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Educación Física y Ciencia

versión On-line ISSN 2314-2561

Educ. fís. cienc. vol.18 no.1 Ensenada jun. 2016

 

ARTICULOS

 

Os conceitos de "Cultura Esportiva" e "Habitus Esportivo": Distanciamentos e aproximações

Tatiana Sviesk Moreira
Universidade Federal do Paraná, Brasil
tatisviesk@hotmail.com

Silvan Menezes dos Santos
Universidade Federal do Paraná, Brasil
bammenezes90@gmail.com

Marcelo Moraes e Silva
Universidade Federal do Paraná, Brasil
moraes_marc@yahoo.com.br

Doralice Lange de Souza
Universidade Federal do Paraná, Brasil
desouzdo@yahoo.com

Fecha de recibido: 03-11-2015
Fecha de aprobado: 15-05-2016
Fecha de publicado: 30-06-2016


Resumo
: Este trabalho trata de dois conceitos que servem de suporte para estudos sobreesporte: "cultura esportiva" e "habitus esportivo". Visamos identificar pontos de intersecção (proximidades) e distanciamentos entre eles no campo da Educação Física brasileira. Concluímos que cultura esportiva corresponde às dimensões descritivas e estruturais de conformação da cultura com relação ao esporte na contemporaneidade, pautada pelo fenômeno da globalização econômica. Este conceito faz referência à concepção simbólica da cultura, compreendendo os significados e sentidos atribuídos ao fenômeno esportivo e à sua prática. O habitus esportivo, adquirido gradativamente a partir da exposição dos agentes sociais à lógica de funcionamento do campo esportivo, é uma disposição para se pensar, significar e agir neste espaço. Nem tudo o que se produz culturalmente no âmbito esportivo é incorporado na forma de habitus esportivomas todo o habitus se baseia em aspectos da cultura esportiva. A cultura esportiva possui uma pluralidade de manifestações que nem sempre são incorporadas na forma de habitus. Considerando que o aspecto que diferencia a instrumentalização dos conceitos de cultura e habitus esportivo é o foco analítico, o trabalho com ambos de forma complementar se constitui em uma opção teórica e metodológica que contribui para o alargamento dos pontos de análise.

Palavras-chave: Esporte; Cultura; Educação Física; Sociologia; Epistemologia

The concepts of "Sport Culture" and "Sport Habitus": Distancing and approximations

Abstract: This work deals with two concepts which serve as a support for studies on sport: "sport culture" and "sport habitus". We aim to identify points of intersection and differences between them in the Brazilian field of Physical Education. We conclude that sport culture concept corresponds to the descriptive and structural dimensions of culture conformation in relation to sport in contemporary society, marked by the phenomenon of economic globalization. This concept refers to the symbolic conception of culture that understands the meanings and directions assigned to the sport phenomenon and to its practice by different individuals and social groups. The sport habitus gradually acquired through the exposure of social agents to the logic of the sport field, corresponds to a willingness to think, to make sense and to act in this space. Not everything that is culturally produced in sports is incorporated in the form of sport habitus, but the habitus is based on aspects of culture. That is, the sport culture has a plurality of manifestations that are not always incorporated in the form of a habitus. The aspect that differentiates the manipulation of concepts of culture and sport habitus is the analytical focus of each, working with both in a complementary manner might become a theoretical and methodological option that contributes to the enlargement of the analysis.

Keywords: Sport; Culture; Physical Education; Sociology; Epistemology


 

Introdução

O presente trabalho trata de dois conceitos importantes que têm servido de suporte para estudos sobre o esporte: cultura esportiva e habitus esportivo. No sentido de explicitar o alcance desses conceitos, o presente ensaio tem por finalidade identificar pontos de intersecção (proximidades) e distanciamentos entre eles conforme têm sido utilizados no campo da Educação Física no Brasil.
Inicialmente, a discussão na Educação Física acerca do fenômeno esportivo esteve relacionada ao interior da escola e às implicações do trato pedagógico do mesmo para o processo formativo e educacional dos alunos (Betti, 1991; Bracht, 1992; Coletivo De Autores, 1992; Kunz, 1994; Vago, 1996; Caparroz, 1997). No decorrer dos anos, a abordagem do esporte na perspectiva sociocultural ultrapassou os muros da escola e passou a ser pautada em outros âmbitos da sociedade, sendo olhada também por outros ângulos, como por exemplo: a relação do esporte com a mídia (Betti, 1998; Pires, 2002); as manifestações na dimensão da participação e do lazer (Stigger, 1998); o esporte como meio e ferramenta de inclusão social (Thomassin, 2007); e, mais recentemente, o esporte no âmbito das políticas públicas (Starepravo, 2011).
Na trajetória da abordagem sociocultural do esporte, o conceito de cultura esportiva ganhou uma definição e amplitude no campo acadêmico-científico da Educação Física, provocando, muitas das vezes, dificuldades e obstáculos para aqueles que tentam se aproximar do mesmo. Outra noção que vem sendo empregada nos estudos da área é a de habitus esportivo. O conceito de habitus, trabalhado por Norbert Elias e Pierre Bourdieu na Sociologia contemporânea, chega à Educação Física como uma possibilidade analítica do fenômeno esportivo. Para fins deste trabalho, nos deteremos ao conceito de habitus derivado da teoria Bourdieusiana.
De modo geral, utilizados para designar aspectos subjetivos interiorizados por meio da experiência prática, traduzidos em signos e significados a partir da mediação entre indivíduo e o fenômeno social esportivo, as noções de cultura esportiva e de habitus esportivo são empregadas pelos pesquisadores dos estudos socioculturais do esporte de maneira, muitas das vezes, semelhante.
Este ensaio foi desenvolvido a partir de uma revisão de literatura não sistemática. Através de uma retrospectiva histórica do processo de construção teórica dos conceitos na Educação Física brasileira, identificamos referências que nos serviram como base para reflexão acerca das diferentes perspectivas epistemológicas que influenciaram a construção/utilização dos dois conceitos aqui discutidos.
O texto está organizado em quatro sessões que se apresentam a seguir. A primeira apresenta uma explanação sobre o processo histórico de construção, definição e apropriação do conceito de cultura esportiva por pesquisadores da Educação Física no Brasil. A segunda discorre sobre o modo como o conceito de habitus esportivo, a partir da teoria de Pierre Bourdieu, se constituiu na área. Na terceira, pontuamos alguns distanciamentos e proximidades em relação à utilização dos dois conceitos no campo acadêmico-científico da Educação Física no país. Por fim, apresentamos algumas considerações sobre a discussão aqui desenvolvida, entendendo que esta ainda é embrionária diante da amplitude que pode alcançar no aprofundamento teórico-conceitual do tema tratado.

A Cultura Esportiva

[...] a cultura é o principal conceito para a educação física, uma vez que todas as manifestações corporais humanas (esporte, dança, ginástica, jogo, etc.) são geradas no seio de uma dada cultura e se manifestam diversamente no contexto de grupos culturais específicos (DaóliO, 2006, p. 92)1.

De acordo com Daólio (2006), o conceito de cultura chega à Educação Física brasileira como um elemento teórico que contribuiu para a emergência de um novo paradigma, uma perspectiva de olhar diferente para os objetos de estudo e de intervenção social da área. A partir da década de 1980, as concepções de corpo e movimento, que eram amplamente baseadas nos preceitos das ciências naturais dentro da Educação Física, passam a ser abordadas também pelo viés das ciências sociais e humanas, tendo como principal tendência a dicotomia epistemológica entre o que é natural e aquilo que é cultural. Este movimento representou, conforme apontaram Daólio (1998) e Feron; Moraes e Silva (2007) uma ruptura paradigmática que causou enfrentamentos políticos e ideológicos nos debates acadêmicos daquele período e gerou contribuições significativas para o desenvolvimento e amadurecimento da área.
Daólio (2006) lembra que passada a fase efervescente de enfrentamento na área, o conceito de cultura ganhou amplitude no campo da Educação Física. No primeiro momento, ele passou por uma abordagem antropológica, com perspectiva descritiva e simbólica dos fenômenos. Em seguida, ele foi tratado a partir de uma abordagem estrutural, que considera a dimensão sócio-histórica pautada em questões objetivas e materiais da Educação Física. Foi a partir desse processo de adensamento teórico que surge, então, o conceito de cultura esportiva.
Bracht (1992; 1997), por exemplo, ao se apropriar de uma sociologia crítica e discuti-la com o fenômeno esportivo, constrói o seu argumento caracterizando o esporte como uma instituição social que possui suas normas, códigos e símbolos próprios com características tais como: "princípio do rendimento atlético-desportivo, competição, comparação de rendimentos e recordes, regulamentação rígida, sucesso esportivo e sinônimo de vitória, racionalização de meios e técnicas"2 (Bracht, 1992, p. 22). Desse modo, o autor elabora uma das primeiras conceituações para a Educação Física acerca do caráter simbólico e estrutural do esporte como fenômeno sociocultural.
Em um dos seus primeiros escritos em que a cultura esportiva é citada, Betti (1993) não a define objetivamente, mas indica elementos daquilo que o próprio autor definiria posteriormente como "caráter polissêmico do esporte" (Betti, 1998).

[...] a cultura esportiva, embora hegemônica na cultura corporal contemporânea, não é monolítica, podendo distinguir no seu interior o esporte de lazer. [...] No esporte de lazer outros códigos, como por exemplo motivos ligados à saúde, ao prazer e à sociabilidade também são relevantes e capazes de orientar a ação. Em qualquer terreno baldio, ou numa rua pouco movimentada, ainda é possível colocar duas pedras no chão, ou amarrar uma corda entre dois postes e encher-se do prazer lúdico que um jogo de futebol ou voleibol proporciona (Betti, 1993; p. 49-50).

Em outros textos publicados posteriormente Betti (1998; 2001) apontou indícios sobre a construção sócio-histórica do esporte como um espetáculo produzido pelos meios de comunicação de massa, sobretudo pela televisão. Um dos avanços apresentados pelo autor é a caracterização do esporte da mídia - o telespetáculo - como um fenômeno institucionalizado e que propaga determinadas representações sociais construídas através de discursos e narrativas midiáticas.
Pires (2002), por sua vez desenvolve o conceito de cultura esportiva, procurando contemplar as definições de cultura e esporte já existentes, buscando abarcar a complexidade do fenômeno esportivo na contemporaneidade. Sem desprezar o esforço e as contribuições conceituais elaborados anteriormente por Bracht (1992; 1997) e Betti (1993; 1998; 2011), o autor elabora sua definição de cultura esportiva:

[...] conjunto de ações, valores e compreensões que representam o modo predominante de ser/estar na sociedade globalizada, em relação ao seu âmbito esportivo, cujos significados são simbolicamente incorporados através, principalmente, da mediação feita pela indústria de comunicação de massa( Pires, 2002, p. 42).

O conceito de cultura esportiva de Pires possui duas características principais: a primeira corresponde às dimensões descritivas e estruturais de conformação da cultura na contemporaneidade, pautada, sobretudo, pelo fenômeno da globalização econômica. A segunda refere-se à concepção simbólica da cultura, que compreende os significados e os sentidos a serem atribuídos ao fenômeno esportivo pelos diferentes indivíduos e grupos sociais, que têm, por exemplo, a presença, mas não necessariamente a interferência, do discurso midiático na construção das interpretações e representações sobre o esporte.
Este conceito considera a pluralidade cultural e as variáveis que podem influenciar a formação das representações simbólicas e da significância que o esporte pode tomar nas diferentes comunidades e grupos sociais. O conceito é uma construção teórica que não descarta e que, pelo contrário, ressalta a importância de se pôr em evidência a dimensão estrutural do modo de organização burocrática do esporte e, sobretudo, a lógica de mercadorização e espetacularização do fenômeno com o suporte predominante dos meios de comunicação de massa sob a luz da indústria cultural (Pires, 2005).
Em síntese, o conceito de cultura esportiva na Educação Física passou por um processo de desenvolvimento que ampliou a sua abordagem, avançando de uma perspectiva restrita à dimensão descritiva e simbólica do esporte, para uma perspectiva que também considera as suas dimensões estruturais, sociais e históricas. Passa de uma concepção do esporte como instituição social, que possui símbolos e códigos próprios, conforme levantado por Bracht (1992; 1997) para um entendimento que abrange os modos de organização política, econômica e comercial do fenômeno esportivo na atualidade. Além disso, essa concepção considera a variação das interpretações e das significâncias que configuram as representações acerca do esporte e das práticas esportivas de diferentes grupos sociais em diferentes períodos históricos e na contemporaneidade.

habitus esportivo

Habitus esportivo, na concepção levantada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1990), normalmente é entendido como esquemas mentais de percepção, pensamento e ação engendrados a partir das relações sociais estabelecidas pelos agentes na estruturação histórica do campo esportivo2. Para que de fato possamos compreender este conceito, no entanto, faz-se necessário conhecermos as premissas que deram base à sua utilização no campo acadêmico-científico da Educação Física e do esporte. Neste sentido, buscamos a seguir apresentar os usos do conceito habitus esportivo para, a partir disso, identificarmos o alcance da sua contribuição e relacioná-lo com o conceito de cultura esportiva, apontando intersecções e distanciamentos entre estes conceitos.
De acordo com Souza; Marchi Júnior (2010), o esforço de aproximação dos pesquisadores do esporte no campo da Educação Física com a obra de Bourdieu ocorreu no final da década de 1990 e início dos anos 2000, visando elucidar questões ainda não solucionadas referentes às características que o esporte assumira na sociedade, principalmente a partir da sua profissionalização. Este momento de instrumentalização teórica ofereceu subsídios para o desenvolvimento de novos olhares sobre a multiplicidade de significados assumidos pelo fenômeno esportivo na sociedade contemporânea, permitindo interpretações mais ampliadas e se desdobrando em novos métodos e temáticas de estudo para a área da Educação Física.
Neste sentido, Souza e Marchi Júnior (2010), destacam as ações do professor Ademir Gebara, que idealizou os Encontros Nacionais de História do Esporte, Lazer e Educação Física, sendo que a primeira edição foi em 1993, os quais se constituíram como espaços de reflexão e intercâmbio de experiências acadêmicas fundadas na história do esporte. Gebara coordenou um grupo de pesquisadores, orientandos de mestrado e doutorado, que, fundamentados pela crítica que se fazia à forma linear e empobrecida com que a história do esporte é tradicionalmente tratada, e, movidos pelo intento de desvendar as transformações perpassadas pelo esporte nos séculos XIX e XX, fomentaram em suas pesquisas novas interpretações sobre o esporte a partir de uma abordagem histórico-sociológica trazida pela Sociologia Configuracional de Norbert Elias e pela Teoria dos Campos de Pierre Bourdieu.
Dentre esses trabalhos, Souza e Marchi Júnior (2010) destacam duas teses de doutoramento que se tornaram referências em termos de sistematização, aplicação e densidade da análise sociológica com base no referencial teórico de Bourdieu: a tese do economista Marcelo Wheishaupt Proni (1998), que trata o futebol como esporte-espetáculo inserido na lógica mercantil; e a do professor Wanderley Marchi Júnior (2001), que analisa sociologicamente a trajetória histórica do voleibol brasileiro, identificando as quebras de regularidade circunscritas na transição do amadorismo para o profissionalismo e a posterior incorporação da lógica espetacular nesta modalidade esportiva.
Os pesquisadores supracitados se utilizaram dos procedimentos metodológicos explicitados por Bourdieu (2010) ao: 1) reconstituírem os processos históricos de tensões que delimitaram e definiram os espaços sociais por eles estudados; 2) identificarem os objetos de disputa e os capitais específicos à esses locus; e 3) delinearem as características definidoras do habitus esportivo a partir das modalidades esportivas futebol (Proni, 1998) e voleibol (Marchi Júnior, 2001). O conceito de habitus esportivo foi entendido e operacionalizado pelos referidos estudiosos como disposições para a ação historicamente legitimadas que orientam a prática, distinguem as posições hierárquicas no interior do campo esportivo e o definem em relação aos outros campos sociais. Para Proni (1998) e para Marchi Júnior (2001), este conceito funcionou como ferramenta fundamental para elucidar como o caráter mercadológico se instaurou e se reproduziu no futebol e no voleibol respectivamente.
Cabe ressaltar as dificuldades e limitações advindos da incorporação de um referencial teórico originário da sociologia pelos autores da Educação Física. É o que atestam Medeiros e Godoy (2009) ao analisarem as referências de Pierre Bourdieu na Revista Brasileira de Ciências do Esporte durante os anos de 1979 a 2007, onde dos doze estudos encontrados pelas autoras, apenas um utilizou os conceitos de habitus, campo e capital de maneira relacional como preconiza a Teoria dos Campos.
Por outro lado, alguns pesquisadores da área da Educação Física buscaram apresentar de maneira didática e sistematizada os principais conceitos da Teoria dos Campos como uma proposta para fundamentar análises sobre o fenômeno esportivo. Os estudos de Myskiw (2008), Souza; Marchi Júnior (2010) e Starepravo, Souza; Marchi Júnior (2013), por exemplo, justificam a elegibilidade da teoria Bourdieusiana para compreender objetos de estudo comuns ao campo esportivo.
A partir das produções supracitadas e considerando o destaque que a Teoria dos Campos tomou nos estudos sobre a sociologia do esporte no Brasil, o habitus esportivo, em sendo uma categoria central desta teoria, passou a ser considerado uma importante ferramenta teórica na compreensão sociológica do esporte. Novas questões foram levantadas a partir do momento em que o campo esportivo foi caracterizado como um espaço social no qual os agentes se posicionam em escalas hierárquicas de poder dispostas em função dos capitais acumulados e da existência de um habitus incorporado, que é o produto das lutas históricas que foram ali estabelecidas. O habitus esportivo foi entendido como uma propriedade adquirida nos relacionamentos dentro do campo esportivo ou dos subcampos das modalidades esportivas, que faz com que os integrantes se reconheçam através de uma espécie de codificação, legitimando-os no campo, validando e garantindo a existência deste universo (Marchi Júnior, 2011).
A partir do aprimoramento das ferramentas de análise Bourdieusiana e da aplicação da Teoria dos Campos nos diferentes universos sociais de disputa, a definição do habitus esportivo passou a ser delineada pelos pesquisadores como disposição para agir interiorizada nas relações sociais do campo esportivo e refletida na forma de perceber, avaliar e de agir dos agentes diante dos diferentes acontecimentos. O habitus esportivo é impresso nos corpos dos agentes de forma gradativa, inconsciente e durável, sendo ele o responsável pelas significações e julgamentos dos agentes do campo esportivo. O habitus também desvela os nexos das mudanças históricas ocorridas no campo esportivo.
O conceito de habitus esportivo, operacionalizado dentro do esquema analítico da Teoria dos Campos de Pierre Bourdieu, tem auxiliado os pesquisadores da Educação Física na apreensão dos sentidos e significados atribuídos pelos agentes do campo esportivo ao longo da sua história de lutas. Ora os agentes são aproximados da prática esportiva e ora do consumo (mercadorização/espetacularização), caracterizando, deste modo, o habitus como um elemento distintivo deste campo.
A estrutura do campo esportivo foi incorporada ao longo do tempo na forma de habitus esportivo como esquemas mentais advindos da prática - e que vão à prática - definindo os contornos do esporte enquanto um microcosmo social que possui uma lógica própria fundada na sua história. A produção científica que se utiliza do conceito de habitus esportivo parte do pressuposto de que:

[...] não se pode compreender diretamente os fenômenos esportivos num dado momento, num dado ambiente social, colocando-os em relação direta com as condições econômicas e sociais das sociedades correspondentes: a história do esporte é uma história relativamente autônoma que, mesmo estando articulada com os grandes acontecimentos da história econômica e política, tem seu próprio tempo, suas próprias leis de evolução, suas próprias crises, em suma, sua cronologia específica (Bourdieu, 1983, p. 137).

Em síntese, o conceito de habitus na Teoria dos Campos organiza o que Bourdieu (1990) denominou como campo, que é o espaço onde os agentes ocupam posições sociais hierárquicas e promovem constantes disputas em função do aumento de um capital específico legitimado pelos seus próprios integrantes. A exposição dos agentes sociais à esta lógica de funcionamento do campo lhes imprime uma disposição para pensar, significar e agir no mundo social que os situa e legitima neste espaço de disputas.
A consolidação da Teoria dos Campos para a compreensão do fenômeno esportivo se deu em paralelo com a formação de uma área específica onde os estudos que abordam os aspectos socioculturais do esporte se alocaram, a Sociologia do Esporte. O amadurecimento conceitual da categoria habitus esportivo se deu a partir das aplicações repetidas do esquema metodológico de investigação do campo esportivo proposto por Bourdieu. Isto parece ter acontecido a partir das análises sociológicas de algumas modalidades esportivas específicas, quando pesquisadores conseguiram objetivar a história das disputas e mapear as posições hierárquicas nos subcampos das modalidades delimitando o campo esportivo (Proni, 1998; Marchi Júnior, 2001).

Os distanciamentos e as aproximações…

Os conceitos de cultura e habitus chegam à Educação Física como categorias analíticas que colaboram com a compreensão sociocultural dos objetos de investigação e intervenção da área. Eles são, no entanto, distintos, uma vez que são atrelados à diferentes construções teóricas que trazem consigo cargas específicas de pressupostos e condicionantes.
O conceito de cultura esportiva emergiu de uma abordagem mais antropológica, que considerava a dimensão simbólica e visava entender as diferentes representações do corpo, do movimento e do esporte na sociedade. No entanto, com investidas de pesquisadores da Educação Física em diferentes áreas das ciências sociais e humanas (Sociologia, Comunicação Social, Economia), este conceito ganhou outros elementos de análise. O mesmo passou a ser pautado por questões de cunho histórico e sociológico, elucidando a dimensão estrutural do fenômeno esportivo.
A utilização do conceito de cultura esportiva no âmbito da Educação Física brasileira envolve investigações sobre as formas como o esporte se manifesta nos diferentes âmbitos da sociedade e se organiza burocrática e comercialmente. Eles envolvem também investidas na compreensão da simbologia, das representações e dos significados que o fenômeno esportivo assume nas variadas esferas sociais, desde aqueles que o organizam e o produzem, até os que o disseminam, recebem e (re)significam. Dito de outro modo, o pressuposto inerente ao conceito de cultura esportiva é o entendimento estrutural e simbólico das manifestações do esporte nos diversos contextos, seja no midiático, no burocrático, no escolar, no comunitário, ou em diversos outros.
Já o conceito de habitus da teoria bourdiesiana está necessariamente vinculado aos conceitos de campo e de capital. Estes conceitos, portanto, precisam ser tratados conjuntamente para que se possa entender tanto os modos como se organizam e se manifestam os fenômenos sociais, neste caso o esporte, quanto também identificar as causas das relações de disputa nos espaços estudados.
A concepção de cultura esportiva propõe um olhar sobre os modos como o fenômeno esportivo se organiza e se manifesta através das simbologias que o cercam e que são produzidas socialmente. Já a concepção de habitus esportivo pressupõe um conhecimento das formas de organização do esporte para se compreender as práticas e os significados que lhe são atribuídos no campo e uma problematização dos porquês das relações de disputa de poder que se estabelecem na conformação do fenômeno, ou seja, o primeiro se concentra em elucidar como e quais simbologias se produz socialmente com relação ao esporte, o segundo, por sua vez, procura desvendar as peculiaridades e os imbricamentos relacionais entre os diferentes agentes e instituições envolvidas nas manifestações do fenômeno.
Ambos os conceitos aqui discutidos, apesar de carregarem consigo um volume de elementos teóricos que são vistos, muitas das vezes, como eminentemente abstratos, procuram trazer à tona a dimensão prática do esporte. Ambos buscam elucidar questões relacionadas aos modos de agir no âmbito esportivo. Embora ainda sofram com alguns preconceitos epistemológicos de que a abordagem sociocultural do esporte abdica de uma dimensão prática, tanto a concepção de cultura, como a de habitus esportivo, demonstram preocupação e envolvem em suas definições a questão praxiológica do fenômeno: elas procuram desvelar de que modo as visões de mundo acerca do esporte podem ser externadas e/ou determinar a prática do mesmo.
No caso do conceito de cultura esportiva de Pires (2002; 2005), o autor fala não só do conjunto de valores e compreensões, mas também das ações predominantes com relação ao âmbito esportivo. Ao adotar este conceito deve-se ter em vista, além da dimensão simbólica daquilo que se tem de representação do esporte na sociedade, a manifestação dos corpos e dos movimentos no que se refere à prática esportiva. Já o trabalho com o conceito de habitus esportivo e com a linha teórica da qual este conceito deriva, demanda um estudo das relações sociais e os modos como elas se configuram no âmbito esportivo, bem como um detalhamento da prática dos agentes, ou seja, os modos de se portar no campo estudado. Nesse sentido, a análise do fenômeno esportivo pelo viés do habitus bourdiesiano permite investigar também os modos de subjetivação e objetivação da prática esportiva na relação dialógica que os sujeitos estabelecem entre si e com as diferentes instituições relativas ao esporte.
Ao contrário do que se convencionou denominar como perspectiva teórica da Educação Física e do esporte no Brasil, as definições de cultura esportiva e de habitus esportivo apresentam uma preocupação com elementos do desenvolvimento da prática esportiva na sociedade. O que distingue estas abordagens de outras derivadas das ciências naturais é que elas propõem o estudo e a reflexão da prática do esporte em suas dimensões cultural e sociológica. Elas se constituem em abordagens teórico-conceituais que pautam a prática do esporte para além das dimensões biológica e técnica, propondo reflexões críticas acerca da mesma.
Outro aspecto que aproxima e pode complementar ambos os conceitos aqui discutidos no trabalho investigativo do esporte como um fenômeno sociocultural é a delimitação metodológica que ambos viabilizam ao objeto de estudo. A abordagem cultural do esporte, como visto anteriormente, demarca o estudo do fenômeno no sentido de compreender como ele se manifesta na sociedade e de que forma ele é significado pelos diferentes indivíduos, grupos sociais e culturas. Já a abordagem sociológica que trata do habitus esportivo, procura desvendar o porquê ele é (re)produzido socialmente de determinadas maneiras através da análise das relações de poder e disputa estabelecidas dentro e no entorno do fenômeno estudado.

Considerações finais de uma discussão inicial

Assim como se sucedeu na formulação do conceito de cultura esportiva, o de habitus esportivo emergiu na Educação Física como uma categoria designada a tratar o esporte a partir de uma visão mais ampliada do que as abordagens biológicas e tecnicistas. Ambos os conceitos, embora elaborados e desenvolvidos em contextos diferenciados, pautam a subjetividade dos atores sociais e como ela é construída nas suas ações vinculadas ao esporte.
A cultura esportiva é uma construção feita pelo e para os indivíduos. Ela envolve sentidos e significados no seu trato com o esporte, bem como conhecimentos relacionados com o mesmo, sobre a sua prática em suas diversas manifestações, e sobre o seu papel social na sociedade contemporânea. Já o habitus esportivo, tomado no sentido Bourdieusiano, tem nas relações de poder um elemento central para a investigação, e nas interpelações entre os agentes um pano de fundo para a análise. Trata-se de um conceito, conforme apontou o próprio Bourdieu (1990), capaz de justificar, a partir da forma como o esporte se estruturou ao longo da sua história, a relação entre a oferta e a demanda esportiva. A oferta seriam os bens culturais dispostos na forma de manifestações esportivas (componentes da cultura esportiva) e a demanda estaria diretamente relacionada ao habitus esportivo, ou seja, à capacidade de discernimento e reconhecimento por parte dos agentes das manifestações da cultura esportiva.
Considerando o que foi dito até então, um aspecto que distingue e distancia o conceito de cultura esportiva do de habitus esportivo é a carga epistemológica e teórica que ambos trazem consigo provenientes das linhas e abordagens da qual são originários. Outro aspecto de distinção dos conceitos aqui tratados é o alcance investigativo de cada um no trato com o objeto de estudo.
Embora os conceitos tenham sido introduzidos na área da Educação Física em contextos epistemológicos diferenciados, buscando atender a problemas de pesquisa latentes - o entendimento do esporte enquanto um componente educacional e sociocultural, no caso da cultura esportiva, e o desnudamento das faces sócio-históricas e relacionais, no caso do habitus esportivo - ambos merecem ser trabalhados de forma complementar.
Consideramos que nem tudo o que se produz culturalmente no âmbito esportivo é incorporado na forma de habitus esportivo, mas todo o habitus é constituído com base em uma cultura esportiva. Nesse sentido, a área da Educação Física poderia investigar a pluralidade da cultura esportiva na incorporação dos diferentes significados e sentidos atribuídos ao fenômeno a partir do detalhamento do habitus das diversas modalidades e manifestações esportivas.
Entendido que o aspecto que diferencia os conceitos é, basicamente, o foco analítico de cada um, o trabalho com ambos os conceitos de forma complementar seria uma opção teórica e metodológica que poderia contribuir para o alargamento dos pontos de análise da complexidade que envolve o fenômeno esportivo hoje. A conjunção das perspectivas da cultura esportiva e de habitus esportivo permitiria a identificação de quando, como e por que o primeiro ajuda na conformação do segundo e vice-versa. Na medida em que se conseguir desvelar as relações de disputa pela dominação no interior do campo e o estabelecimento de um dado habitus, tornar-se-á possível o delineamento de estratégias de ampliação, enriquecimento e qualificação da cultura esportiva neste campo.
Visamos esclarecer o alcance analítico dos conceitos de cultura esportiva e habitus esportivo no sentido de destacar que ambos não podem ser tratados como sinônimos. Porém, conforme discutimos acima, estes conceitos podem ser tratados um em relação ao outro numa proposta de análise que considere as suas proximidades e distanciamentos, visando contribuir exponencialmente para o debate acerca da cultura esportiva com base nos porquês que o habitus esportivo pode revelar.

Notas

1 Originalmente esse texto foi publicado em 1998 na revista Corpoconsciência, nº 1, mas não foi encontrado para consulta neste ensaio, acredita-se que pelo fato de naquele período a revista ser disponibilizada apenas em versão impressa.

2 Bourdieu não foi um sociólogo do esporte, porém, a partir dos seus pressupostos teóricos, levantou problemáticas e atentou para uma leitura sociológica do fenômeno em alguns dos seus textos, mais claramente em "Programa para uma sociologia do esporte" (Bourdieu, 1983) e "Como é possível ser esportivo" (Bourdieu, 1990).

Referências

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