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Relaciones internacionales

versión On-line ISSN 2314-2766

Relac. int. vol.25 no.50 La Plata jul. 2016

 

ESTUDIOS

Kirchnerismo e Lulismo na construção de uma identidade em Defesa e Segurança Internacional entre Argentina e Brasil*

Kirchnerism and Lulism in the construction of an identity in defense and international security between Argentina and Brazil

Samuel Alves Soares**, Lívia Peres Milani***


Resumo

Os governos de Luis Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner buscaram promover mu-danças nas políticas públicas, na forma de inserção internacional e na concepção de regionalismo. A busca por mudanças ocorreu de forma diferenciada, sendo que o lulismo foi mais conciliatório, enquanto o kirchnerismo adotou um formato mais confrontativo. Diante disto, o objetivo do artigo é entender o processo de construção de uma identidade entre os dois países tendo como base de análise as ações de Polí-tica Exterior e relações civis-militares, com foco na área da Defesa e Segurança Inter-nacional. Conclui-se que, apesar de convergências de visões de mundo, decorrente das mudanças proporcionadas por tais governos, a formação de uma identidade nesta área avançou, ainda que com baixo aprofundamento, entre outras razões pelas distintas concepções sobre o emprego das forças armadas.

Palavras-chave:Identidade em Defesa e Segurança Internacional - Regionalismo, Cooperação em Defesa - Política Exterior - Relações Brasil-Argentina.

Abstract

The governments of Luiz Inácio Lula da Silva and Néstor Kirchner have sought to pro-mote changes in public policies, in the form of international integration and design of regionalism. The pursuit of changes occurred in different ways, and the Lulism was more conciliatory, while kirchnerismo adopted a more confrontational format. In view of this, the objective of this article is to understand the process of building an identity between the two countries which the analysis based on the actions of For-eign Policy and civil-military relations, focusing on the area of Defense and Interna-tional Security. We conclude that, despite convergence of worldviews, resulting from changes caused by such governments, the formation of an identity in this area pro-gressed, albeit with low depth, among other grounds on different guidelines on the use of armed forces.

Keywords:Identity Defense and International Security – Regionalism - Defense Cooperation - Foreign Policy - Brazil-Argentina relations.

* Recibido: 16-10-2015. Aceptado: 22-02-2016.

**Professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Relações Internacionais – GEDES. Pesquisador 2 do CNPq.

***Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (U-NESP-UNICAMP-PUC-SP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Relações Internacionais – GEDES.


 

Durante a década de 2000, a América do Sul foi marcada pela emergência de governos que, de maneira diferenciada, buscaram promover mudanças nas políticas públicas de seus respectivos países questionando aspectos das políticas neoliberais e convergentes ao Consenso de Washington1prevalecente na década anterior, o que influenciou sua inserção internacional e concepção de regionalismo (Sader, 2009). Nesse contexto, destacam-se os casos de Brasil e Argentina, dois países sul-americanos com um histórico recente, mas já consolidado de cooperação, nos quais ascenderam ao poder governos progressistas que através de diferentes estratégias políticas – conciliatória no primeiro caso e mais conflitiva no segundo - buscaram promover mudanças internas e impulsionar alternativas às políticas externas. Tendo em vista esse contexto, o objetivo do artigo será entender se e de que maneira os modelos internos para promover mudanças se traduziram nas Políticas Exteriores de ambos os países, tendo como foco a construção de uma identidade na área da Defesa e Segurança Internacional.

Nas formulações de Wendt (2014), as identidades constituem objeto de análise, na medida em que se apresentam como resultado de processos de interação social, ou ainda mais especificamente, da forma como os atores são socialmente construí-dos. As identidades geram "disposições motivacionais e comportamentais" (p. 272) e os interesses enraízam-se nas identidades. Considera-se que as identidades registram valores, princípios e concepções de atores, refletem tais características nas suas ori-entações políticas e, portanto, impactam nas ações destes atores. Partindo-se desta breve conceituação, importa considerar se governos com orientações convergentes tendem a gerar e aprofundar processos de construção de identidades em que seu reconhecimento recíproco – a relação Eu/Outro – pauta-se por maior ou menor apro-ximação. Este é o eixo analítico mais geral que orienta a análise apresentada.

O artigo está dividido em quatro tópicos: inicialmente apresentam-se os ante-cedentes que se referem às políticas e ao modelo de inserção internacional adotados na década de 1990 e contextualiza-se o ambiente político no qual ascenderam os governos de Lula e Kirchner. No segundo tópico analisa-se o caso brasileiro, no tercei-ro o argentino e no quarto os impactos das mudanças para a concepção de regiona-lismo e, por fim, algumas conclusões.

Antecedentes: os anos 1990 e a ascensão de Lula e Kirchner

A década de 1990 foi marcada, na América do Sul, por governos que tinham uma visão de mundo convergente ao Consenso de Washington, a exemplo de Fernando Collor no Brasil e Carlos Saul Menem, na Argentina. Neste período, entendia-se que a globalização e o livre comércio trariam benefícios aos países, contribuindo ao desenvol-vimento nacional, e questionava-se a ideia de que o Estado deveria ser um indutor do desenvolvimento, o que fora a base do pensamento industrialista e desenvolvimentista predominante durante as décadas de 1960 e 1970 (Cervo, 2008, p. 77).

O governo de Carlos Saul Menem, na Argentina, representou o modelo mais completo de aplicação do neoliberalismo, tendo adotado uma política de privatiza-ções e promovido a paridade entre o dólar e o peso argentino. No Brasil, as concep-ções do Consenso de Washington foram postas em prática durante o governo de Fernando Collor, mas, com o impeachment deste e com a posterior eleição de Fer-nando Henrique Cardoso, a adoção do neoliberalismo tornou-se mais amena, carac-terizando uma distinção de gradação entre os dois países na adoção de medidas neoliberais.

A concepção neoliberal influenciou a Política Exterior dos dois países, gerando uma postura de maior adesão à ordem liberal internacional, nos campos econômicos e da Segurança Internacional, com a adesão de ambos ao regime de não proliferação nuclear e com a promoção de abertura comercial. Contudo, devido às diferenças na adoção dos princípios neoliberais, não houve convergência entre Brasil e Argentina em suas estratégias de inserção internacional e principalmente no que se refere a suas relações com os Estados Unidos, sendo que a Argentina seguiu uma posição mais próxima de um alinhamento2, enquanto o Brasil foi mais crítico. No Brasil o tema do desenvolvimento continuou presente no período do governo de Cardoso; na Argentina, a divisão do mundo em Norte-Sul deixou de ser um eixo de referência do discurso diplomático durante a gestão de Menem (ARBILLA, 2000, p. 367)

Contudo, as premissas neoliberais de que a abertura comercial e o livre merca-do promoveriam o desenvolvimento não se concretizaram e o período foi marcado pelo aumento da desigualdade social na América do Sul (CERVO, 2008, p.83). O Consenso de Washington começou a ser questionado, ainda nos anos 1990, podendo-sedestacar como exemplos o levante zapatista no México, após a assinatura do acordo do Nafta, em 1994, o fortalecimento de movimentos indigenistas no Equador e na Bolívia e de movimentos sociais no Brasil, com a criação do Movimento dos Sem-Terra, e na Argentina, com o movimento piqueteiro. Pode-se ressaltar ainda uma resistência de caráter transnacional, a partir da realização dos Fóruns Sociais Mundiais, que se contrapunham aos Fóruns Econômicos Mundiais (Sader, 2009).

E neste contexto que, em 2003, Néstor Kirchner e Luiz Inácio Lula da Silva ascendem ao poder. A eleição de ambos significou o triunfo de outra leitura de mundo e o avanço de um discurso crítico com relação ao neoliberalismo. Assim, enquanto na década de 1990, as políticas econômicas de abertura econômica e diminuição da intervenção do Estado na economia eram entendidas como a fonte para o desenvolvimento, a partir de então o neoliberalismo começou a ser concebido como o responsável pelo acirramento das desigualdades. Com a chegada dos dois novos governantes, houve uma valorização de políticas sociais como contrapartida ao modelo vigorante no período anterior. Neste sentido, podese argumentar que houve o resgate de traços de uma concepção de desenvolvimento intervencionista, embora os dois governos entendessem que, em vista das mudanças no contexto internacional, uma simples retomada do desenvolvimentismo seria problemática.

Os movimentos conduzidos por Lula e Kirchner mantinham alguns aspectos similares, como a adoção de políticas de inclusão social e o princípio de justiça social, o que significava um questionamento das políticas da década anterior, que eram percebidas como responsáveis por agravar as contradições sociais. Além disso, ambos buscavam se identificar com parcela mais ampla da população e eram próximos do sindicalismo e do movimento trabalhador, em um resgate do passado, já que os dois haviam sido militantes políticos durante o período da ditadura militar.

O kirchnerismo e o lulismo foram fortemente baseados na imagem dos presidentes, mas algumas de suas orientações foram mantidas nos governos que os sucederam. No Brasil, as características de condução política foram alteradas com a eleição de Dilma Rousseff, ao passo que o kirchnerismo, enquanto gramática política, continuou como a senda no poder com a eleição de Cristina Fernandez Kirchner, esposa do expresidente.

Em seu delineamento mais geral, entretanto, há importantes diferenças entre os dois movimentos, pois apesar dos questionamentos das políticas neoliberais, no caso argentino há uma inflexão mais significativa, sendo que a crise de 2001 foi interpretada como tendo causas nas políticas colocadas em prática até então. Já no caso brasileiro, a ideia de mudança sem ruptura parece mais apta a explicar a ascensão de Lula, assim como as políticas mais amenas adotadas pelo presidente. Ainda que haja diferenças, e apesar da promoção de importantes políticas de redistribuição de renda a partir do Estado, políticas econômicas de caráter neoliberal foram mantidas.

 

Lulismo: pactuar e não romper

Ao contrário do que poderia ser esperado da administração de Lula tendo por base o discurso de reformismo forte do Partido dos Trabalhadores (PT) anterior às eleições de 2002, tal governo não representou uma ruptura com a ordem, sendo questionável até que ponto transformações mais profundas foram colocadas em prática. A estratégia do PT naquele momento foi de propor uma pactuação com diversos grupos sociais e partidos políticos e amenizar o discurso reformista, visando a conseguir maior apoio das classes médias e do empresariado. Para fortalecer este processo, foi concretizada a aliança com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), com tendência de centro, e o empresário José Alencar foi escolhido para compor a chapa como candidato à vicepresidência. A perspectiva de ascensão de um governo de esquerda provocava instabilidade nos mercados financeiros, ao que Lula respondeu com a "Carta ao Povo Brasileiro", na qual buscava acalmar o setor e comprometiase com a estabilidade fiscal e a realização do superávit primário, diminuindo a amplitude de manobra e as possibilidades de mudança do futuro governo (Lula da Silva, 2002).

O governo de Lula não levou ao rompimento com a ordem, mas buscou a conciliação entre trabalhadores, empresários e governo, visando a uma pactuação nacional para atingir objetivos de desenvolvimento de longo prazo, como expresso no documento Brasil 3 Tempos, elaborado no primeiro ano de governo (BRASIL, 2004). Nesse sentido, André Singer argumenta que as políticas conduzidas por Lula representam um reformismo lento, o que significa que o governo promoveu mudanças, mas também foi caracterizado por continuidades e, portanto, não houve ruptura, mas um processo de transformação em silencioso curso (SINGER, 2012, p. 46). As mudanças seriam provenientes desde cima e a partir da liderança de Lula, que conduziu uma política de inclusão social através de programas de redistribuição de renda e de combate à miséria, da valorização do salário mínimo e da ampliação do crédito. Tais programas garantiram o suporte ao lulismo3 por parte da massa de excluídos que recebeu apoio dos programas governamentais (SINGER, 2012, p. 30). De forma quase imperceptível, a administração liderada por Lula gerou algumas importantes modificações, proporcionando o aumento de recursos da classe excluída e miserávelo que levou à diminuição da pobreza e criação de um mercado interno mais pujante. Para Singer, as mudanças provocadas por Lula poderiam tornarse estruturais, desde que continuadas ao longo do tempo, porém a redistribuição da renda foi lenta, mantendose ampla desigualdade social, o que poderia significar insustentabilidade das mudanças em caso de crise (Singer, 2012, p. 46).

A mesma ideia, de mudança sem confrontação, pode ser percebida na Política Externa e de Defesa, assim como nas relações entre civis e militares.

No que se refere à Política Exterior, houve a adoção de um tom mais ameno, se comparado à histórica posição do PT. Ao analisar as propostas do partido para a área

Almeida destaca que gradualmente foi adotado um tom menos confrontativo, sendo que na primeira campanha presidencial pósredemocratização, em 1989, a perspectiva adotada pelo Partido dos Trabalhadores era explicitamente antiimperialista e enfatizava termos como a "solidariedade entre os povos" e a "libertação nacional" (ALMEIDA, 2003, p. 8990). Já em 2002, o autor nota uma posição mais pragmática, com destaque para a conexão entre desenvolvimento e Política Exterior e mais próxima às posturas tradicionais do Itamaraty (ALMEIDA, 2003 p. 96). Contudo, traduzir a condução da política externa como mera continuidade, seria a recusa em identificar mudanças de postura e de maior empenho para fortalecer a região e ampliar vetores até então secundários. Uma compleição para a orientação na política externa alinhava, de forma inusitada, interesses das duas burocracias, o Itamaraty e as Forças Armadas. Uma perspectiva mais soberanista seria a tradução mais geral desta aproximação, a somarse à desenvoltura do próprio presidente na ação externa, além da atuação de seu assessor para assuntos internacionais, e dois ministros – Relações Exteriores e Defesa  empenhados em projetos convergentes, como é o caso da UNASUL.

Durante o governo Lula, houve empenho para a promoção de importantes mudanças em comparação ao governo anterior, mas não houve rompimento com o Itamaraty, sendo que Lula nomeou como Ministro das Relações Exteriores um diplomata de carreira, Celso Amorim, e houve convergência de visões de mundo com o setor mais nacionalista e autonomista de tal burocracia (Hurrel, 2010, p.61). Por outro lado,o cargo de assessor especial da República foi exercido por Marco Aurélio Garcia, intelectual próximo ao PT, o que representou uma novidade importante em vista do relativo monopólio exercido pela corporação diplomática.

O governo não promoveu rupturas, mas ajustes e mudanças de ênfases, além da inclusão de novos temas e diversificação das parcerias, com a valorização das relações com a África e com os países em desenvolvimento. Nesse sentido, Vigevani e Cepaluni defendem que:

Na nossa interpretação, ao mesmo tempo em que não houve ruptura significativa com paradigmas históricos da política externa do Brasil, sendo algumas das diretrizes desdobramentos e reforços de ações já em curso na administração FHC, houve uma significativa mudança nas ênfases dadas a certas opções abertas anteriormente à política externa brasileira (2007, p. 3).

O governo Lula adotou uma postura reformista da ordem internacional que, no entanto, não significava um confronto com as potências e a ordem internacional dominante, tendo ocorrido mais a partir de uma ativa atuação nas Organizações Internacionais. Apesar de o Brasil ambicionar destaque internacional e reconhecimento como potência, atuou principalmente através do soft power, entendendo que podia se sobressair como um ator importante por sua capacidade de negociação e de promover consensos. Assim, o país buscou consolidar sua liderança a partir da negociação e da ideia de se tornar um conciliador entre o Norte e o Sul (NARLIKAR, 2010).

No período, o governo seguiu uma política de busca de autonomia através da aproximação com a região e da cooperação com outros países emergentes e da proposição de maior multilateralismo internacional, como forma de amenizar a concentração de poder nas mãos de grandes potências, especialmente nos Estados Unidos. Essa concepção foi posta em prática a partir de uma estratégia que buscava consolidar o país como uma potência com influência global, através da atuação coordenada com outros países emergentes e da defesa de reforma das Organizações Internacionais, de maneira a garantir maior representatividade aos países emergentes (MYAMOTO, 2013, p. 26).

Assim, o governo defendeu a reforma do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), argumentando que o aumento da multilateralidade e da representação de países em desenvolvimento traria maior legitimidade e efetividade a essas instituições. Tal reivindicação mostra uma ambição brasileira de possuir maior influência em tais organismos, como se pode notar em sua candidatura a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e em sua atuação a partir do G4, formado por Índia, Alemanha, Japão e Brasil, para atingir esse objetivo (Lechini; Giaccaglia, 2010, p. 61). Tal postura mostra também um questionamento da concentração de poder existente na ordem internacional e uma reivindicação de maiores espaços para os países emergentes.

No que se refere às relações com os EUA, de acordo com Vigevani e Cepaluni, apesar de o governo Lula ter buscado diversificar os parceiros internacionais, de forma a reduzir a dependência dos EUA, a manutenção de boas relações com este país continuou a ser concebida como importante(2007, p.34). Os autores apontam que a despeito de uma imagem inicial desfavorável a Lula nos Estados Unidos, tal representação foi dissipada após a eleição do presidente, sendo que George Bush contatou Lula após a eleição e convidouo para visitar seu país, o que ocorreu antes da posse. Neste sentido, as relações entre Brasil e Estados Unidos foram conduzidas mais por uma orientação de simpatia mútua que por divergências e a previsão de antagonismo recíproco não se tornou realidade (Vigevani; Cepaluni, 2007, p. 307).

Concomitante à manutenção de boas relações, o Brasil atuou ativamente na construção de organismos regionais, a exemplo da União Sulamericana de Nações (UNASUL) e da Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos (CELAC), que excluem explicitamente os Estados Unidos e visavam a que os conflitos e tensões regionais pudessem ser resolvidos de forma endógena, sem a participação da potência do Norte. Principalmente no que se refere à UNASUL, a cooperação regional significou uma tentativa de construção de um espaço geopolítico com autonomia no que se refere aos EUA, especialmente com a criação do Conselho de Defesa Sulamericano. A construção do organismo representa uma inovação geopolítica, tendo em vista que, até então, a coordenação política e discussão de temas de Defesa tinha como âmbito principal de referência as organizações hemisféricas (LIMA; SOARES, 2014).
Contudo, mesmo nesse aspecto, a ideia de não confrontação com os polos de poder pode ser percebida através da comparação entre as propostas venezuelana e brasileira para a cooperação em Defesa na América do Sul. Enquanto a Venezuela propunha a criação de uma Organização do Tratado do Atlântico Sul4 (OTAS), inspirada na OTAN e de caráter antiimperialista, a proposta brasileira, que se materializaria na construção do Conselho de Defesa Sulamericano (CDS), foi a de um órgão que objetivasse a cooperação e coordenação em Defesa, assim como a construção de uma identidade regional (UNASUR, 2008). Portanto, com este enfoque, o CDS buscaria uma autonomia com relação aos Estados Unidos, mas sem se contrapor a este país. Ao propor a construção de uma identidade sulamericana de Defesa, o CDS, apesar de não significar uma confrontação com os Estados Unidos, representa uma diferenciação, a proposição de um nós, América do Sul, diferente do restante do continente americano, que se apresenta como o outro (Flemes; Nolte; Wehner; 2011, p. 115). Assim, tanto no plano interno como no externo, podese identificar certo hibridismo no lulismo, pela combinação de não confrontação com o capital e com os polos de poder, e a adoção de políticas que significavam um questionamento da ordem vigente.

Nas questões relativas à política de defesa, os governos de Lula promoveram o embrião de uma perspectiva normativa mais clara neste campo, com a primeira edição da Estratégia Nacional de Defesa e os primeiros passos para a apresentação do Livro Branco de Defesa Nacional, em também sua primeira edição. De mais a mais, ampliou os gastos orçamentários em defesa, além da já referida atuação para a criação do Conselho de Defesa Sulamericano. Contudo, nas relações civismilitares o lulismo revelaria sua postura de não confrontação, portandose de maneira similar aos governos pós1985 ao manter uma postura de aquiescência com o passado autoritário. Ainda que apelos tenham sido apresentados para a revisão da Lei de Anistia e a instauração de uma Comissão da Verdade com possibilidades efetivas para a punição de atos contrários aos direitos humanos cometidos durante o regime de exceção, a posição do lulismo foi pela contemporização, gramática política orientada para não criar turbulências. Outrossim, em ocasiões propícias ao reforço da condução política, o governo Lula optou por evitar ruídos com os militares, como no caso da destituição do ministro da Defesa José Viegas Filho. Desta forma, as características da transição da década de 1980 seriam mantidas em sua essência, sem que houvesse sequer tentativas de afrontar o pesaroso passado autoritário.

O lulismo revela um traço marcante da cultura política brasileira, pouco afeita a rupturas e inflexões expressivas, e vinculada a fazeres que impelem a manutenção da ordem social. Por outro lado, rompe com os ditames tradicionais e fórmulas políticas dedicadas a enfrentar as desigualdades sociais e a propor uma nova configuração social, em boa medida calcada nas oportunidades de consumo. Dotada de singular interpenetração de sintaxes contraditórias, garantiu a acomodação suficiente para produzir avanços sociais e barrar modificações políticas.

 

Kirchnerismo: de afrontas e inflexões

Ao contrário da eleição de Lula, que ocorreu sem grandes perturbações, a ascensão de Néstor Kirchner ao poder se deu em um momento excepcional, tendo em vista a crise econômica e institucional desencadeada em 2001. A eleição de Kirchner foi peculiar, sendo que o mesmo foi eleito contando com apenas 22 por cento dos votos válidos, após a desistência de Carlos Menem, que abandonou o pleito antes do segundo turno (Montero; Vincent, 2013, p. 125).
Além disso, a eleição ocorreu em um período de grave crise econômica e institucional, a qual teve um impacto profundo na sociedade e na política argentina. Portanto, o contexto da eleição de Néstor Kirchner foi marcado por uma sensação de anormalidade, tendo em vista a situação de default, os altos índices de desemprego e pobreza e a falta de credibilidade nas instituições políticas (Busso, 2014, p 13). Assim, entendese que a crise de 2001 promoveu um contexto propício ao questionamento do Consenso de Washington, o que tornou a proposição de ruptura mais próxima à realidade nacional do que no caso do Brasil. Neste sentido, entendese que há um vínculo entre a situação de crise e uma maior possibilidade de inovar politicamente (Busso, 2014, p. 12).
Nesse momento, a sociedade argentina estava marcada por uma descrença nas instituições políticas, a qual foi representada na frase "que se vayan todos", predominante nos protestos que ocorreram em 2001 e 2002, e gerou uma demanda por uma nova maneira de fazer política. Busso entende que a situação de descrença popular nas instituições proporcionou o fortalecimento de uma concepção de democracia na qual há questionamento da centralidade atribuída às instituições liberalrepublicanas e destaque aos elementos de soberania popular. Assim, enquanto o governo de Menem teria sido marcado pelo fortalecimento das instituições e pela desmobilização popular, no período Kirchner haveria um movimento em sentido contrário (Busso, 2014, p. 15).
Tendo em vista a situação de crise, o discurso kirchnerista defendia uma inflexão com o passado recente argentino. Assim, questionavase a política neoliberal levada a cabo durante a década de 1990, que havia conduzido à aproximação com os Estados Unidos, a uma política de abertura econômica, à dolarização e à diminuição da intervenção do Estado na economia, e que foi interpretada como responsável pela irrupção da crise de 2001 (STUART, 2008, p. 23). Nesse sentido, aparece, por exemplo, no discurso de posse de Nestor Kirchner a ideia de reconstruir a nação5 (KIRCHNER; 2003).

No entanto, apesar da ideia de ruptura com o passado recente, o kirchnerismo representou também um resgate e uma identificação com o peronismo. Há semelhanças entre o discurso de Perón e Kirchner, a partir da representação como parte do povo, e de políticas que visavam à justiça e à inclusão social, temáticas centrais do peronismo (Montero; Vincent, 2013, p. 126127).

O kirchnerismo foi marcado por um discurso de confrontação com setores considerados próximos às ideias do menemismo ou críticos das concepções defendidas pelo governo. Assim, houve uma retórica forte com setores da mídia, como o periódico La Nación, com empresas estrangeiras instaladas no país, com setores do agronegócio e com organismos internacionais, a exemplo do Fundo Monetário Internacional (FMI) (Busso, 2014, p. 15).

Além disso, o kirchnerismo atribuiu centralidade à questão das relações entre civis e militares. Néstor Kirchner identificavase com a geração de militantes dos anos de 1970 e, a partir de tal representação, seu governo atribuiu prioridade ao tema dos Direitos Humanos e da reparação pelos crimes da ditadura. Foram colocadas em prática medidas simbólicas, podendose destacar que Kirchner ordenou que fossem retiradas as fotos dos expresidentes de fato Rafael Videla e Reynaldo Bignone do Pátio de Honra do Colégio Militar e criou o Museo de la Memoria naEscuela de Mecánica de la Armada (ESMA), que havia sido um centro de detenção da ditadura (MONTERO; VINCENT,2013, p 134) Kirchner logrou ainda que a Corte Suprema de Justiça anulasse, em maio de 2005, as leis de ObedienciaDebida y Punto Final, o que permitiu a volta do julgamento dos responsáveis pelos crimes contra a humanidade cometidos durante o período da ditadura militar (Montero; Vincent, 2013, p. 134). Neste aspecto, as medidas colocadas em prática por Kirchner significaram a busca de Memória e Justiça no que se refere ao período do regime militar e geraram o apoio de organizações de Direitos Humanos como a das Mães e Avós da Praça de Maio (Stuat, 2008, p. 32).

Em 2005, Néstor Kirchner nomeou Nilda Garré como Ministra da Defesa, a qual possuía um histórico de militância e uma postura reformista principalmente no campo dos Direitos Humanos. Durante sua gestão, foi realizada a Regulamentação da Lei de Defesa Nacional, reformas no campo da educação militar e no Código de Justiça Militar e foi se instituindo o controle ministerial para o orçamento da pasta. Em que pese tais reformas, Diamint (2013) considera que ainda há muito que fazer para alcançar um sistema de Defesa democrático e claramente conduzido pelo governo eleito. Mesmo com tais limitações, a gestão de Garré significou importantes avanços para a condução política da Defesa, reduzindo a autonomia militar.

No plano externo, a identificação com o peronismo ocorreu a partir da busca de uma Política Externa autonomista e mais nacionalista, elementos presentes no paradigma da "Terceira Posição" de Perón (Simonoff, 2008). Neste sentido, também buscou uma diferenciação com relação às posições menemistas, que se guiavam pela posição de alinhamento com os Estados Unidos. No entanto, a proposição de ruptura em política exterior deve ser matizada, tendo em vista que apesar de mudanças significativas, a manutenção de boas relações com os Estados Unidos continuou a ser um tema central e o governo buscou apoio de tal país para a renegociação da dívida. A principal diferença, contudo, seria que com o governo de Kirchner a Argentina começou a não corresponder às demandas da potência do Norte nos casos em que os interesses de ambos eram contrapostos, não apenas em termos comerciais, mas também estratégicos (Busso, 2006). O país foi contrário, por exemplo, à securitização da Política Exterior dos EUA e à estratégia de guerra ao terror promovida após os atentados ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001. O período também foi marcado por uma posição firme nas Conferências de Ministros de Defesa das Américas, nas quais a Argentina defendeu a separação clara entre os conceitos de Defesa Nacional e Segurança Interna, à diferença da posição dos EUA, que buscavam definir temas como o narcotráfico como problemas de Segurança Internacional, porém sem distinguir os meios a serem empregados nesta área.

As diferenças nas Políticas Exteriores de Menem e Kirchner são decorrentes do predomínio de diferentes concepções de desenvolvimento, pois enquanto o governo Menem acreditava que o desenvolvimento seria proveniente do alinhamento com os EUA e da abertura comercial, o governo de Kirchner entendia que o desenvolvimento seria proveniente de uma postura autonomista e da maior intervenção do Estado na economia, incluindo a adoção de uma política protecionista (BUSSO, 2014, p. 12). A concepção de desenvolvimento kirchnerista a aproxima dos ideais peronistas, que também defendiam a necessidade de garantir autonomia com relação às grandes potências e induzir o desenvolvimento a partir do Estado. Nesse sentido, o discurso de política exterior do governo Kirchner resgata termos como o interesse nacional e a divisão do mundo em NorteSul6.

Assim, a política exterior de Kirchner apresenta uma postura reformista do sistema internacional, questionando os organismos de governança global, principalmente no âmbito econômico. A política externa de Kirchner foi marcada por uma retórica firme com relação ao FMI, sendo que o governo defendeu a necessidade de reforma do organismo e argumentou que o mesmo atuou com irresponsabilidade ao pressionar a América Latina a adotar políticas econômicas liberalizantes, atribuindo certaresponsabilidade ao organismo internacional pela crise argentina. Apesar disso, é importante destacar que a Argentina continuou pagando os juros da dívida (CERPI – IRI, 2006, p. 23).

A busca de autonomia desenvolveuse durante o período Kirchner a partir da concepção de aproximação com a região, sendo que as relações com os vizinhos foram apresentadas como prioritárias pelo governo. Apesar de uma resistência inicial
a proposta brasileira de ampliar a integração regional para o âmbito sulamericano (CORTES, CREUS, 2010), após a construção da UNASUL, o país passou a atuar ativamente no bloco, com destaque para o importante papel exercido por Néstor Kirchner como primeiro SecretárioGeral. No que se refere à política de Defesa, a Argentina atuou de maneira ativa no Conselho de Defesa Sulamericano, em particular pela proposta de criação do Centro de Estudos Estratégicos (CEED), vinculado ao CDS e que possuí sede em Buenos Aires; a atuação conjunta com o Chile na construção de uma metodologia sulamericana para mensurar gastos de Defesa e sua participação no projeto da Escola Sulamericana de Defesa (ESUDE).
No âmbito específico da cooperação em Defesa, a postura argentina é mais clara que a brasileira, sendo que há uma transferência de parte da Defesa para o âmbito regional e o país defende a construção de um mecanismo subregional, assim, a postura argentina neste âmbito não apenas é cooperativa, mas tende a ser integrativa (LIMA; SOARES, 2014, p. 338). No Livro Branco de 2010 houve a afirmação que

A concepção argentina se funda também no reconhecimento da importância que a cooperação interestatal e o multilateralismo possuem na questão [da Defesa], como genuínos instrumentos complementares da política de defesa própria. […] Argentina concebe sua defesa em uma dupla dimensão de autônoma, por um lado, e cooperativa, por outro (Argentina, 2010, p. 44, tradução livre)

Em síntese, percebese que no plano externo o kirchnerismo possui um discurso de confrontação limitado a temas específicos, principalmente econômicos, e que foi utilizado de maneira cautelosa, sendo confrontativo no que se refere às organizações financeiras internacionais, mas não no que se refere aos EUA. Externamente, ocorre uma divisão entre nós e eles, a partir de uma identificação com a América Latina, e mais tarde com a América do Sul, que diferencia a região dos Estados Unidos, embora não se oponha ao país e busque a manutenção de boas relações. Neste sentido, Paikin argumenta que o vínculo com a América Latina tornase um reforço à autonomia pela possibilidade de contar com maior apoio em temas específicos, como a questão da dívida externa e das Malvinas. Para o autor, a "menção a América Latina gera um posicionamento imediato dos diversos setores sociais entendendo o processo em questão como de confrontação ao mundo desenvolvido, construindose então um forte mecanismo de reforço identitário" (PAIKIN, 2012, p. 143, tradução livre).

Lulismo e Kirchnerismo: impactos para as relações bilaterais e para o regionalismo

As mudanças apresentadas pelo lulismo e pelo kirchnerismo promoveram certa conflução nas concepções de mundo predominantes no Brasil e na Argentina, gerando algumas convergências na Política Exterior. O resultado mais efetivo das posições foi a busca por uma inserção internacional mais autônoma, atribuindo importância ao entorno regional e centralidade à leitura de mundo a partir da divisão em NorteSul.

Neste sentido inserese a atuação conjunta dos países do MERCOSUL no sentido de questionar o projeto de criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). A articulação entre Brasil e Argentina com relação à ALCA já estava presente durante o governo de Menem e Fernando Henrique Cardoso, mas foi durante o governo de Lula e Kirchner que as negociações tornaramsemais complexas e o projeto foi enfim abandonado. Houve também convergência de posições sobre a necessidade de reforma dos organismos de governança global e questionamento do vínculo automático entre democracia liberal e paz, argumentandose sobre a necessidade de promoção da justiça social.

No entanto, no caso brasileiro, o questionamento à ordem vinculase à demanda de que os países emergentes, entre os quais o próprio Brasil, sejam reconhecidos e tenham maior voz nas Organizações Internacionais. Nesse sentido, no caso brasileiro, o questionamento à ordem é articulado com a ambição de consolidar o papel de potência, o que gera divergências entre Brasil e Argentina, como se pode perceber na recusa argentina em apoiar a candidatura do vizinho a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Além disso, houve modificações na forma de entender a integração regional, questionandose o modelo de regionalismo aberto. Esse conceito foi a base de criação do MERCOSUL e significava a combinação da integração regional com a abertura econômica em âmbito internacional. Neste modelo, a integração regional seria percebida como uma forma dos países prepararemse para a abertura econômica em âmbito mundial e deveria ser feita tendo como foco a liberalização econômica entre os países participantes (Cervo, 2008, p. 79).

Como um indício de uma nova concepção de regionalismo, no primeiro ano dos governos de Lula e Kirchner, firmouse o "Consenso de Buenos Aires", documento que restabelecia as bases da parceria bilateral e do MERCOSUL. A denominação do documento aparentemente representa uma contraposição ao "Consenso de Washington", mostrando a intenção de construir uma integração com base mais autonomista. O documento enfatizava a parceria bilateral e estabelecia uma reformulação do MERCOSUL, que a partir de então deveria atribuir maior importância às áreas não comerciais, com destaque para o âmbito social. O documento define o MERCOSUL como um "espaço catalisador de valores, tradições e futuro compartido" (Lula da Silva; KIRCHNER, 2003). As mudanças na forma de entender a integração regional também podem ser percebidas na criação na Unasul, a qual tem um caráter menos comercial e visa à coordenação regional em diversos âmbitos, com destaque para a articulação política e cooperação em Defesa.

Contudo, enquanto a ideia de autonomia levou a uma política claramente regionalista por parte do governo argentino, a política regional era parte da busca de autonomia brasileira, sendo que esta ocorria também em outros âmbitos, como na articulação com países emergentes e no objetivo de consolidação do país como uma potência com influência global. Neste sentido, no governo de Lula a cooperação regional foi inserida em uma concepção universalista da Política Exterior, perpetuando a tradição do Itamaraty. Por conseguinte, percebese que a Argentina concebe a integração regional como uma maneira para a região se fortalecer, enquanto o Brasil a entende como um âmbito prioritário de sua Política Exterior, mas adota uma inserção internacional universalista e busca destacarse internacionalmente de maneira individual. No campo específico da Defesa e da Segurança Internacional, a postura regionalista da Argentina é mais clara, pois o país possui uma posição não apenas cooperativa, mas orientase para uma posição mais integrativa. No entanto, no que se refere ao regionalismo de maneira geral, a Argentina atuou de maneira ambígua no período e adotou políticas que colocaram travas ao aprofundamento do MERCOSUL, podendose citar as medidas restritivas ao livrecomércio, que produziu tensões nas relações com o Brasil. Outro tema que dificultou o aprofundamento do MERCOSUL referese ao conflito com o Uruguai, decorrente da instalação de papeleiras no Rio Uruguai que divide os dois países.

Portanto, lulismo e kirchnerismo promoveram mudanças, tanto no âmbito interno quanto no da Política Exterior, que gerou aproximação entre os países, uma revisão da concepção de regionalismo e vontade política para promover o aprofundamento da cooperação regional. No entanto, o processo não avançou sem obstáculos e em alguns aspectos – como no caso do MERCOSUL – as dificuldades apresentamse de maneira importante, dificultando que a expectativa de aproximação bilateral se traduza em um comportamento mais previsível, estável e concertado. Assim, apesar de aproximações em importantes aspectos, há diferenças que aumentam os desentendimentos e as fricções, como têm ocorrido de maneira recorrente no que se refere ao comércio bilateral.

Os modelos de inserção internacional organizamse de forma diversa e refletem, externamente, as características que apresentam na esfera doméstica. O lulismo, com sua marca de conciliação, assentouse em uma política externa cujo mote pode ser sintetizado pela máxima "pactar y negociar" no modelo proposto por Brieger (2009), enquanto o kirchnerismo oscila entre a confrontação e a negociação. Nesse sentido, a opção de Lula por não romper com os militares levou à continuidade da autonomia dos mesmos na formulação de Políticas de Defesa, o que ocorre de maneira diferenciada no caso argentino, onde houve maiores avanços na condução política neste campo.

O advento do lulismo e do kirchnerismo representou o resgate de traços de uma concepção de desenvolvimento na qual há o questionamento da ordem dominante, com a pretensão de superar o subdesenvolvimento através de políticas de intervenção estatal. Nesse sentido, houve uma revisão das políticas apresentadas pelo Consenso de Washington e da concepção do predomínio do mercado como regulador da economia e das relações sociais.

Em que pesem as diferenças de ritmos de mudanças, esses traços traduziramse em uma concepção mais próxima sobre o regionalismo, na qual a centralidade do comércio é questionada e atribuise importância à cooperação política e em Defesa. Assim, ao contrário do regionalismo aberto da década anterior, o regionalismo passou a ser concebido de forma mais autonomista por ambos os países. No entanto, existiriam importantes diferenças no grau de importância atribuído à região, sendo que para a Argentina a estratégia de inserção internacional autônoma traduzse, em boa medida, pelo regionalismo, enquanto para o Brasil a região apresentase apenas como parte da estratégia de alcançar o patamar de potência reconhecida internacionalmente.

No campo da Defesa e Segurança Internacional e no âmbito interno, como apontado, há uma diferença importante, que impacta na cooperação regional e referese à questão das relações entre civis e militares. As distinções entre a Argentina e o Brasil são marcantes neste campo. Enquanto o kirchnerismo tomou a clara decisão de estabelecer o controle político sobre os militares e promover avanços no processo de revisão do passado, o lulismo esteve orientado para evitar confrontos com as instituições militares e manterse distante de uma ação proativa no campo dos Direitos Humanos e na proposição de julgamento de responsáveis por crimes atentatórios a estes mesmos direitos. O resultado é que no Brasil é mantida relativa autonomia dos militares, não mais na perspectiva ampliada do passado e que se espargia por vários campos da vida social e política, mas ainda suficiente para deliberar sobre as orientações mais gerais das concepções de cooperação em Defesa e nas práticas brasileiras no CDS. Um país – a Argentina  atua buscando operar de forma desenvolta nesta área e a partir de uma direção política. O Brasil, por seu turno, aplicase neste campo sem ter consolidado uma direção política efetiva.

Os dois países permanecem em um gradiente que vai da aliança à sociedade estratégica (Cortes, 2006). De outro modo, ultrapassam uma cultura estratégica recíproca, porém sem atingir o patamar de uma cultura estratégica conjunta (Motta, Soares, 2013), quando então se organizariam, no campo da Defesa e da Segurança Internacional, por um desenho de integração mais avançada, por uma identidade compartilhada e por estratégias estabelecidas de forma comum.

Com base nestas singularidades, a construção de uma identidade em Defesa e Segurança Internacional não se aprofunda, de modo que os interesses de cada país não revelam valores e crenças suficientemente compartilhados, criando dificuldades para que as ações nesta área confluam para posturas e práticas comuns – a marca de um processo identitário robusto  objetivo intersubjetivo da criação do Conselho SulAmericano de Defesa quando aponta para a construção de uma identidade regional. Os empecilhos, por certo, não impediram que os dois países tivessem registrado uma

aproximação importante e crescente, confluindo na perspectiva da criação da UNASUL e do referido Conselho. Há um claro avanço na perspectiva do entendimento, porém permanecem dissonâncias a que o lulismo e o kirchnerismo não tiveram capacidade de modificar. Em boa medida, as dissonâncias ressaltam as distinções entre os dois sistemas políticos. O kirchnerismo foi mais propenso a inflexões e mesmo rupturas, principalmente no plano interno e em temas específicos no plano externo, enquanto o lulismo demarcase por um formato mais conciliador, em uma e outra dimensão. De toda sorte, os dois modelos propugnavam e atingiram mudanças substantivas, também nos dois planos, o que os diferencia marcadamente dos governos imediatamente anteriores.

Referencias:

1 As referências ao Consenso de Washington e ao neoliberalismo buscam remeter a uma série de políticas adotadas, de formas e em graus diferenciados, pelos países da América Latina nos anos 1990 a exemplo da desregulamentação financeira, da abertura comercial, e das privatizações, entre outras, que visavam à diminuição da responsabilidade do Estado nas áreas econômico e social.

2 Para AnabellaBusso, o alinhamento entre a Argentina e os Estados Unidos não era completo, tendo em vista que houve pontos de desacordo entre ambos os países no que se refere aos temas comerciais, principalmente com relação aos subsídios agrícolas adotados pelos EUA e que eram contestados pela Argentina. Ao analisar as relações bilaterais naquele período, a autora percebe "una realidad más compleja que el mero hecho de alineamientoirrestricto y ingenuo" (BUSSO, 1994, p. 98)

3 A categoria analítica do lulismo, tal como proposta por Singer (2012), alude ao formato com que, no governo Lula foi promovida "a adoção de políticas para reduzir a pobreza...sem confronto com o capital" (p. 13). A tese do autor, aqui compartilhada, é que o "lulismo faz uma rearticulação ideológica, que tira centralidade do conflito entre direita e esquerda, mas reconstrói uma ideologia a partir do conflito entre ricos e pobres" (p. 32). Agradecemos ao parecerista ad hoc por nos chamar atenção em relação a este ponto.

4 Ver: O ESTADO DE S. PAULO. No Brasil, Chávez defende uma Otan para a América do Sul. 26 de março de 2008. Disponível em: http://internacional.estadao.com.br/noticias/americalatina,nobrasilchavezdefendeumaotanparaaamericadosul,146198

5 Emseu discurso de posse, Kirchner declarou que: "vengo, en cambio, a proponerles un sueño: reconstruir nuestra propia identidad como pueblo y como Nación" (2003).

6 Nesse sentido, Cristina Kirchner declarou por exemplo que "siempre creímos [...] en la Nación, palabras que tal vez en tiempos de la globalización no suenen bien o suenen raro" (2007) e o chanceler Jorge Taiana argumentou que entre as características da Política Exterior de Néstor Kirchner se destacaria"un claro y decidido compromiso con el interés nacional. [...] esa visión, olvidada en tiempos no muy lejanos, ha reubicado en nuestra agenda" (2006).

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