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Revista de enseñanza de la física

Print version ISSN 0326-7091On-line version ISSN 2250-6101

Rev. enseñ. fís. vol.35 no.2 Cordoba Sept. 2023  Epub Dec 19, 2023

http://dx.doi.org/10.55767/2451.6007.v35.n2.43672 

Investigación didáctica

Abordagens de etnoastronomia nos livros de ciências distribuídos em 2020 pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD)

Ethnoastronomy approaches in science books distributed in Brazil in 2020 by the national book and teaching material program (PNLD)

Osmair Carlos dos Santos1 

Darlan Quinta de Brito2 

Felippe Guimarães Maciel3 

Marcello Ferreira3 

Olavo Leopoldino da Silva Filho3 

Roberto Vinícios Lessa do Couto4 

Michel Corci Batista5 

1 Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática, Universidade de Passo Fundo - UPF; Prefeitura Municipal de Alto Horizonte - Goiás.

2 Universidade de Brasília.

3 Programa de Pós-Graduação em Ensino de Física, Instituto de Física, Centro Internacional de Física, Universidade de Brasília.

4 Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

5 Departamento Acadêmico de Física, Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

Resumo

Este trabalho busca caracterizar os temas de etnoastronomia em livros didáticos de ciências distribuídos, em 2020, pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), tomando por recorte o nono ano do Ensino Fundamental, série em que a Astronomia obtém maior espaço curricular. A pesquisa, de natureza qualitativa, buscou uma revisão teórica e histórica do objeto, bem como uma nova enunciação de sua racionalidade por meio de uma hermenêutica reconstrutiva, utilizando-se de recursos da análise de conteúdo para avaliar a frequência de citações a culturas menos valorizadas socialmente e as abordagens que valorizam o multiculturalismo no corpus elegido. Como resultado, constatou-se que onze das doze obras analisadas faziam referência ao céu visto a partir da percepção de culturas não dominantes. No entanto, na maior parte dessas obras, a abordagem ainda apresenta uma visão simplista e que não reflete o multiculturalismo nas propostas didáticas. É, portanto, fundamental que esses materiais, que são de uso obrigatório e ganham escalas de dezenas de milhões de estudantes brasileiros, valorizem as contribuições e perspectivas de diferentes culturas, incorpo-rando-as aos processos de ensino-aprendizagem.

Palavras chave: Astronomia cultural; Ensino de ciências; Etnoastronomia; Educação básica; PNLD.

Abstract

This work seeks to characterize ethnoastronomy themes in science textbooks distributed, in 2020, by the Brazilian's National Program of Didactic Book (PNLD), taking as a focus the ninth year of Elementary School, the series in which astronomy obtains greater curricular space. The research, of a qualitative nature, sought a theoretical and historical review of the object, as well as a new enunciation of its rationality through a reconstructive hermeneutics, using content analysis resources to evaluate the frequency of citations to less valued cultures. socially and approaches that value multiculturalism in the chosen corpus. As a result, it was found that eleven of the twelve works analyzed made reference to the sky seen from the perception of non-dominant cultures. However, in most of these works, the approach still presents a simplistic vision that does not reflect multiculturalism in teaching proposals. It is, therefore, essential that these materials, which are mandatory for use and reach tens of millions of Brazilian students, value the contributions and perspectives of different cultures, incorporating them into the teaching-learning processes.

Keywords: Cultural astronomy; Science teaching; Ethnoastronomy; Basic education; PNLD.

I. INTRODUÇÃO

A ciência moderna1 em geral, e a física em particular, se constituiu como um processo de obtenção e validação de conhecimentos que decorreu de seus meios sociais de produção. É, pois, perpassada pela historicidade e pelo devir. A física clássica, por exemplo, surgida desde Galileu, estabelece como conhecimento físico válido aquele obtido por experimentação e sujeito a matematização. Estabelece, assim, seus métodos possíveis, bem como seus contextos de validação. Sua maneira de enunciação se vincula a uma noção particular de verdade (verdade como correspondência), desenvolvida desde Aristóteles. Além desses condicionantes, a física se desenvolve em uma perspectiva particular acerca do que devem ser espaço e tempo, haurida após séculos de debates que terminaram por representar o espaço (p.e., newtoniano) como um vazio. Como nos diz Mircea Eliade (1992), este foi um processo de dessacralização2 dessas estruturas fundamentais do entendimento humano (Kant, 2000), processo que se concretizou na doutrina das quali-dades primárias e secundárias (Burtt, 1991), como forma de “expurgar”, das considerações físicas, elementos de ca-ráter subjetivo ou vivencial. Essa é, grosso modo, a metafísica da ciência moderna. Por exemplo, seu critério de objetividade e, pois, verdade, assenta na exigência de repetitividade experimental. Isso significa que a fala científica não ocorre de “lugar nenhum”, ou de um lugar de verdade abstrato e universal, mas de perspectivas culturais pré-estabelecidas. É, por essa razão, importante, até mesmo para uma apreciação adequada do edifício da ciência, que formas alternativas de construção do conhecimento e dos saberes possam ser consideradas e valorizadas a partir de suas próprias historicidades.

Desde os primórdios da civilização, o olhar para o céu desperta o fascínio humano. A observação sistemática do cosmos resultou em múltiplas interpretações relativamente às civilizações que as utilizaram para atender às suas ne-cessidades cotidianas, tornando, assim, o céu um elemento cultural que singularmente reflete os povos - suas expli-cações acerca dos fenômenos naturais, suas crenças e místicas e suas relações materiais com a natureza (Oliveira, 2020).

Com essas diversas maneiras de interpretação acerca do céu noturno, o termo "astronomia cultural" foi cunhado como forma de se referir ao estudo das crenças, tradições e conhecimentos adquiridos pelas culturas ao longo da história, assim como narrativas míticas, mitologias, lendas e outros relatos que permitem entender como as diferentes sociedades interpretam e explicam os fenômenos cosmológicos (Araújo, Verdeaux e Cardoso, 2017).

Esta área do conhecimento também investiga como tais sociedades desenvolveram, ou ainda desenvolvem, tec-nologias baseadas em seus conhecimentos astronômicos (Jafelice, 2015). De modo singular, estudar o céu sob vários pontos de vista na sala de aula pode ajudar os estudantes a compreenderem as visões de mundo das civilizações e conhecimentos culturais e científicos que eles oferecem. Isso promove o respeito pela diversidade ao não aderir a uma visão etnocêntrica e monocultural - naturalizada pelos discursos dominantes - em relação à Astronomia.

De acordo com Jafelice (2002), a globalização impulsionada pela conectividade da internet deu visibilidade aos povos marginalizados. Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) publicou a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, que consiste em 12 artigos que visam reafir-mar a diversidade cultural como um patrimônio universal a ser incorporada ao setor educacional (Unesco, 2002). Particularmente no Brasil, tal processo de afirmação da diversidade cultural inclui a valorização das culturas e dos saberes locais. Nesse sentido, no âmbito educacional, as Leis Federais nº 10.639/03 e nº 11.645/08 incluíram, em caráter obrigatório, o estudo das culturas e da história afro-brasileira e indígena na Educação Básica (Rodrigues e Leite, 2020).

A promulgação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o mais atual documento curricular de referência naci-onal, reafirmou o ensino dos elementos culturais e dos saberes tradicionais na sala de aula, destacando o estudo dos saberes dos povos tradicionais, em especial a astronomia cultural (Brasil, 2018). A partir disso, questionamos se os livros e materiais didáticos brasileiros já refletiam abordagens acerca desse tema nos conteúdos de ciências, e se o faziam adequadamente. Tomamos por recorte as séries finais do Ensino Fundamental e, em particular, o último ano, etapa em que se pressupõe o adensamento temático no respectivo campo disciplinar, para analisar se e de que ma-neira se caracterizariam tais abordagens.

Dessa forma, este estudo pretendeu explorar se - e, em caso afirmativo, de que maneira - as crenças e os saberes plurais e diversificados são abordados nos respectivos livros e materiais didáticos. Foram analisados os exemplares de livros de distribuição gratuita às redes públicas de Educação Básica do Brasil, objeto da política que objeta o Programa Nacional de Livros e Materiais Didáticos (PNLD)3, por corresponder ao maior espectro de alcance editorial do País. Por sua vinculação curricular, foram escolhidos os livros da área de Ciências da Natureza e o ano de 2020 (as atualizações são periódicas, mas não impõem alterações de monta ou substanciais nos exemplares, que buscam aprimoramentos em torno de um desenho instrucional pouco volátil).

Para alcançar esse objetivo, realizou-se um estudo investigativo nas 12 (doze) obras do escopo/recorte. Por meio da análise do acervo, empregando técnicas de análise de conteúdo (em particular, as lexicométricas), como em Fer-reira e Loguercio (2016, 2017), Ferreira, Loguercio e Mill (2018), Nogueira et al. (2020), Ferreira et al. (2021) e Ferreira (2023), bem como a fundamentos epistemológicos da hermenêutica reconstrutiva, buscamos identificar e analisar as obras que abordavam as culturas não dominantes em Astronomia, além de categorizá-las em níveis de similaridade com base nas características e nos padrões de abordagem cultural em Astronomia, fomentando, dialogicamente, pro-posições de abordagens didáticas alternativas

A relevância desta pesquisa consiste em identificar e analisar, nos livros de Ciências da Natureza do nono ano do Ensino Fundamental, integrantes do PNLD/2020, a visibilidade da Astronomia em diferentes culturas. Acreditamos que essa analítica, complementada com técnicas como as de classificação hierárquica descendente, análise fatorial e análise de similitude, são fundamentais para fomentar o reconhecimento e a inclusão de diferentes perspectivas e conhecimentos nos textos oficiais aplicados à educação formal brasileira.

II. APORTE TEÓRICO

A. Saberes tradicionais na convergência para uma visão multiaxial da Astronomia

O termo "tradicional" se refere à retroalimentação histórica e inadvertida de usos, costumes e padrões que, em algum momento e por razões diversas, pertenceram ao discurso (isto é, ao dispositivo de saberes, relações de poder e me-canismos de produção de subjetividades) de um tempo (Ferreira, 2018). Nesse sentido, Diegues et al. (2000) classifi-cam o conhecimento tradicional como uma sabedoria adquirida por meio de experiências práticas e transmitida oralmente, de geração em geração, em sociedades não urbanas e não industriais. Ele é baseado em crenças e práticas que são consideradas importantes para a identidade cultural de determinado coletivo.

Para Silva e Baptista (2018), o conhecimento tradicional descreve um conjunto de saberes empiricamente constru-ídos por sociedades para garantir sua sobrevivência. Os autores ainda afirmam que esse conjunto de conhecimentos:

“[...] não é reconhecido como “Ciência”, pelo menos não como “Ciência ocidental”, mas que possui um valor intrínseco como forma de sobrevivência desses povos, além de representar a relação destes com a natureza” (p. 3, grifos do original).

Silva e Baptista (2018) também denunciam uma marginalização dos saberes locais em detrimento dos conteúdos ensinados no meio acadêmico, e são endossados por Lima et al. (2013) quando estes relatam que, nas sociedades de tradição científica, é comum encontrar um sistema simbólico de valoração que atribui maior credibilidade à forma de construir conhecimento reconhecida como válida pela cultura ocidental europeia - e, portanto, aos seus métodos clássicos e integrantes de paradigmas ou de epistemes particulares. Esta forma é, muitas vezes, considerada episte-mologicamente superior em relação a outras formas de conhecimento, o que pode gerar desigualdades na aquisição e apropriação de saberes (Cavalcanti, 2001).

No entanto, os conhecimentos científicos e tradicionais são, tão-somente, estruturas diferentes, com particulari-dades e importâncias típicas de seu contexto de enunciação (Cunha, 2012). Por isso, é fundamental promover o diá-logo entre esses modos de conhecimento, respeitando suas diferenças e valorizando suas particularidades e intersecções.

Devido à diversidade cultural presente no mundo, cada sociedade tem suas perspectivas e experiências próprias, a partir das quais compreende e valida as interpretações de seus fenômenos (Lima et al., 2013; Cunha, 2012), sendo que cada uma dessas visões diferentes deve, a nosso ver, ser considerada e respeitada.

Pinheiro e Giordan (2009) enfatizam que os saberes populares são evidências de que existem práticas ou compo-nentes científicos na vida da população. Segundo os autores, "no domínio das etnociências deve haver evidência da existência de práticas científicas, seja na astronomia, na ecologia, na agricultura e nas práticas de caça dos povos nativos" (p. 86). Isso mostra a importância de reconhecer e valorizar o conhecimento tradicional e suas contribuições para o mundo científico.

Tenhamos, aqui, circunstanciada essa afirmação, a clareza de que noção de ciência está condicionada pelo método que, no contexto da discussão aqui havida, remonta a técnicas experimentais (e não apenas empíricas) e formalização. Não se deve cair na armadilha de aproximar os saberes populares (e os tradicionais) à ciência, apenas como modo de sua valorização. É pacífico que há evidências de componentes científicos na vida da população, mas não precisamente uma ciência paradigmática, se assim a considerarmos um termo técnico específico, vinculado a formas metodologica-mente estabelecidas. Saberes populares são, para exemplificar, estatutos empíricos, sem viés universalista (ainda que eventualmente o almeje). Eles não se constituem a partir de uma metodologia particular e estruturada. Não têm, pois, as características salientes de uma ciência no sentido moderno. Aqui se deseja afirmar o valor dos conhecimentos admitidos culturalmente, mas sem qualquer espécime de paternalismo. Quer-se, contudo, aproximar um tipo de saber cultural à maneira de saber dominante, da ciência ocidental, como meio, a nosso ver, de haurir o respeito social desta para aquele.

De acordo com Cunha (2012), o conhecimento tradicional é uma fonte valiosa de informações e saberes que tem sido cada vez mais reconhecidos por instituições importantes ao redor do mundo. Para a autora, esse tipo de saber é amplamente reconhecido por organismos internacionais como Banco Mundial, a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), a Organização Mundial da Proprie-dade Intelectual (OMPI) e a Unesco.

Ainda acerca dos saberes tradicionais, Cavalcanti (2001) argumenta que cada comunidade possui um conheci-mento ecológico único e construído ao longo de gerações. Este é produto de uma compreensão profunda da relação entre a vida selvagem, os ecossistemas e o homem, e permite que as pessoas utilizem, preservem e conservem os recursos ambientais de maneira eficiente. Esse saber ecológico inclui habilidades para usar os recursos de maneira sustentável, identificar as plantas medicinais adequadas para determinados problemas de saúde e conhecer as nor-mas e regras dos ecossistemas (Cunha, 2012). Como exemplos desse conhecimento ecológico, Cavalcanti (2001) men-ciona que:

Os pajés (xamãs), do povo Tukano4, medem cuidadosamente a quantidade adequada de veneno de peixe (uma espécie de sonífero) para colocar num igarapé a fim de facilitar a pesca; eles controlam a derrubada de árvores, a queimada de clarei-ras, a construção de habitações, a feitura de canoas, a fermentação de bebidas, o processo de preparação diária de comida e uma série de outras atividades, seguindo para isso orientação meticulosa. [...] Os Kayapós5classificam sessenta tipos distintos de diarreia, cada um com seu respectivo tratamento à base de ervas. (p. 5-6)

De acordo com Cunha (2007), em algumas áreas, como medicina e farmacologia, os conhecimentos tradicionais são valorizados e se relacionam diretamente com o conhecimento científico. No entanto, essa valorização parece se concentrar mais nos produtos desse conhecimento do que nos processos intrínsecos de produção de conhecimento. A autora aponta que algumas áreas do conhecimento estão mais interessadas em obter conhecimento ecológico "prá-tico'', em vez de valorizar as relações sociais e culturais das comunidades envolvidas (Cunha, 2007, 2012). Tem-se, assim, uma valorização dos interesses econômicos, como o potencial curativo e comercial de determinadas plantas, em detrimento das relações sociais e culturais que viabilizam.

Perrelli (2008) enfatiza que as práticas relacionadas aos conhecimentos tradicionais só podem ser compreendidas no contexto em que são geradas, e que esses saberes locais precisam ser mais valorizados. Essa visão contrasta com a forma de valorização dos produtos citada por Cunha (2007, 2012).

É importante observar os elementos ou as práticas científicas presentes nos conhecimentos tradicionais, demons-trando a interconexão entre essas tipologias. Pinheiro e Giordan (2009) citam, como exemplo dessa interconexão, o processo para obtenção da dicuada6 a partir das cinzas de madeira para produção de sabão de cinzas. Para os autores:

Muitos aspectos dos saberes das mulheres que fazem o sabão de cinzas são reforçados pelo conhecimento químico ou da ciência: o uso da água quente na obtenção da dicuada, por exemplo, favorece a dissolução da potassa presente nas cinzas devido a sua natureza endotérmica, ou seja, ao aumentar-se a temperatura da água, a dissolução dessa substância é favo-recida. A ênfase no ato de socar bem as cinzas no interior do barrilero é relevante porque assim se aumenta a quantidade de cinzas no recipiente. Essa elevada compactação das cinzas ocasiona também um maior tempo de contato com a água que atravessa o material durante a obtenção da dicuada, o que também favorece a dissolução de uma quantidade maior de potassa. (Pinheiro e Giordan, 2009, p. 92)

Diante disso, é preciso encontrar alternativas para se valorizar e, com isso, preservar práticas, tradições, tanto simbolicamente, como relativamente aos seus produtos, respeitando e protegendo a diversidade cultural e o conhe-cimento acumulado pelas respectivas comunidades.

Entre as práticas mais comuns em sociedades tradicionais está a contemplação do céu e a interpretação dos mo-vimentos e da disposição dos astros para obter informações acerca do clima, da época do ano e de outros fenômenos naturais (Jafelice, 2002). Essa prática, à luz dos saberes tradicionais e distanciados do fazer científico ocidentalizado, é conhecida como astronomia cultural e, justamente por ser inerente aos elementos culturais de cada sociedade, pode variar de acordo com o local em que é praticada.

Jafelice (2015) destaca que não existe um único céu, mas tantos quantas são as culturas humanas, pois as pessoas tendem a enxergá-lo por percepções culturais próprias, antes mesmo de observar os efeitos físico-fisiológicos da luz em seus olhos e os processos físico-neurais subsequentes. Isso significa que a maneira como as pessoas interpretam o céu é influenciada pela sua cultura e varia amplamente de acordo com as crenças, valores e tradições de cada soci-edade. Dessa forma, algumas sociedades tradicionais usam de efemérides astronômicas para marcar eventos impor-tantes, como cerimônias religiosas ou rituais, ou para orientar suas atividades diárias, como a agricultura ou a caça (Jafelice, 2002). Em geral, a astronomia cultural é uma forma de conhecimento que tem sido transmitida entre gera-ções por meio de relatos orais e observação direta do céu, podendo ser considerada uma valiosa dimensão de sabe-doria e experiência acumulada ao longo dos séculos (Lima et al., 2013).

Em relação aos saberes tradicionais em Astronomia, deve-se realizar uma cuidadosa distinção entre o que dela se estuda na universidade e nos sistemas de observação de sociedades antigas, ou dos povos indígenas atuais, que estão ligados explicitamente a aspectos ecológicos, meteorológicos, cosmológicos e astronômicos: “[...] não tem sentido analisar como outras culturas veem o céu, se restringirmos o ‘céu’ à nossa própria concepção e construção astronô-mica” (Lima et al., 2013, p. 93).

Compreendendo a natureza dos conhecimentos tradicionais e sua equivalência na importância comparada ao sa-ber científico, procuramos identificar como esses conhecimentos tradicionais se alinham com a Astronomia e como esse tipo de visão do mundo pode ser aplicada na sala de aula da Educação Básica.

B. Astronomia cultural como práxis de um ensino plural e contextualizado

Rodrigues e Leite (2020) definem a astronomia cultural como um ramo da ciência que estuda os “[...] saberes sobre o céu atrelada às manifestações socioculturais dos povos, possuindo a potencialidade de abordar a diversidade cultural no contexto das aulas de ciências da natureza” (p. 1). Destacam, ainda, que se trata de uma área do conhecimento em que os saberes acerca dos elementos do céu são estudados de forma integrada às manifestações socioculturais de certo povo ou grupo. Para Lima et al. (2013), ela refere-se: “[...] aos saberes, práticas e teorias elaboradas por qualquer sociedade, ou cultura, a respeito das relações céu-terra e o que disso decorre nas dinâmicas culturais e re-presentações sobre o mundo” (p. 100).

Rodrigues e Leite (2020) destacam que a nova configuração mundial desde a Modernidade foi a precursora que permitiu garantir o espaço de fala e visibilidade a grupos culturais que anteriormente foram silenciados historicamente nas grandes narrativas. Para as autoras, inserir a astronomia cultural em sala de aula na Educação Básica é uma po-tência para “garantir aos indivíduos oriundos de culturas não-dominantes o acesso aos princípios e bens compartilha-dos em sociedade” (p. 3).

Essa configuração global permitiu que a discussão acerca dos conhecimentos tradicionais ocorresse no sentido de criar um espaço para avaliar os saberes e práticas produzidos por culturas diferentes. Nesse sentido, a Declaração sobre a Diversidade Cultural (Unesco, 2001) enfatiza seu objeto como patrimônio da humanidade e o direito das pes-soas. Em relação à educação, esse documento explicita que é preciso: “fomentar, por meio da educação, uma tomada de consciência do valor positivo da diversidade cultural e aperfeiçoar, com esse fim, tanto a formulação dos programas escolares, como a formação dos docentes” (Unesco, 2001, p. 6).

No Brasil, a diversidade cultural ganha visibilidade com o Tema Transversal da Pluralidade Cultural presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), documentos elaborados no final da década de 1990 (Rodrigues e Leite, 2020) como consequência da implementação, via Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de garantias e direitos funda-mentais preconizados na Constituição Federal de 1988, não por outra razão conhecida como “Constituição Cidadã”. Além disso, as autoras relatam que a Lei nº 10.639/03 tornou obrigatória, em todo o currículo escolar, a abordagem transversal da História da África e dos povos africanos, bem como dos aspectos da cultura negra na formação do País. Por fim, a Lei nº 11.645/08 tornou obrigatória a abordagem, de forma transversal, da História e da Cultura dos Povos Indígenas no Brasil.

De 2008 até o momento, tem-se a emergência dos 15 Temas Contemporâneos Transversais (TCTs) com a promul-gação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), nova diretriz de eficácia nacional no âmbito da estruturação de objetos e competências educacionais. O eixo multiculturalismo apresenta os temas "Diversidade Cultural" e "Educa-ção para valorização do multiculturalismo nas matrizes históricas e culturais brasileiras”, fundamentando a importân-cia das visões dos povos locais/regionais para o ensino-aprendizagem (Rodrigues e Leite, 2020).

Ainda à guisa da BNCC para os anos finais do Ensino Fundamental (isto é, do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental), observa-se que a astronomia cultural consta na unidade temática “Terra e Universo”, como conteúdo previsto para ser ministrado no último ciclo. O seu objeto de conhecimento é "Astronomia e Cultura", e a habilidade envolvida preconiza “(EF09CI15) relacionar as diferentes leituras do céu e explicações sobre a origem da Terra, do Sol ou do Sistema Solar às necessidades de distintas culturas (agricultura, caça, mito, orientação espacial e temporal)” (Brasil, 2018, p. 350).

Araújo, Verdeaux e Cardoso (2017) relatam que a Astronomia ensinada na escola é majoritariamente oriunda de uma visão ocidental do céu noturno. No entanto, em várias civilizações, é possível notar que seus povos dispõem de maneira própria de observar o céu, dependendo dos contextos, dos padrões de comportamento, das crenças, dos conhecimentos, dos costumes e dos valores de cada comunidade. Essas interpretações tendem a variar de lugar e mudar de acordo com o tempo, permitindo que novas perspectivas sejam exploradas. De fato, a própria Astronomia ocidental ensinada na escola decorre de uma leitura sanitizada de seu desenvolvimento histórico, uma vez que, por exemplo, a Astronomia não diferia da Astrologia para povos ocidentais mais antigos, como aqueles existentes no pe-ríodo de criação da grande obra de Astronomia do passado: O Almagesto.

Jafelice (2015) afirma que o ensino de Astronomia deve ser feito com uma abordagem diversificada, considerando aspectos culturais, históricos e sociais. Dessa forma, os conteúdos são apresentados de maneira clara e acessível, compreendendo como os fenômenos astronômicos afetam a vida diária e a cultura. As respectivas noções devem transcender àquela habitualmente estudada no meio acadêmico e se ampliar a uma que abarque, também, os saberes dos povos acerca das coisas do céu (Jafelice, 2002). Rodrigues e Leite (2020) salientam que

[...] fenômenos considerados meteorológicos, atmosféricos, cosmológicos e climáticos, na perspectiva da academia, podem ser incorporados à astronomia cultural. A referência ao ‘cultural’ indica a relevância de serem considerados os aspectos socioculturais e contextuais atrelados à construção dos conhecimentos sobre o céu. (p. 3)

Jafelice (2002) sugere que uma das formas de se inserir a astronomia cultural em sala de aula é por meio da recri-ação de situações em que as culturas que não fazem parte do fluxo principal da civilização ocidental viveram ou vivem. Para essa inserção, o autor destaca que:

Muitas práticas antigas ou atuais (mas não-urbanas) podem ser desenvolvidas com os alunos (claro que se adaptando o trabalho conforme a faixa etária e o perfil do grupo envolvido), como, por exemplo, modelar utensílios em argila, encenar rituais de passagem ou de iniciação, fazer uma fogueira, preparar comidas, pintar o corpo, tocar instrumentos, cantar, dançar, montar (ao longo de vários meses) calendários lunares, etc., além de ouvir músicas étnicas, apreciar nasceres e pôres-de-Sol, promover Luaus para comemorar a Lua Cheia, trabalhar com elementos oníricos que surjam nos sonhos das pessoas do grupo, representar pictoricamente sentimentos, sensações, sua relação com o cosmos, com as origens, etc. (Jafelice, 2002, p. 13).

Pinheiro e Giordan (2009) apontam que os estudantes desenvolvem empatia e interesse pela ciência ao estudarem o "conhecimento popular" e as "tecnologias nativas" de sua cultura. Para os autores, esse procedimento faz com que valorizem “[...] mais as suas culturas ao compreenderem os princípios científicos operantes nas práticas locais” (p. 86).

Nessa linha, Jafelice (2002) sugere, por exemplo, que a festividade de comemoração a São João, que tem raízes na festa pagã do solstício, pode ser utilizada como uma oportunidade para abordar dimensões da astronomia cultural. Esta festividade, que, muitas vezes, é realizada naturalmente na região em que os estudantes residem, permite pre-servar saberes e costumes populares, unindo aspectos culturais locais, escolares e comunitários. Isso mostra como é possível integrar o conhecimento tradicional de maneira efetiva ao ensino e à preservação da cultura local.

A inserção das práticas culturais de forma transversal, em especial a astronomia cultural, consta em caráter obri-gatório nos documentos normativos e curriculares, além de contribuir para a aproximação entre conteúdos de Astro-nomia e as raízes culturais dos estudantes. Decorre disso a necessidade de se inquirir como essa abordagem é apresentada nos livros didáticos da Educação Básica. Entretanto, antes de iniciar essa exploração, convém compreen-der a política pública que fomenta a seleção e distribuição dos materiais didáticos da Educação Básica.

C. Programa Nacional do Livro e Material Didático (PNLD)

Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) foi instituído pelo Decreto Nº 91.542/85 com o objetivo de oferecer a mais ampla participação dos professores no processo de análise e indicação de títulos de livros a serem adquiridos pelo Governo para distribuição a estudantes da Educação Básica, tendo, a partir de 1990, implantado dis-posições para a avaliação dos livros didáticos. Para Caimi (2017), esse período foi benéfico para o Programa, pois promoveu aprimoramentos em sua governança e na estrutura de avaliação pedagógica.

O Decreto Nº 9.099/2017 integrou a aquisição e distribuição de livros e materiais didáticos e literários (BRASIL, 2017). Com essa mudança, o antigo PNLD foi unificado com o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), passando a se chamar Programa Nacional do Livro e do Material Didático (mantido o acrônimo PNLD).

O novo Programa passou a ter como objetivo disponibilizar, de forma sistemática, regular e gratuita, obras didáti-cas, pedagógicas, literárias e materiais de apoio à prática educativa para instituições públicas de Ensino Fundamental e Médio de associações federais, estaduais, municipais e distritais, bem como atender às instituições de Educação Infantil comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com o Poder Público (Brasil, 2017). Em síntese, ocupou-se do processo de seleção e avaliação editorial, aquisição, armazenamento, distribuição e curadoria dos materiais pedagógicos providos gratuitamente à totalidade dos estudantes das redes públicas de en-sino, independentemente de sua localidade e de sua condição socioeconômica.

Segundo Sobrinho Júnior e Mesquita (2020), com a unificação dos programas em 2017, o PNLD passou a ter obras em três categorias: disciplinares (livros didáticos), interdisciplinares e projetos integradores. Os autores ainda enfati-zam que o PNLD se tornou “uma das maiores políticas educacionais do mundo na distribuição de material didático às escolas” (p. 124). Também por isso, é a política pública educacional brasileira que envolve maior monta de recursos financeiros do orçamento nacional brasileiro, sendo objeto de interesses empresariais, político-partidários, de grupos e associações educacionais e, também por isso, de lobby e influência nos poderes executivo e legislativo.

No processo de escolha dos livros didáticos, quem possui os direitos autorais/comerciais faz a inscrição das obras, respeitando critérios estabelecidos em editais. Essas são avaliadas por especialistas de diversas áreas do conheci-mento, selecionados pelo Ministério da Educação (MEC), e, se aprovadas, passam a compor o guia digital do PNLD (Guia do Livro Didático - GLD). O GLD foi criado com o objetivo de ajudar os professores a escolherem as melhores obras para sua condição pedagógica, seguindo a BNCC. Dessa forma, supõe-se garantir que os estudantes tenham acesso a conteúdos educacionais de qualidade, submetidos a processos de elaboração, revisão, curadoria e revisão continuada. Por conseguinte, o GLD subsidia as secretarias de educação e o corpo docente na escolha das coleções para todas as etapas/modalidades da educação básica (BRASIL, 2017). É bem verdade que o nível de exigências confi-gura, em alguma medida, favorecimento a grandes editoras, detentoras de poder econômico pujante, capazes de desenvolver e atualizar seus recursos conforme a sucessão de regras editoriais impostas pelos editais, bem como de prover condições técnicas, logísticas e financeiras garantidoras da prestação do serviço a que concorrem.

De modo geral, o PNLD destina-se a contribuir para o desenvolvimento de práticas pedagógicas de qualidade, visando à formação integral dos estudantes. A partir do GLD, o professor tem a possibilidade de escolher obras que atendam à sua realidade pedagógica e aos seus objetivos educacionais, naturalmente em face de um catálogo pré-viabilizado.

De acordo com Sobrinho Júnior e Mesquita (2022), os livros didáticos do PNLD são a principal fonte de trabalho e planejamento de atividades educacionais para os professores no Brasil. Os autores também classificam esses recursos como a "órbita da educação", porque, por vezes, são os únicos materiais impressos de leitura e literatura com os quais estudantes das classes socioeconômicas vulneráveis terão contato.

Nas avaliações das obras que compuseram o GLD de 2020 na área de Ciências da Natureza para o Ensino Funda-mental - Anos Finais, alguns dos critérios para aprovação desses materiais foram: os objetos de conhecimentos deviam estar em consonância com a BNCC e estabelecerem relações específicas do que é ciência e suas funções socioculturais (Brasil, 2019). Além disso,

As obras devem apresentar abordagens livres de estereótipos de condição socioeconômica, regional, étnico racial, de gê-nero, de orientação sexual, de idade, de linguagem, religiosos, de condição de deficiência, assim como não devem induzir a qualquer outra forma de discriminação, violência ou violação de direitos humanos. Devem, também, estar livre de doutri-nação religiosa, política ou ideológica, respeitando o caráter laico e autônomo do ensino público. As abordagens propostas devem levar a uma valorização da diversidade cultural, social, histórica e econômica do país. Devem ser consideradas as diferenças políticas, econômicas, sociais e culturais de povos e países e serem promovidas condutas voltadas para a susten-tabilidade do planeta, para a cidadania e o respeito às diferenças. (Brasil, 2019, p. 6).

De acordo com Oliveira (2020), o professor, ao trabalhar com o livro didático em Astronomia, pode observar uma categoria descrita como "Monocultural". Essa categoria se refere à astronomia da cultura dominante e pode incluir referências a conhecimentos tradicionais e etnocêntricos, como, por exemplo, apresentar os egípcios e os gregos como os precursores de todo o desenvolvimento astronômico. No entanto, segundo a autora, não foram somente essas culturas que observaram e fizeram registros acerca do céu, tampouco são as responsáveis por todos os saberes dessa área.

Além disso, dentro dessa categoria também se inclui o material didático que aborda a Astronomia de maneira clássica, colocando Ptolomeu (90-168), Copérnico (1473-1543) e Galileu (1564-1642) como precursores dessa área, e apresenta as leis de Kepler e a lei da gravitação universal como fundamentais para o desenvolvimento da área, tendo assim uma visão limitada e etnocêntrica do desenvolvimento da Astronomia.

Alternativamente à categoria "Monocultural", Oliveira (2020) define a categoria "Menos valorizados socialmente" que se refere à apresentação do conhecimento dos grupos, cujos conhecimentos acerca da astronomia são desvalo-rizados pela cultura dominante, como, por exemplo, o conhecimento dos indígenas, dos árabes e dos orientais. Essa categoria inclui narrativas, contos e mitos de povos não considerados dominantes, como, por exemplo, o mito da criação na visão das inúmeras etnias indígenas presentes no Brasil, visando uma abordagem mais diversa e inclusiva do conhecimento astronômico (Oliveira, 2020).

Em síntese, a BNCC prevê a abordagem da astronomia cultural nas obras de ciências no ensino fundamental e o PNLD/2020 indicou para esse público que as obras escolhidas fossem avaliadas em relação às experiências e ao res-peito às relações multiculturais. Assim, as próximas seções terão por foco de análise a abordagem cultural em astro-nomia nas obras de Ciências no Ensino Fundamental do GLD de 2020.

III. ENCAMINHAMENTO METODOLÓGICO

Esta pesquisa é de cunho qualitativo, com características de pesquisa exploratória em base documental. De acordo com Gil (2008), a pesquisa exploratória tem como objetivo aprofundar o conhecimento acerca de determinado as-sunto ou problema. Isso é alcançado por meio de diversas técnicas, tais como levantamentos bibliográficos, entrevis-tas com especialistas e análise de exemplos relevantes. Já a pesquisa em base documental é realizada em materiais brutos que não foram alvo de análise por outros pesquisadores (Gil, 2008).

Ademais, fundamenta-se na abordagem da hermenêutica reconstrutiva (Habermas, 2003) ao pressupor que, dia-logicamente, de maneira investigativa e com suporte em recursos da linguagem, é possível estabelecer descrições compreensivas, calcadas em categorias a priori, e, assim, alcançar racionalidades reconstrutivas baseadas em ética, coerência e consenso social. É, em síntese, um esforço interpretativo com forte vínculo aos pesquisadores envolvidos, oriundos de comunidades linguísticas em que as unidades temáticas e os conteúdos dos discursos são familiares, sig-nificativos e capazes de mobilizar proposições alternativas.

Para a constituição dos dados, foram analisados textos-base e textos complementares, imagens, orientações e exercícios presentes nos livros didáticos constantes do GLD/2020 e direcionados para a disciplina de ciências no nono ano do Ensino Fundamental. Assim, o corpus de estudo foi constituído pela íntegra das 12 obras apresentadas no Quadro 1. A codificação foi realizada de LD1 até LD12, em ordem distinta (randômica) da sequência em que aparecem no referido quadro, para evitar a personalização das indicações.

Quadro I Obras analisadas na área de Ciências da Natureza que compuseram o GLD Digital de 2020. 

OBRAS CÓDIGO NO GLD/2020 EDITORIAL
Tempo de ciências 0390P20032 Brasil S.A.
Inspire ciências 0369P20032 FTD S.A.
Apoema ciências 0368P20032 Brasil S.A.
Observatório de ciências 0344P20032 Moderna LTDA
Convergências ciências 0317P20032 Edições SM LTDA
Teláris ciências 0307P20032 Ática S.A.
Geração alpha ciências 0020P20032 Edições SM LTDA
Inovar ciências da natureza 0023P20032 Saraiva Educação S.A.
Companhia das ciências 0038P20032 Saraiva Educação S.A.
Araribá mais - Ciências 0299P20032 Moderna LTDA
Ciências vida & universo 0389P20032 FTD S.A.
Ciências naturais - Aprendendo com o cotidiano 0316P20032 Moderna LTDA

Para a análise de dados, foi empregada a técnica de análise temática com exploração de frequências que compõe o método de Análise de Conteúdo proposto por Bardin (2011), em particular, as apreensões lexicométricas, analoga-mente ao desenvolvido em Ferreira e Loguercio (2016, 2017), Ferreira, Loguercio e Mill (2018), Nogueira et al. (2020), Ferreira et al. (2021) e Ferreira (2023). O método consiste numa analítica de conteúdo verbal e possui três fases: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Um primeiro movimento analítico centrou esforços na identificação dos textos analisados que correspondiam à habilidade EF09CI15 da BNCC prevista pela BNCC. Na fase de pré-análise, foi realizada uma leitura flutuante dos materiais-alvo presentes no GLD de 2020, para identificar as pos-síveis incidências da temática. Essa leitura permitiu a seleção dos tópicos que constituem a parte documental para a coleta de dados detidamente explorados nas etapas subsequentes.

Selecionados os textos que atendiam ao critério de inclusividade, isto é, à demanda legal, um segundo movimento considerou a análise das abordagens presentes no corpus à luz da categoria (a priori) ‘Menos Valorizados Socialmente’, assim definida por Oliveira (2020). Para enquadramento dos textos a ela, foram observados três critérios: narrativas, valorização dos elementos culturais e operacional. Em ‘narrativas’, detectamos as obras que traziam descrições de eventos de alguma das culturas ditas não-dominantes. Em ‘valorização dos elementos culturais’, identificamos os tex-tos que instigaram os agentes do processo educacional a pensarem acerca da importância desses elementos e o rom-pimento dos preconceitos em relação a esses saberes. Por fim, a categoria ‘operacional’ abrangeu os textos que relegaram a abordagem da astronomia cultural para estudos complementares ou atividades. Preponderou, portanto, a análise frequencial.

As demais técnicas da Análise de Conteúdo, como a classificação hierárquica descendente, análise fatorial e análise de similitude, não foram aplicados ao corpus eleito, uma vez que suas propriedades e os resultados e interpretações que viabilizam não guardaram relação com o escopo da problemática. Elas poderiam vir a ser operadas, de maneira complementar, mas, para o objetivo singular de compreender a incidência (e seu respectivo nível) de abordagens da etnoastronomia, elas não surtiriam efeitos analíticos significativos.

IV. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Na análise frequencial dos conteúdos dos livros didáticos, identificamos na maioria das obras (92%) a presença de manifestação da habilidade EF09CI15 da BNCC. Isto é, dos 12 livros analisados, 11 trouxeram elementos que remetem às culturas ditas não dominantes. A análise do livro LD12 revelou que a obra não contém qualquer passagem relacio-nada às culturas consideradas não dominantes na área de Astronomia, razão pela qual não foi incluída em qualquer das categorias.

Considerando a presença da astronomia cultural em quase todos os livros didáticos do PNLD/2020, realizamos o segundo movimento, desta feita buscando caracterizar essas abordagens balizadas pelos critérios anteriormente dis-cutidos e em embrionária hermenêutica reconstrutiva: narrativas, valorização dos elementos culturais e operacional. O Quadro 2 apresenta o resultado dessa identificação nas obras analisadas.

Quadro II Classificação das obras na categoria ‘Menos valorizados socialmente’. 

Obra Narrativas Valorização dos Elementos Culturais Operacional
LD1 X
LD2 X
LD3 X X X
LD4 X
LD5 X X
LD6 X
LD7 X X X
LD8 X
LD9 X X
LD10 X
LD11 X

A inclusão do LD1 na categoria ‘narrativas’ se deu porque o livro apresenta vários recursos didáticos (inclusive visuais) abordando a temática do universo e sistema solar. Além disso, no capítulo intitulado “Astro no Universo'', a obra contém um texto explicando a origem do universo na visão dos indígenas Kayapós e orientações para o estudante de que cada povo indígena pode ter sua própria perspectiva acerca do céu, respeitando a diversidade cultural. Avan-çando na dialogia e nas novas racionalidades da hermenêutica reconstrutiva, esta abordagem educacional é impor-tante para induzir a crítica acerca das diferentes culturas e de seus ensinamentos, além de valorizar e preservar a herança cultural indígena brasileira. No capítulo “Um olhar para o Universo”, é apresentado um infográfico das cons-telações na visão dos indígenas Tupinambás e os exercícios incentivam os estudantes a pesquisarem como diferentes povos indígenas do País enxergam o céu, a partir de suas crenças, estimulando-os a perceber a importância da astro-nomia cultural como meio de valorização da cultura dos povos originários. Além disso, os instiga a apreciarem as tradições históricas expressas pela astronomia indígena, experimentando um olhar aprofundado (racionalmente re-construído) acerca dessas culturas e de seus ensinamentos.

O LD2 se aproxima da habilidade da BNCC ao apresentar um texto acerca da astronomia maia e sugerir que o professor separe sua turma em cinco grupos (tupi-guarani, egípcios, astecas, chineses e dogons), para que cada qual explique como foi o desenvolvimento da astronomia nas respectivas civilizações. Como a discussão acerca da temática na obra focou apenas exercícios, ela foi incluída na categoria ‘operacional’.

O LD3 foi incluído nas três categorias, pois apresentou comparativo entre um ponto visto no céu na perspectiva europeia e na indígena (figura 1). Fez, ainda, discussão histórica acerca das constelações do Homem Velho, da Ema e da Anta, além de explicar a importância das constelações para o povo do Alto Xingu. Na atividade complementar, o livro instiga o estudante a debater acerca da preservação da cultura indígena por meio da demarcação de terras. A obra ainda discute os mitos e as lendas da criação na visão dos gregos, dos incas, do povo Desana e dos chineses, demonstrando como eles revelam culturalmente as percepções humanas acerca do universo. Considerando, pois, que o LD3 aborda de forma abrangente a astronomia cultural, pudemos categorizar sua abordagem na perspectiva das ‘narrativas’; ademais, por colocar em perspectiva concepções europeias e indígenas acerca dos mitos de diferentes culturas, identificamos elementos que o vinculam à categoria ‘valorização dos elementos culturais’; uma vez que a proposta de atividade complementar instiga o estudante a debater a preservação da cultura indígena, o classificamos sob ‘operacional’.

FIGURA 1 Comparativo de constelações observado no LD3. Fonte: LD3, 2018, p. 206. 

O LD4 foi incluído na categoria ‘narrativas’, porque apresentou narrativa histórica das constelações do Homem Velho, da Ema e do Curuxu, ilustradas na figura 2, e abordou as civilizações indígenas que observaram essas constela-ções com seus respectivos significados. O livro explica os mitos e as crenças associados às estrelas, favorecendo a compreensão dessas culturas milenares. Ao se aprofundar na narrativa desses mitos e crenças, a obra permite que os estudantes conheçam e valorizem as diferentes perspectivas culturais acerca do universo, tornando-se um recurso importante para o ensino de astronomia cultural.

FIGURA 2 Trecho de uma narrativa do LD4. Fonte: LD4, 2018, p. 17. 

O livro LD5 foi vinculado nas categorias ‘narrativas’ e ‘operacional’, porque, além de abordar o mito chinês da criação do universo, ofereceu exercícios que estimularam os estudantes a se aprofundarem em temas como a astro-nomia nos rituais e nas cerimônias dos povos indígenas, o uso dos astros na navegação, a observação das estrelas para a identificação de mudanças nas condições meteorológicas e suas aplicações em agricultura e pesca. Por meio dessa abordagem, o LD5 visa estimular o interesse dos estudantes pelo assunto e apresentar o significado da astronomia para diversas culturas.

Em LD6, observa-se uma explanação histórica da constelação do Homem Velho e da Ema, de forma a induzir ao leitor a perspectiva de que todas as culturas indígenas enxergam as mesmas constelações, além de fazer referências ao mito da criação do universo na visão dos povos da etnia Guarani. O livro expõe para o estudante que cada cultura indígena possui seu mito para a criação do universo, mas não cita nem aborda a observação específica das constela-ções por cada um dos povos. Nesse sentido, o consideramos como um exemplar da categoria ‘narrativas’.

O livro LD6 também foi considerado exemplar da categoria ‘narrativas’, pois nele se observa uma explanação his-tórica da constelação do Homem Velho e da Ema, de forma a apresentar ao leitor que cada cultura indígena possui seu mito para a criação do universo. Porém, não cita nem aborda a observação específica das constelações por cada povo. Além disso, o texto apresenta imagens de estrelas e esquemas do céu para os povos indígenas, especialmente aqueles que vivem no Brasil, e traz informações acerca da astronomia e das crenças espirituais desses grupos. Mesmo tratando a visão das constelações de forma genérica, essa obra serve para entender a astronomia de alguns povos indígenas e como ela influencia sua cultura.

O LD7 foi incluído nas categorias ‘narrativas’, ‘valorização’ e ‘operacional’. É possível observar uma pequena comparação por meio de uma imagem do mesmo conjunto de estrelas que os gregos antigos viam como Órion e os Tupis-guaranis, como Homem Velho (fig. 3). Além disso, traz breves explanações acerca do mito da criação na visão dos gregos, iorubás e kanamaris. A obra LD7 ainda faz recomendação de artigos acerca da temática e de um documentário7.

FIGURA 3 Comparativo feito na obra LD7. Fonte: LD7, 2018, p. 56. 

Classificamos o texto do LD8 na categoria ‘narrativas’, pois este aborda assuntos como a astronomia dos maias e seus calendários, os conhecimentos antigos acerca das estrelas na Amazônia (genérico) e os significados que as cons-telações têm para os povos indígenas. Assim, o livro, em suas orientações, contribui para a compreensão da cultura dos indígenas brasileiros e incentiva a preservação de seus saberes ancestrais.

Já o LD9 entendemos ser representativo das categorias ‘narrativas’ e ‘operacional’, porque abre um tópico cha-mado "etnoastronomia'' (figura 4) que aborda os conceitos de etnoastronomia, astronomia cultural e arqueoastrono-mia. Apresenta-se a passagem do tempo na visão de diversas civilizações e as constelações de acordo com o panorama de povos indígenas brasileiros (Karajás, Boras e Tupi-Guarani) e dos aborígenes da etnia Boorong. Além disso, o LD9 traz textos complementares e indicações de livros, filmes e documentários acerca da arqueoastronomia, incentivando a diversidade e a manutenção da identidade cultural dos povos indígenas brasileiros, combatendo o preconceito com relação a esses saberes. Com isso, apresenta os conhecimentos ancestrais dos povos indígenas brasileiros, assim como os seus costumes e tradições. Trata-se de um texto que retrata a conexão dos povos antigos com o cosmos e como essa relação impactou contextualmente e ainda impacta sua cultura.

FIGURA 4 Assuntos tratados no capítulo de etnoastronomia da obra LD9. Fonte: LD9, 2028, p. 236. 

O livro LD10 foi classificado na categoria ‘narrativas’, já que apresenta um pequeno texto que explica o que é arque-oastronomia. Além da obra introduzir a Astronomia do ponto de vista dos indígenas brasileiros Tupis-Guaranis (figura 5), enfatiza um esquema ilustrativo das constelações indígenas de Kuruxu (Cruzeiro do Sul), Guaxu (Veado), Guyra Nhandu (Ema), Tapi’i (Anta), Tuya’i (Homem Velho) e Eixu (Ninho de Abelhas).

FIGURA 5 Constelações do ponto de vista dos Tupis-Guaranis no LD10. Fonte: LD10, 2018, p. 186 e 187. 

Já o livro LD11 foi considerado como exemplar da categoria ‘narrativas’, pois traz descrições históricas da criação do universo na perspectiva dos indígenas Karajá e Tupi-Guarani (figura 6).

FIGURA 6 Trecho da narrativa da criação do universo para o povo Tupi-Guarani. Fonte: LD11, 2018, p. 220. 

Com a categorização das obras didáticas, torna-se evidente que a maioria dos exemplares se esforçou para ade-quar seus textos à habilidade EF09CI15 prevista na BNCC. No entanto, muitas dessas tentativas se limitaram a fornecer narrativas acerca das percepções do céu, sem explorar detidamente a importância desses saberes ou tampouco valo-rizar o conhecimento dos povos indígenas e tradicionais. De acordo com Oliveira (2020), embora essas culturas não tradicionais estejam presentes nos textos, elas são pouco valorizadas, já que a apresentação em livros se dá de forma pontual e sem uma exploração crítica da temática. Esta conclusão é, certamente, derivada da perspectiva da herme-nêutica reconstrutiva a que nos reportarmos na proposição metodológica, tanto pela denúncia que faz, quanto pelo anúncio da condição de possibilidade de sua inversão.

Quase todas as obras analisadas, com exceção da LD7, não abordam a visão africana e dos povos das comunidades tradicionais, como ribeirinhos e quilombolas, acerca do céu, negligenciando, assim, tão relevante contribuição dos saberes dessas populações para a constituição da identidade brasileira, bem como seus pontos de vista e conheci-mentos acerca da Astronomia. Além disso, a maioria das obras mostra generalizações acerca da maneira como os povos indígenas veem o céu noturno, induzindo ao equívoco de se supor que todas as etnias compartilham de uma mesma perspectiva.

Os livros didáticos de ciências do PNLD/2020 para o nono ano do ensino fundamental ainda refletem os resultados encontrados por Oliveira (2020) nos livros de ciências do PNLD/2017. Os nossos resultados apresentam-se contíguos aos das análises daquela autora, a qual concluiu que, apesar de as leis e decretos imporem a inclusão de dispositivos de multiculturalismo crítico na educação, os livros didáticos analisados raramente refletiam pragmaticamente tal im-posição. Usualmente, representam a ciência produzida por aqueles que detêm poder econômico, prestígio social e dominação cultural, ignorando interesses políticos, econômicos e ideológicos das minorias, além de desconsiderar os respectivos contextos socioculturais e históricos (Oliveira, 2020). Como resultado, os conteúdos ensinados e as abor-dagens didáticas adotadas em sala de aula da Educação Básica são impactados negativamente em relação à valoriza-ção do pluralismo e da diversidade cultural como dimensão científica.

Desse modo, novamente a propósito de uma hermenêutica reconstrutiva, são vários os aspectos e as abordagens diferenciadas necessárias para qualificar a representação da astronomia das culturas nos livros didáticos adotados nos anos finais do ensino fundamental. Propostas nessa direção deverão incluir esforços para o reconhecimento, de fato e amplificado, da importância multicultural dos povos, particularmente os originários regionais, e incentivo ao respeito pelos conhecimentos e princípios de outras culturas. Há de se considerar que, ainda que se percebam avanços na introdução de preocupações da ordem da etnoastronomia em livros e materiais didáticos dos programas públicos brasileiros, seus conteúdos carecem de desenvolvimento mais profundo e de significativa assunção de uma perspec-tiva objetivamente inclusiva e não excludente.

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa teve como objetivo analisar se os livros didáticos da área de ciências para o nono ano do Ensino Funda-mental no Brasil, distribuídos no âmbito do PNLD 2020, abordaram saberes e crenças de diversas culturas acerca da Astronomia e - em caso, afirmativo - como se poderiam categorizar tais abordagens. Para tanto, recorreu-se a técni-cas de análise de conteúdo, em especial, as lexicométricas, aplicadas às doze obras aprovadas no programa, bem como a fundamentos epistemológicos da hermenêutica reconstrutiva.

A pesquisa permitiu observar que o espaço escolar tem passado por mudanças para oferecer um ensino mais plural e multicultural. Os marcos regulatórios, sejam as Leis nº 11.645/08 e nº 10.639/03, seja a promulgação da BNCC, têm proporcionado um processo de valorização das culturas consideradas não dominantes, que até então eram margina-lizadas na educação formal e nos livros e materiais didáticos. Isso ficou evidenciado quando detectamos que onze das doze obras (livros didáticos) analisadas(os) abordam as culturas não hegemônicas no estudo da Astronomia.

Apesar dos progressos observados, ainda é preciso avançar na abordagem do multiculturalismo nos livros didáti-cos, pois parte deles ainda apresentam visão estereotipada e generalizada das diversidades culturais, sugerindo que elas teriam o mesmo ponto de vista para a organização de seus modelos explicativos dos fenômenos culturais - ou, de maneira mais ampla, das ciências naturais. Além disso, algumas consideram esses saberes como mitos e ‘crendices’, o que as leva colocá-los em uma oposição ao conhecimento científico ocidental, tradicionalizado por métodos subja-centes.

Das onze obras didáticas que apresentam temas culturais, foi possível constatar que em oito a abordagem majo-ritária consiste em narrativas de eventos de culturas não dominantes. Em duas delas, a discussão acerca da temática fica limitada a atividades complementares ou a sugestões de pesquisas ampliativas, o que promove uma visão frag-mentada da diversidade cultural.

Essas abordagens, mesmo quando subsomem visões não hegemônicas, não refletem perfeitamente um multicul-turalismo, pois apresentam perspectiva não integral e ultrapassada acerca do conhecimento produzido. Considerando que a maioria dos conteúdos explorados nas escolas brasileiras de Educação Básica é fornecido pelos livros didáticos do PNLD, nota-se que eles necessitam incluir perspectivas multiculturais de forma estruturada, efetiva e crítica, para que aqueles que fizerem uso de tais recursos didáticos possam ter condições efetivas de refletir acerca da valorização e do respeito das distintas culturas.

Uma maneira de suprir essa lacuna poderia ser ampliando o domínio de liberdade do professor, supondo-o bem formado, para que incentive um diálogo cultural na discussão científica. Quando possível, por exemplo, convidar mem-bros de grupos culturais locais para compartilhar percepções acerca do céu com os estudantes. Essas trocas podem promover o pluralismo cultural e a valorização de saberes tradicionais que, muitas vezes, são ignorados em ambientes e processos formais de ensino-aprendizagem.

É importante que os professores incentivem os estudantes a realizarem pesquisas acerca das especificidades de cada cultura em relação ao céu, para reforçar a importância do respeito à diversidade cultural. É possível abordar a preservação das terras indígenas, enfatizando a conexão dessa cultura indígena com a preservação e a sustentabili-dade ambiental. Isso, evidentemente, com a clarividência do que representa um modelo hegemônico de ciência e quais os espectros alternativos que se fixam em dimensões culturais.

Espera-se que esse estudo sirva como referência para futuros projetos pedagógicos e intervenções didáticas que objetivem aprofundar as maneiras de inserir a astronomia cultural em sala de aula. Essa temática é repleta de possi-bilidades teóricas e práticas para o ensino de Astronomia a partir de uma perspectiva cultural dificilmente esgotável. Pelo contrário, prenhe de diversificações e propriedades contextuais. Ademais, serve para que a adoção e o uso de livros didáticos fornecidos gratuitamente pelo PNLD às escolas de Educação Básica brasileira passem por um processo de curadoria dos professores de ciências, particularmente na temática da Astronomia. Os resultados obtidos, por-tanto, podem iluminar processos em curso e estimular investigações complementares acerca dessa questão que é, além de fundamental para a consolidação de sociedades com conhecimentos não hegemônicos, um celeiro de opor-tunidades de desenvolvimento cognitivo e cultural acerca de eventos astronômicos e da complexidade com que eles se convertem em abordagens didáticas.

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1 Neste texto, sempre que nos referirmos genericamente à “ciência” ou à “ciência moderna”, o fazemos em referência à tipificação da ciência ocidental, que é o paradigma academicamente dominante, discussão que escapa ao escopo deste texto, mas que merece reflexão dos leitores.

2Um exemplo interessante disso é a forma estereotipada com que os filmes de faroeste americano representam indígenas dançando em volta de uma fogueira com a intenção de curar algum indivíduo. Vistos pelo viés da cientificidade moderna, com espaço e tempo dessacralizados, perde-se a dimensão soteriológica daquilo que não é uma dança, mas um ritual de retorno ao tempo primordial dos antepassados (illud tempus), conside-rado, na estrutura mitológica, como mais puro e livre de males. Desse modo, diferentemente da ministração de um medicamento, agora, para livrar da doença o indivíduo que a tem aqui, trata-se de um ritual do tempo, pelo qual o indivíduo doente é levado ao tempo primordial que o (re-) purifica e elimina, assim, a doença. Nessa perspectiva, tempo e espaço são, necessariamente, vivenciais.

3Caso o leitor já aqui queira saber mais acerca deste importante programa público brasileiro no campo do acesso amplo a livros didáticos por estudantes de escolas públicas, totalmente subsidiado pelo Governo Federal, conferir: http://portal.mec.gov.br/component/content/arti-cle?id=12391:pnld. Acesso em 20 out. 2023. A subseção C da seção II deste artigo buscará caracterizá-lo de maneira estruturada.

4Grupos indígenas cujas línguas pertencem à família tucano e à etnia indígena que habita o Noroeste do estado brasileiro do Amazonas e da Colômbia.

5Os caiapós, também conhecidos como kayapós ou kaiapós, são um grupo étnico jê habitante da Amazônia brasileira.

6A dicuada de cinza é uma solução rica em sais de caráter básico (principalmente o carbonato de potássio e o carbonato de sódio). Tais sais devem fazer o papel da soda cáustica no preparo do sabão (Pinheiro y Giordan, 2009).

7Documentário "Cuaracy Ra’Angaba - O céu Tupi-Guarani" de direção de Germano Bruno Afonso e Lara Velho.

Received: April 05, 2023; Accepted: August 15, 2023

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