Introdução
Este estudo é parte integrante das ações de investigação realizadas, desde 2012, no âmbito do projeto “Modelos pedagógicos e educação do corpo dentro e fora da escola: contribuições à História da Educação Física brasileira no século XX”. O trabalho meticuloso de reunir e analisar um expressivo corpus documental tem nos permitido constatar que os múltiplos sentidos conferidos ao que denominamos educação do corpo, bem como suas “maneiras de fazer”, conformam sua condição de objeto e prática, modelados na e pela cultura (Certeau, 1998). Em uma perspectiva historiográfica que busca compreender as experiências educativas como invenções relacionadas à vida em sociedade, instiga-nos identificar e analisar alguns dos “dispositivos de modelização” (Carvalho, 2011) que prescreveram e justificaram usos e escolhas, realizadas por sujeitos ou grupos, para que a educação corporal se afirmasse como um recurso imprescindível à educação da infância e da juventude. Na modernidade, civilizar as crianças compreendeu, em grande medida, civilizar seus corpos, moldá-los. Ressonâncias de tais premissas se tornam presentes no debate educacional brasileiro do início do século XX, por meio de práticas discursivas e institucionais alicerçadas nos contrastes entre o velho e o novo, o atrasado e o moderno: “cultivar nelas [nas crianças] um corpo belo, forte, saudável, higiênico, ativo, ordeiro, racional, em contraposição àquele considerado feio, fraco, doente, sujo e preguiçoso” (Vago, 2004:78).
Nos fios dessa trama optamos pelo exercício de observar, na especificidade de Minas Gerais, elementos de uma construção sociocultural ampla e complexa. Buscamos, assim, relacionar a educação do corpo da criança pequena ao processo civilizador, verticalizando o olhar para o “pequeno comentário”, expresso no debate educacional brasileiro nas décadas de 1920 e 1930. Pretendemos ressaltar a circulação de ideias e prescrições para a educação infantil as quais, levadas a termo primeiramente na Europa Ocidental, se estenderiam às várias partes do mundo, portando, quase sempre, um imperioso efeito de verdade. Por agregar signos de civilidade, modernidade e desenvolvimento, foram rapidamente apropriadas e vulgarizadas no Brasil, principalmente entre educadores.
Como uma aposta cultural, a arte de educar a infância será aqui abordada como um projeto político estabelecido por sucessivas camadas e orientado por diferentes interesses e sistemas postos em relação. Ao analisarmos alguns dos elementos constituintes das maneiras de educar o corpo da criança pequena, atentamos para os deslocamentos realizados, ou seja, para a dimensão transformativa presente nas operações culturais de produção de sentidos.
Corpo e infância: uma dupla "entrada" nos sentidos da civilidade e na educação dos indivíduos.
As intervenções pedagógicas experimentadas na escola brasileira propagaram algumas premissas educativas de um processo mais amplo e longevo, que incidiram sobre a produção de uma noção moderna de infância e dos sentidos atribuídos à escola, no gradativo acolhimento das crianças pequenas (menores de 7 anos), como sujeitos escolarizáveis. Em ambos, a atenção ao corpo foi preponderante.
Uma “pedagogia das boas maneiras”, dirigida à infância (Revel, 2009: 171), preceituava orientações bem demarcadas - apresentadas muitas vezes de maneira trivial ou rotineira - e, incluía, ao mesmo tempo, os discursos sobre elas, compondo um conjunto de mudanças que, a partir do corpo educado, conferia sentidos à própria modernidade. Edificar o indivíduo e estimular uma conduta de civilidade implicava orientar atitudes, públicas e privadas, tanto pessoais quanto nos grupos de convivência, guiando comportamentos, emoções e interações, no agenciamento do próprio corpo e do corpo do outro. Começar pela infância, pelos corpos das crianças, tornava-se uma estratégia para lidar com a “natureza” corpórea de homens e mulheres. Pelo uso da razão, as crianças poderiam ser dominadas, educadas e bem moldadas para a vida em sociedade.
Alguns estudos que se ocuparam dos sentidos da modernidade e da civilidade enfatizam a ideia de interiorização das regras, capazes de tornar próprio ao sujeito uma variedade de códigos, valores e comportamentos produzidos como necessidades coletivas e sociais. Entre outros tantos dispositivos disciplinares que participaram de um longo percurso, merece destaque a obra "Civilidade Pueril", de Erasmo de Roterdã, publicada pela primeira vez em 1530, e considerada por Jacques Revel (2009) como uma espécie de matriz desse projeto civilizador moderno. Com características didáticas, este manual da boa conduta percorreu mais de três séculos sendo reinventado, reescrito, copiado, plagiado, adaptado. Nesses deslocamentos no tempo, este livro orientador da educação das crianças também sofreu modificações no próprio percurso da civilidade. Ao cumprir uma função mediadora entre universos culturais distintos, foi também transformado pelos usos e interpretações, dando a ver os exercícios de construção e de negociação de sentidos e interesses.
A "Civilidade Pueril" circulou como uma espécie de normativa básica e alguns de seus elementos-chave merecem destaque, quando atentamos para o conteúdo que esta propôs anunciar: a) o aprendizado da cortesia e da polidez se daria pela disciplina e pelo controle das necessidades corporais e, para tal, seu autor indicava a organização do que denominou “cultura corporal”; b) a abordagem proposta é dirigida às crianças convergia para todos os corpos infantis, sem distinções relativas ao lugar que cada uma ocupava na estrutura social; c) o alvo principal da intervenção deveria recair sobre as ações e práticas cotidianas, corriqueiras e banais, pois elas revelariam a convivência com o outro e organizariam a vida coletiva e d) os procedimentos propostos não deveriam ser coercitivos, uma vez que ansiavam incluir o sujeito em seu próprio aprendizado da civilidade. Por meio de tais premissas, organizou-se o entendimento de que, na educação das crianças, o comportamento a ser exteriorizado revelaria algo do ser interior (Revel, 2009).
Ideias potentes, colaboraram na produção de representações sociais associadas à "bondade natural das crianças" e à sua educabilidade as quais, por sua vez, foram articuladas a um outro projeto também moderno: o da escolarização da civilidade. Ou seja, fazia-se necessário levar às escolas a prerrogativa de que o controle dos corpos das crianças contribuiria positivamente no controle da vida coletiva. Na confluência de diferentes dispositivos, no último terço do século XVII algumas escolas religiosas reconfiguraram o modelo erasmiano, transformando suas ideias-chave civilizadoras em um instrumento autoritário de disciplina, tendo em vista, especialmente, as crianças pobres das cidades. A “Civilidade Pueril” passaria a embasar a produção de manuais similares e, nessa nova configuração, ganhando novos contornos. O adestramento dos corpos passa a incluir “uma vigilância policialesca do tempo e do espaço das crianças. É nessa versão rígida e imperativa que a pedagogia dos comportamentos encontra sua última e mais maciça formulação tradicional e chegará à borda do nosso presente” (Revel, 2009: 180). Nesses termos, tomaremos a expressão civilidade pueril como metáfora de uma educação infantil que se pretendia também corporal e, como tal, experimentou ajustes e reacomodações.
A escola, a criança pequena e seu corpo: ressonâncias nas pedagogias brasileiras
O processo de afirmação da escola moderna conferiu à civilidade outras modelagens. Por um lado, elidiu da contribuição original de Erasmo de Roterdã dimensões fundamentais: a sensibilização das crianças para a necessidade de um código de conduta e de sociabilidade, a aposta na virtude da imitação e as lições apreendidas no ambiente familiar. Por outro lado, a educação escolar passaria a priorizar o corpo disciplinado para ler, escrever e orar, tendo como orientação uma relação pedagógica hierarquizada, baseada na repetição, na obediência e no controle externo ao indivíduo. Aquela invenção ativa da sociabilidade das crianças cedeu lugar a um conformismo que, por diferentes ênfases e caminhos, conquistaria uma longa permanência nas modelagens escolares.
Nos últimos dois séculos, esse modo de socialização não tem cessado sua ampliação e generalização, caracterizando-se como o formato predominante para a educação das novas gerações e, de alguma forma, embaralhando nossa compreensão sobre os sentidos da civilidade. Se, no século XIX, o ensino primário e o ensino secundário foram os principais alvos na afirmação dessa modelagem, podemos alegar que, no século XX, a educação das crianças de 0 a 6 anos também passaria a obedecer à mesma configuração. A escola moderna assume as balizas para que todas as infâncias possam (e devam) ser educadas, tal como os corpos, incluindo um número cada vez maior de sujeitos. Nessa complexa trama que envolve interesses políticos, culturais e socioeconômicos, consolidou-se a representação de que civilizar tornava-se algo análogo a escolarizar. Como afirma Maria Cristina Gouvêa,
a ideia moderna de criança, percebida como distinta psíquica, cognitiva e afetivamente do adulto é fruto de um longo processo. A construção da ideia da especificidade da infância é diretamente relacionada à constituição da escola moderna, espaço privilegiado de preparação e aprendizagem para o mundo adulto (Gouvêa, 2002: 14).
A educação corporal enraizou sua participação na escola moderna, na medida em que educar fisicamente as crianças funcionava como um meio capaz de promover também a educação moral e a ordem social. Essas noções, capazes de afirmar o indivíduo, ganharam importância nos debates educacionais do final do século XIX e início do XX, especialmente orientados pela ideia de renovação e, como tal, atualizavam a “forma escolar de socialização” como o modelo republicano e cientificamente fundamentado para a educação da infância, tanto na escola como fora dela (Vincent et al., 2001). As expressões Escola Nova e Escola Ativa, bem como os movimentos reformadores que sustentaram tais prescrições, ganhavam preponderância (Vidal, 2003; Carvalho, 2011) e, como ressalta Diana Vidal, “a escola renovada pretendia a incorporação de toda a população infantil” (2003:498).
As ciências da educação se fortaleciam, respaldando a civilização dos costumes, das condutas morais e das emoções pela escola. Novos temas foram cientificamente incorporados ao tratamento racional do corpo escolarizado: a aproximação entre higiene corporal e higiene social; o entendimento das etapas do desenvolvimento infantil; a associação entre o funcionamento termodinâmico dos corpos e o das máquinas; o estabelecimento de gestos e posturas autorizadas para as aprendizagens. A lógica que orientava os tempos e espaços escolares incluía atividades e disciplinas intituladas Exercícios Físicos, Higiene, Ginástica, Trabalhos Manuais, Educação Física, Recreação, etc. que, simultaneamente ou não, passariam a compor as construções curriculares. Quanto menores as crianças, maior o tempo dedicado pela escola aos seus corpos. A partir do binômio “salvar corpos” e “forjar a razão” (Ferreira, 2000), também a educação da criança de 0 a 6 anos começava a receber atenção do Estado, como estratégia de proteção da infância, contra a mortalidade e contra o que era considerada uma má educação, oferecida pelas famílias.
Um diferencial a merecer destaque foi o irromper da psicologia, que se apresentava como uma teoria científica sobre as crianças e como uma ciência capaz de observar, medir, classificar e produzir seriações (Vidal, 2003; Ferreira, 2000; Warde, 1997). Como parte do debate pedagógico brasileiro, desde a última década do século XIX, essas representações passam a justificar a necessidade de produção de padrões de normalidade. A escola das crianças pequenas, atenta a seus corpos, configurava-se entre a prevenção e a antecipação dos processos de desenvolvimento infantil. Um espaço “naturalmente” adaptado à educação do corpo, o “jardim de infância”, e um tempo escolar esquadrinhado por prescrições médicas e psicológicas. Também uma educação dos sentidos, fortemente marcada por um arbítrio cultural e pela trama da civilização das emoções e das sensibilidades, onde o brincar torna-se recurso de “jardinagem”; jogo útil, orientando uma política disciplinar e sendo por ela orientado.
As creches, as escolas maternais e os jardins de infância começam a ganhar, nesse contexto, contornos de instituições escolares e sua afirmação guardaria relação com as propostas para a “educação das crianças das classes populares” (Kuhlmann, 2003). Como em outras partes do mundo, a produção discursiva sobre as mulheres pobres e trabalhadoras, contribuiu para a afirmação da escola infantil como uma necessidade social. A estes aspectos, outros foram agregados, especialmente aqueles relativos ao cultivo dos bons hábitos e à formação do caráter, frequentemente representados como ausentes nas classes populares. Nas duas primeiras décadas do século XX, os congressos de higiene e aqueles destinados ao debate sobre a proteção à infância, reuniram médicos e educadores para a tessitura de políticas educativas e sanitárias. Como ressaltou, em 1913, o médico baiano Alfredo Ferreira Magalhães, “a higiene e a educação, solidárias uma com a outra, são as fontes verdadeiras da civilização e do bem-estar”, acrescentando ainda que tal premissa não poderia desconsiderar o “momento evolutivo” no qual se encontravam as contribuições das ciências da educação (Magalhães apud Kuhlmann, 2003: 479).
A década de 1920 foi marcada por um conjunto significativo de mudanças nas esferas política, cultural e educacional, que demandaram, por diferentes caminhos, rupturas com uma visão tradicional de sociedade. Nesse contexto, o debate educacional também foi intensificado. Os discursos, baseados em pressupostos científicos e racionais, exaltavam os benefícios da modernidade e apostavam na escola como uma instituição central para a materialização da sociedade pretendida, inscrita nos processos de urbanização e industrialização. Nas várias reformas do ensino, levadas a termo em muitos estados da federação, a escola foi representada como um ambiente reeducador de valores e costumes e como instância formadora do caráter nacional. Aos poucos, o argumento de que a escola infantil era destinada aos pobres foi eclipsado pela aposta regeneradora que deveria ser estendida a todos os brasileiros. Tal renovação pedagógica baseou-se na passagem de uma escola tradicional e conservadora para uma escola nova e ativa, ancorada na ciência e voltada para “uma reforma da sociedade pela reforma do homem” (Carvalho, 2003: 241).
Minas Gerais nas décadas de 1920 e 1930: reformar o ensino e prescrever práticas para a educação do corpo infantil
Um ajuste na lente de observação nos permite afirmar que, no Estado de Minas Gerais, as mudanças culturais que sustentaram a Reforma do Ensino Primário de 1927, empreendida pelo então Secretário do Interior, Francisco Campos, fizeram contrastar a modernidade pedagógica anunciada pelo movimento escolanovista com os valores e tradições locais . Construindo contornos para escolarizar uma modelagem para a civilidade pueril, educadores mineiros mobilizaram esforços na institucionalização de uma escola mais ativa e renovada. Muitos foram os saberes e as práticas estabelecidas para afirmar a educabilidade dos corpos das crianças: trabalhos manuais, desenho, canto, higiene e educação física. Estes temas foram debatidos por comissões que integraram o Congresso de Instrução Primária, considerado preparatório para a referida Reforma do Ensino, e reverberaram no texto legal.
Vale notar que algumas formas de compreensão e tratamento do corpo infantil já se faziam presentes em um modelo escolar anterior àquele pretendido pela reforma educacional de 1927. Tarcísio Mauro Vago (2002), ao investigar uma nova cultura escolar na capital mineira quando da Reforma João Pinheiro, em 1906, revela como os corpos das crianças foram “cultivados” a partir de diferentes dispositivos escolares.
[...] preparar o lugar; desinfetar, limpar e inspecionar os corpos das crianças consideradas regeneráveis; renegar os corpos de outras, tidas por incapacitadas; impor hábitos higiênicos; disciplinar os bárbaros; estabelecer códigos de controle e punição; refinar sensibilidades, lapidando sentimentos, arrancando vícios, implantando civilidade, afinando a voz, ensinando o gosto, educando as mãos (Vago, 2002: 214-215).
Em Belo Horizonte, na primeira escola infantil da capital mineira, fundada em 1908 e destinada às crianças de 04 a 06 anos, os exercícios físicos cumpriam uma finalidade ortopédica, constituindo uma corporeidade marcada pela retidão, pela ordem, pela individualização (Vago, 2002). Iniciava-se o enraizamento da Gymnastica (figuras 1 e 2) como prática metódica e racional.
Se tal intervenção no e pelo corpo das crianças fazia-se presente no início do século XX em Minas Gerais, a renovação pedagógica das décadas de 20 e 30 convidou à (re)definição do lugar do corpo no âmbito da escolarização das crianças. Os exercícios físicos experimentaram permanências e deslocamentos em relação à Gymnastica. Tomamos para análise um artigo da Revista do Ensino de Minas Gerais que evidenciava alterações no trato com o corpo das crianças e anunciava inovações para a prática das professoras na passagem de uma cultura escolar a outra. Embora possam ser fugidias, algumas representações exprimem mudanças na educação do corpo infantil (figura 3). No início da década de 1930, a centralidade da ação educativa não parece mais estar na retidão, na individualização e na apatia. Novos saberes e sensibilidades passavam a justificar a presença de exercícios físicos para crianças na escola. Mais livres, mais expressivos, mais flexíveis... Em um “jardim de infância”, pequenas “árvores que balançavam”.
Em 1931, a Revista doEnsino publicou o artigo intitulado “Educação Física - Ginástica historiada (1º ano primário e classes infantis)”, de autoria da professora Guiomar Meirelles. Na análise desta prescrição, torna-se importante ressaltar que a Revista se configurava como uma das estratégias do governo mineiro na afirmação da nova Educação Física. Não menos relevante é lembrar que a Reforma do Ensino Primário, levada a termo em 1927, estabeleceu um órgão específico para ser a voz autorizada sobre o que e como ensinar essa nova disciplina nas escolas - a Inspetoria de Educação Física de Minas Gerais. Nesse lugar institucional, responsável por traçar as políticas para o setor, a professora Guiomar Meirelles era uma das auxiliares técnicas e participou da renovação pedagógica que se pretendia nas escolas infantis mineiras.
O artigo citado expressa a preocupação com as escolas destinadas às crianças de 04 a 06 anos e indica práticas pedagógicas afinadas como a nova política educacional. Dirigido às professoras, o texto é estruturado em seis páginas da Revista, sendo a primeira composta por elementos teóricos e as demais destinadas aos exemplos práticos. Guiomar Meirelles inicia o artigo explicitando o que era a atividade: “A ginástica historiada consiste em lições divertidas, graduadas e metódicas, reclamando de cada criança um apelo à imaginação, para execução de movimentos sugeridos pelo desenrolar dos fatos contados pela professora” (Revista do Ensino, n. 56-58, abril/junho de 1931, p. 151). A autora faz apontamentos no sentido de organizar sistematicamente o exercício. Essa atividade deveria ser desenvolvida em círculo ou semicírculo e poderia ser utilizada nas turmas do primeiro ano primário e nas classes infantis. Enfatiza, ainda, que não era necessário adotar as vozes de comando utilizadas nas “lições de ginástica propriamente ditas”, pois os alunos poderiam expressar-se individualmente, sem necessidade da uniformidade e da sincronia na realização do movimento corporal. Além dessa direção técnica para o trabalho docente, a professora Guiomar ainda tece outras orientações, no sentido de organizar metodicamente a ginástica historiada:
Histórias e fatos da vida diária, convenientemente selecionados, dão margem a essas atividades, devendo a professora ter o tacto suficiente para, no correr dos acontecimentos, fazer trabalhar a imaginação e os músculos da criança, numa progressão lenta e crescente, evitando a fadiga física e cerebral, assim como situações que despertem medo, represálias covardes etc., - Para evitar a fadiga, um exercício de braço, por exemplo, será alternado com um outro de pernas ou tronco, um exercício respiratório seguirá sempre aos saltos e corridas, etc., tendo sempre as crianças a impressão de que estão a brincar (Revista do Ensino, n. 56, 57, 58, abril/junho de 1931, p. 151) .
No artigo são apresentadas duas histórias que poderiam servir de exemplo ao professorado. A descrição é simples, indicando que a narrativa seria acompanhada de movimentos corporais a serem executados pelas crianças. Exercícios de tronco, marchas, caminhada com passos largos e na ponta dos pés, saltitos, equilíbrio, saltos, corridas. Em excerto retirado de uma das histórias, sobre “um passeio no parque”, torna-se evidente não só a maneira como essas práticas deveriam ser desenvolvidas, como também podemos conhecer a sutileza das significações postas no modo de narrar:
[...] Estavam descansando (sentados), quando viram o sacristão que tocava o sino da igreja. Levantaram-se e foram vê-lo, (movimento imitativo com pensão do tronco á frente e para os lados). Depois continuaram o caminho, (marcha). No Parque viram logo muitas árvores, altas muito altas (equilíbrio). Um vento forte soprava. E as árvores balançavam, balançavam... (exercício de tronco). Os meninos continuaram um lindo passeio pelo Parque! Havia uns espinhos no caminho e eles tiveram que continuar nas pontas dos pés (Revista do Ensino, n. 56, 57, 58, abril/junho de 1931, p. 152, grifos da autora).
A Igreja, a natureza, o descanso ou os espinhos no caminho são alguns dos signos representados e que, por meio do realizar corporal, as crianças desde bem pequenas deveriam aprender a conhecer. Ou seja, a expressividade “livre” obedeceria a um conjunto de códigos e sistemas sociais legitimados pela ação pedagógica da escola e “convenientemente selecionados” e assim, a pretendida reforma operava, quando muito, uma reacomodação de costumes.
Na descrição didática, tudo era bem explicado textualmente e ilustrado por fotografias, como mostram as figuras 3 e 4. Os meninos, as meninas e a professora realizariam o exercício à sua maneira. Uns com as pernas unidas, outros com elas afastadas, alguns flexionam os joelhos ou os cotovelos, outros os mantêm estendidos. A posição da cabeça também é variada. Para a ginástica historiada interessava uma expressão corporal personalizada pelas crianças, não sem um texto produzido pelos adultos.
Embora neste artigo sejam apresentados modelos, o propósito era estimular as professoras a produzirem maneiras próprias para ministrar a ginástica. Referindo-se aos exemplos descritos no artigo, Guiomar Meirelles enfatizava: “que as nossas professoras não se escravizem a êles; mas, inspiradas nas ideias gerais, criem, modifiquem, ampliem e renovem, incluindo em seus planos novos gestos, novas combinações, cantos, etc., dando livre curso à sua fantasia e imaginação” (Revista do Ensino, n. 56, 57, 58, abril/junho de 1931, p. 151-152). Resta interrogar quais os limites possíveis para a inventividade das professoras, bem como das pequenas crianças.
Se a escola parecia abandonar o primado da ortopedia dos corpos, seu papel disciplinador ganhava novos contornos: os professores deveriam guiar as condutas, evitando, porém, as escolhas caprichosas que significassem dispêndios desnecessários de energia. A “eficiência era o novo nome da disciplina. E da liberdade” (Carvalho, 1997:309). Tal modelagem disciplinar guardava estreita relação com o que era também preconizado para as escolas infantis. No citado Congresso de Instrução Primária, de 1927, a comissão responsável por traçar diretrizes para esse nível de escolaridade destacou os meios educativos que deveriam ser colocados em prática para a formação do espírito das crianças:
I - Deve evitar o tedio e a ociosidade na classe. II - Desperte nas creanças o bom humor e a boa vontade, condições precípuas de toda educação. III - Faça os meninos brincar com os coleguinhas, trabalhe com elles, ajudando-se mutuamente pois, deste modo, apprenderão a ser sociaveis. IV - Ensine-lhes os primeiros principios de moral por meio de historietas verdadeiras ou imaginaveis, fabulas, contos de fadas, apologo etc., de que muito gostam. V - Faça com que reine, entre as creanças, a maior camaradagem. Pelo instincto de imitação, os menos bons querem seguir o exemplo dos melhores (Jornal Minas Geraes, 16 e 17 de maio de 1927, p. 11).
A ginástica participou dessa construção. Incorporou o universo das crianças por meio das histórias infantis e possibilitou a expressão dos instintos, campo fértil para educar a natureza dos pequenos, embora a educação do corpo nas escolas infantis comportasse uma dimensão alargada e cada vez mais sistematizada. Quando indagada sobre “a extensão que se deve dar ao ensino oral e qual a importância que se deve ligar ao canto, desenho, jogos e mais exercícios”, a comissão de escolas infantis no Congresso de Instrução Primária assim se pronunciou:
I- O ensino oral deve ser reduzido ao minimo, afim de não fatigar o espirito da creança, para que ella possa melhor desenvolver as suas faculdades de observação e expressão;
II- Deverá ser ministrado de preferencia ás primeiras horas, illustrado com a apresentação das cousas naturaes e na falta dessas com figuras coloridas, desenhos, quadros, etc., de modo, porém, simples, claro, breve e interessante. III- O canto é a vida das escolas infantis, e dada a sua importancia exige uma professora especializada para ministral-o. IV- Ao desenho deve-se dar a maximaimportancia, fazendo-o occupar um logar de honra nas escolas infantis. V- Os jogos e mais exercicios são tão importantes que a elles acha-se subordinada grande parte do programma infantil (Jornal Minas Geraes, 16 e 17 de maio de 1927, p. 11-12).
No mesmo Congresso, asseverava-se que o Canto seria uma possibilidade para refinar as sensibilidades infantis, cabendo ao corpo ser receptor e condutor de um conhecimento sensível.
Não nos esqueçamos tambem do beneficoeffeito dos exercicios do canto para a saude e para a robustez dos meninos. Não ha negar que o canto é uma excellentegymnastica para os orgãosrespiratorios: dilata a caixa thoraxica, fortalece os pulmões e os orgãosvocaes, interessa e movimenta os musculos respiratórios, concorrendo, portanto, grandemente para a saude em geral (Jornal Minas Geraes, 18 de maio de 1927, p. 9).
Já o ensino do Desenho foi “considerado como meio educativo, visando desenvolver as faculdades da imaginação, observação e a educação da vista e das mãos” (Revista do Ensino, n. 22, ano III, agosto/setembro de 1927, p. 490). Também os jogos foram amplamente recomendados para a educação das crianças pequenas sob o apelo feito à natureza infantil, o argumento psicológico de que a criança revela e forma sua personalidade por meio do jogo, o entendimento de que, por meio da experiência de jogar, a criança se prepara para a vida adulta e incorpora atributos necessários para a formação do homem social.Todos esses dispositivos atendiam à racionalização da sensibilidade, da criatividade e da recreação, atualizando assim as expectativas relativas à civilidade.
Para seguir perseguindo os fios dessa trama
Ao sublinhar a experiência educacional de Minas Gerais como situação singular, interessou-nos perceber fragmentos de um processo mais amplo relativo à educação corporal e à educabilidade da criança pequena no Brasil. Liberdade regrada e combinada com autogoverno, eficiência para uma vida social, brincar para incorporar princípios e valores são alguns dos elementos presentes na cena mineira e que também estavam nos projetos educativos de outros estados brasileiros, no constante diálogo com as novidades pedagógicas em circulação. Legitimar uma escola para a criança pequena implicou traduzir em rotinas, conteúdos, tempos e espaços, uma variedade de códigos de civilidade que, em sua maioria incidiam sobre o corpo. Perseguindo alguns rastros, identificamos elementos de conexão entre a moderna escola infantil das primeiras décadas do século XX e o complexo sistema de representações que, nos últimos séculos, modificou sensibilidades e experiências em relação à infância.
Aquela “cultura corporal” anunciada por Erasmo de Roterdã como um dos elementos-chave da “Civilidade Pueril” tornou-se, nesse longo percurso, tarefa escolar e sempre imersa na luta de representações acerca dos sentidos ético-políticos atribuídos ao corpo e à infância em cada época. Segundo Jacques Gelis (2009:318), “uma profunda convulsão nas crenças e nos sistemas de pensamento, como o indício de uma mutação sem precedentes na atitude ocidental com relação à vida e ao corpo”. A responsabilidade com a educação da criança pequena seguiria se ampliando, demarcando sua condição de sujeito civilizado e educado. Parece-nos que tal operação, que consolida a individuação das crianças, não teria sido possível sem a escola.