentar elementos elucidativos sobre a biblioteca pública enquanto lugar antropológico e não-lugar. Assim, buscando-se abrir a reflexão sobre a aproximação entre esses conceitos e destacando que, no contexto brasileiro, a biblioteca pública comporta-se historicamente como um não-lugar embora o conceito de lugar antropológico se apresente como uma perspectiva.

2. Biblioteca pública: lugar, sentidos e funções

As publicações acadêmicas sobre a temática biblioteca pública que trabalham sob a perspectiva do conceito, sentido e funções, em certa medida, apontam essas instituições como espaços sociais democráticos. Tal perspectiva está sempre atrelada à funcionalidade que a biblioteca assume. Dessa forma, Mueller (1984), ao se referir sobre a origem e a função desse tipo de biblioteca, afirma que elas são espaços para servir a educação, porque carregam uma visão utilitária estruturada no final do século XIX. No entanto, a autora, ao citar Jevons, declara que essas instituições passaram a desempenhar um novo papel – o de zelar pela ordem social, isto é, pelo bem-estar comum.

Nos Estados Unidos, no final do século XIX, as bibliotecas públicas eram vistas como espaços indispensáveis ao fomento da democracia, ou seja, deveriam apoiar o desenvolvimento deste sistema político, bem como a conservação dos seus ideais. No artigo “Bibliotecas em sociedade”, publicado por Mueller (1984), essas instituições também se apresentam como espaços para a cura dos problemas sociais. Elas seriam uma espécie de ‘bom investimento social’ e deveriam fornecer “prazeres inocentes aos homens exaustos e sem dinheiro” (Mueller, 1984, p. 9).

Pouco a pouco, a biblioteca pública era conformada a partir do modelo político-econômico vigente. Desse modo, além de conter as pressões sociais passou a agregar a função educativa que se conserva até hoje. A função educativa foi estabelecida no momento em que a sociedade necessitava de profissionalização para se adequar as exigências advindas do processo de industrialização.

Dana (citado por Mueller, 1984) afirma a biblioteca pública como uma força cultural atuante na comunidade. Assim, a função cultural foi somada à função educativa e, em seguida, começou também a ser vista como espaço de lazer. O que se pode observar é a biblioteca pública brasileira se moldando como um espaço em consonância com os constructos sociais próprios da democracia.

A ideia de biblioteca pública como laboratório empírico foi implementada nos Estados Unidos, contribuindo para a formação de teorias responsáveis pelo desenvolvimento da própria Biblioteconomia enquanto campo científico. Além disso, produziu uma geração de profissionais, assim como instrumentos que pudessem ser utilizados para organizar e administrar bibliotecas. A influência norte-americana acarretou na produção de novas práticas a partir da segunda metade do século XIX. Isso significa dizer que a biblioteca pública fomentou o desenvolvimento da biblioteconomia e, consequentemente, de profissionais e pesquisadores, ampliando o alcance e o impacto dessas bibliotecas na vida dos sujeitos. Nesse sentido, a conjectura é que a biblioteca poderia se converter em um espaço atrelado à extensão da vida do sujeito, onde as práticas sociais ligadas ao acesso à informação e ao conhecimento caminhavam em consonância com os preceitos democráticos.

O movimento bibliotecário imbuído de um forte sentimento democrático como aponta Escolar Sobrino (1990) destaca alguns profissionais atuantes, tais como:

  • Charles Coffin Jewett (1816-1868) redator das normas de catalogação;

  • William Frederick Foole (1821-1894) diretor de diversas bibliotecas públicas;

  • Justin Winsor (1831-1897) diretor da Harvard;

  • Charles Ammi Cutter (1837-1903) criador do sistema de classificação para autores utilizado na contemporaneidade;

  • John Cotton Dana (1856-1928) diretor de diversas bibliotecas;

  • Mervil Dewey (1851-1931) criador do sistema de classificação decimal útil e o primeiro a estabelecer os primeiros cursos de ensino profissional de Biblioteconomia, por exemplo.

Esses profissionais foram os principais nomes que influenciaram a fundação da pós-graduação em Biblioteconomia e a abertura de cursos de graduação nos países da América Latina.

Ademais, todo esse movimento também fundamentou os preceitos defendidos pela IFLA/UNESCO nos manifestos sobre bibliotecas públicas que surgiram mais tarde nas décadas de ´60, ´70 e ´90. Tais documentos contribuíram para desenvolvimento e fortalecimento da profissão e do próprio campo com a criação de associações e escolas de ensino. Escolar Sobrino (1990) declara que Columbia e Nova Iorque deram subsídios ao ensino das práticas bibliotecárias ministradas por Dewey. E, mais tarde, Pierce Butler, em 1933, publica a obra “An introduction to library science. que configurava a Biblioteconomia como uma ciência social e, consequentemente, a partir dessa ideia, “a biblioteca seria unidade essencial na organização social, uma agência social, e os livros como a memória social coletiva” (Mueller, 1984, p. 19).

A importância da biblioteca pública como espaço tem sido observada na literatura apontando para “um futuro em que a função social e a redefinição da biblioteca como espaço de encontros estejam fortemente instituídas” como indica Santa Anna (2016, p. 241). Moyses, Mont’Alvão & Zattar (2019) destacam a contribuição do espaço da biblioteca pública para a educação formal e ressaltam que as inovações espaciais contribuem para uma maior interação entre comunidade e instituição, tornando esta em espaços de convivência e centro de socialização. Gallo-León (2019), bibliotecário espanhol, reforça a ideia da biblioteca como terceiro lugar ou ágora, concepção que amplia a função da biblioteca pública e dos usos dos seus espaços de modo que ela seja um ponto de encontro comunitário.

Para que cada indivíduo enxergue a biblioteca pública como um espaço de extensão da sua vida, ele deve estabelecer relações com esse espaço de modo a se identificar, ou se reconhecer com ele. Nesse sentido, esse texto traz como ponto de diálogo a relação do sujeito social com a biblioteca pública, entendendo-a, primeiramente como espaço (lugar), ou seja, lugar antropológico, assim como não-lugar, modelado por Augé (2012).

Segundo o autor, as transformações pelas quais passou a sociedade atual, resultantes do processo de globalização, acelerou deslocamentos, diminuíram distâncias e modificaram a relação do homem com o tempo e com o outro. Essa mudança de percepção e de relacionamento resulta na desvinculação do sujeito com os espaços, produzindo o que Augé (2012) denomina de “não-lugar”. Assim, o teórico aponta certa oposição entre o conceito “lugar antropológico” e “não-lugar”. Para compreender esses conceitos e relacioná-los às bibliotecas públicas é necessário explicá-los a seguir.

3. A biblioteca pública como lugar antropológico

Augé (2012) caracteriza o lugar antropológico como lugar simbólico por si, identitário, relacional e histórico. São lugares nos quais e pelos quais o sujeito estabelece ao longo de sua jornada estreito relacionamento, desenvolvendo um laço identitário. A relação entre o sujeito e o lugar antropológico não necessita de mediação simbólica, o próprio lugar já é reconhecido por aqueles que o vivenciam. O lugar antropológico se dá na construção das narrativas, dos relatos e nas experiências individuais e coletivas que o fortalece e o sustenta, ou seja, são vivenciados. Os lugares antropológicos apresentam-se cada vez mais em lugar específico, limitados a viverem como “lugares de memória”.

Reservamos o termo “lugar antropológico” àquela construção concreta e simbólica do espaço que não poderia dar conta, somente ela, das vicissitudes e contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles a quem ela designa um lugar, por mais humilde e modesto que seja. [...] o lugar antropológico é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa (Augé, 2012, p. 51).

Assim, quando se fala em lugar antropológico, remete-se àquele que significa para o sujeito muito mais do que a representação física, pois o lugar antropológico extrapola a questão física e espacial. Ele se apresenta como um local de reconhecimento do indivíduo, por isso é identitário. Ele se completa na coexistência das experiências individuais e coletivas, por isso relacional. Além disso, é histórico porque na comunhão entre identidade e relação se converte em reconhecimento e conhecimento que dispensa a mediação de símbolos representativos do próprio lugar.

Deste modo, pensar na biblioteca pública com lugar antropológico alude à perspectiva de uma instituição que leve em consideração as necessidades dos usuários e da comunidade ao qual faz parte, a fim de que se torne integrante desta, como declara Crippa (2015, p. 2): “a biblioteca pública, em sua existência física, nesse artigo é proposta como laboratório de cidadania muito mais próxima dos processos da vida real do que atualmente é, uma oficina permanente de apropriação do espaço coletivo, de ações compartilhadas”.

Ao refletir sobre a função da biblioteca pública, Crippa (2015) relaciona as ações compartilhadas às possibilidades permanentes de apropriação do espaço físico da biblioteca e se apoia na ideia de diminuição dos espaços públicos. A autora afirma que consequentes crises são responsáveis pela deterioração dos tecidos urbanos porque surgem dos processos relativos às novas dinâmicas de segregações espaciais, conforme também declara García Canclini (2019). O teórico buscou analisar a hibridização cultural levando em consideração uma série de aspectos como a multiplicidade e complexidade cultural da América Latina, universo escolhido por ele. E articula argumentos apresentando como referente a crise da modernidade ocidental que se intensificou nos anos ´90, momento em que o processo de invisibilidade das bibliotecas públicas brasileiras, por exemplo, começou a se tornar crescente.

Crippa (2015) alerta para a diminuição dos espaços públicos e García Canclini (2019) defende a ideia de que a expansão urbana é causa da hibridização cultural e efeito das transformações provocadas pela crise da modernidade. Frente a esse panorama, onde a biblioteca pública se localiza? A biblioteca pública pode ser um espaço, território de reconhecimento identitário quando as comunidades sequer percebem os laços sociais que os unem? Ademais, pode carregar e admitir uma série de experiências individuais e coletivas que conformam práticas sociais de uso do espaço, bem como traços sociais que compõem a experiência intersubjetiva coletiva, formando assim, a existência e a essência do elo que liga os comuns. É no bojo do compartilhamento de práticas, representações, crenças, lembranças, que o processo identitário se desenvolve e, consequentemente, forma a memória e cultura de um grupo social.

A partir dessas ideias, o lugar antropológico se coloca como o espaço que permite experiências, vivências, conexões entre os comuns, compartilhamento de práticas sociais que, em certa medida, garantem a memória de uma comunidade. A essa reflexão Achilles (2018) alerta para o uso de um novo entendimento conceitual para a biblioteca pública definindo-a também como espaço de experiências e vivências que podem ser construídas, conhecidas e reconhecidas por seus frequentadores.

Segundo Augé (2012), esse lugar comum é uma invenção. Com a finalidade de explorar o conceito lugar antropológico do autor, o atrelamos ao entendimento sobre biblioteca pública concebido por Crippa (2015) e por Achilles (2018). Para a primeira autora a biblioteca é encontro; permite a tecelagem de habilidades dos diletantes da vida que tentam instituir seus discursos sem deixá-los a outros protagonistas; é lugar de igualdade; é necessária a inovação para recuperar o sentido das dimensões dos serviços que oferecem; a biblioteca deve criar oportunidades como as que apresentam a IFLA/UNESCO (1994); e, por fim, a biblioteca deve ser um empreendimento social e cultural da comunidade.

Em paralelo, Achilles (2018), afirmando a desconexão teórica e prática do conceito biblioteca pública estruturado nas ideias de Alfaro López (2008, 2010), configura a biblioteca pública como espaço de experiência e vivência positivando a dinamicidade das práticas que devem ser absorvidas pelas construções teóricas a respeito dessas instituições. Assim, Achilles (2018) aponta que o constructo teórico do conceito biblioteca pública deve ser sempre aberto, admitir o movimento dos processos e das dinâmicas que advém das práticas. Ainda assinala que o conceito de biblioteca pública está sempre localizado no por vir porque depende necessariamente das apropriações e aderências, além das ressonâncias sociais que essas instituições provocam na vida dos sujeitos sociais.

4. A biblioteca pública como não-lugar

O não-lugar é identificado por Augé (2012) como lugares de passagem, cuja ligação com o indivíduo não é estruturada. Nessa perspectiva, há um esvaziamento de sentido que reflete a não construção de relação entre as partes. O processo de construção histórica é mínimo, visto que não há, entre os pares sociais, frequência satisfatória que produza o relato de troca de experiência individual e coletiva. Portanto, se estabelece aqui uma relação não identitária em decorrência do sujeito e lugar não participarem de uma narrativa comum e, consequentemente, os elementos simbólicos representativos do lugar e da sua condição não serem reconhecidos. “Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não lugar” (Augé, 2012, p. 73).

Explica o não-lugar como um produto da supermodernidade, que seria uma marca dos nossos tempos, cada vez mais exigindo o imediatismo nas relações envolvidas pelo ritmo de vida acelerado do sujeito desta forma surgem esses novos lugares. No não-lugar a relação com o outro é diminuída na medida em que são lugares que desprestigiam as relações duradouras; as relações no não-lugar são passageiras por refletirem a sua característica momentânea. Assim, esses lugares são cada vez mais revestidos de individualidade.

Crippa (2015) assinala a importância do espaço físico da biblioteca como um lugar estável, favorável a trocas em diversos níveis estruturais, divergente dos espaços que cada vez mais são encontrados nas cidades, os não-lugares:

O que as cidades cada vez mais oferecem como opção de agregação social são espaços ou eventos marcadamente comerciais, cada vez mais parecidos nas operações de franchising global. Muitos serviços são mobilizados na tentativa de manter as costuras sociais estáveis. A biblioteca pública pode ser o território mais rico para realizar o encontro entre realidades diversas, buscando saídas das crises sociais que nos cercam (Crippa, 2015, p. 2).

Na contramão do não-lugar, a biblioteca pública deve manter com a comunidade um relacionamento contínuo, apresentando-se como o espaço de desenvolvimento social e emocional que proporcione ao usuário o oposto do que é disponibilizado pela sociedade de mercado. Há, portanto, a necessidade de pensar a biblioteca pública como lugar de experiências, conforme alerta Achilles (2018) fazendo-se reconhecer para além dos serviços tradicionais pelos quais o senso comum a caracteriza.

5. Biblioteca pública, lugar antropológico ou não-lugar na sobremodernidade?

É importante reforçar que a classificação de um lugar em antropológico ou em um não-lugar é estabelecida diante da conexão relacional que o indivíduo cria ou vivência com ele, como também do seu modo de apropriação do lugar. Na relação das práticas sociais que ali são estabelecidas: os vínculos sentimentais, sociais, psicológicos ou históricos que irão construir a caracterização dessa relação. “Ele é apenas a ideia, parcialmente materializada, que têm aqueles que o habitam de sua relação com o território, com seus próximos e com os outros. Essa ideia pode ser parcial ou mitificada. Ela varia com o lugar e o ponto de vista que cada um ocupa” (Augé, 2012, p. 54).

Desta forma, o ideal de biblioteca como espaço de difusão do conhecimento, simbolicamente construído como espaço de cultura, não encontra eco entre aqueles que não tiveram sua vivência relacionada a esse lugar. Não há, portanto, a construção histórica de identificação do sujeito com o objeto biblioteca, tornando o lugar antropológico biblioteca em não lugar quando nos referimos à construção social.

Para que a biblioteca pública não venha a se tornar um não-lugar é necessário que haja uma relação democrática entre a instituição biblioteca pública e a comunidade na qual está inserida. Percebe-se que desde a sua concepção, o movimento de implantação que a acompanha é vertical no sentido “de cima para baixo”. A justificativa para a sua criação, na Inglaterra do século XIX, é acompanhada de intenções que envolvem o estigma do oferecimento de boa cultura aos aculturados, desta forma, a visão utilitária apontada por Mueller (1984) destaca que a biblioteca pública teria uma relação de custo-benefício muito positiva uma vez que “permitiria dar ao povo o acesso à boa leitura”.

Na mesma época, nos Estados Unidos, embora a justificativa fosse muito mais educacional, percebe-se que a busca pela uniformização da educação para todos desconsidera as dificuldades estruturais individuais ou grupais. Nessa busca, Dewey, citado por Mueller (1984), coloca o bibliotecário na função de professor e a biblioteca na função de escola, deturpando a atribuição de ambos. Nesta perspectiva, as especificidades locais também são desconsideradas, e o empenho em conferir o crivo da qualidade literária ao bibliotecário como um selecionador da boa leitura, evidencia um gesto antidemocrático.

Em seu histórico brasileiro, a biblioteca pública traz consigo a marca da cultura da exclusão. A primeira biblioteca pública, na Bahia, não tinha a intenção de se tornar um espaço voltado para a inclusão daqueles que não eram alfabetizados, fato evidenciado pela seleção das obras que compunham o seu acervo, como menciona Oliveira (1994, p. 21):

No acervo da Biblioteca Pública estavam representados os assuntos da época, em textos, em sua maioria, escritos em francês, a segunda língua do homem culto em Portugal e no Brasil. Embora seus criadores pretendessem usar a Biblioteca como instrumento para promover a instrução popular, o seu público restringia-se aos leitores que dominassem um segundo idioma fosse o francês o ou inglês.

Esse distanciamento perdurou ao longo do seu trajeto no século XX, com políticas públicas que nem sempre se conectaram com a realidade social da população. Em um país que tem o analfabetismo e, consequentemente, o desinteresse estrutural pela leitura como característica, a biblioteca pública no século XXI deve considerar esses aspectos, bem como as necessidades apresentadas com as mudanças socioeconômicas fortalecendo com a comunidade laços relacionais e propondo “na sua realidade de lugar público, um percurso de experiência” (Crippa, 2015, p. 6).

Os laços relacionais da biblioteca do século XXI serão construídos e modelados conforme os atores sociais estabeleçam o reconhecimento de si e do outro no espaço que revela e explora suas experiências e vivências, sendo o reconhecimento da categoria o “outro” fundamental para que a biblioteca não seja meramente o espaço constituído em espetáculo, considerando sempre o sentido social e a liberdade.

Considerações finais

Esse artigo traz a configuração da ideia conceitual trabalhada por Augé (2012) ressoando como uma via de entendimento teórico para repensar o conceito de biblioteca pública no Brasil. O não-lugar é a categoria que permite refletir diante de uma perspectiva menos rígida sob uma imagem na qual se pode relativizar o conceito em questão.

A finalidade é lançar mais um novo olhar que se coloca em um caminho epistemológico, admitindo assim, a biblioteca pública como um lugar que poderia ser antropológico, no entanto, ainda não permite a identificação dos sujeitos, quiçá a sua apropriação. Este quadro se mostra como consequência direta de sua concepção histórica iniciada nos novecentos, à sombra do espectro da cultura do privilégio e desconsiderando as experiências e vivências dos sujeitos que podem estimular e fortalecer suas práticas e, consequentemente, suas teorias, minimizando cada vez mais esse distanciamento. Tais experiências poderiam proporcionar um preenchimento de sentido no que tange a potencialização do sujeito social perante a sua formação como sujeito autônomo, crítico e dotado de competência informacional para exercer a cidadania, direitos de participação, de democracia, econômicos formalizando um país mais igualitário, justo e inclusivo.

O intento foi descortinar novas vias para o entendimento sobre o conceito de biblioteca pública e, ainda, produzir discussões múltiplas a seu respeito. Não basta apenas olhar para os casos de ordem prática se forem desconsiderados os problemas de ordem teórica.

Acredita-se que o alinhamento dessas ordens, ou dimensões, pode colaborar às bibliotecas públicas brasileiras trazerem à tona percalços e mazelas vivenciadas diariamente que estão relacionadas à falta de ressonância social. Por fim, cabe enfatizar que se deve produzir modos criativos de aprimoramento do seu saber-fazer com o intuito de superar a atual crise em que se encontram fazendo resistência à conjuntura política caótica instalada no país.

Referências

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Recibido: 30 de Septiembre de 2021; Aprobado: 09 de Diciembre de 2021; : 01 de Abril de 2022

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