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Relaciones internacionales

On-line version ISSN 2314-2766

Relac. int. vol.25 no.50 La Plata July 2016

 

EDITORIAL

Os think tanks dos EUA e as visões sobre a atuação internacional do Brasil*

The US think tanks and visions about Brazil´s international operations

Eduardo Munhoz Svartman**


Resumo:

O artigo aborda a produção ideacional de think tanks dos Estados Unidos a respeito da projeção e da atuação internacional do Brasil. Num contexto no qual os EUA não possuem ainda uma estratégia consolidada para lidar com os chamados emergentes, a produção dos think tanks, por buscar influenciar a formulação de políticas, é repre-sentativa das visões difundidas e das opções discutidas no ambiente político de Wa-shington. Argumenta-se que as visões a respeito do Brasil de forma geral e da sua atuação nos planos regional e global são majoritariamente favoráveis e que os think tanks recomendam que os EUA apoiem a projeção brasileira como forma de melhorpreservar seus interesses numa ordem multipolar que se desenha.

Abstract:

The article works on the ideational production of United States´ think tanks regarding Brazilian international projection and performance. In a context in which the US are lacking a consolidated strategy to deal with so-called emergents, think tanks´ produc-tion-aiming at influencing policies´formulation – is representative of ordinary views and disputed options within Washington´s political environment. The paper asserts that views regarding Brazil and its performance in regional and global fields are over-whelmingly favorable and that think tanks recommend the US to support the Brazili-an projection as the best way to preserve its interests within an upcoming multipolar order.

Palavras-chave:

relações Brasil-Estados Unidos; think tanks; potências emergentes

*Recibido: 15/10/2015. Aceptado: 17/12/2015. Esta pesquisa conta com apoio do CNPq e da CAPES.

*Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil


Introdução

Este artigo pretende apresentar resultados ainda preliminares da pesquisa em curso a respeito das visões difundidas pelos think tanks (TT) mais influentes dos Esta-dos Unidos a respeito das políticas externa e de defesa do Brasil. A premissa básica aqui adotada sustenta que, diante da mudança na distribuição de poder no sistema internacional, marcada pela emergência de novas potências, os Estados Unidos ainda não tem uma estratégia plenamente sedimentada para lidar com os diferentes países que assumem novo status, entre eles o Brasil. Em função disso e das características do sistema político estadunidense, há uma abertura bastante significativa das admi-nistrações para receber influxos dos centros de pesquisa politicamente orientada, os think tanks, nos processos de formulação das políticas a serem adotadas. Investigar aprodução e circulação de estudos destes institutos é, pois, estabelecer o horizonte de possibilidades das formulações estratégicas da potência neste período de transição.

Como hipótese preliminar sustenta-se que os think tanks apresentam visões majoritariamente favoráveis a respeito do Brasil de forma geral e da sua atuação nos planos regional e global. Essa visão, geralmente associada, no plano doméstico, ao bom desempenho econômico, manutenção de políticas macroeconômicas ortodoxas e da redução dos índices de pobreza, e, no plano externo, a um discurso reformista moderado, autoriza recomendações de que o governo dos Estados Unidos estreite relações com o país no sentido de um "engajamento" estratégico numa série de temas. Tais representações e recomendações estariam associadas a uma relativa aceitação de uma ordem interacional multipolar e da busca de parceiros "responsá-veis" para dividir os custos de manutenção dessa ordem e para conferir legitimidade a um sistema não mais unipolar, mas no qual os Estados Unidos ainda detenham prerrogativas excepcionais.

A definição do escopo da investigação partiu da literatura sobre think tanks nos EUA no sentido de avaliar a agenda temática e de fazer uma primeira aproximação à sua atuação e produção. De um universo de mais de 1800 think tanks dedicados às mais variadas temáticas (McGann, 2013), foram extraídos 30 dedicados às questões de política externa e de defesa nacional e que tenham produzido estudos sobre o Brasil e seu entorno estratégico na última década1. A leitura destes estudos tem sidofeita a partir das ferramentas da análise de conteúdo levando em consideração tanto o que figura nos textos quanto o perfil de cada um dos think tanks. Como se trata de uma pesquisa ainda em curso, este artigo trabalha com a produção de uma amostra de setethink tanks que, embora seja numericamente pequena, é relevante porque prioriza algumas das instituições de maior reputação e consideradas de maior influ-ência pela literatura especializada.
Para tanto, este artigo está organizado em cinco partes, além desta introdução. Primeiramente aprofunda a premissa referida no parágrafo inicial; num segundo momento descreve o fenômeno dos think tanks e seu enquadramento teórico-conceitual nesta pesquisa; posteriormente aborda as visões dos TT dedicados priori-tariamente às relações internacionais, a partir de um corte de orientação ideológica; na quarta parte aborda aqueles think tanks dedicados aos temas de defesa e segu-rança internacional e, na parte final, apresenta as conclusões preliminares deste estudo.

Mudanças sistêmicas e respostas do hegêmona

distribuição do poder econômico mundial, pelo incremento do ativismo políti-co internacional de países intermediários, atualmente classificados como "emergen-tes", e pelo desgaste da credibilidade da potência hegemônica em diferentes regiões do mundo, especialmente desde as intervenções no Iraque e Afeganistão em nome da "guerra global ao terror". De outra parte, a distribuição do poder militar não so-freu alterações muito significativas, o que não tem impedido o debate a respeito de como os Estados Unidos pretende lidar com essa ordem em fluxo (Hurrell, 2006; Kahler, 2013; POSEN, 2009 e 2013).
As mudanças que vêm reconfigurando o ordenamento do sistema internacional se expressam na ascensão econômica e ainda em menor escala militar da China, na emergência de novos fóruns e articulações internacionais como o G-20 e o BRICS e em iniciativas de vários países intermediários no sentido de ampliar suas margens de autonomia, especialmente no seu entorno estratégico regional. O Brasil, nesse senti-do, empreende movimentos combinados de construção de coalizões em organiza-ções internacionais, de projeção econômica e de influência política sobre América do Sul e Atlântico Sul (o que compreende também a África) e, desde a publicação da Estratégia Nacional de Defesa, em 2008, de reativação de suas capacidades militares a partir da produção doméstica e da integração da indústria de defesa no âmbito da América do Sul. Apesar dos limites e ambiguidades desse movimento, frequentemen-te assinalado pela literatura (Malamud, 2011; Flemes, 2012; Cervo e Lessa, 2014), o processo não tem passado despercebido pelos Estados Unidos. Sua atuação e de seus aliados da OTAN que operam no Atlântico Sul, contudo, ainda não é de todo clara. De um lado há a disposição para um "engajamento" com o Brasil em operações de paz, sob mandato da ONU (Haiti e Líbano), e em áreas estratégicas como petróleo, segurança marítima e indústria de defesa, expressa em documentos como a National Security Strategy de 2010 e nos acordos de construção de submarinos e helicópteros com a França. Por outro lado, o incremento da presença militar do Reino Unido e dos EUA no Atlântico Sul e na África, bem como a continuidade das políticas de cercea-mento tecnológico e a dificuldade de coordenação em crises internacionais como a de Honduras, Declaração de Teerã e resolução da ONU sobre intervenção no conflito líbio sugerem que a disposição para o "engajamento" com o Brasil é, no mínimo, limitada.
Essa ambivalência espelha diferentes hipóteses de enquadramento dos emer-gentes por parte de Washington que a literatura vem descrevendo. De um lado, des-de uma perspectiva liberal institucionalista, se desenha a tese da socialização dos emergentes na ordem internacional. Presume-se que, ao envolver os novos poderes (especialmente China, mas também Índia, Rússia e Brasil) nas atuais estruturas e torná-los partes interessadas (ou stakeholders), os EUA e seus aliados europeus po-deriam vinculá-los a atual arquitetura, assegurando então sua influência (Ikenberry, 2003 e 2008). Nesse sentido, a "divisão do fardo" e o fortalecimento de uma ordem liberal com maior divisão do poder (multipolar, portanto), assentada em regras acor-dadas, traria maior estabilidade, forçaria a China (e demais emergentes) a aderir ao invés de competir ou de construir outra ordem internacional e garantiria aos Estados Unidos uma posição de "first among equals" (Ikenberry, 2011).
De outro lado, se desenha a tese da necessidade de contenção dos emergentes. Mais explícita entre os neorrealistas ofensivos, e mais voltada para a China, tende a enfatizar a necessidade dos Estados Unidos preservarem sua independência de ação (unilateralismo) e de cercear o fortalecimento chinês, uma vez que se trataria de uma potência revisionista e que não se integraria à ordem previamente estabelecida sem conflitos (Mearsheimer, 2001 e 2014). Ainda segundo esta corrente, sistemas multi-polares seriam mais suscetíveis à guerra que os uni ou bipolares, de modo que não haveria incentivos para a "divisão do fardo" ou para a ampliação do número de gran-des potências. Infere-se que o Brasil, por estar na região onde os Estados Unidos exercem sua hegemonia, não teria maior espaço para agir de forma autônoma, como um poder emergente.
Uma terceira corrente, crítica tanto aos defensores da "hegemonia liberal" quanto aos defensores da "primazia" norte-americana, advoga a retirada da presença militar dos EUA de várias regiões do mundo, especialmente Europa e Oriente Médio e um engajamento mais seletivo nos cenários que efetivamente representem ameaça existencial aos EUA (Posen, 2014). Tal opção estratégica, em princípio, deixaria espa-ço para que atores regionais organizarem seus entornos de forma mais autônoma, desde que isso não colidisse com interesses estadunidenses. Todas essas teses são objeto de críticas de diferentes matizes, o que reforça o argumento de que há bas-tante incerteza quanto à resposta da potência hegemônica face aos emergentes e de que os Estados Unidos não possuem ainda uma grande estratégia claramente defini-da, o que leva a adoção de políticas ad hoc e aparentemente contraditórias.

Os think tanks e a formulação de políticas nos Estados Unidos

Diante da complexidade das transformações em curso e da dificuldade em se estabelecer com maior precisão um padrão de conduta dos Estados Unidos em rela-ção aos países emergentes em geral e ao Brasil em particular, tanto no que diz respei-to aos temas de política externa quanto aos de defesa, evidencia-se a necessidade de uma compreensão mais aprofundada dos processos de formulação dessas políticas. Não se trata aqui de um estudo sobre processo de tomada de decisão, mas de uma investigação sobre o universo ideacional que informa as decisões que serão tomadas, modelando tanto as opções que aparecem no horizonte de possibilidades dos atores políticos quanto o debate público.
O espaço por excelência em que esse processo se dá, nos Estados Unidos,é o dos think tanks, organizações que podem ser genericamente definidas como dedica-das à pesquisa de políticas públicas e ao fornecimento de análises e assessoria que visam prover os dirigentes políticos de elementos para a tomada de "decisões infor-madas" sobre questões específicas (McGann, 2012). Os think tanks se diferenciam dos centros de pesquisa acadêmicos, mesmo daqueles dedicados ao estudo de políti-cas públicas, por terem o seu foco não exatamente na compreensão de fenômenos, mas na modelagem de políticas públicas e na disposição declarada de influenciar, com base em sua expertise, governos e opinião pública. Frequentemente os TT apre-sentam-se como uma "ponte" entre o mundo acadêmico e o governo. Ainda que alguns dependam de recursos estatais, eles são organizações majoritariamente da sociedade civil, financiados por doações privadas e que, operando no "mercado de ideias", visam exercer influência política (Smith, 1991). De certa forma, isso os torna próximos dos grupos de interesse, porém há diferenças importantes: os think tanks oferecem expertise numa agenda de interesses muito mais ampla que os grupos de interesse, dedicados a causas específicas como controle de armas, por exemplo (A-belson, 2006). Diferente dos grupos de interesse, os TT não são coalizações ad hoc que procuram ampliar sua base de aderentes, trabalham com um número dado de quadros (gestores, pesquisadores residentes e pessoal de apoio) que configuram uma instituição permanente com sede própria e estatuto jurídico específico (McGann e Weaver 2000).

Há diferentes tipos de think tanks, independente do montante de seu orçamen-to, tamanho da equipe ou orientação ideológica. A literatura especializada costuma classifica-los em três grandes categorias 1) Universities without students, ou universi-dades sem alunos, geralmente são compostos por 50 ou mais pesquisadores cujo interesse primário é a pesquisa em torno de questões presentes na agenda de gover-nos e do debate público. Apesar da referência à universidade, suas pesquisas não buscam a produção de conhecimento científico novo, mas influir no debate e na formulação de poíticas públicas.Promovem seminários dedicados a políticos e mem-bros da burocracia. Nos EUA dependem de financiamento majoritariamente privado e tradicionalmente divulgam suas ideias através de livros ou de estudos mais extensos. São exemplo desta categoria a Brookings Institution e o Concil on Foreign Affairs.
2)Government Contractors ou institutos que fornecem pesquisas encomendadasmajoritariamente pelo setor público, foram criados para fornecer expertise específica a governos, procuram não ter agenda política ou ideológica clara e dependem basi-camente de financiamento governamental, publicam relatórios muitas vezes sigilo-sos, os exemplos clássicos são a Rand Corporation e o Center for Naval Analysis.3) Advocacy, ou think tanks de proselitismo político, são bem menores, de financiamen-to privado, defendem uma agenda partidária ou ideológica bastante explícita e a divulgam ativamente através de eventos, artigos de opinião e outros textos concisos, o Center for American Progress e a Heritage Foundation são exemplos dessa catego-ria. Com frequência, os think tanks desta última categoria desempenham ainda outro importante papel: operam como uma "porta giratória" fornecendo quadros para os estratos superiores de administrações identificadas com as suas agendas e, ao fim do governo, acolhendo-os de volta e a políticos sem mandato.
Embora sejam um fenômeno que remonta ao início do século XX, os think tanks tiveram uma vertiginosa expansão nas décadas finais daquele século. A crescente competição no "mercado de ideias" tem forçado ainda os TT a adotarem mecanismos mais semelhantes para difundir suas ideias, como releases de duas ou três páginas, que sintetizam relatórios mais extensos, que dificilmente seriam lidos por políticos absorvidos pelas demandas de seus mandatos ou campanhas, e a postagem de gran-de número de textos e conferências em seus sites na internet. Essa maior publicidade e acessibilidade aos conteúdos produzidos pelos think tanks não mudam, contudo, o sentido original dessa produção: influir na formulação de políticas públicas. É, portan-to, neste universo discursivo que são construídas, testadas, debatidas e difundidas ideias que afetam o processo de modelagem de políticas como as políticas de defesa e externa dos Estados Unidos. Isso não quer dizer que essas políticas sejam gestadas nos TT, o que implicaria em desconsiderar o papel da liderança política, das burocra-cias governamentais e do Congresso. O que se argumenta é que os TT constituem um espaço de mediação e de disputas no campo das ideias que visa declaradamente influir na ação governamental, desempenhando papel vital na elaboração de consen-sos entre elites e mobilizando a opinião publica em torno de iniciativas políticas espe-cíficas (Parmar, 2004).
Em síntese, os think tanks realizam pesquisas voltadas para a ação: as chama-das policy oriented researches; fornecem recomendações para governantes, legisla-dores e quadros da burocracia estatal através de publicações e audiências públicas; organizam eventos para debater temas, promover ideias específicas e facilitar a for-mação de redes; acolhem e fornecem quadros para governos a cada ciclo eleitoral e operam ainda como intérpretes de questões políticas para o grande público através dos meios de comunicação de massa.Assim, os TT constituem um espaço social no qual as lógicas, e demandas, do mundo da política, dos negócios, da mídia e da aca-demia estão em operação ao mesmo tempo e cuja produção ideacional desempenha papel importante na forma como os atores daqueles distintos campos enquadram problemas específicos e as políticas a estes problemas direcionadas (Medvetz, 2012). Portanto, trata-se de espaço privilegiado para se avaliar as opções em discussão para a formulação das políticas relativas aos países emergentes em geral e ao Brasil em particular.

O Brasil nos think tanks de relações internacionais

Nesta seção é abordada uma parte da produção a respeito do Brasil de dois thinktanks bastante representativos. Trata-se da Brookings Instituition e do Councilon Foreing Affairs (CFR), ambos criados no início do século XX, na primeira onda de instituições desta natureza nos Estados Unidos. A Brookings é o resultado da fusão de um instituto dedicado à reestruturação da administração governamental e de uma escola de economia e gestão pública em 1927. Sua proposta, desde então, consiste em ser um instituto de pesquisa independente e não partidário que fornece expertise política imparcial (Abelson, 2006), seu financiamento é oriundo do fundo legado pelo milionário que emprestou o nome ao think tank e de doações privadas. O CFR iniciou como uma espécie de clube de elite que, a partir de 1918, reunia políticos, intelectu-ais e empresários para discutir temas ligados às relações internacionais dos Estados Unidos. Depois da conferência de Versalhes, o CFR transformou-se numa instituição permanente, promovendo também pesquisas na área e, à semelhança da Brookings, colocando-se à margem das disputas partidárias. Desde então, capta seus recursos na sociedade civil, evitando o financiamento governamental. Em 1922 deu início à publi-caçãoda conhecida revista Foreign Affairs (Abelson, 2006). Sua disposição para influ-ência política pode ser avaliada desde cedo: ao longo dos nos 1930, o CFR desempe-nhou um papel importante, junto com seu congênere britânico, a Chatham House, no sentido de difundir ideias ligadas ao maior protagonismo externo dos Estados Unidos e em favor da aliança com o Reino Unido (Legro, 2000; Parmar, 2004).
A Brookings publicou em 2014 um estudo de quase 30 páginas assinado por um de seus pesquisadores residentes, Harold Trinkunas, intitulado Brazil's rise: seeking influence on global governance.O texto apresenta uma discussão teórica a respeitoda ascensão de potências no sistema internacional e oferece uma visão histórica a respeito da emergência brasileira, assinalando, inclusive, o fato de que o país despon-tou internacionalmente nos anos 1970 e sofreu um revés na década seguinte, devido a turbulências internas e a crise econômica. O argumento central de Trinkunas é que o Brasil vem percorrendo um longo caminho no sentido de aumentar sua parcela de poder; sua atuação, contudo, é diferente das outras potências uma vez que não lança mão dos tradicionais recursos econômicos e militares para compelir os demais países a aceitar a sua ascensão. A estratégia brasileira, por sua vez, é classificada como errá-tica, uma vez que o país teria se associado aos Estados Unidos na I e II Guerras Mun-diais, aos países em desenvolvimento nos anos 1960 e, recentemente, aos BRICS, sempre com vistas a melhorar a posição internacional do país (Trinkunas, 2014: 3).
Para o autor,atualmente o Brasil encontra-se numa encruzilhada, podendo a-vançar no sentido de tornar-se uma grande potência ou permanecer como uma po-tência intermediária.Isso dependeria da habilidade do país para ajustar suas limitadas capacidades militares, sua pouca disposição para arcar com os custos econômicos da liderança e sua visão tradicional (e não intervencionista) de soberania às oportunida-des que se abrem. Em termos de recomendações, o autor sustenta que bloquear a ascensão brasileira apenas afastaria os Estados Unidos de uma das poucas potências emergentes cujos cidadãos partilham os mesmos valores dos cidadãos estaduniden-ses. Seria, então, do interesse dos EUA incentivar o desenvolvimento das capacidades do Brasil apoiar a ordem global, inclusive no campo da segurança internacional (Trin-kunas, 2014: 28).
Em 2002, ainda antes do resultado das eleições presidenciais brasileiras, a Fo-reign Affairs publicou um artigo de Peter Hakim (presidente de outro think tank, o Inter-American Dialogue) no qual México e Brasil eram comparados. Ali o México era descrito como um país que se ligara política e economicamente aos Estados Unidos e abrira sua economia para o mundo global, ao passo que o Brasil mantinha sua eco-nomia fechada, mas buscava exercer liderança na América do Sul e se colocava como oponente dos EUA em questões específicas (Hakim, 2002: 148). O texto chama aten-ção, contudo, por identificar no governo Fernando Henrique Cardoso o incremento do protagonismo externo brasileiro e por enfatizar não apenas os temas de desacor-do entre os dois países (Alca e questões comerciais tanto bilaterais quanto na OMC, relações com a Colômbia e embargo a Cuba) mas por assinalar que, apesar das limi-tadas capacidades brasileiras, o país tinha condições de contrabalançar certas inicia-tivas de Washington, especialmente na região. A recomendação do analista, entre-tanto, não era de enfrentamento, mas composição diplomática, principalmente no plano comercial (Hakim, 2002: 162). Dois anos depois, já decorrido o primeiro ano do governo Lula, a revista publicounovo artigo de Hakim com argumentos semelhantes. O autor enfatizava que o Brasil poderia tanto ajudar quanto obstruir as políticas dos Estados Unidos na América Latina, pois seria o único país com peso e independência para desafiar os EUA na região. Avaliava ainda que a oposição entre Brasil e Estados Unidos não era de caráter ideológico, como se dava com a Venezuela, e que, por isso,seria possível um "trabalho construtivo" entre Washington e Brasília. Hakim recomendava que o Brasil fosse sempre consultado em diversos temas e que, com vistas a implantação da Alca, os EUA apoiassem a política econômica do governo Lula (Hakim, 2004: 123).
Em 2011 o CFR publicou oGlobal Brazil and U.S.-Brazil Relations, um extenso relatório de 110 páginas produzido por uma "força tarefa" de 30 pesquisadores. O documento apresenta uma visão acentuadamente positiva do Brasil, descrevendo-o como o "condutor do crescimento na América do Sul" e como um ator global que livrou da miséria 30 milhões de seus habitantes num ambiente de paz, economia de mercado e democracia (BODMAN, WOLFENSOHN e SWEIG, 2011: ix). O texto está organizado em seções que descrevem as características da economia brasileira, a matriz energética do país, suas posições sobre o tema da mudança climática, relações com os vizinhos, política global e relações com os Estados Unidos e, para cada uma delas, faz recomendações específicas para os decisores norte-americanos. Em quase todas as seções a ascensão do Brasil é apresentada como uma oportunidade para os Estados Unidos, raramente como um desafio e nunca como uma ameaça.A atuação brasileira nas negociações nucleares com o Irã é citada negativamente. Contudo, é tratada como um episódio, ainda que não haja consenso entre os autores sobre a pertinência da política brasileira para o Oriente Médio.
O relatório sustenta que, diante da incerteza de uma nova ordem internacional multipolar, é do interesse dos EUA apoiar o Brasil. Para tanto, recomenda que se estabeleça um mecanismo de consulta regular entre os presidentes dos dois países e grupos de contato permanentes entre quadros ministeriais de modo a dirimir equívo-cos e mal-entendidos e a incentivar o estabelecimento de ações coordenadas em vários setores. Recomenda também que o Congresso dos Estados Unidos elimine entraves a produtos brasileiros, como o etanol, e facilite a transferência de tecnologi-a, inclusive para artigos de defesa (BODMAN, WOLFENSOHN e SWEIG, 2011: 28). O documento sustenta que o maior protagonismo brasileiro tanto na América do Sul quanto em nível global é benéfico para os EUA por que o país partilha valores ligados democracia, economia de mercado e direitos humanos e por que suas propostas de reforma das instituições de Bretton Woods não pretendem subverte-las, mas torna-las mais afinadas com seus interesses nacionais e com a ordem multipolar que se desenha. Argumenta, ainda, que interesses em comum não implicam em ações idên-ticas e que os EUA devem compreender e apoiar a liderança brasileira na América do Sul. Por isso, recomenda que o governo dos Estados Unidos declare apoio ao pleito brasileiro por um assento permanente num Conselho de Segurança da ONU reforma-do (BODMAN, WOLFENSOHN e SWEIG, 2011:51, 60). Para os autores do relató-rio, não se trata de propor "relações especiais" entre os dois países, mas uma "rela-ção madura" de trabalho.
Tanto a Brookings quanto o CFR colocam-se como "bipartisan", ou seja, posi-cionam-se no debate e fazem suas recomendações com base na expertise acadêmica e sem uma identificação ideológica e partidária evidente. Esta é, como referido ante-riormente, uma das possibilidades assumidas pelos think tanks. Outra consiste em fazer o mesmo tipo produção ideacional, mas desde uma posição ideológica clara, seja de conteúdo mais conservador, e assim mais próxima do PartidoRepublicano, seja de conteúdo mais liberal,portanto mais ligada ao Partido Democrata.
A emergência dos think tanks de proselitismo nos EUA é um fenômeno dos a-nos 1970 e está diretamente ligada ao pensamento conservador e seu longo embate contra o Estado de bem-estar social. O American Enterprise Institute (AEI) tem raízes que se prolongam até 1938, quando era uma organização que se opunha aos contro-les de preços e produção adotados nos anos da grande depressão e defendia a "livre empresa". Nas décadas finais do século XX, a AEI vivenciou uma grande expansão de seu financiamento, visibilidade e prestígio e sua vinculação com os Republicanos se tornou realmente efetiva quando o ex-presidente Gerald Ford passou a fazer parte de seus quadros (Medvetz, 2012: 106). Desde então, o AEI é um dos mais influentes think tanks conservadores dos EUA.
Em abril de 2015 o AEI publicou um relatório a respeito do Brasil co-escrito por Roger Noriega, que servira como embaixador dos EUA na OEA e assessor do Depar-tamento de Estado para o continente americano no governo George W Bush. Dife-rente dos demais, o texto pouco trata da política externa brasileira, abordando a conjuntura doméstica do país desde as eleições de 2014 até o início de 2015, descrita pelos autores como uma situação de debilidade econômica e crise de governança. Depois de detalhar os escândalos de corrupção e as dificuldades que afetam o gover-no Dilma Rousseff, o texto enfatiza o que considera como principais empecilhos para se fazer negócios no Brasil: ineficiência do setor público, corrupção e sistema tributá-rio (Noriega e Trigo, 2015: 2). Apesar de descreverem um quadro bastante negativo, os autores fazem um voto de confiança na equipe econômica e nas possibilidades do país aproveitar a crise para fazer reformas "orientadas para o mercado" e baseadas na disciplina fiscal e combate à corrupção. Os autores recomendam que o governo dos Estados Unidos dê prioridade ao fortalecimento e ampliação das relações com o Brasil, pois com um PIB de US$ 2,5 trilhões, o país tem potencial para ser um dos mais importantes parceiros comerciais dos EUA. Isso demandaria um esforço diplomático mutuamente benéfico e a harmonização das agendas, o que dependeria também da disposição do establishment brasileiro deixar de ver os Estados unidos como rival (Noriega e Trigos, 2015: 6).
A visão liberal a respeito do Brasil está aqui representada por um estudo do Center for American Progress (CAP), um TT fundado em 2003 cujos membros acumu-lam passagens nos governos democratas de Bill Clinton e Barak Obama.Em 2009 o CAP publicou The United States and Brazil: two perspectives on dealing with partner-ship and rivalry, um documento dividido em duas partes assinadas por Kellie Meiman,ex-diplomata com atuação em vários think tanks e no setor de consultoria, e por David Rothkopf, editor da revista Foreign Policy. Ambos os textos defendemque osEs-tados Unidos conduzam sua política de modo a fazer do Brasil um aliado ou um par-ceiro numa ordem internacional multilateral. Compreendem que o Brasil tenha agen-da e interesses próprios e que estes podem colidir com os dos Estados Unidos, embo-ra isso não implique, necessariamente, em confronto. Isso se daria porque, segundo os autores, seria conveniente para os EUA a liderança global do Brasil, centrada no reformismo moderado das instituições de governança global. Assim como a liderança regional brasileira contrabalançaria o "populismo radical" chavista e limitaria a pre-sença de outras potências na região, como China, Rússia e Irã. Por fim, no plano bila-teral, os autores vislumbram oportunidades para os EUA nos setores de petróleo, investimentos e tecnologia. Assim, a recomendação geral é que Washington busque uma "relação especial" com o Brasil, apoiando sua liderança e indicando a disposição para dar suporte ao pleito brasileiro de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, mesmo que sem poder de veto (Meiman e Rothkopf, 2009).

O Brasil nos think tanks de defesa e segurança internacional

Os think tanks cujos temas de expertise são defesa nacional e segurança inter-nacional desempenham papel importante no "mercado de ideias" de Washington desde a II Guerra Mundial, quando o recrutamento de acadêmicos para assessorar a formulação de políticas tornou-se prática frequente. Neste segmento o financiamen-to estatal é particularmente forte, sendo com frequência a principal fonte de recursos para alguns, como o Center for Naval Analysis (CNA), quando não se trata de think tanks governamentais, como o Institute for National Strategic Studies (INSS), que éparte do Departamento de Defesa. Fundações e empresas privadas também aportam recursos, entretanto mesmo think tanks mais independentes como o Center for Stra-tegic and International Studies (CSIS),que obtém aproximadamente 20% de sua recei-ta do governo, estão bastante atrelados ao Departamento de Defesa2. Os estudos produzidos por estes think tanks não são menos atentos a aspectos políticos e mes-mo comerciais, já que prevalece uma visão estratégica, mas conferem mais ênfase às implicações securitárias desses temas e, obviamente, aos temas estritamente milita-res.
A evolução da visão sobre o Brasil no CSIS é ilustrativa não apenas do maior protagonismo do país, mas de um maior conhecimento a seu respeito. Em agosto de 2002 o think tank divulgou um relatório de tom alarmista a respeito das eleições daquele ano e do risco que uma eventual vitória de Luís Inácio Lula da Silva represen-taria à estabilidade econômica e política do país, ao projeto da Alca eà cooperação com os EUA na guerra ao terror e no combate ao narco-terrorismo. Segundo o relató-rio, o Brasil corria o risco de desfazer a trajetória modernizante dos anos Fernando Henrique Cardoso e de se aproximar de lideranças regionais como Hugo Chaves e Fidel Castro. Apesar do viés da análise, que espelhava a especulação dos mercados financeiros na época, o texto não deixava de descrever o Brasil como a "chave" para a Alca e para a estabilidade do "Hemisfério" e insistia na necessidade de maior enga-jamento dos EUA com o Brasil (Wilson, 2002). Uma década depois o CSIS divulgou outro documento, por ocasião da visita de Dilma Rousseff a Washington em 2012. Neste texto o país é definido como "já mais do que um poder regional", embora a possibilidade de ser um "poder geoestratégico global" ainda estar em aberto, dados os limites de seu poder militar. No entanto, o "poder brando" brasileiro é qualificado como crescente, sua economia ascendente e com setor industrial pujante. Aqui o alarmismo cede espaço para a identificação de convergências entre Washington e Brasília e para uma narrativa positiva sobre o Brasil, na qual a atuação do país junto à Américado Sul e aos países em desenvolvimento em geral, o seu peso crescente no debate energético e as aquisições de equipamento militar pelo Brasil são vistos como oportunidades para os EUA.Por fim, o texto descreve o Brasil como parceiro de gran de potencial e elenca uma série de interesses comuns a serem desenvolvidos: comér-cio; educaçãosuperior e inovação; combate ao tráfico internacional de drogas e coo-peração com países andinos; futuro do Haiti; programa brasileiro de aquisição de aeronaves de combate; dumping chinês em bens industriais;investimentos em ener-gia e, por fim,o papel do Brasil na UNASUL e nos novos fóruns multilaterais do Sul Global, onde o país poderia"atuar como ponte entre desenvolvidos e em desenvolvi-mento" (Forman e Johnson, 2012).
Em 2010 o CNA divulgou um estudo solicitado pelo comando da IV Frota da Ma-rinha dos Estados Unidos a respeito da ascensão do Brasil, assinado por Ralph Espach, pesquisador do CNA, e Joseph Tulchin, então do Wilson Center. O texto procura tra-çar as implicações da expansão da influênciabrasileira sobre a América do Sul para os seus vizinhos,avaliar o debate interno no Brasil e definir como as dinâmicas políticas intra-regionais na América do Sul afetam as relações dos EUA com esses países. Os autores argumentam que a liderança brasileira depende mais da vontade que das capacidades do país e que, embora a elite brasileira acredite que seu país esteja destinado à grandeza, não haveria consenso político quanto ao papel a ser exercido pelo Brasil na região e no mundo. O texto aborda também resistências à liderança brasileira entre os países sul-americanos e argumenta que Brasília tradicionalmente procura manter apaz da região como forma de possibilitar ao país destinar recursos ao seu desenvolvimento e também evitar coalizões anti-hegemônicas. As relações com as potências, como os EUA, costumam ser cordiais, mas buscam afastar sua influência da região. Para os autores, o Brasil desempenha um papel estabilizador na região e um importante contrapeso ao projeto da Venezuela chavista. Apesar de identificarem o apoio estadunidense ao Brasil (e as suspeitas brasileiras quanto às intenções dos EUA), percebem também a ambiguidade de Washington ao questiona-rem se "os EUA conseguem aceitar eadaptar-se a um Brasil mais autônomo cujos interesses se alinham aos seus de forma geral, mas que se opõem em alguns assuntos e procura uma política própria" (Espach e Tulchin, 2010: 23). Ao contrário da maioria dos textos aqui analisados, o relatório de Espach e Tulchin é mais analítico que pro-positivo, contudo sugerem que os Estados Unidos elaborem uma "nova narrativa" a respeito das relações entre os EUA e o Brasil, na qual respeito e parceria sejam enfa-tizados e demonstrados com ações de modo a incrementar a confiança e a sinalizar a aceitação de que ambos os países podem discordar em questões específicas. Reco-mendam ainda que, se os Estados Unidos preferem uma América do Sul liderada pelo Brasil, devem então permitir que o Brasil exerça essa liderança (Espach e Tulchin, 2010: 22).
Em 2012 o INSS publicou um policy brief assinado por E. Richard Downes, coro-nel reformado da Força Aérea dos EUA e pesquisador do think tank. O título, Trust, Engagement and Technology Transfer: Underpinnings for US-Brazil Defense Coopera-tion, já é revelador da posição do autor. Seu argumento central é que o Brasil consis-te numa economia forte epoliticamente estável com ímpeto de criar uma hegemonia consensual na América do Sul, mas com limitadopoder militar, devido à deficiência em equipamento, distribuição de forças e alocação de recursos. Repetindo observa-ção bastante disseminada no meio dos think tanks norte-americanos, o autor afirma que "entre as potências emergentes, o Brasil é o mais próximo politica e culturalmen-te dos Estados Unidos", por isso sustenta que os EUA devem basear sua agenda de engajamento com o Brasil e construção de confiança mútua na transferência de tec-nologia, inclusive militar (Downes, 2012:3).
O texto procura detalhar o que seriam os interesses dos EUA e do Brasil na co-operação em defesa, enfatizando os aspectos econômicos, políticos e estratégicos. Para Downes, além dos interesses comerciais num mercado de defesa emergente, os EUA se beneficiariam da confiança de uma nova potência internacional e regional, mesmo não havendo concordância completa em todos os assuntos entre am-bos.Entretanto, a construção da confiança não seria um processo simples e depende-ria não apenas da ação dos Estados Unidos, mas também do Brasil, uma vez que existiriam dúvidas a respeito do emprego de tecnologias sensíveis pelo Brasil, que se recusa a assinar o protocolo adicional do Tratado de Não Proliferação Nuclear, que emprega "linguagem ambígua" em documentos oficiais como a Estratégia Nacional de Defesa e que já colaborou no desenvolvimento de mísseis com o Iraque antes da Guerra do Golfo. De toda forma o autor recomenda que os Estados Unidos "recebam o Brasil como um parceiro igual e verdadeiro", tornando a transferência tecnológica de defesa "mais fluida", pois alinhar os interesses e prioridades dos dois países seria melhor opção do que conter o Brasil (Downes, 2012:14).

Conclusões preliminares

O conteúdo dos textos produzidos pelos think tanks aqui abordados permite es-tabelecer algumas conclusões preliminares. Em primeiro lugar, pode-se afirmar que think tanks de diferentes tipos e orientações ideológicas descrevem a ascensão inter-nacional do Brasil como potencialmente positiva para os Estados Unidos. As visões tendem a produzir narrativas que amparam o protagonismo exterior do Brasil no seu crescimento econômico, na melhoria das condições de vida das parcelas mais pobres da sociedade, na estabilidade democrática e na moderação de seu discurso de refor-ma dasinstituições de Bretton Woods. As representações negativas oriundas dos temores da chegada ao poder do Partido dos Trabalhadores acabaram se dissipando em favor de outra narrativa que destaca no Brasil oportunidades de negócios e inves-timentos para o setor privado estadunidense e o papel estabilizador que a modera-ção do país representaria numa América do Sul marcada por governos de esquerda.
E recorrente a referência dos think tanks aos valores compartilhados por Brasil e Estados Unidos: democracia, direitos humanos e economia de mercado, o que daria condições para que, em conjunto com os Estados Unidos, o Brasil desempenhasse um papel construtivo na ordem multipolar que se desenha. Por isso, as recomendações dos think tanks apontam sempre para que o governo dos Estados Unidos, e eventualmente o Congresso, busquem o "engajamento" com o Brasil, ou seja, uma maior aproximação e coordenação de ações. Isso seria apenas boa diplomacia se não hou-vesse também a expectativa de que o Brasil participe mais intensamente do provi-mento de bens internacionais como a segurança, aportando mais recursos e efetivos às operações de manutenção da paz, o que justificaria, para alguns think tanks, o apoio dos EUA ao pleito brasileiro por um assento permanente no Conselho de Segu-rança da ONU.
Em segundo lugar, é necessário ponderar que a visão potencialmente positiva da ascensão brasileira não implica no seu endosso imediato da parte dos Estados Unidos. Haveria, conforme vários textos abordados, um "caminho a percorrer" para a efetividade do "engajamento" que sugerem. Diversos textos referem-se ao fato de que o Brasil tem interesses e objetivos próprios e que isso não implicaria, necessari-amente, em confronto com os EUA. Os contenciosos comerciais entre ambos os paí-ses são exemplos recorrentes, assim como a liderança regional brasileira. Esse "cami-nho a percorrer", contudo, envolveria a construção de confiança mútua entre os dois países, já que, da parte brasileira, haveria muitas reservas com relação aos EUA, co-mo na não ratificação da Convenção da ONU para o Direito do Mar, e Washington, igualmente, teria restrições ao Brasil no setor nuclear. De toda forma, existem ques-tões divergentes entre os dois países em campos bastante delicados. O Brasil man-tém sua tradicional posição de estrito respeito à soberania, à autodeterminação e a não intervenção nos assuntos domésticos de outros países. Esses valores centrais da diplomacia brasileira, e do direito internacional, são percebidos por alguns analistas de think tanks como apoio velado aos "regimes populistas" de esquerda na América do Sul, em especial à Venezuela, ou à violações na Rússia e na China, parceiros do Brasil no BRICS. A flexibilização do princípio da soberania em favor de questões hu-manitárias ou da defesa da democracia, frequentemente invocada pelos Estados Unidos, põe os dois países em posições opostas. Tecnologias sensíveis, especialmente nuclear e de mísseis, continuam sendo um tema de desencontro e, por mais que as recomendações de apoio à liderançareformista do Brasil vindas dosthink tankssoem convincentes, não houve, até o momento, impulso dos EUA para reformas no FMI, no Banco Mundial ou na ONU que contemplassem as demandas brasileiras ou que des-sem ao país maior parcela de poder. Ao contrário do que aconteceu com a Índia, a visita do presidente Obama ao Brasil em 2011 não foi coroada com uma declaração formal de apoio a um assento permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU.
Em função disso, caberia perguntar se os EUA estão dispostos a aceitar maior protagonismo do Brasil. A produção ideacional dos think tanks e várias iniciativas diplomáticas de menor visibilidade, inclusive no setor militar, sugerem que sim. Con-tudo, se forem tomados como indicadores o episódio da destituição do embaixador brasileiro da direção da Organização para Proibição de Armas Químicas, em 2002, a condução da crise política em Honduras em 2009, as negociações nucleares com o Irã em 2010 e a eleição do diretor geral da OMC em 2013, a resposta seria negativa. Há, portanto, uma distância entre o que os think tanks recomendam e o que até agora emergiu do complexo processo decisório de Washington. O Brasil foi percebido por aqueles institutos de pesquisa como parceiro estratégico, mas essa visão favorável ainda não se consolidou em políticas que incidam sobre os temas mais delicados para os dois países.
Os TT dos Estados Unidos, tanto liberais quanto conservadores,veem no Brasil um parceiro regional "responsável" para dividir os custos e ampliar a legitimidade de uma ordem multipolar que se desenha. A hipótese da "socialização dos emergentes"é a mais aplicada ao Brasil entre os think tanks até o momento investigados. Deve-se ponderar, todavia, que há uma diferença importante na posição dos dois países que limita o "engajamento" reiteradamente sugerido. Para os EUA, trata-se de adminis-trar a multipolaridade a seu favor, preservando uma posição hegemônica no sistema internacional cujas regras vêm definindo desde 1945. Para o Brasil, trata-se de explo-rar a multipolaridade para obter maior margem de autonomia, criando regras que lhe sejam favoráveis e regimes que limitem a ação unilateral do hegêmona. A busca por áreas de consenso e pelo "engajamento" entre os dois países é, por óbvio, positiva, assim como a ampliação de canais de comunicação governamentais e a cooperação em temas de mútuo interesse. O desafio não é tanto definir o que é do interesse de ambos, mas o que fazer com o que não é, já que Brasil e Estados Unidos têm enten-dimentos diferentes a respeito de vários temas que envolvem justamente a gover-nança da ordem internacional.
Essas conclusões preliminares devem ser ainda aprofundadas e desdobradas. Outros aspectos requerem ainda maior investigação, como o fato de quepermanece em vigor a visão nem um pouco nova de que o Brasil é um componente importante para a política dos EUA na América Latina. Essa importância, contudo, parece assumir novos contornos em função dos temores que se desenham nos textos mais recentes a respeito da presença de outras potências na região, particularmente a Rússia, na esfera militar, e a China, na esfera econômica; assim como a intensificação das agen-das ligadas à mudança climática e à segurança energética.

Referencias

1 Os think tanks selecionadossão: Council on Foreign Relations, Brookings Institution, Hoover Institu-tion, Carnegie Endowment for International Peace, Cato Institution, Heritage Foundation, American Enterprise Institute, World Watch, Inter American Dialogue, Center for American Progress, Project for a New American Century, Carter Center, Woodrow Wilson Center, Foreign Policy Research Institute, RAND Corporation, Center for Strategic and International Studies, Center for International Policy, Strategic Studies Institute of US Army College, National Defense University: William Perry Center for Hemispheric Defense Studies, Institute for National Strategic Studies, Washington Center on Latin America, Center for New American Security, Center for Security Policy, Center for Naval Analysis, Atlantic Council, Henry Stimson Center, United States Institute of Peace, Project on Government Oversight e Center for the national Interest.

2 Informações a respeito do orçamento e fontes de recursos dos think tanks podem ser obtidas nos sites dos mesmos, ver também McGann e Weaver 2000 e McGann 2012.

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