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Educación Física y Ciencia

versión On-line ISSN 2314-2561

Educ. fís. cienc. vol.16 no.1 Ensenada jun. 2014

 

ARTICULOS

Sobre combates e defesas do corpo na modernidade líquida: a radicalização dos conselhos privatizados para o indivíduo saudável1

On Fights and Defenses Regarding the Body in Liquid Modernity: the Radicalization of Privatized Advice for Healthy Individual

Ivan Marcelo Gomes(*)2 ; Alexandre Fernandez Vaz(**)3 ; Selvino José Assmann(***)4

(*)Universidade Federal do Espírito Santo (Brasil)
ivanmgomes@hotmail.com

(**)Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil)
alexfvaz@uol.com.br

(***)Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil)
selvinoassmann@gmail.com

 


Resumo

Esse texto integra uma pesquisa mais ampla que se ocupou em discutir a elaboração de discursos sobre a vida saudável na modernidade. A partir da sociologia de Zygmunt Bauman procuramos interpretar como as preocupações com a saúde e os cuidados com o corpo são difundidos na sociedade contemporânea. O argumento central é o de que nestas demandas existe uma intersecção entre pretensões científicas e uma cruzada em nome de um estilo de vida "correto".

Palavras-chave: Modernidade; Corpo; Saúde.

Abstract

This text is part of a broader study addressing the development of discourses on healthy living in modernity. Based on Zygmunt Bauman's sociology, we aim at interpreting how concerns about health and body care are widespread in contemporary society. The central argument in this paper is that there is, in these demands, an intersection of scientific pretensions and a crusade in the name of a "correct" lifestyle.

Keywords: Modernity; Body; Health.


Introdução

A discussão abordada neste texto compõe parte da construção teórica do trabalho de tese de doutorado intitulado "Conselheiros modernos: propostas para a educação do indivíduo saudável"5. Na pesquisa, abordamos propostas que enfatizam a qualidade de vida, o bem-estar e o estilo de vida ativo e que são divulgadas no espaço midiático e universitário. Na abordagem conceitual desenvolvida, optamos por ressaltar como as preocupações com a formação de corpos saudáveis percorrem o período moderno, conectando as mudanças vivenciadas em tal época com as possibilidades estratégicas de intervenção estatal e de cultivo individual.

A modernidade foi analisada a partir do que Bauman (2001) aponta como um primeiro momento enfaticamente voltado para a produção (sob a égide da ética do trabalho) e em um segundo momento - vivenciado atualmente - em que se prioriza a capacidade de consumo. Em outros termos, o movimento de uma sociedade de produtores para uma sociedade de consumidores. De uma modernidade sólida para a modernidade líquida.

As formas de constituição do indivíduo saudável na solidez moderna têm na presença estatal um elemento imprescindível das intervenções avalizadas cientificamente na formação de um corpo produtivo. O poder sobre a vida atuava e disponibilizava ações que intentavam apontar um caminho comum, tendo o Estado e seus legisladores como guia, em uma tentativa de imortalização da espécie. Desta maneira, corpos saudáveis possibilitariam a manutenção econômica e o aprimoramento biológico da família e da nação, dando um sentido para as estratégias de ação individual, o que Bauman (2000) denominou como "estratégias hetero-autônomas", pois mesclavam o clamor por liberdade individual e o vínculo como algo que o superava e o amparava.

A preocupação em educar se colocava para os legisladores como uma das tarefas para a obtenção da ordem e, consequentemente, todos os benefícios que tal situação proporcionaria. Por isso a importância das disciplinas - analisadas por Foucault (1996) como uma forma de panopticismo - para os corpos individuais e a importância das biopolíticas como modelos de intervenção nos corpos populacionais.

Esse quadro passa a sofrer transformações com o avanço da sociedade de consumidores. Os conselhos anteriormente orquestrados pelo Estado tornam-se radicalizados, no sentido de sua proliferação de saberes e agentes encarregados desse fenômeno e que não necessariamente se conectam com as ações estatais. Dentro do argumento baumaniano, a liquidez moderna trouxe consigo a privatização da ambivalência. 6

Os novos dispositivos na sociedade de consumidores articulados com inovações tecno-científicas e o declínio da capacidade de controle estatal contribuem para forjar novos ideais de felicidade contemporâneos. Para além dos corpos produtivos da modernidade sólida, evidenciaríamos hoje a estimulação de estar sempre apto para as constantes inovações e os prazeres ainda não vivenciados individualmente.

A liberdade de escolha é ressaltada, mesmo que ela se apresente como uma "benção confusa". As novas e prazerosas sensações estão acompanhadas pela exacerbação do dever pessoal. Os conselhos subsidiados por especialistas potencializam os armamentos na luta cotidiana pelo corpo apto e saudável. Neste sentido, contribuem para que a atualidade se torne terreno fértil para diversas profecias. Os conselhos midiáticos e científicos estão conectados em tal processo. A partir deste aparato conceitual é que analisamos os conselhos e a cruzada em prol da vida saudável. Neste texto, explicitamos como esses conselhos para a vida saudável se radicalizam no atual contexto da modernidade.

A radicalização dos conselhos privatizados

As décadas finais do século XX foram marcadas por modificações em relação à ética do trabalho, consequentemente, ao corpo saudável, produtivo. Referimo-nos, aqui, às mudanças de ênfase na modernidade configurada na passagem de uma sociedade de produtores para uma sociedade de consumidores e que estão relacionadas com os processos de produção e consumo. Tanto em um período (modernidade sólida), quanto em outro (modernidade líquida), esses processos existiram (existem), mas o que muda é a ênfase atribuída nos respectivos momentos. Bauman (1999a), quando se refere à norma da sociedade de consumidores, salienta a vontade e a capacidade de seus membros para desempenhar esse papel e não mais o de produzir e se engajar como mão-de-obra da sociedade.

Tal passagem está conectada, também, à diminuição da capacidade de controle estatal, vinculada à radicalização da globalização e do globalismo (Beck, 1999), ao avanço do discurso neoliberal que iniciará seu apogeu na década de 1980 e a privatização da ambivalência (Bauman, 1999; 2000), bem como o emergir de novos ideais de felicidade (Costa, 2004). O Estado-Nação erigido na modernidade - o grande guia, o Grande Irmão - apresenta uma nova configuração na atualidade. As mudanças na modernidade se demarcam por um deslocamento do controle social, anteriormente exercido com maior preponderância pelo Estado e agora mediado pelo mercado. As próprias exigências relacionadas à saúde não estão vinculadas, necessariamente, a uma disciplina mecanizante com foco exclusivo do trabalho, mas justamente na estimulação de desejos e responsabilidades em um indivíduo também consumidor. Estas mudanças têm como alicerce teórico o discurso neoliberal, que busca se legitimar como uma certeza, um verdadeiro guia na escolha das ações individuais. Bauman (1989, p. 121) explica essa transição da seguinte maneira:

Se, numa vida motivada normativamente pela ética do trabalho, os ganhos materiais eram considerados secundários e instrumentais em relação ao trabalho em si (consistindo essencialmente a sua importância na confirmação da adequação do esforço de trabalho), numa vida guiada pela 'ética do consumo' sucede precisamente o contrário. Aí, o trabalho é (quando muito) instrumental; é nas compensações materiais que se procura e se encontra a realização pessoal, a autonomia e a liberdade [...].

Esse deslocamento do modelo industrial para o de consumo implica na elaboração de novas formas estratégicas de controle e novos desafios para os indivíduos.7 Como já assinalado, a ênfase disciplinar/panóptica evidenciada em diversas instituições da modernidade sólida não deixa de existir, mas, agora, tem a companhia de novos dispositivos da sociedade de consumo.

Este contexto possibilitou a ampliação dos atores envolvidos com a difusão e disponibilização das propostas que compõem os recursos para promoção do corpo saudável. Novos e difusos conselheiros se apresentam no cenário da sociedade de consumo para fazer companhia ao Estado e outras tradicionais instituições. Mais ainda, a primazia que o Estado-Nação possuía se dilui num emaranhado de especialistas da "vida saudável". Novas formas de governo da população e de exigências individuais entram em cena, ressaltando os prazeres e a leveza da sociedade de consumo. Se isso tudo é correto, podemos admitir que novas estratégias das políticas do corpo se estabelecem para a disponibilização de recursos para a formação do indivíduo "apto" aos ideais de consumidor. Ou seja, para além dos corpos produtivos da modernidade sólida,8 evidencia-se hoje a estimulação do "estar sempre pronto" para as constantes inovações e os prazeres ainda não vivenciados individualmente.

Tal característica se materializa nas diversas alternativas disponibilizadas aos consumidores, aspecto enfatizado por Bauman na modernidade líquida, que gera uma corrosiva desesperança existencial que se mostra no enfraquecimento da segurança em função das incessantes opções e nos inerentes riscos envolvidos nas ações humanas (Bauman, 2000). Mas a liberdade de escolha é uma "benção confusa", pois aliada a esses receios também proporciona uma forma de certeza proveniente da aprovação social das opções realizadas no mercado de consumo (Bauman, 1989, p. 100-1). A individualização leva a um número cada vez maior de homens e mulheres uma liberdade até então impensada para experimentar, mas também uma tarefa sem precedentes de enfrentar suas consequências (Bauman, 2001a, p. 63).

O declínio da uniformidade legisladora presente na modernidade sólida conectada à expansão do número de especialistas e conselheiros fortalece a sensação de insegurança. A expansão de dicas e regras sobre como obter felicidade e um corpo saudável, presente entre diversos peritos, amplia essa sensação ao invés de reduzi-la. Costa (2004) entende que a origem dessa forma de desorientação está na redefinição de nossos ideais de felicidade. Para esse autor, o aspecto central do compromisso presente na sociedade de consumidores consiste na forma como ele participa "na gestação, manutenção e reprodução de nossos ideais de eu" (Costa, 2004, p. 163).9

Dentro deste quadro, Bauman comenta o avanço de um tipo de estratégia individual, considerada mais factível em função das mudanças vivenciadas na modernidade: a estratégia autônoma. As preocupações excessivas relacionadas ao corpo na atualidade se vinculam a esse modelo, lembrando que "autônoma" está relacionada aos recursos "[...] de que o ego tem a posse efetiva ou potencial e sob o controle efetivo ou potencial do ego e que não estabelece seus objetivos para além dos limites do ego, do seu imediato Lebensraum [espaço vital] e de sua duração de vida" (Bauman, 2000, p. 49). Os conselhos para a vida saudável, disponibilizados para a escolha do indivíduo, enfatizam um caminho seguro para a longevidade e a felicidade que somente seria solapado pela "negligência do dever pessoal" (Bauman, 2000, p. 50). Além disso, os conselhos especializados atendem a outra necessidade individual na modernidade: agir racionalmente (Bauman, 1999, p. 235). Por isso, não podemos nos surpreender - como salienta o autor - que a sociedade de consumidores se constitua em um paraíso do conselho especializado e da publicidade, tornando-se "[...] terra fértil para profetas, bruxos e mercadores de posições mágicas ou destiladores de pedras filosofais" (Bauman, 2005, p. 56).

Os conselhos midiáticos e científicos desempenham um papel relevante no aparecer corporal. A mídia potencializou a presença do corpo físico na constituição das subjetividades pela propaganda de produtos para o embelezamento e o aperfeiçoamento corporal, bem como "[...] pela identificação de certos predicados corporais ao sucesso social" (Costa, 2004, p. 166). Esse último aspecto é fundamental:

[...] O único item do mundo 'exclusivo' à disposição do indivíduo comum é a imagem do corpo. Possuir um corpo como o dos bem-sucedidos é maneira que a maioria encontrou de aceder imaginariamente a uma condição social da qual está definitivamente excluída, salvo raríssimas exceções. Assim, a corrida pela posse do corpo midiático, o corpo-espetáculo, desviou a atenção do sujeito da vida sentimental para a vida física. Criou-se uma nova educação dos sentidos [...] Cuidar de si deixou de significar, prioritariamente, preservar os costumes e ideais morais burgueses para significar 'cuidar do corpo físico' [...] Estar feliz não se resume mais a se sentir sentimentalmente repleto. Agora é preciso também se sentir corporalmente semelhante aos 'vencedores', aos 'visíveis', aos astros e estrelas midiáticos (Costa, 2004, p. 166).

A liquidez dos conselhos midiáticos estimula os indivíduos a estarem sempre prontos a uma nova excitação dos sentidos. Na linguagem baumaniana, são indivíduos colecionadores de sensações. De forma semelhante, Costa (2004, p. 168) afirma que esta prontidão corporal se conecta à expansão de produtos que dão garantias deste ideal de felicidade, como, por exemplo, os alimentos energéticos e medicamentos estimulantes.

Os conselhos científicos também ilustram esse novo ideal, pois a necessidade do sempre novo, radicalizada na sociedade de consumidores, se retroalimenta com a prática científica que enfatiza a "irrelevância do que passou" (Costa, 2004, p. 169). O mito cientificista substitui as instituições tradicionais10 - vinculadas ao trabalho, à política, à família e à religião - "[...] na tarefa de propor recomendações morais de teor universal" (Costa, 2004, p. 190). Neste sentido, as formas de vida passam por este respaldo científico:

A virtude moral deixou de ser o único padrão de vida reta e justa. Agora, o bom ou o Bem também são definidos pela distância ou proximidade da 'qualidade de vida', que tem como referentes privilegiados o corpo e a espécie. A renaturalização das condutas humanas, todavia, não tenta descartar os antigos valores, e sim retraduzi-los no triunfalismo cientificista [...] Ser jovem, saudável, longevo e atento à forma física tornou-se a regra científica que aprova ou condena outras aspirações à felicidade (Costa, 2004, p. 190).

O aval científico presente nos conselhos e produtos relacionados à saúde corporal proporciona também uma espécie de "bem-estar psicológico do cliente". Esse respaldo imuniza, mesmo que temporariamente, a acusação de uma escolha equivocada, pois sua aquisição e o seu uso tornam-se emblemas de um comportamento racional (Bauman, 1989, p. 105).

O glamour da liberdade individual efetuado nas escolhas11 traz consigo um paradoxo. A liberdade que as escolhas propiciam oferece maior segurança para os indivíduos que a executam quando elas apresentam um respaldo coletivo. Em outros termos, trata-se da autonomia proveniente da heteronomia. Este respaldo é conferido pelo conhecimento científico dos especialistas que se materializa em diversas e, muitas vezes, conflitantes técnicas à disposição do consumidor. Theodore Zeldin (1996, p. 165) acentua esse aumento conflituoso de conselhos e medicamentos disponibilizados modernamente, embora estes não ofereçam a garantia de eliminação dos medos em que estão envolvidos os modernos: "[...] a medicina não pode impedir as pessoas de inventar novos medos". Como mostra Le Breton:

Para orientar uma opção propícia, multiplicam-se os conselhos em revistas especializadas ou não, em obras de vulgarização, onde se estabelecem complacentemente as receitas da felicidade, do repouso e do desempenho. [...] Não se trata mais apenas de uma medicalização do sofrimento existencial, mas também de uma fabricação psicofarmacológica de si, modelação química dos comportamentos e da afetividade que manifestam uma dúvida fundamental com relação ao corpo que convém manter à nossa mercê por meio da molécula apropriada (Le Breton, 2003, p. 65).

Aliada a estas técnicas que incidem diretamente no cotidiano dos indivíduos, ocorre também uma desenfreada produção de conhecimentos sobre a saúde e sobre o homem que diz respeito à espécie, mas que desemboca em novos estímulos para o colecionador de sensações. Da mesma maneira, podemos nos referir ao entusiasmo perante as receitas da "boa vida" interpretadas como "liberdade de escolhas" e "[...] uma vez que é visto como condição de liberdade e não como de opressão, é improvável também que sua expansão encontre séria resistência" (Bauman, 1999, p. 223). Mas o autor alerta:

As receitas para a boa vida e os utensílios que a elas servem têm 'data de validade', mas muitos cairão em desuso bem antes dessa data, apequenados, desvalorizados e destituídos de fascínio pela competição de ofertas 'novas e aperfeiçoadas'. [...] Então é a continuação da corrida, a satisfatória consciência de permanecer na corrida, que se torna o verdadeiro vício - e não algum prêmio à espera dos poucos que cruzam a linha de chegada (Bauman, 2001, p. 86).

Os conselhos (ou seja, as receitas para a vida privada oferecida pelos conselheiros) representam armamentos de uma batalha privatizada contra as impurezas e estranhezas corporais. Como observa Zeldin: "[...] Se os grandes conquistadores têm alguma mensagem para os indivíduos privados, é que quanto mais conquistavam, mais procuravam novos inimigos" (1996, p. 193). O corpo assume o lugar da Nação no sentido de algo a ser defendido. No entanto, diferentemente do Estado-Nação, não existe uma garantia de imortalidade a ser alcançada. A garantia presente na defesa corporal está relacionada mais intensamente com as sensações a serem experimentadas no presente, tendo em vista a certeza da morte, mesmo que o adiamento desta seja uma das tarefas descritas nos manuais à disposição do consumidor. Novamente Bauman (2000, p. 52): "Há portanto uma demanda inexaurível de preocupações alternativas sempre novas, ainda não desacreditadas porque não experimentadas. Todas devem estar, no entanto, ligadas à 'defesa do corpo'".

A defesa do corpo-pátria está conectada com duas características do indivíduo atual: a desconfiança persecutória, quando o outro se torna um observador de nossos desvios bioidentitários e a sensiblerie, na qual a sensibilidade é exacerbada pelos problemas relativos à aparência corporal (Costa, 2004, p. 199). O corpo carrega uma contradição que gera de forma potente as ansiedades individuais, pois ele é instrumento de prazer ao colecionar sensações, mas também local de proteção frente a diversos riscos provenientes dos avanços modernos, conforme é tão alardeado pelos especialistas da saúde (Bauman, 2001a, p. 277). Cabe ressaltar a observação de Zeldin (1996, p. 161), referente à reinvenção humana de novos medos: "[...] Os civilizados desenvolveram, nesse ínterim, com ajuda da literatura e medicina, espécies ainda mais sutis de desconforto, uma consciência mais aguda de suas insuficiências, medo do fracasso tanto quanto do êxito, refinamentos na arte da autotortura."

O emaranhado de conselhos sobre o que deve ser feito propicia que a identificação de estranhos e anormais também se dissemine, permitindo, assim, que os desvios possam ser localizados em qualquer indivíduo, mesmo que as tentativas de estabelecer uma situação mais ordeira se justifiquem como medidas preventivas para sanar um problema que poderia se constituir futuramente. Desta forma, os cuidados corporais para manter a boa saúde são percebidos, de maneira geral, em função da segurança pública. Os intermináveis apelos contra o tabagismo e a obesidade subsidiados pelo saber especializado são rotineiramente justificados em prol da diminuição dos gastos públicos e dos inconvenientes gerados por esses desviantes em termos sociais.

As mudanças que vêm ocorrendo sobre as noções de saúde no cenário atual vislumbram o corpo como algo palpável em comparação com as grandes questões coletivas e normatizadoras da modernidade sólida, ou como nas palavras de Vigarello: "O ilimitado do corpo substitui outros ilimitados, hoje mais discretos" (apud Sant'Anna, 2001, p. 28). O corpo seria um aspecto pelo qual cada indivíduo pode ser responsabilizado em termos de suas ações, como também pela busca em fazer algo por ele, ou seja, protegê-lo ou minimizar os riscos que "ele" venha a enfrentar. Este aspecto também é abordado por Le Breton:

A individualização crescente de nossas sociedades ocidentais modificou em profundidade a atitude coletiva em respeito a ele [o corpo]. O indivíduo torna-se a principal fonte de escolha e de valores que ele extrai mais da atmosfera da época do que da fidelidade ao peso das regularidades sociais; hoje ele é relativamente autônomo diante das inúmeras propostas da sociedade. Isolado estruturalmente pelo declínio dos valores coletivos do qual é ao mesmo tempo beneficiário e vítima, o indivíduo busca, em sua esfera privada, o que não alcança mais na sociabilidade comum. Ao alcance da mão de certa forma, o indivíduo descobre, por meio de seu corpo, uma forma possível de transcendência pessoal e de contato [...] (Le Breton, 2003, p. 53).

A imagem do corpo não enfatiza a segurança da ordem coletiva, mas a incerteza das liberdades individuais. O impacto da normalização que o corpo sofreu na sociedade de produtores passa, nesse momento, pela tentativa de construção de estilos de vida diferenciados, uma consciência de si estilizada, auto-expressão, individualidade, como nas palavras de Mike Featherstone12, adequados as constantes mutações que o mercado proporciona (Bauman, 2001; Giddens, 1997; Giddens, 1993).

Ao indivíduo pouco resta de determinadas certezas na busca por uma vida saudável prevista na modernidade sólida. Agora, o que é saudável depende dos constantes aconselhamentos provenientes dos especialistas atrelados à dinamicidade da produção do conhecimento e à criação de necessidades. Um exemplo deste aspecto está nas "[...] revistas, principalmente as femininas, [que] são verdadeiros manuais de orientação da vida diária, ao fornecerem conselhos e dicas, o que explica, em boa parte, seu sucesso [...]" (Castro, 2003, p. 15). Desta forma, os indivíduos se sentem em um estado inquietante em relação a sua saúde. Algo que Sant'Anna define como uma forma de imperativo da livre escolha que denota um senso de civilidade aos seus portadores (2003, p. 25). A estranheza na saúde, que era um alvo coletivo e determinado pelo Estado é, neste momento, uma meticulosa análise individual sobre o corpo, propiciada pelas tecnologias disponíveis que postulam garantir o prolongamento da saúde (Bauman, 1999).

Essas técnicas/dispositivos articulam longevidade e juventude, visto que a "[...] Conservação [da juventude] antes concebida como virtude ou vício, hoje [é] transformada em objeto de consumo (diet ou light), através da medicina, da higiene e das técnicas de embelezamento" (Sant'Anna, 2003, p. 27). Um dos apelos mais insistentes para a conservação da juventude vincula-se à prática da atividade física (Castro, 2003, p. 102). Neste mesmo sentido,

Como nossos corpos são efeitos dos discursos que dão consistência simbólica à vida social, a ânsia contemporânea pela eterna juventude produziu, de fato, corpos que permanecem jovens por muito mais tempo. A tecnologia, a medicina, a boa alimentação, os manuais da vida saudável, tudo isso contribui para o rejuvenescimento dos corpos; mas o apelo social para que permaneçamos jovens e a difusão de um 'estilo jovem' de vida para todas as faixas etárias têm mais efeito sobre os corpos do que todas as vitaminas e academias de cultura física (Kehl, 2003, p. 257-8).

Tais escolhas perante os apelos são testes diários que os indivíduos realizam para provar se devem ou não ser depositados nos lixos da sociedade de consumo que exacerba a busca pelo belo, que pode ser traduzido como um corpo apto a se tornar saudável. A diferença em relação a outros períodos é que a beleza também se enquadra neste contexto de mobilidade. O belo não é um ponto fixo; desta maneira, o gosto e o conhecimento adquiridos não são guias seguros neste tipo de cultura que preza pelo incessante cultivo do desejo. Ficar atento ao que é considerado belo tornou-se uma necessidade corriqueira para o consumidor no mercado cotidiano de corpos, visto que o feio tem como destino o depósito de lixo. Ao referir-se a essa questão, Bauman relembra a situação individual atual: "A sociedade de consumidores é uma sociedade de mercado. Todos nos encontramos totalmente dentro dele, e ora somos consumidores, ora mercadorias" (Bauman, 2005, p. 151). Sant'Anna traz uma imagem interessante a este respeito:

A multiplicação de imagens sobre corpos saudáveis e sempre belos é bem mais rápida do que a produção real de saúde e beleza no cotidiano. A corrida rumo à juventude é hoje uma maratona que alcança jovens e idosos de diversas classes sociais, mas estes não conseguem ver o pódio, porque se trata de uma corrida infinita. Ignoram quem compete com quem, talvez porque a principal competição se passa dentro de cada um, entre o corpo que se é e o ideal de boa forma com que se sonha (Sant'Anna, 2003, p. 70).

Para além de ser vigiado, vigiar. Vigiar como um dever pessoal é a característica do poder sinóptico, descrito por Thomas Mathiesen (Bauman, 2000, p. 77). Os indivíduos buscam exemplos que possam mirar e que contribuam na construção do seu estilo de vida. Bauman (2000, p. 77) realça que:

A maioria não tem outra opção senão vigiar; com as fontes de virtudes públicas quase inexistentes, só se pode procurar uma razão para os esforços vitais nos exemplos disponíveis de bravura pessoal e recompensas para tal bravura. De modo que vigia de boa vontade, com gosto, e pede em alto e bom som mais coisas para vigiar [...] o Sinóptico reflete o ato de desaparecimento do público, a invasão da esfera pública pela privada, sua conquista, ocupação e paulatina mas inexorável colonização. Inverteram-se as pressões sobre a linha de divisão/conexão entre o público e o privado.

O olhar atento ao que acontece no mundo das celebridades ilustra o modelo sinóptico. A tentativa de construção de estilos de vida a partir de roteiros descritos por pessoas famosas é um foco de vigilância privilegiado na espetacularização atual. Como esses modelos são geralmente inacessíveis, sobra a imitação do que é mais disponível, a aparência corporal. Segundo Costa: "Daí nasce a obsessão pelo corpo-espetacular" (2004, p. 230). O autor é incisivo quando diz que:

O 'cada um vive como quer' da celebridade não é o coroamento de vidas autônomas; são as crenças que transitam nos salões da moda. [...] Do uso de drogas ilegais até os ascetismos espirituais, tudo é aceito do dia para a noite e tudo é dispensado com um estalar de dedos. O importante não é pensar no que se faz ou se acredita, mas a leveza, o alto astral (2004, p. 171).

O modelo sinóptico utilizado por Bauman ilustra os limites institucionais do modelo disciplinar e a ampliação de novos e mais "leves" modelos de conduta. Um dos exemplos deste modelo sinóptico encontra-se em revistas que focalizam o público feminino. Castro, em estudo que teve como objeto as revistas nacionais "Boa Forma" e "Corpo a Corpo", salienta esta função, como podemos perceber em uma das entrevistas coletadas em sua pesquisa:

'A grande expectativa, o grande desejo das leitoras hoje é que a revista se humanize um pouco mais, e que mostre gente que tem os mesmos problemas que elas [leitoras], que tem o mesmo estilo de vida que elas... pra se espelharem, não se sentirem tão sozinhas, e sentirem que têm uma certa companhia, pra tentar resolver esses problemas' (apud Castro, 2003, p. 57).

A questão que não é levantada pela entrevistada é que apesar desta "companhia", as ações, com os sucessos e os insucessos possíveis, terão que ser enfrentadas individualmente. Ao término da mensagem da revista, a companhia só poderá ser restabelecida com a aquisição de uma nova revista ou de outro recurso privatizado.

Essa vigilância aliada ao imperativo das escolhas é alardeada como liberdade. Para Bauman, essa individualidade privatizada significa uma antiliberdade. A perspectiva está presente na busca dos consumidores para colecionar sensações episódicas: "Deixar o local livre e pronto para outro episódio de busca de sensações é talvez a única consideração autolimitadora que o código recomenda [...]" (Bauman, 2000, p. 83). Costa (2004, p. 197) reforça a mesma perspectiva quando retrata algumas contradições de tais discursos, como esta: "Quanto mais falamos em minimizar o sofrimento e otimizar o prazer, mais nos privamos de prazer e mais nos atormentamos com os sofrimentos que não podemos evitar." Aliando-se a esse argumento, a educação do corpo saudável rompe com a supremacia da uniformidade do corpo produtivo e prioriza o ideal de boa forma, da aptidão. O padrão saudável dilui-se em esforços constantes para se adequar aos conselhos disponibilizados aos indivíduos. Como mostra o autor, o ideal de boa forma está vinculado ao inesperado, ao desconhecido, pois a "saúde afirma uniformidade, enquanto a boa forma ressalta a diferença [...]" (Bauman, 2000, p. 83).

Considerações paradoxais

Neste texto enfatizamos aspectos que propiciam formas de controle sobre a vida e que foram tematizados a partir de reflexões sobre os cuidados com a saúde e o corpo. Nesta direção e como síntese dos argumentos que arregimentamos, vimos que o corpo passa a se constituir numa batalha privatizada contra as impurezas e estranhezas que poderão adentrá-lo. A propagação de conselhos faz com que uma vigilância minuciosa se estabeleça. Vigiar o corpo, mas também vigiar os modelos oferecidos. Em termos conceituais, poderíamos dizer que ao panopticismo junta-se o sinopticismo. Ao abafamento das ambivalências propiciado pela normalização moderna, conecta-se a caoticidade da vida líquida. Sendo assim, os prazeres disponibilizados trazem conjuntamente os medos e as estratégias para extirpá-los.

Retomando Bauman, podemos argumentar que a novidade constantemente disponibilizada não se desvencilha do lixo incessantemente criado. O refugo não se dirige somente aos "inimigos públicos" da ordem estatal, mas enfaticamente aos refugos corporais enfrentados individualmente. Um descarte corporal como promessa de felicidade de uma vida saudável.

Os riscos inerentes às liberdades aclamadas e, ainda, a impossibilidade de ficar ileso a aspectos sistêmicos que podem nos alcançar, também estimulam o discurso da prevenção contra perigos e medos contemporâneos. A probabilidade de se tornar um corpo inapto e indesejável socialmente amplia as inseguranças e os medos. Os riscos privatizados potencializam a responsabilização individual. Os conselhos contemporâneos para a vida saudável estão vinculados a este temor, pois tanto subsidiam e oferecem soluções, como também lembram cotidianamente que novos riscos estão surgindo.

No entanto, os argumentos que procuramos desenvolver na companhia da sociologia baumaniana não se restringem à mera passividade no que diz respeito à assimilação dos conselhos pelos indivíduos contemporâneos. Aparentemente se estabelece um paradoxo, pois na construção teórica de Bauman a ação social não é descartada. Assim, o declínio da ancoragem estatal no que se refere a processos regulatórios e aos diferenciados modos de agir sobre a conduta individual permitem pensar sobre a ambivalência presente nos cuidados corporais e que não limitam os indivíduos a uma mera passividade em função das coerções advindas de diversas instâncias sociais. Os diferentes aparatos que emergem no campo social passam a estabelecer uma relação de articulação e tensão com o Estado.

Bauman, em sua crítica à sociedade moderna, apresenta - dentre outros argumentos - uma compreensão de cultura como um fenômeno multifacetado, que possibilita novos olhares sobre os fenômenos abordados.13 As práticas culturais são percebidas como algo ambivalente e que transbordam "o isto ou aquilo", pois são analisadas como a simultaneidade do "isto e aquilo". Para o autor, "A cultura não é uma gaiola nem a chave que a abre. Ou, antes, ela é tanto a gaiola quanto a chave simultaneamente" (Bauman, 1998, p. 175). Nesse sentido, liberdade e submissão são elementos constituintes da condição humana, pois "[...] a liberdade realiza-se na exposição a dependências; a sujeição, no ato da emancipação" (Bauman, 1998, p.175). Consumo e escolhas não significam necessariamente aspectos negativos envolvidos nas práticas humanas.

A crítica baumaniana se concentra nos refugos e nos ideais que majoritariamente cerceiam as condutas na liquidez da alta modernidade, tendo em vista que "na prática pós-moderna [a modernidade líquida], a liberdade se reduz à opção de consumo. Para desfrutá-la, é preciso, antes de mais nada, ser um consumidor" (Bauman, 1999, p. 289). Como diz o autor:

O ímpeto de consumo, exatamente como o impulso de liberdade, torna a própria satisfação impossível. Necessitamos sempre de mais liberdade do que temos - mesmo que a liberdade de que achamos que necessitamos seja liberdade para limitar e confinar a liberdade atual. A liberdade é sempre um postulado e expressa-se numa constante reprodução e reaguçamento de sua força postulativa. É nessa abertura em relação ao futuro, na ultrapassagem de toda situação encontrada e preparada de antemão ou recém-estabelecida, nesse entrelaçamento de sonho e do horror da satisfação, que se acham as raízes mais profundas do turbulento, refratário e autopropulsor dinamismo da cultura (Bauman, 1998, p. 175-6).

Esse anseio por liberdade, fortalecido pela sensação de ser livre na sociedade de consumidores, não significa submissão perante estratégias e dispositivos que transitam na atualidade. Mas também, não podemos esquecer, como enfatizado anteriormente, que a busca por receitas infalíveis para se alcançar a liberdade e a felicidade geram tormentos aos indivíduos modernos. Como alerta Bauman,

O problema, porém, é que as receitas infalíveis são, para a liberdade, para a responsabilidade e a liberdade responsável, o que a água é para o fogo. Não há coisa alguma como uma prescrição para a liberdade, ainda que sua constante procura dê origem a uma oferta cada vez maior de pessoas que querem fornecê-la [...] (1998, p. 250).

A liberdade humana não pode ser reduzida exclusivamente a soluções biográficas, nem mesmo se limitar a conselhos e produtos comerciais padronizados (Bauman, 1999). A cultura, por mais esforços de planificação e abafamento de ambivalências, mesmo dentro de um contexto de privatização dessas ambivalências, não pode ser compreendida numa lógica linear e monocausal. As ações e limitações decorrentes das práticas culturais extrapolam as tentativas limitantes impostas pelas normatizações institucionais. A ação dentro de determinada estrutura não pode ser descrita a priori tendo em vista que isto resultaria numa imagem deveras submissa das possibilidades individuais. Assim, essas ressalvas finais servem para não demarcarmos com tanta clareza as diferentes possibilidades sobre "o que fazer" com tais conselhos disponibilizados aos indivíduos nos seus cuidados e anseios por um corpo saudável.

Notas

1 Este trabalho foi financiado pelo Programa PICDT/CAPES da Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Brasil e foi desenvolvido no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, com apoio do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea da UFSC/CNPq.

2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal do Espírito Santo/Brasil.

3 Professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina/Brasil; Pesquisador CNPq.

4 Professor dos Programas de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas e em Filosofia - da Universidade Federal de Santa Catarina/Brasil.

5 O texto integral deste trabalho de tese de doutorado está publicado eletronicamente como livro pela editora Thesaurus em parceria com o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (Gomes, 2009).

6 Bauman (1999, p. 207) define a privatização da ambivalência da seguinte forma: "Com nenhum poder terreno decidido a erradicá-la [anteriormente definida como uma tarefa do Estado-Nação], a ambivalência passou da esfera pública à privada. É agora, em larga medida, uma questão pessoal. Como tantos outros problemas sociais globais, este deve agora ser atacado individualmente e resolvido, se o for, com meios privados. A obtenção de clareza de propósito e sentido é uma tarefa individual e uma responsabilidade pessoal. O esforço é pessoal. E igualmente o fracasso do esforço. E a culpa pelo fracasso. E a consequente sensação de culpa".

7 Um dos aspectos desta transição pode ser exemplificado com a questão do trabalho. Frédéric Vandenbergue diz que "[...] Se as próprias taxas de crescimento que podem ser asseguradas pela contínua reprodução expansiva do capital são incertas, aquelas que produziriam o pleno emprego são então completamente incertas, o que é agravado pelo fato de que, mesmo se a estratégia de geração de empregos através do crescimento fosse realista, ela iria rapidamente confrontar-se com limites ecológicos. Além disso, subjetivamente, o trabalho está perdendo seu papel subjetivo como a força motivacional central na atividade dos trabalhadores. Em relação a outras esferas da vida, o trabalho foi 'descentrado'. A ética do trabalho está em declínio, o pós-materialismo em ascensão e os indivíduos procuram e encontram sentido fora da esfera do emprego [...]" (Vandenbergue, 2004, p. 107).

8 Sobre este aspecto, para efeito ilustrativo, apresentaremos um trecho de uma entrevista concedida por um sindicalista francês a Pierre Bourdieu e Pascal Basse: "Nossos pais, como falavam nossos pais, quando eu tinha 14 anos, como eles falavam: 'você não foi bem na escola, você vai para a fábrica'. Nossos pais falavam assim. Por que a gente ia para a fábrica? Porque sabíamos que havia admissão praticamente todos os anos, ingressavam 300 ou 400 pessoas. Não havia problema. Mas agora, os pais não podem mais dizer: 'Você vai para a fábrica', não há mais fábrica" (Bourdieu, 1999, p. 365).

9 Para Costa, três eventos socioculturais condicionam a apropriação emocional dos objetos: "a mudança na natureza do trabalho, as novas percepções das imagens do corpo e o enfraquecimento moral da autoridade. A primeira concerne ao aparecer social do sujeito, a segunda, ao aparecer corporal e a terceira, ao aparecer moral" (2004, p. 163).

10 Costa, aproximando-se da abordagem de Bauman, não sugere a incapacidade normativa das instituições tradicionais, mas ressalta que elas foram "privatizadas". Nos termos baumanianos, essa discussão refere-se à privatização da ambivalência.

11 Um exemplo desta perspectiva está em Lipovetsky (1989), ao glamourizar o neo-hedonismo e sua "afirmação da individualidade privada": "A aspiração de realizar-se, de gozar imediatamente a existência não é um simples equivalente do adestramento do homo consumans: longe de embrutecer os seres no divertimento programado, a cultura hedonista estimula cada um a tornar-se mais senhor e possuidor de sua própria vida, a autodeterminar-se em suas relações com os outros, a viver mais para si próprio. A absorção eufórica dos modelos dirigidos é só uma das manifestações da moda; do outro lado, há a indeterminação crescente das existências, a fun morality trabalha na afirmação individualista da autonomia privada." (Lipovetsky, 1989, p. 176).

12 Para esse autor, "O corpo, as roupas, o discurso, os entretenimentos de lazer, as preferências de comida e bebida, a casa, o carro, a opção de férias, etc. de uma pessoa são vistos como indicadores de individualidade do gosto e do senso de estilo do proprietário/consumidor." (Featherstone, 1995, p. 119). Feathersone considera que existe atualmente uma estetização da vida cotidiana que se vincula a essa busca por estilos de vida individualizados.

13 Bauman entende as práticas culturais a partir de três aspectos: "1. Não existe 'estrutura' global da cultura 'como um todo'. As culturas, como as sociedades, não são 'totalidades'. Em vez disso, existem processos de estruturação contínuos e perpétuos em diversas áreas e dimensões da prática humana, raramente coordenados e submetidos a um plano abrangente [...] 2. A estrutura que surge das práticas acima [...] não é uma entidade estacionária, mas um processo [...] A cultura não é senão uma atividade perpétua e a 'estrutura' não é senão a constante manipulação de possibilidades [...] 3. [...] A cultura não serve a nenhum propósito, não é uma função de nada, não há nada que ela possa avaliar 'objetivamente' com seu sucesso ou 'correção', não há nada (exceto o seu impulso e dinâmica internos) que lhe possa explicar a presença [...]" (1998, p. 167).

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Recibido: 11-12-2013
Aceptado: 27-12-2013
Publicado: 10-06-2014

 

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