Introdução
A prática de atividade física (AF) na adolescência tem sido associada à profilaxia de diversas doenças crônicas não transmissíveis, além de promover efeitos benéficos na aptidão física e saúde mental (da Silva et al., 2018; de Farias Junior et al., 2014; dos Santos et al., 2019). Contudo, embora os benefícios da AF estejam bem documentados na literatura, a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020) tem demonstrado grande preocupação com a elevada prevalência de jovens que não atingem às recomendações de AF, sugerindo fortemente a implementação de políticas públicas e ações educativas nos mais diversos países do mundo para combater o aumento da inatividade física entre crianças e adolescentes.
O panorama mundial é consternador, pois após mais de uma década de esforços científicos, políticos e econômicos, não houve mudança significativa nos níveis de AF entre os adolescentes (Hallal & Andersen, 2012; Sallis et al., 2016). Um estudo realizado por Guthold et al. (2020) analisou o nível de AF de 1,6 milhão de escolares em 146 países, identificando que aproximadamente 80% dos jovens não atendiam às recomendações de AF. No Brasil, 84% dos adolescentes são insuficientemente ativos (IA), sendo este quadro ainda mais desfavorável entre as meninas, diferença encontrada em um terço dos 146 países analisados por Guthold et al. (2020).
Como a prática de AF é um comportamento de natureza multifatorial (de Camargo et al., 2021), análises envolvendo fatores sociodemográficos, econômicos e relacionados a experiências motoras podem disponibilizar informações relevantes para a compreensão desse fenômeno entre os adolescentes e, consequentemente, para elaboração e implementação de ações que visem o maior engajamento desta população nas práticas de AF (Bergmann et al., 2013; de Farias Junior et al., 2014). Nesse sentido, variáveis como sexo, idade, renda familiar, escolaridade dos pais, zona de moradia e a experiência com a educação física (EF) durante o ensino fundamental configuram-se como elementos importantes para o melhor entendimento da prática de AF entre adolescentes. Se por um lado associações entre variáveis sociodemográficas e a AF têm sido extensivamente realizadas em adolescentes (Bergmann et al., 2013; Bezerra et al., 2021; de Farias Junior et al., 2014; Monteiro et al., 2020; Piola et al., 2019), as relações envolvendo experiências prévias com práticas de AF, como aquelas relacionadas a educação física escolar, ainda são pouco exploradas.
De fato, a EF enquanto componente curricular é um espaço privilegiado para desenvolver o gosto pela prática de AF e o conhecimento sobre as diferentes manifestações da cultura corporal do movimento, sendo para a maioria das crianças e adolescentes o único momento onde a prática de AF ocorre de forma estruturada e com orientação especializada (Kremer et al., 2012). Além disso, a juventude constitui-se como a fase da vida mais conveniente para o desenvolvimento de hábitos saudáveis, entre eles a prática de AF (Azevedo et al., 2007).
Dessa forma, o presente estudo teve como objetivo identificar a associação entre indicadores sociodemográficos e experiências anteriores em práticas esportivas com o atendimento às recomendações de AF em alunos de uma escola técnica federal na cidade de Bagé-RS.
Métodos
O estudo, de caráter descritivo com delineamento transversal e abordagem quantitativa, foi elaborado com dados da linha de base de um estudo longitudinal que irá acompanhar estudantes durante todo o percurso no ensino médio (2019-2022). A amostra foi composta por 93 alunos com média de 15,74 (±1,189) anos de idade, sendo maioria do sexo masculino (n = 59; 58,4%). Os discentes estavam distribuídos em quatro turmas do ensino médio técnico integrado, do Instituto Federal sul-rio-grandense (IFSul), câmpus Bagé/RS. Todos os participantes do estudo iniciaram as aulas de EF na instituição no ano de 2019.
Para a coleta das informações foi utilizado um instrumento composto por questões sociodemográficas, sobre a experiência com a EF no ensino fundamental e relativas à AF. As variáveis sociodemográficas inseridas no instrumento foram idade (diferença entre a data de nascimento e data da coleta), sexo (masculino ou feminino), zona de moradia (urbana ou rural), escolaridade dos pais e renda familiar. A escolaridade dos pais foi identificada mediante a escolha de uma das cinco alternativas possíveis: (a) não estudou; (b) Ensino Fundamental incompleto; (c) Ensino Fundamental; (d) Ensino Médio; (e) Ensino Superior. Para fins de análise, as opções foram reclassificadas, categorizando as opções “não estudou” e “Ensino Fundamental incompleto” como “<8 anos de estudo”, “Ensino Fundamental” e “Ensino Médio” como “8 a 12 anos de estudo” e “Ensino Superior” como “> 12 anos de estudo. A renda familiar foi considerada a partir da soma da receita de todos os moradores da residência, tendo como referência o salário mínimo. Foram apresentadas cinco alternativas: (a) Menos de 1 salário mínimo; (b) De 1 a 3 salários mínimos; (c) Acima de 3 até 6 salários mínimos; (d) Acima de 6 até 9 salários mínimos; (e) Mais de 9 salários mínimos. Para a análise estatística, as alternativas foram recategorizadas, mantendo as duas primeiras inalteradas e agrupando as três últimas como “mais de 3 salários mínimos”.
Para verificar a experiência com a EF no ensino fundamental foram utilizadas três perguntas. A primeira sobre a rede escolar que o aluno frequentou durante o ensino fundamental: “A escola que você cursou o ensino fundamental é: (a) Estadual; (b) Municipal; (c) Privada”. Em seguida, buscou-se verificar a percepção dos alunos sobre a experiência nas aulas de EF durante o ensino fundamental. Para isso, foi realizada a seguinte pergunta: “Como foi sua experiência com as aulas de EF antes de ingressar no IFSul-Bagé?”. Para responder a esse questionamento, foi apresentado aos alunos 5 opções de respostas: (a) péssima; (b) ruim; (c) regular; (d) boa; (e) muito boa. Por fim, a pergunta que buscou identificar se os alunos apresentavam alguma experiência com equipes esportivas no ensino fundamental foi estruturada da seguinte maneira: “Você participou de equipes esportivas (clubes ou escolas) antes de ingressar no IFSul-Bagé?”. Para essa pergunta, os alunos tinham como opção responder “sim” ou “não”. Para fins de análise de dados, a pergunta sobre a rede de ensino frequentada pelo aluno no ensino fundamental foi novamente categorizada, classificando as opções “Estadual” e “Municipal” como “Rede Pública” e mantendo a nomenclatura da opção “Rede Privada”. Com a mesma finalidade, a pergunta sobre a experiência com a EF no ensino fundamental foi reestruturada, onde as categorias “péssima” e “ruim” foram classificadas como “ruim”, e as categorias “boa” e “muito boa” foram classificadas como “boa”. A categoria “regular” manteve-se inalterada.
Para verificar o nível de AF semanal foi utilizado o questionário de atividade física para adolescentes (QAFA) proposto e validado por de Farias Júnior et al. (2012). Reconhecendo que as atividades ocupacionais são mais incomuns entre os escolares, o autor propôs um instrumento que incluísse o maior número de AF encontradas na rotina dos jovens inseridos no contexto escolar. O instrumento apresenta uma lista com 24 atividades, sendo contempladas práticas corporais diversas como esportes coletivos e individuais, ginásticas, lutas, danças, exercícios físicos, atividades de deslocamento e brincadeiras. Como última alternativa, os participantes tinham a opção de descrever atividades realizadas que não estivessem listadas. O questionário instrui para a marcação de todas as atividades realizadas na semana anterior, não limitando-as. Ao lado de cada atividade havia um espaço destinado para relatar, em horas e minutos, o tempo total gasto com a atividade nos últimos sete dias. Para fins de classificação do nível de AF, utilizou-se como referência os valores recomendados pela OMS (2020) de 300 minutos ou mais de AF semanal como ponto de corte para o estudante ser classificado como suficientemente ativo (SA). Para os alunos que não atingiram a recomendação, utilizou-se a classificação insuficientemente ativo (IA). Os pesquisadores instruíram previamente a forma correta de preenchimento do questionário e estiveram presentes durante todo o momento da sua aplicação para que possíveis dúvidas pudessem ser dirimidas.
As análises dos dados foram realizadas através do pacote estatístico SPSS para Windows versão 26.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, USA). Foram realizadas análises univariadas, bivariadas e multivariáveis. Nas análises univariadas foram utilizadas medidas de frequência absoluta e relativa, seguidas pelos respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). A análise bivariada foi realizada através do teste qui-quadrado por heterogeneidade e por tendência. Nesta análise, cada variável independente foi associada com a classificação da AF. A análise multivariável foi realizada através da regressão logística bivariada sendo calculada a razão de odds (OR) bruta e ajustada. Para a análise ajustada, foram inseridas todas as variáveis que nas análises bivariadas apresentaram associação com a classificação da AF de p≤ 0,2. O nível de significância adotado no estudo foi de 5%.
A pesquisa foi submetida para avaliação de um comitê de ética em pesquisa e aprovada (aprovação: 3.325.089; CAAE: 11191719.2.0000.5313). A participação dos alunos foi condicionada ao consentimento dos responsáveis através do preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e do assentimento por parte dos estudantes pelo preenchimento do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE).
Resultados e Discussão
Os resultados apresentados na Tabela 1 indicam que apenas cerca de 1/4 dos adolescentes foram classificados como SA. No que se refere ao sexo, os resultados mostram que a prevalência de IA é maior entre as meninas (p=0,009). Além disso, ter participado de equipes esportivas antes de ingressar no ensino médio foi associado positivamente com o atendimento às recomendações de AF pelos alunos.
Na Tabela 2 são apresentados os resultados da regressão logística binária ajustada para as variáveis sexo, idade, zona de moradia, participação em equipes no ensino fundamental, escolaridade da mãe, renda familiar e rede escolar no ensino fundamental. Foi possível verificar que somente a variável sexo se manteve associada ao nível de AF. Os resultados indicaram que os meninos apresentam 6 vezes mais chances de serem SA.
O presente estudo teve como objetivo identificar a associação entre indicadores sociodemográficos e experiências anteriores em práticas esportivas com o atendimento às recomendações de AF em alunos de uma escola técnica federal na cidade de Bagé-RS. Os resultados acompanham o que tem sido encontrado globalmente (Guthold et al., 2020; OMS, 2020), indicando que apenas dois em cada dez adolescentes atendem as recomendações de AF. Assim como em estudos prévios (da Silva et al., 2018; de Farias Junior et al., 2014; dos Santos Farias et al., 2019; dos Santos et al., 2019) este panorama é ainda mais desfavorável entre as meninas, com apenas 9,8% classificadas como SA no presente estudo. Por outro lado, apesar da participação em equipes esportivas no ensino fundamental ter sido inicialmente associada ao atendimento às recomendações de AF, quando controlados os fatores de confusão, a associação não se manteve. Porém, é importante ponderar que a significância da associação tenha desaparecido na análise ajustada por haver maior participação dos meninos em equipes esportivas durante o ensino fundamental (resultado não apresentado: Feminino: n=15; 35,7%; Masculino: n=35; 59,3%; p=0,019). Dessa forma, caso a análise ajustada fosse realizada estratificada por sexo, possivelmente a participação em equipes no ensino fundamental apresentasse uma associação significativa nos meninos. Ainda, é pertinente ressaltar que os resultados do presente estudo precisam ser interpretados com cautela, visto que a amostra foi selecionada por conveniência e composta por alunos de apenas uma escola. Contudo, os achados vão ao encontro de estudos recentes.
De fato, investigações realizadas em várias regiões do Brasil (Bergmann et al., 2013; Bezerra et al., 2021; da Silva et al., 2018; dos Santos et al., 2019; Monteiro et al., 2020; Piola et al., 2019) têm demonstrado que o sexo parece influenciar significativamente o nível de AF. Ao analisar a literatura, é possível perceber que adolescentes do sexo feminino apresentam menor prevalência de atendimento às recomendações de AF mesmo quando outros fatores sociodemográficos e comportamentais, como no caso do presente estudo, são analisados conjuntamente. Alguns aspectos ambientais, sociais e emocionais parecem contribuir para a constituição desse panorama, podendo muitas vezes ser acentuados nas aulas de EF.
Em estudo realizado na cidade de Florianópolis-SC (da Silva et al., 2018) foi identificado que a falta de um local apropriado e gratuito próximo à residência foi a principal barreira para as meninas praticarem AF. Os pesquisadores atribuem o resultado ao fato de as cidades estarem em processo de urbanização, diminuindo o número de espaços adequados para a prática de AF. Na percepção das mulheres, os espaços públicos à disposição não são seguros e constituem-se em ambientes adversos para a prática de AF. Essa insegurança sentida pelas meninas está presente em vários espaços sociais, inclusive nas aulas de EF. Frizzo et al. (2018) constataram em um estudo de natureza qualitativa que as meninas sentem-se inibidas em participar das aulas de EF. A pesquisa foi realizada em duas escolas públicas de ensino médio da cidade de Pelotas-RS e identificou que muitas meninas se sentem intimidadas em realizar as atividades ginásticas em turma mista. Elas também demonstraram receio em participar das aulas de esportes coletivos junto com os meninos, principalmente esportes de invasão, pois entendem que muitas vezes eles usam uma força física excessiva.
A falta de um espaço público e seguro associado à ausência de suporte de amigos e familiares parece estar impactando negativamente no nível de AF dos adolescentes, em especial nas meninas (de Camargo et al., 2021; de Farias Junior et al., 2014). Por questões culturais e valores sociais, há muito tempo as meninas são desencorajadas a realizar AF vigorosas, pois naturalmente são consideradas mais delicadas, frágeis e vulneráveis. Ratificando essa perspectiva histórica de feminilidade, um estudo revela que os meninos são criados com mais liberdade e autonomia para realizar suas atividades, sendo a rua um espaço socialmente reconhecido como masculino (Gonçalves et al., 2007). Além disso, é mais comum a atribuição de responsabilidades familiares e domiciliares às meninas, diminuindo assim o tempo remanescente para a realização de AF de lazer. Nesse ponto, a EF também tem contribuído para a segregação entre meninos e meninas visto que ainda são recorrentes as práticas pedagógicas que reforçam uma divisão sexista das atividades na educação física escolar, futebol/futsal para os meninos, voleibol ou ginástica/dança para as meninas (Boscatto et al., 2020; Maldonado et al., 2018).
Além dos fatores ambientais e sociais, a autoeficácia tem sido referenciada (de Camargo et al., 2021; de Farias Junior et al., 2014; de Souza et al., 2013) como um importante preditor para o nível de AF em adolescentes, especialmente nas meninas (Heitzler et al., 2010; Lubans, 2008). Dishman et al. (2009), identificaram que meninas com maior autoeficácia no ensino médio apresentaram menor redução no nível de AF na fase adulta. Ademais, a percepção de baixa autoeficácia pode afetar a motivação e a participação de meninas para a prática de AF em geral, e nas aulas de EF em particular (Bandura, 2004). Nesse sentido, ao analisarem a participação de meninos e meninas em diferentes atividades coletivas durante as aulas de EF, Uchoga & Altmann (2016) perceberam que as meninas se envolviam menos por sentirem-se menos competentes que os meninos. Por conta disso, as autoras ponderam que a autoeficácia tem um papel importante no desenvolvimento de habilidades, impactando na autoconfiança para a prática de AF, pois aquelas que mais precisam desenvolver habilidades físicas e esportivas são as que mais se omitem durante as atividades nas aulas.
O trabalho coeducativo com meninos e meninas, estimulando o pensamento crítico, problematizando as concepções estereotipadas de gênero, articulando as temáticas contemporâneas do esporte e da AF pode caracterizar-se como uma boa alternativa de enfrentamento às desigualdades (Altmann et al., 2011; Freire Júnior et al., 2017; Frizzo et al., 2018). Além disso, a diversificação dos conteúdos e a forma como são desenvolvidos parece ter um papel importante para aumentar o interesse e a participação das meninas nas aulas de EF (Altmann et al., 2011), o que poderia contribuir para o aumento da prática de AF em outros momentos e espaços.
Dessa forma, a escola deve ocupar-se com a construção de alternativas e ações de ensino que promovam o enfrentamento das desigualdades de gênero. Se outros espaços sociais configuram-se como ambientes hostis e desmotivadores para prática de AF das meninas, é responsabilidade da escola construir caminhos e possibilidades para a superação deste panorama. Mais especificamente, a EF tem o compromisso de debater, planejar, sistematizar e implementar estratégias pedagógicas que encorajem as meninas a se engajarem nas mais diversas práticas corporais.
Conclusão
A maioria dos adolescentes do presente estudo não atende as recomendações mínimas para a prática de AF. Dentre as meninas, nove em cada dez foram classificadas como IA. Políticas públicas de incentivo à prática de AF tornam-se fundamentais, visto que os resultados do presente estudo acompanham um cenário mundial bastante preocupante. Dentro dessa perspectiva, a educação física se configura como uma importante ferramenta de incentivo à prática de AF, além de ser um espaço promissor para debater e minimizar as desigualdades de gênero relacionadas ao envolvimento de jovens dentro dessas práticas.