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Relaciones internacionales

On-line version ISSN 2314-2766

Relac. int. vol.25 no.50 La Plata July 2016

 

ESTUDIOS

Desafios e Perspectivas da Política de Defesa do Brasil

Francisco Carlos Teixeira Da Silva 1

Luis Fernandes 2


Assistimos hoje um profundo e progressivo processo de transição na Ordem Mundial, no qual a arquitetura global – ou que isso se propunha a ser - criada com o fim da Guerra Fria, entre 1989, e o colapso da União Soviética, em 1991, com todas as suas consequências militares, econômicas e políticas, se esgotou. Os projetos dos grandes "think tanks", esposados ao início da Administração Clinton e retomado, com outros contornos embora com os mesmos objetivos pela Administração Bush, sobre um século de hegemonia de uma só grande potência se esgotou claramente. Não há uma data certa para estabelecer o ponto de esgotamento das proposições de segu-rança global como entendidas por tais centros de formulação política. Mas, em algum momento entre as consequências da Invasão do Iraque em 2003, a paralisia e gan-grenamento da situação no Afeganistão e a crise mundial em 2008 o sonho do "ame-rican century" esvaiu-se. Não se trata de afirmar uma "decadência americana". Mas, em verdade, o reconhecimento que os projetos de poder então formulados eram por demais ambiciosos e demais peados para serem arcados por uma só nação, mesmo sendo esta Nação os Estados Unidos da América.
Tal cesura na percepção do mundo e do que seria segurança internacional reve-lava a incapacidade de uma só nação – por mais poderosa que seja – em controlar e impor sua vontade ao conjunto de nações e abria, desta forma, um retorno à norma-lidade nas relações internacionais. Entendemos, tendo como quadro de referência, que a condição de uma hegemonia bipolar, tipo EUA e URSS ou única, como formula-do depois de 1991, configuram uma situação excepcional ao longa da história das relações internacionais. Na verdade, a "normalidade" das relações internacionais se configura na existência de um número reduzido, e, no entanto, plural, de nações num diretório capaz de formular condições de equilíbrio e segurança coletivos para o conjunto das nações. A situação de poder monopolista ou de um excedente de poder, capaz de atacar, dissuadir, impor sua própria vontade na cena mundial, sem ser, contudo, constrangido por nenhum outro poder ou aliança de poderes, é, em termos histórico, uma anomalia.

Tal situação, em vez de diminuir as tensões mundiais, tem, ao contrário, incen-tivado e promovido conflitos ainda mais intensos e cruéis, em especial sob a forma deguerras híbridas, com a intervenção estrangeiro na política interna de países sobera-nos, resultados cruéis, como atualmente na Síria.
E em tal contexto que pensamos a política de defesa nacional do Brasil. O as-pecto mais central, o conceito-chave que nos inspira) é o caráter dual, da dupla fun-ção das Forças Armadas brasileiras. De um lado, temos seu aspecto mais claro, expli-cito, estatuído e ancorado nas Leis Maiores da República: a defesa do território, a integridade da Soberania e a Proteção das Instituições. De outro lado, e não podemos minimizar de forma algum este outro aspecto, a própria construção da Nação brasi-leira. Ao longo de nossa história, as Forças Armadas, não só garantiram, ampliaram e defenderam o território, como também foram as responsáveis por ações continuadas de integração e estruturação da própria sociedade brasileira. Ações, processos e intervenções continuadas das Forças Armadas, tais como o desbravamento dos ser-tões, a construção de estradas e pontes, assistência às populações, o estabelecimen-to de postos, que em pouco tempo tornar-se-iam vilas e, então, cidades nos mais longínquos pontos de nossas fronteiras; a assistência e formação de jovens, antes abandonados à sua própria sorte; a firme posição na recusa à escravidão; a atuação constante em campanhas de saúde, contra a seca, de educação, de sanitarismo, mostram, claramente, que a própria história da nacionalidade brasileira encontra-se claramente imbricada com a história das suas Forças Armadas. Desta forma, a ideia-força, o nosso conceito-chave, de Forças Armadas, reside no seu sentido dual, de Defesa e de Construção da Identidade Nacional, e deve pairar como inspiração e orientação ao conjunto dos trabalhos que pautem e inspirem a construção dos do-cumentos de defesa, com um sentido genuinamente nacional e brasileiro, evitando perder-nos em discussões estéreis, importadas e estranhas ao papel "mater" da rela-ção entre Povo brasileiro e suas Forças Armadas.

A evolução do sistema internacional no Século XXI é marcada por um processo de reconfiguração estrutural das relações de poder no mundo, com a inviabilização da ordem unipolar que se esboçara no imediato Pós-Guerra Fria e a emergência de novos polos de poder com maior dinamismo econômico e produtivo na antiga perife-ria do sistema. Este processo se intensificou sob o impacto da prolongada crise eco-nômico-financeira global iniciada em 2008. O maior destaque desta evolução é a ascensão da China, que já ultrapassou os Estados Unidos em termos de participação relativa no PIB mundial medido por Paridade de Poder de Compra (PPC), indicador mais preciso da produção de riqueza no mundo. Articulados no grupo dos BRICS, os novos polos em ascensão pressionam por mudanças no sistema de governança multi-lateral para refletir as novas relações de poder e assegurar bases mais sólidas e legí-timas para a manutenção da paz e da segurança na ordem mundial. A reação à inten-sificação destas tendências à multipolarização global a partir das posições assimétri-cas de poder ainda existentes é a principal fonte de instabilidade no sistema interna-cional. Essa reação se materializa em iniciativas recorrentes para relativizar e/ou enfraquecer os princípios da não-intervenção e da igualdade entre as nações que estruturam o sistema internacional moderno, de forma a conter a consolidação e projeção dos novos polos de poder no mundo. Estas incluem operações de mudançade regime ("regime change" na literatura internacional), fomento a desestabilização interna, insuflamento de grupos étnicos, de minorias e de agenda de supostos "direi-tos civis", sabotagem dos setores produtivos, cerceamento tecnológico e ações, tra-vestidas de ambientalistas, objetivando congelamento do uso de recursos naturais em países em desenvolvimento.
Esta evolução do sistema internacional reforça a atualidade de duas formula-ções incorporadas à Política e à Estratégia Nacionais de Defesa do Brasil nas duas últimas décadas: a estratégia de dissuasão e a valorização do entorno estratégico do Brasil na América do Sul e no Atlântico Sul.

A experiência mundial no Pós-Guerra – incluindo o período Pós-Guerra Fria – revela que a superioridade de meios bélicos, por si só, é incapaz de assegurar triunfos militares. Países detentores de meios bélicos mais fracos, mas com capacidade dissu-asória e de engajamento prolongado, lograram frustrar os objetivos políticos e milita-res de Estados mais poderosos ao minar a capacidade destes obterem vitória estraté-gica. Baseado nessa experiência, ao mesmo tempo em que se orienta para a solução pacífica e negociada de conflitos no âmbito do sistema multilateral de governança global, o Brasil deve preservar capacidade estratégica dissuasória de Defesa visando desencorajar eventuais tentativas de violação e/ou constrangimento da sua sobera-nia, sobretudo levando em conta o aumento das pressões direcionadas a países em desenvolvimento detentores de recursos naturais e ativos estratégicos, como é o nosso caso. Esta capacidade se desdobra em projetos estratégicos das três Forças e no investimento na sua capacidade de sustentar operações.
Já no que concerne o entorno estratégico do Brasil na América do Sul, na Bacia do Atlântico Sul, no Caribe, na Antártica, na África Austral e países em desenvolvi-mento da Comunidade de Língua Portuguesa, a orientação formulada visa comple-mentar as iniciativas de integração econômica e política com ações de cooperação na esfera militar. A ênfase maior recai, naturalmente, sobre a América do Sul e o Atlânti-co Sul, ambientes regionais no quais o Brasil está diretamente inserido. Aqui, cabe dar sequência ao processo de integração e cooperação com os países vizinhos inau-gurado com o acordo nuclear entre Brasil e Argentina, em 1985, que dissipou descon-fianças mútuas na área militar e viabilizou a construção do MERCOSUL e da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL). Na esfera da cooperação militar, o principal desa-fio é fortalecer e consolidar o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) como instân-cia integradora de ações na área de Segurança e Defesa no subcontinente, para além da intensificação das ações de cooperação no âmbito da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e da Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul (ZO-PACAS).

A própria natureza, as forças profundas que através dos esforços da gente bra-sileira, expressos claramente numa longa história de lutas, forjaram um imenso país, o quinto maior espaço nacional do planeta, não pode ser esquecida. Desde as primei-ras expedições exploradoras e, em seguida, as expedições de guarda e proteção das costas marítimas descobertas, ao lado das epopeias de desbravamento dos sertões, no alvorecer da nossa história, nos levam a um destino inelutável de país-continente,como uma área terrestre de 8.515.767.049 km2 e mais de 55 milhões de quilômetros de mares, vizinho pacífico e parceiro fértil de dez grandes nações. As ações, projetos e propostas para a Defesa do Brasil não podem negar, desconhecer ou contrariar o próprio destino que nos foi dado: de grande potência, ao lado das demais, na Améri-ca do Sul. O processo de formação social do país, a incorporação de vastas popula-ções indígenas e o fluxo de milhares de homens e mulheres trazidos da África, com suas histórias de lutas, dores e alegrias, nos ancoram, de um lado, na vocação conti-nental, dos grandes e vastos sertões e planaltos, e de outro lado, na projeção maríti-ma e naval, na direção do Atlântico Sul e na cooperação com os povos da África e na responsabilidade de cooperação e desenvolvimento comum com nossos vizinhos, bem como ao Norte, com os países de formação tão próximas ao Brasil, vizinhos do Caribe, como forma de compreensão, aceitação e desenvolvimento de nossa própria história e de seu destino.
Contrariar a nossa vocação histórica, nosso destino comum, forjada nas forças da geografia e nas lutas da história, seria um erro descomunal, negando a natureza comum, o nosso destino, na América do Sul, no Atlântico Sul, em face da África e do Caribe.

 

Referencias :

1 Professor Titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ e Professor Emérito da ECEME.

2 Professor doutor pelo IUPERJ, Professor de relações internacionais do IRI-Pontificia Universidade Católica, do Rio de Janeiro, ex-presidente da FINEP Projetos do Ministério de Ciência e Tecnologia do Brasil e Assessor Chefe de Política do Ministério da Defesa.

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