SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.33 suppl.1Método de estudo de caso no ensino de física: percepgoes de estudantes do ensino médioRefinando el principio de Arquímides mediante la experimentación en clase, un análisis desde la progresividad del discurso índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

  • Não possue artigos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista de enseñanza de la física

versão impressa ISSN 0326-7091versão On-line ISSN 2250-6101

Rev. enseñ. fís. vol.33  supl.1 Cordoba dez. 2021

 

Articulo

As interagoes verbais entre estudantes sob a perspectiva latouriana em uma oficina investigativa sobre magnetismo com cinescopios

Verbal interactions between students from a Latourian perspective in an investigative workshop on Magnetism with kinescopes

Roberto Barreto de Moraes1 

Deise Miranda Vianna1 

1 instituto de Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Av. Athos da Silveira Ramos, Centro de Tecnologia - Bloco A, Cidade Universitária, CEP: 21941-972. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 2Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz, Av. Brasil, 4365 - Manguinhos, CEP: 21040-900. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. *E-mail: rbarmoraes@gmail.com Recibido el 15 de junio de 2021 | Aceptado el 1 de septiembre de 2021

Resumo

Neste trabalho será apresentada e analisada, a partir de uma perspectiva inspirada pela Sociologia da Ciencia de Bruno Latour, uma atividade investigativa que foi estruturada e desenvolvida utilizando-se de uma abordagem CTS (Ciencia, Tecnologia e Sociedade), cujo tema é a forpa magnética que atua em partículas carregadas em movimento no interior de um campo magnético. Foi constituida uma oficina em forma de uma série de investigapoes realizadas utilizando-se tubos catódicos (cinescopios), que atuavam como formadores de imagens das antigas televisoes analógicas, com o conteúdo programático do Magnetismo sendo apresentado como consequencia da compreensao deste aparato tecnológico histórico. A partir das transcripoes dos registros em áudio e vídeo da oficina, foram anali sadas diferentes interapoes verbais dos estudantes, buscando compreender se a perspectiva latouriana da Sociologia da Ciencia é coerente com uma proposta de ensino de Física que vislumbre a formapao de uma efetiva cultura científica cidada.

Palavras-chave: Magnetismo; Ensino de Física; Sociologia da ciencia; Oficinas investigativas; Abordagem CTS

Abstract

In this work it will be presented and analyzed, from a perspective inspired by Bruno Latour's Sociology of Science, an investigative activity that was structured and developed using an STS approach (Science, Technology and Society), whose theme is the magnetic force which acts on charged particles in motion within a magnetic field. A workshop was set up in the form of a series of investigations carried out using cathodic tubes (kinescopes), which formed the images in the old analog televisions, with the programmatic content of Magnetism being presented as a consequence of understanding this historical technological apparatus. From the transcripts of the audio and video records of the workshop, verbal interactions of the students were analyzed, pursuing whether the Latourian perspective of the Sociology of Science is consistent with a proposal for teaching Physics that envisions the formation of an effective scientific culture.

Keywords: Magnetism; Physics education; Sociology of science; Investigative workshops; STS approach

introducto

Tradicionalmente, o tema do Eletromagnetismo, principalmente o conceito de Forjas e Campos Magnéticos, é tratado nos cursos de Física de Ensino Médio de forma extremamente abstrata. Os livros didáticos em geral propoem exercí- cios que envolvem o uso da tradicional "regra da mao direita" aplicada a desenhos em que cargas elétricas aparecem "submersas" em um emaranhado de linhas e setas de campos e forjas magnéticas com pouca ou nenhuma aplicado prática ou estejam minimamente contextualizados a realidade e entorno dos estudantes.

O texto dos Parámetros Curriculares Nacionais (PCN) já pontuava explicitamente o desinteresse frente a abstrajo com que tradicionalmente o tema do Eletromagnetismo era tratado, e reforgava a necessidade de uma abordagem mais factual deste assunto no Ensino Médio:

A Ótica e o Eletromagnetismo, além de fornecerem elementos para uma leitura do mundo da informando e da comunicando, poderiam, numa conceituando ampla, envolvendo a codificando e o transporte da energia (...). Em abordagens dessa natu- reza, o inicio do aprendizado dos fenómenos elétricos deveria já tratar de sua presenna predominante em correntes elétricas, e ndo a partir de tratamentos abstratos de distribuinoes de carga, campo e potencial eletrostáticos. (...) Além dos aspectos eletromecánicos, poder-se-ia estender a discussdo de forma a tratar também elementos da eletrónica das telecomunicanoes e da informando, abrindo espano para a compreensdo do rádio, da televisdo e dos computadores. (Brasil, 2002)

Além disso, o texto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) por sua vez enfatiza a necessidade de considerar no Ensino das Ciencias da Natureza reflexoes a respeito do desenvolvimento de tecnologias e seu papel na sociedade atual e suas aplicagoes na solugao de desafios contemporáneos:

Os processos e práticas de investigando merecem também destaque especial nessa área. Portanto, a dimensdo investigativa das Ciencias da Natureza deve ser enfatizada no Ensino Médio, aproximando os estudantes dos procedimentos e instrumen tos de investigando, tais como: identificar problemas, formular questoes, identificar informanoes ou variáveis relevantes, propor e testar hipóteses, elaborar argumentos e explicanoes, escolher e utilizar instrumentos de medida, planejar e realizar atividades experimentais e pesquisas de campo, relatar, avaliar e comunicar conclusoes e desenvolver anoes de intervenndo, a partir da análise de dados e informanoes sobre as temáticas da área. (Brasil, 2018)

Os estudantes estao imersos em um mundo onde interagem com o espago social, o natural e o artificialmente construido, e procuram dar sentido a sua própria observagao de seu entorno articulando esses espagos de forma integrada (Aikenhead e Solomon, 1994). É importante portanto que os estudantes percebam que os conteúdos abor dados nas salas de aula estejam intimamente relacionados ao seu cotidiano, aos problemas e transformagoes sociais, políticas e económicas que nortearam os rumos da sociedade como um todo e consequentemente de suas vidas.

Além da adequagao ao conteúdo específico, neste caso da Física, que se deseja abordar, o problema formulado deve atender a dois critérios principais: familiaridade frente a realidade do estudante e releváncia no sentido de re- presentagao adequada de modo a estimular o interesse efetivo do estudante.

Para o planejamento de uma atividade que seja verdadeiramente relevante para o aluno que se leve em conta a perspectiva CTS (Ciencia, Tecnologia e Sociedade), Aikenhead e Solomon (1994) sugerem que uma dada atividade deva ser iniciada com um problema que surge no espago social e exige para o seu entendimento o contato com algum tipo de tecnologia, ainda que superficialmente. Problemas tecnológicos também sao relacionáveis a questoes sociais e tem maior potencial para atrair o interesse do estudante que questoes de ciencia "dura" pura e simples. A ciencia tradicional surge como forma de compreender o problema tecnológico de modo a permitir que o estudante tome sua posigao no espago social.

A aplicado do material "A Física e a Sociedade na TV" (Penha, 2008) caracterizou-se por ser uma sequencia didá- tica que se utilizava de uma abordagem CTS, desenvolvida para estudo do Eletromagnetismo com estudantes do ter- ceiro ano do Ensino Médio. No material, propunha-se a criagao de um "Fórum Nacional da TV" que se constituiria como evento desencadeador de uma série de atividades e cujo objetivo central seria o de investigar as transformagoes tecnológicas e sociais ocorridas por conta da implantagao da TV digital no Brasil. Este fórum seria composto de ativi dades, mesas-redondas, oficinas e conferencias que foram desenvolvidas no formato de atividades investigativas, nas quais os grupos de estudantes, utilizando-se de materiais elaborados para este fim, realizavam uma série de investi- gagoes sobre os conteúdos para o entendimento de diferentes aparatos tecnológicos que iam sendo estudados. Os conteúdos programáticos foram apresentados como consequencia da necessidade do entendimento destes aparatos tecnológicos. A sequencia didática como um todo foi estruturada para um bimestre escolar.

REFERENCIAL TEÓRICO

Bruno Latour (2011) em sua obra "Ciencia em Adío" buscou apresentar sua concepto metodológica para estudos das ciencias e das tecnologias. É evidente que seu objeto de análise é bastante diferente do processo de ensino-aprendiza- gem que se estabelece numa sala de aula de Ensino Médio. Buscamos nesse sentido a articuladlo entre a perspectiva latouriana e a pesquisa de campo nas escolas do Ensino Médio, pela possibilidade da transgresslo de seu uso e pela perspectiva de sua utilizadlo frente a produdlo da ciencia educacional. Latour nlo transpos suas ideias as salas de aulas escolares, seus focos antropológicos e sociológicos slo os grandes laboratorios de universidades de ponta, porém a di- gresslo de sua Sociologia da Ciencia frente a Educadlo Básica nlo é só possível como cabível e exequível. A transladadlo de um contexto a outro ganha sentido na medida em que nlo se coloca como rígido o critério de análise, no qual a construdlo do conhecimento em ambiente escolar também pode ser observada em certa escala como elaboradlo cien tífica.

Segundo Oliveira (2006), outro foco de importancia do pensamento latouriano emerge da maneira como slo feitas as descridoes da atividade científica, condicionando o conteúdo as condidoes sociais dos envolvidos nas pesquisas, sub- vertendo a aparente isendlo dos enunciados de observadlo, lhes compreendendo como resultado de controvérsias que depois serlo resolvidas pelo convencimento, ou seja, enunciados que aparentemente estariam livres de qualquer vestí- gio social slo, na verdade, resultado de contínuas negociadoes (explícitas ou tácitas) entre cientistas. Nesse sentido, a vislo latouriana de Ciencia é coerente com uma proposta de ensino de Física que vise nlo apenas a aquisidlo de produtos científicos, mas principalmente a formadlo de uma cultura científica efetiva (Rodrigues e Vianna, 2013).

Portanto, Latour nlo está interessado na Ciencia com "C" maiúsculo, que seria a "ciencia pronta", mas na ciencia com "c" minúsculo, em uma ciencia ainda "em construdao". Sua proposta é investigar como se dá, na prática, o processo de construdlo dos fatos científicos. Em resumo, Ciencia pronta teria status de uma teoria científica ou artefato tecnológico, já consagrada por um longo e complexo processo de consolidadlo. Ao transitar do estágio de ciencia em adlo para o estágio de ciencia pronta, um produto científico torna-se, como denominado por Latour, uma "caixa-preta". Portanto as adoes efetivas do professor no tempo da atividade devem se encaminhar rumo a abertura dessas "caixas-pretas". O autor apropriou para a Sociologia da Ciencia o conceito de "caixa-preta", muito comum em Engenharia, um sistema ao qual se atribui inviolabilidade, e até certo modo um grau inquestionável de verdade.

Como citado por Gama e Zanetic (2013), é possível que nenhuma palavra expresse mais a presenda de caixas-pretas intangíveis nas aulas tradicionais de física que "fórmula", sugerindo diretamente a nodao de algo pronto, estático e a- histórico. No caso do Eletromagnetismo, quando um tópico como o da Forda de Lorentz é abordado simplesmente ci- tando-se a fórmula pronta F = q.v.B.sen(d) tornando-a tlo somente um emaranhado de letras sem sentido ou profundi- dade, despido de significado, articuladlo cotidiana, diálogo histórico-social e familiaridade ao estudante, cria-se o precedente para o significado mais negativo possível que uma caixa-preta pode tomar: ser instransponível, hermética e incompreensível.

Caixas-pretas slo necessárias e nlo seria possível conviver com a tecnologia sem elas. Nlo é possível abrir todas as caixas-pretas cada vez que se fizer necessário o uso de algum artefato ou teoria que delas deriva. Retomando o exemplo anterior da Engenharia: quando uma caixa-preta será aberta diz-se que é iniciado um processo de "reengenharia".

Educacionalmente, abrir a caixa equivaleria de certo modo ao problematizar freireano, promovendo a formadlo de um senso crítico-metodológico a respeito do como a ciencia se constrói, a consciencia do "saber que é possível" como consequencia da formadlo. Conforme observado por Bachelard (1996), todo conhecimento científico advém de uma resposta a uma pergunta: "se nlo há pergunta, nlo pode haver conhecimento científico", nesse sentido cabe ao educa dor nlo se resumir a meramente apresentar respostas prontas, mas promover a aprendizagem dos questionamentos, da indagadlo, da problematizadlo, da busca. E mesmo naquilo que tange as escolhas sobre quais caixas devem ser aber tas e quais podem ser deixadas fechadas, deve-se compreender o processo que leva ao fechamento da caixa e nlo sua mera contempladlo quando já cerrada.

Latour explicita também a concepdlo de que a ciencia é construída de modo coletivo e, de modo similar, a abordagem CTS reivindica que este deve ser o mote da alfabetizadlo científica em ambiente escolar, onde os atores sociais, no caso os estudantes, participem e tenham autonomia frente a construdlo do conhecimento em sala de aula.

Ao professor durante a oficina investigativa caberá as adoes que orientam as aberturas das "caixas-pretas" do produto científico em análise, de forma a tirar o estudante de um estágio de contempladlo a uma suposta ciencia pronta e her mética, propondo e guiando aos estudantes as aberturas e investigadoes. Ao analisarmos as discussoes de sala de aula, devemos ter em mente que uma afirmadlo se consolidará em meio ao debate quando for capaz de atrair aliados, o que se revela e se reforda no uso posterior que é feito dela na discusslo. Dado que nlo seria justo de que se esperar que estudantes do Ensino Médio estabeledam discussoes com a mesma consistencia metodológica de um embate entre ci entistas, é importante que o professor, ao estimular a abertura das caixas-pretas, cumpra também este papel apresentando questionamentos e estimulando o debate ao invés de lhes trazer respostas prontas.

ATIVIDADE PROPOSTA

A aplicagao desta oficina investigativa foi realizada em tres turmas de terceiro ano do Ensino Médio, possuindo estas, em média, cerca de trinta estudantes por classe, em uma instituidlo pública federal de ensino localizada na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Com os estudantes de cada turma tendo sido divididos em grupos menores de quatro a cinco estudantes, foram realizadas gravagoes em áudio e vídeo de toda a oficina, com a devida permissao dos estudantes e/ou seus responsáveis, através de uma camera de vídeo e gravadores de áudio distribuidos aos grupos de estudantes envolvidos na atividade.

A proposta de atividade encontra-se detalhadamente descrita na forma de material para professor e estudantes como parte de um capítulo (Penha, 2008) da obra intitulada "Novas Perspectivas para o Ensino de Física: Propostas para uma formadlo cidada centrada no enfoque CTS" (Vianna, 2008) publicada pelo grupo PROENFIS com apoio da FAPERJ. As oficinas investigativas permitem a vivencia de situagoes concretas, proporcionando a jungao entre teoria e prática científica de forma ativa e reflexiva (Paviani e Fontana, 2009). É importante que se ressalte que a atividade objeto de análise neste presente artigo foi aplicada pelo próprio professor-autor do material, prof. Sidnei Pércia da Penha.

A oficina investigativa intitulada "A formadao de imagem em uma TV analógica" caracteriza-se pela abertura da "caixa-preta" que eram as antigas TVs analógicas de tubos catódicos (cinescopios), identificando desde o processo de captagao de imagens até seu envio as residencias em broadcast das redes televisivas. Após um primeiro momento de insergao histórica, cultural e social daquele aparelho, a turma era convidada a efetivamente abrir o televisor e identi ficar suas pegas principais: o cinescópio (o tubo de imagens), a bobina defletora (chamada de yoke) e os circuitos eletronicos responsáveis por alimentar toda a estrutura (figura 1).

FIGURA 1. Aparelho televisor aberto: desmontando a "caixa-preta".

Retirando a bobina e acionando o cinescópio com o auxilio do professor (por motivos de seguranga), os estudantes sao convidados a identificar a formagao de um ponto luminoso da tela, emitidos a partir do canhao de elétrons do tubo catódico (figura 2).

FIGURA 2. Trabalhando o Magnetismo a partir do cinescópio: desvendando a "caixa-preta".

Para Latour, um enunciado se configura como fato quando estiver completamente "desmodalizado", ou seja, quando nao houver qualquer necessidade de maiores explicares, pois o argumento por si já é suficiente. Segue um excerto de aula experimental como porta de entrada para o que se utilizou do conceito latouriano de enunciado:

Professor: "Eu tenho esse íma aqui, eu pergunto pra onde a partícula vai se desviar se eu jogar essa partícula aqui [no interior do íma em forma de U]? Pra cima? É isso? [Alunos fazem a regra da mao direita] Qual seria uma possível trajetória dessa partícula?Sairia e desviaria? Na página 70 [do livro-texto], ele dá várias ideias sobre o que poderia influenciar a Forga Magnética..."

Essa assertiva apresentada tanto na fala do professor quanto no roteiro do experimento (apresentado no livro- texto) traz enunciados já aceitos como conhecimentos tácitos: a existencia de "partículas" que podem estar carrega- das eletricamente, que ímas produzem Campo Magnético, que podem desviar essas cargas, e a existencia de uma possível Forga Magnética, que passam a operar no sentido de dar suporte a outros conhecimentos: no caso, quais possíveis influencias de outras variáveis sobre o módulo da Forga Magnética.

Ao prestar mais atengao aos detalhes do desenrolar da atividade e na dinámica dos grupos de alunos, ou seja, as micropráticas ocorridas durante a atividade, foi possível observar algo da especificidade da prática científica escolar caracterizada nas pequenas controvérsias ocorridas na oficina: os "palpites" (segundo os próprios atores) a respeito das diferentes variáveis que poderiam (ou nao) influenciar a Forga Magnética. Por exemplo, sobre como compreender a influencia do campo magnético, um grupo tem o seguinte diálogo entre seus pares:

Carlos: "Mas como eu poderia variar o campo magnético nesse tubo de televisao?"

Ana: "Seilá... variando um ímaperto do tubo?"

Carlos: "Como voce vai saber se a forga está maior ou menor?"

Ana: "Ele vai desviar mais?"

Bruna: "Coloca um íma, depois outro em cima pra ver se vai desviar mais?"

Em outro grupo, um diálogo sobre a possibilidade (ou nao) de influencia da aceleragao gravitacional sobre a Forga Magnética:

Ricardo: "Teria como testar a influencia da aceleragao gravitacional?"

Thiago: "Sobe a montanha! Leva pra Petrópolis! Ou entao pra Lua! [risos]"

O professor entao interfere nos debates iniciais, avisando aos seus alunos que com aquele aparato seria possível testar a influencia de duas variáveis específicas, seguindo o roteiro que está no livro-texto:

Professor: "Vamos tentar fazer um experimento variando o campo magnético e o ángulo para ao menos termos alguma conclusao a respeito dessas duas variáveis. Nosso experimento é qualitativo, nao quantitativo".

Reproduzimos aqui os diálogos ocorridos a respeito do experimento em que o campo magnético foi variado. Com o auxilio de uma "engenhoca" (figura 3) que funciona como um "elevador" para aproximar ou afastar o íma do tubo catódico. O professor atuando como uma espécie de "chefe de laboratório" inicia a proposigao do experimento:

Professor: "Vou descer nossa engenhoca e fixar uma posigao, vou entao verificar qual foi a deflexao. Depois vou aumentar, vou colocar um íma mais poderoso, e entao verificar se o ponto vai se desviar mais ou menos".

Clara: "Comegar com um íma mais fraco e marcar a posigao dele em relagao ao barbante. Troca o íma mais forte, desce e verifica... a distáncia do íma em relagao ao tubo da televisao..."

Ana: "Se colocar na mesma distáncia do anterior, o ponto até sai da tela!"

Bruna: "O segundo com uma distáncia grande já levou o ponto até a borda da tela, o primeiro teve que ficar bem pertinho pra isso."

Ana: "Íma mais forte, tem mais deflexao".

Professor: "Ou seja, o que eu possuo concluir entao ? Quanto maior o campo magnético, maior a forga?"

O grupo entao acorda entre si que há uma proporgao entre campo magnético e a forga magnética, e com o auxílio do professor chegam a conclusao empírica que eles sao diretamente proporcionais entre si. Nesse sentido, há nesse excerto um exemplo da busca pela elaboragao de um enunciado a partir da repetigao empírica, ao final o argumento por si já era suficiente para explicar a lógica da relagao entre campo magnético e forga magnética.

FIGURA 3. Abrindo a "caixa-preta" para analisar possíveis dependencias que a Forga Magnética possui.

Durante o processo de experimentadlo, a validadlo passa por converter essas observadOes e análises em inseri dles. Os inscritores tem essa "responsabilidade" de materializar o objeto que está sendo pesquisado, por exemplo, através de mapas, gráficos, fotografias, medidas em aparatos de instrumentadlo, dentre outros (Méllo, 2016). Deste modo, o instrumento produz um "conjunto visual de inseridles" e o cientista passa a funcionar como o porta-voz desse dispositivo, nas palavras de Latour (2011): "O cientista fala em lugar daquilo que nlo fala". O procedimento final passa por converter esses procedimentos e enunciados em inscridoes literárias, culminante na escrita e comunicadlo.

A investigadlo científica nlo se limita, portanto, aos fatos observados, mas os seleciona, controla e reproduz (Por- tocarrero, 1994). A experiencia é racionalizada através de teorias, hipóteses e conceitos. Existe uma clara nodlo de autoridade e de hierarquia, porque alguns de seus componentes, os que a ela pertencem há mais tempo e slo efici entes na resoludlo dos problemas científicos, no caso o professor, estlo capacitados para treinar os mais novos, no caso os estudantes, nos padrOes da comunidade (Kuhn, 1997).

Segundo Massoni e Moreira (2015), uma orientadlo útil ao ensino é valer-se do caminho histórico da ciencia, pois os conceitos mais antigos possuem a vantagem de serem menos específicos e mais conhecidos pelo grande público e, por isso, sua compreenslo pelos estudantes é mais fácil. A assimiladlo no ensino de ciencias é similar a iniciadlo de um novato ao coletivo de pensamento, nlo é trivial.

Uma das tarefas da Ciencia é prestar explicadOes a sociedade. E na genese dos fatos científicos há muito mais do que dados, curvas e evidencias empíricas. Existem aspectos sociológicos, persuaslo, interesses diversos. É nesse sen tido que atividade científica nlo pode se desvincular dos valores, regras, e cultura de quem a produz (Massoni e Mo reira, 2017). É exatamente dentro deste contexto sociocultural da Ciencia, onde se encontram envolvidas as mais diversas explicadOes que Latour afirma:

Afora as pessoas que fazem ciencia, que estudam, que a defendem ou que se submetem a ela, felizmente existem algumas outras, com formagao científica ou nao, que abrem as caixas-pretas para que os leigos possam dar uma olhadela. Apresen- tam-se com vários nomes diferentes (...), tendo na maioria das vezes em comum o interesse por algo que é genericamente rotulado "Ciéncia, Tecnología e Sociedade". (Latour, 2011)

CONSIDERALES FINAIS

As observadOes feitas proporcionaram uma vislo das atividades escolares distintas dos modelos que veem a escola como apenas uma transmissora de conhecimentos formais. Em vez disso, a escola pode e deve estar envolvida em estratégias mais próximas ao que se aceita usualmente como "atividade científica".

Os trechos selecionados contam a historia dessa atividade, desses diálogos produzidos por esses atores que parti- ciparam dessa oficina investigativa. Portanto, nlo é possível, e nem seria a intendlo (muito menos a pretenslo), afir mar que os debates realizados por esses estudantes e esse professor representaria precisamente qualquer outra possível, tampouco esgotar o assunto. Mas esperamos ter contribuído, com este exemplo de discusslo entre estu dantes, com a convicdlo de que uma controvérsia científica pode ser uma forma de consolidar a aprendizagem de conceitos centrais da Física, como o das Fordas Magnéticas.

Nesse sentido, uma proposta de atividade investigativa deve ter necessariamente por objetivo a criadlo de con- trovérsias, de modo a estimular as micropráticas científicas em sala de aula, ao apresentar questoes de interesse social e cotidiano que envolvam problemas tecnológicos, como no caso dos cinescopios e das antigas TVs analógicas, o que busca estimular nos estudantes tomadas de posigoes coletivas e dialógicas. A agao do professor é essencial no desen rolar das discussoes no sentido de fomentar méritos e questionamentos que possam trazer a tona a representagao da Natureza que se pretende ensinar, exercendo esse papel de "chefe de laboratorio", conforme explicitado nas falas do professor durante a atividade em análise. Os estudantes devem poder identificar os problemas científicos como de seus cotidianos, e devem, portanto, ter a oportunidade de discutir suas possibilidades de solugao, pois o caminho que leva a construgao do pensamento científico é essencialmente um exercício de debate, diálogo e discurso.

Bruno Latour em seus trabalhos nao se preocupou analisar questoes escolares. Seus estudos envolviam grandes laboratórios de pesquisa, nos quais ele comparava os cientistas a uma espécie de "tribo", e contrapos-se a ideia de que a Ciencia é um fato resolvido e inexpugnável, de que o cientista se isola em seu laboratorio sem colaboragoes, riscos, incertezas financeiras, frustragoes profissionais, e somente dali tira suas teorias e enunciados prontos como em um passe de mágica ou por pura inspiragao divina.

Perguntar o que é fazer ciencia nao significa se interrogar sobre a eficácia e o rigor formal das teorias e métodos, mas acerca das práticas científicas. Latour propoe que nao há normatizagao do caminho científico, a realidade é desta forma consequencia das práticas científicas, nao a sua causa. Um fato científico se conquista, constrói, comprova (Bourdieu, Chamboredon e Passeron, 2015). Ciencia é um processo, e os fatos científicos sao fatos sociais. "Método científico" nao existe, metodologias científicas sim.

REFERENCIAS

Aikenhead, G. e Solomon, J. (1996). STS Education: International Perspectives on Reform. New York: Teachers College Press. [ Links ]

Bachelard, G. (1996). A formagao do espirito científico. Trad.: Abreu, E. S. Rio de Janeiro: Contraponto. [ Links ]

Bourdieu, P., Chamboredon, J. C. e Passeron, J. C. (2015). Oficio de Sociólogo: metodologia da pesquisa na Sociologia ., 8- ed. Editora Vozes [ Links ]

Brasil. (2002). Parámetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio: Ciéncias da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. Ministério da Educagao. Secretaria de Educagao Básica. Brasília: 2000.Links ]

Brasil. (2018). Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educagao. Secretaria de Educagao Básica. Brasília. [ Links ]

Gama, L. D. e Zanetic, J. (2013). Abrindo caixas pretas em aulas de Física: Uma reflexao educacional a partir dos conceitos de Bruno Latour. In: Anais do XXSimpósio Nacional de Ensino de Física, Sao Paulo. [ Links ]

Kuhn, T. S. (1997). A Estrutura das Revolugoes Científicas. 5- ed. Sao Paulo: Perspectiva. [ Links ]

Latour, B. (2011). Ciéncia em agao: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. 2- ed. Sao Paulo: Unesp.Links ]

Massoni, N. T. e Moreira, M. A. (2015). A Epistemologia de Fleck: Uma Contribuigao ao Debate sobre a Natureza da Ciencia. Revista Alexandria, 8(1). [ Links ]

Massoni, N. T. e Moreira, M. A. (2017). A visao etnográfica de Bruno Latour da ciencia moderna e a antropologia simétrica. Revista Brasileira de Ensino de Ciéncia e Tecnologia, 10(3). [ Links ]

Méllo, R. P. (2016). Aparatos de inscrigao segundo Latour e Woolgar. Athenea Digital, 16(3), 367-378. [ Links ]

Paviani, N. M. S. e Fontana, N. M. (2009). Oficinas pedagógicas: relato de uma experiencia. Revista Conjectura, 14(2). [ Links ]

Penha, S. P. (2008). A Física e a Sociedade na TV. In: Vianna, D. M. Novas Perspectivas para o Ensino de Física: Proposta para uma formagao cidada centrada no enfoque Ciéncia, Tecnologia e Sociedade - CTS. Rio de Janeiro: Gráfica UFRJ, p. 31-116.Links ]

Portocarrero, V. (1994). Filosofía, história e sociologia das ciéncias I: abordagens contemporáneas. Rio de Janeiro: Fiocruz.Links ]

Oliveira, M. A. (2006). Estudos de laboratorio no ensino médio a partir de Bruno Latour. Educagao e Realidade, 31(1), 163-182. [ Links ]

Rodrigues, C. F. M. e Vianna, D. M. (2013). Análise de uma discussao acerca de um dispositivo de movimento perpétuo. Atas do IX Encontró Nacional de Pesquisa em Educagao em Ciéncias. Água de Lindóia, SP. [ Links ]

Vianna, D. M . ( 2008 ). Novas Perspectivas para o Ensino de Física: Proposta para uma formagao cidada centrada no enfo que Ciéncia, Tecnologia e Sociedade - CTS. Rio de Janeiro: Gráfica UFRJ.Links ]

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons