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Relaciones internacionales

versión On-line ISSN 2314-2766

Relac. int. vol.26 no.53 La Plata dic. 2017

 

DOSSIER

Reflexões sobre hegemonia e apolítica internacional da China: a iniciativa "cinturão e rota" como uma estratégia de desenvolvimento pacífico1

Reflexiones sobre la hegemonía y la política internacional de China: la iniciativa "Cinturón y Ruta" como una estrategia de desarrollo pacífico.

Reflections upon China's hegemony and international policy: the "Belt and Road" initiative as a pacific development strategy

Marcos Cordeiro Pires2y Luís Antonio Paulino3


Resumo: A iniciativa conhecida como "Cinturão e Rota", proposta pela China em 2013, é um ousado projeto econômico e geopolítico com o propósito de ampliar e fortalecer a cooperação regional no contexto eurasiático e nas bacias dos Oceanos Pacífico e Índico. O projeto possui dois braços: terrestre e marítimo, respectivamente o cinturão econômi-co da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima no século XXI. Esta Iniciativa oferece uma oportunidade para se analisar o contexto da política externa chinesae as estratégias estabelecidas para atingir seus objetivos de longo prazo, como o seu "desenvolvimento pacífico", a criação de uma ordem mundial multipolar e a reafirmaçãodos "Cinco Princí-pios da Coexistência Pacífica", meios com os quais busca construirum novo modelo de relacionamento entre grandes potências que ajude a superar uma suposta inevitabilida-de da "Armadilha de Tucídides". Para tanto, este artigo está dividido em três partes, além da Introdução e das Considerações Finais. Em primeiro lugar buscaremos levantar ele-mentos sobre os fundamentos históricos que embasam a formulação atual da política externa da China. Na segunda seção, discutiremos a evolução da política externa chinesa por meio da análise dos documentos e declarações de seus líderes desde 1978, quando se inicia o processo de "Reforma e Abertura". Por fim, iremos analisar a Iniciativa "Cintu-rão e Rota" como um exemplo de como na prática a China busca criar os meios para reafirmar as suas intenções pacifistas e inclusivas num contexto geopolítico bastante conturbado.

Palavras-Chave: China; hegemonia; Armadilha de Tucídides;Iniciativa Cinturão e Rota

Resumen: La iniciativa conocida como "Cinturón y Ruta", propuesta por China en 2013, es un osado proyecto económico y geopolítico con el propósito de ampliar y fortalecer la cooperación regional en el contexto eurasiático y en las cuencas de los Océanos Pacífico e Índico. El proyecto tiene dos brazos: terrestre y marítimo, respectivamente el cinturón económico de la Ruta de la Seda y la Ruta de la Seda Marítima en el siglo XXI. Esta inicia-tiva ofrece una oportunidad para analizar el contexto de la política exterior china y las estrategias establecidas para alcanzar sus objetivos a largo plazo, como su "desarrollo pacífico", la creación de un orden mundial multipolar y la reafirmación de los "Cinco Principios de la Coexistencia "Pacífica", medios con los que busca construir un nuevo modelo de relación entre grandes potencias que ayude a superar una supuesta inevitabi-lidad de la "Trampa de Tucídides". Para ello, este artículo está dividido en tres partes, además de la Introducción y de las Consideraciones finales. En primer lugar buscaremos levantar elementos sobre los fundamentos históricos que fundamentan la formulación actual de la política exterior de China. En la segunda sección, discutiremos la evolución de la política exterior china a través del análisis de los documentos y declaraciones de sus líderes desde 1978, cuando se inicia el proceso de "Reforma y Apertura". Por último, vamos a analizar la Iniciativa "Cinturón y Ruta" como un ejemplo de cómo en la práctica China busca crear los medios para reafirmar sus intenciones pacifistas e inclusivas en un contexto geopolítico bastante conturbado.

Palabras clave: China; hegemonía; Trampa de Tucídides; Iniciativa Cinturón y Ruta

Abstract: The "Belt and Road" Initiative, proposed by China in 2013, is an audacious economic and geopolitical project aimed at expanding and strengthening regional coop-eration in the Eurasian context and in the Pacific and Indian Ocean basins. The project has two axes: land and sea, respectively the Economic Belt of the Silk Road and the Mari-time Silk Road in the 21st century. This Initiative provides an opportunity to analyze the context of China's foreign policy and the strategies established to achieve its long-term goals such as its "peaceful development", the creation of a multipolar world order and the reaffirmation of "Five Principles of Peaceful Coexistence ", means with which it seeks to build a new model of relationship between great powers that helps overcome a sup-posed inevitability of the "Thucydides Trap". For this, this article is divided in three sec-tions, besides theintroduction and the concluding remarks. In the first section, we will seek to raise some ground on the historical foundations of China's current foreign policy formulation. In the second section, we will discuss the evolution of Chinese foreign policy by analyzing the documents and statements of its leaders since 1978, when the "Reform and Openness" process begins. Finally, we will look at the Belt and Road Initiative as an example of how in practice China seeks to create the means to reaffirm its pacifist and inclusive intentions in a rather troubled geopolitical context.

Keywords: China; hegemony; Thucydides' Trap; Belt and Road Initiative

1 Recibido: 01/08/17. Aceptado: 23/10/17

2 Doutor em História Econômica pela USP. Livre Docente em Economia Política Internacional pela Unesp. Professor de Economia Política Internacional. Departamento de Ciências Políticas e Econômicas – Unesp-Marília. Coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais –IEEI-Unesp. Email: mcp@marilia.unesp.br

3 Doutor em Economia pela Unicamp. Livre Docente em Economia Chinesa Contemporânea pela Unesp. Professor de Economia Internacional. Departamento de Ciências Políticas e Econômicas – Unesp-Marília. Diretor Executivo do Instituto Confúcio na Unesp-Brasil. Emai: gustavo.santillan@gmail.com


1.  Introdução

Nos dias 14 e 15 de maio de 2017 o governo chinês organizou em Pequim o "Fórum para a Cooperação Internacional Cinturão e Rota", umencontro de cúpula que reuniu 28 Chefes de Estados e de Governo de diversos países, como a Rússia, Espanha, Itália, Viet-nam, Filipinas, Argentina, Chile, Cazaquistão, Etiópia, Quênia, etc., além de ministros de Estado, o Secretário Geral do ONU e dirigentes do Banco Mundial e FMI. O objetivo do encontro foi o de debater as potencialidades de cooperação no entorno das novas "rotas da seda", que tratam de criar uma forte infraestrutura para potencializar as economias da Ásia Central, do Sudeste Asiático e da bacia do Oceano Índico, se estendendo aos países africanos, e integrá-las ao continente europeu. O evento de Pequim teve reper-cussão mundial e chamou atenção para os reais objetivos chineses acerca da Iniciativa "Cinturão e Rota" (Belt and Road Initiative, em inglês)se especulando sobre as intenções hegemônicas da China ou estabelecendo comparações entre a Iniciativa e projetos de-senvolvidos pelos Estados Unidos no auge da Guerra Fria.

A Iniciativa "Cinturão e Rota" oferece uma oportunidade para se analisar o contex-to da política externa chinesa, e a busca de seus objetivos de atingir um "desenvolvimen-to pacífico", refutar o hegemonismo e de reafirmar os "Cinco Princípios da Coexistência Pacífica" como meios para construir, a partir da prática, um novo modelo de relaciona-mento entre grandes potências que ajude a superar uma suposta inevitabilidade da "Ar-madilha de Tucídides".Para tanto, este artigo está dividido em três partes, além desta introdução e das considerações finais. Em primeiro lugar buscaremos levantar elementos sobre os fundamentos históricos que embasam a formulação atual da política externa da China. Em seguida, discutiremos a evolução da política externa chinesa por meio da aná-lise dos documentos e declarações de seus líderes desde 1978, quando se inicia o proces-so de "Reforma e Abertura". Por fim, iremos analisar a Iniciativa "Cinturão e Rota" como um exemplo de como na prática a China busca criar os meios para reafirmar as suas intenções pacifistas e inclusivas num contexto geopolítico bastante conturbado.

2.  A herança histórica e a estratégia pacífica da China

Para se compreender a especificidade da experiência chinesa é preciso ir além das teorias e dos paradigmas ocidentais que prevalecem no terreno das Relações Internacio-nais. A cultura política da China não se apresenta como excludente e seenxerga a si mesma como inclusiva e harmoniosa, tal como discutiremos mais adiante. Nessa pers-pectiva, a construção de uma nova ordem internacional não passa pela destruição ou pela "soma-zero", tal como faz supor as reflexões de Samuel Huntington (1997) de um inevitável "choque de civilizações". A China é uma nação multiétnica e possuiu uma cul-tura inclusiva, à qual os invasores do país ao longo dos séculos acabaram sendo incorpo-rados. Tampoucose conforma em esquemas teóricos excludentes, tal como a hipótese da "Armadilha de Tucídides", como pressupõe Graham Allison (2017), acerca da inevitabili-dade de um conflito entre a potência estabelecida e a potência em ascensão. A assertiva do autor se baseia na análisedo contexto histórico mundial desde o século XVI, quando identificou a ocorrência de16 experiências de disputas hegemônicas entre grandes po-tências,das quais 12delas acabaram em guerra. Por analogia, Allison postula que o rela-cionamento entreEstados Unidos e China também poderá desaguar num confronto militar, tese que os chineses refutam.Por conta disso, é preciso compreender a estratégia chinesa dentro de seus termos, e não pela extrapolação de modelos ou pela aplicação mecânica da experiência de outros países.

Antes de tudo, é preciso considerar que a formulação teórica das Relações Interna-cionais (RI) da China não obedece necessariamente à lógica das escolas ocidentais. Tal constatação foi feita por Wang & Buzan (2014: 15), ao fazerem a comparação entre a "escola inglesa" e a "escola chinesa" de RI. Citando Qin Yaqing, eles mencionam a exis-tência de três tipos de abordagem no âmbito da chamada "escola chinesa de RI": a clás-sica, a tradicional e a integrativa. A abordagem clássica explica a estratégia internacional e o pensamento diplomático dos líderes chineses por meio da teoria marxista. Já a abor-dagem tradicional tenta resgatar o pensamento tradicional chinês, como autores como Sunzi (2008) ou clássicos da literatura chinesa para pensar a estratégia na atualidade. Já a abordagem integrativa busca utilizar uma combinação de teorias chinesas e ocidentais para explicar o mundo e a experiência da China no contexto internacional.

Em que pese a perda de influência da perspectiva marxista no meio acadêmico chi-nês e a busca de uma aproximação com a corrente ocidental, um aspecto essencial é o papel do PCCh na formulação da política externa chinesa, que se manifesta na atualidade dos "Cinco Princípios da Convivência Pacífica", diretriz formulada na década de 1950, quando Zhou Enlai acumulava os cargos de Chanceler e de Primeiro-Ministro,que previa:

respeito à soberania e à integridade territorial de cada país; (b) não agressão; (c) não ingerência nos assuntos internos de outros Estados; (d) igualdade nas relações entre os Estados; e (e) o benefício mútuo nas relações entre os Estados. A essesprincípios basila-res da diplomacia da República Popular da China, aos quais se podem incluir os princípios de "desenvolvimento pacífico" e a recusa ao "hegemonismo" não se distanciaram da tradição cultural do país, apesar de o governo chinês ser um herdeiro de uma tradição ocidental que é o marxismo-leninismo.

Nesse sentido, vale a pena analisar a obra deYan Xuetong, "AncientChinese Thou-ght,ModernChinese Power", publicada em inglês em 2011, que buscou resgatar as bases filosóficas dos períodos"Primavera e Outono" (770 a 476 a.C) e dos "Estados Combaten-tes" (475 a 221 a.C) – de tal forma que pudesse embasar uma teoria essencialmente chinesa frente às eventuais discrepâncias com relação à tradiçãoeuropeia. É justamente nesse período que floresce a filosofia clássica chinesas, entre os quais se destacam Con-fúcio (551 a.C. – 479 a.C.), Zisi (481 a.C. — 402 a.C.)Lao Zi (século VI a.C.),Mêncio (370 a.C. - 289 a.C.) , Xunzi (314 – c. 217 a.C.).
Entre as contribuições dos clássicos,Yan Xuetong enfatiza os princípios de "Autori-dade Humana" e "Liderança Moral". O primeiro pressupõe um sistema internacional harmonioso, de acordo com o pensamento pré-Qin; o segundo busca enfatizar o papel do "exemplo" como meio de influência, em contraponto à imposição pela força, tal como é valorizada pela tradição realista nos países Ocidentais. Nesse sentido, Yan Xuetong, baseado no conceito de Autoridade Humana deXunzi, se posiciona sobre o modelo de relacionamento que a China deverá seguir em seu processo de ascensão:
Que tipo de superpotência a China quer se tornar? Uma superpotência pode ser um Estado Humano ou um Estado Hegemônico. A diferença entre os dois não reside na grandeza de seu poder, mas em suas posi-ções morais. Se a China quer tornar-se um Estado de Autoridade Huma-na, isso seria diferente dos Estados Unidos contemporâneos. O objetivoda nossa estratégia não deve ser apenas reduzir a diferença de poder com os Estados Unidos, mas também proporcionar um modelo melhor para a sociedade do que aquele oferecido Estados Unidos. (Yan Xue-tong, 2011: 99, tradução nossa)

Dentro da perspectiva ressaltada por Yan Xuetong, aRepública Popular da China tem procurado fugir da lógica poder-hegemonia nas relações internacionais baseada no entendimento de que tal lógica se aplicava ao passado, mas não é mais aplicável no pre-sente (na era da globalização), e que no caso da China, tal lógica nunca se aplicou, uma vez que se trata de um conceito inteiramente baseado na experiência ocidental.
A China nunca foi um estado com vocação imperialista. Mais do que um estado-nação, no sentido que atribuímos ao termo no Ocidente, é um estado-civilização, com mais de cinco mil anos de história, aberta, multiétnica, duradoura e inclusiva (JACQUES, 2009, p. 13; KISSINGER, 2011, p. 28; CONSULADO GERAL DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA EM SÃO PAULO). Na visão dos chineses, "o mar é grande para receber todos os rios" (XI, 2014, p. 312). O país já deu grandes contribuições ao desenvolvimento humano, mas também sofreu inúmeras agressões externas que limitaram seu próprio desenvolvi-mento. Por isso, a ênfase na necessidade da paz como elemento central para continuida-de de seu desenvolvimento corresponde aos seus interesses estratégicos. Isso não quer dizer que a China sacrificaria seus interesses fundamentais pelo receio do confronto. Deng Xiaoping já alertava em 1982: "Nenhum país estrangeiro deve esperar que a China seja seu vassalo ou vá aceitar qualquer coisa que seja prejudicial aos próprios interesses da China" (DENG, v. III, 1995, p. 13, tradução nossa).

De fato, se o passado pode servir de guia para indicar alguma tendência futura, é preciso reconhecer que, em seus mais de dois mil anos de história, considerando apenas o período de sua unificação imperial pela dinastia Qin, a China nunca foi um país belicis-ta. O fato de não possuir uma religião oficial foi importante para arrefecer os impulsos expansionistas que caracterizaram religiões como o cristianismo e o islamismo. Sua clas-se dirigente, durante séculos, foram os mandarins, gente que estudava Confúcio e usava a pena, não a espada. Mesmo a teoria militar chinesa – cuja referência teórica mais po-pular no Ocidente são os escritos sobre a guerra de Sun Tzu (2008), general e conselheiro militar chinês que teria vivido por volta do ano 500 a.C. e cuja coleção de aforismos A Arte da Guerra já virou até livro de autoajuda para executivos ocidentais–enfatiza aideia de que a melhor vitória é aquela que advém das batalhas que se consegue evitar. Como afirma Kissinger (2011):
Enquanto os estrategistas ocidentais refletem sobre os meios de reunir poder superior no ponto decisivo, Sun Tzu4 aborda os modos de cons-truir uma posição política e psicológica dominante, de tal modo que o desfecho de um conflito se torne um resultado já imediatamente previ-sível. Estrategistas ocidentais testam suas máximas pelas vitórias em ba-talhas; Sun Tzu, pelas vitórias em que as batalhas se tornam desnecessá-rias (KISSINGER, 2011, p. 42).

Tal constatação não implica afirmar que não houvesse conflitos na sociedade chi-nesa, mas até porque os chineses lutaram muito entre si durante séculos, quase nunca se uniram para lutar contra os de fora. Embora enorme, o povo chinês era como areia, totalmente desunido e por isso tantas vezes derrotado por invasores externos. Não há registro de nenhuma ação militar de caráter imperialista por parte da China com o pro-pósito de estabelecer colônias estrangeiras, como fizeram os países da Europa, os Esta-dos Unidos e o Japão na América Latina, na África, e na Ásia. No período dinástico, a China foi invadida diversas vezes por povos estrangeiros: os mongóis, no século XIII, e os manchus, no século XVII, que formaram duas dinastias – Yuan (1271-1368) e Qing (1644-1912). No século XIX, no ocaso da dinastia Qing, a China sofreu as primeiras agressões das potências imperialistas ocidentais: as duas Guerras do Ópio (1839-1842; 1856-1860), e também do Japão (1894-95), quando perdeu a influência na Coreia e cedeu Taiwan aos japoneses. Já no período republicano, iniciado em 1911, sofreu a invasão japonesa (1937-1945). Mesmo a sempre lembrada Guerra Sino-Vietnamita, em 1979, foi um episódio breve, em que a China reagiu às provocações da antiga URSS, que tentava desestabilizar o entorno do país e patrocinou a invasão do Camboja pelos vietnamitas, pois como afir-mou Deng Xiaoping, em já mencionada entrevista ao correspondente americano Mike Wallace, "sem o suporte da União Soviética, os vietnamitas não poderiam ir lutar no Camboja nem mesmo por um dia" (DENG, v. III, 1995, p. 171, tradução nossa).

Concluindo esta seção, é importante remarcar algumas ideias. Em primeiro lugar, tal como reconhecem importantes analistas ocidentais, como Henry Kissinger (2011), não se pode analisar a estratégia internacional da China sem considerar a rica herança cultu-ral da civilização chinesa. Em segundo lugar, por conta dessa mesma tradição, a socieda-de chinesa não possui um impulso expansionista, seja por não possuir uma religião ofici-al, seja porque historicamente a sua cosmogonia sempre se bastou em si, ao enfatizar a superioridade moral de seus valores e a não necessidade de ações proselitistas para exportar sua religião ou o seu modo de vida como o fazem as grandes religiões monoteís-tas. Por fim, tal como discutiremos mais adiante, a experiência das invasões estrangeiras moldou o comportamento do país, sendo que ao mesmo tempo em que recusa a busca de hegemonia não deixa de reafirmar a sua independência e soberania, além de se asso-ciar politicamente ao bloco dos países em desenvolvimento.

3.  O desenvolvimento pacíficoda China e a recusa ao hegemonismo

A ascensão e queda das grandes potências é um fato recorrente na história do Oci-dente. Roma, Portugal, Espanha, Holanda, Inglaterra, França, Áustria-Hungria, Alemanha, Japão, Rússia formaram grande impérios, e nenhum deles sobreviveu ao peso de suas próprias contradições e, sobretudo, à competição de novos desafiantes. O ciclo de he-gemonia, competição, guerra, e nova hegemonia tem sido um padrão mais ou menos recorrente na história ocidental, desde que o Tratado de Vestefália, em 1648, criou o atual sistema de estados-nação independentes. Segundo Mearsheimer (2001, tradução nossa), "sistemas multipolares que contêm um estado especialmente poderoso – em outras palavras, um potencial hegemônico – são especialmente propensos à guerra".
No século XX, os Estados Unidos despontaram, ao final da Segunda Guerra Mundi-al, como a potência hegemônica do Ocidente. Durante quase cinquenta anos disputaram a hegemonia mundial com a URSS, engalfinhados na Guerra Fria, mas com diversos "pon-tos quentes" pelo mundo. Com o fim da URSS, em 1991, os Estados Unidos emergiram como única superpotência mundial e, aproveitando-se dessa situação, tentaram criar um mundo unipolar no qual pudessem controlar os negócios internacionais. Muitos, nos Estados Unidos, falavam do século XXI, como o "Novo Século Americano".

Mas um fato novo veio perturbar essa nova ordem aparentemente bem estabele-cida. Foi a ascensão chinesa. Longe ainda de se igualar aos Estados Unidos em força eco-nômica, militar, cultural e tecnológica, a China, assentada em um território maior que o americano e com uma população três vezes maior, bem educada e empreendedora, já é o segundo PIB do planeta, o maior exportador mundial de manufaturas e lidera o mundo em desenvolvimento, que nesta virada de século já respondia por 40% do PIB mundial. A China sozinha já responde por 14% do PIB global, e os Estados Unidos, por 19%. Mantido o ritmo de crescimento do PIB em torno de 6,5% anuais, em poucos anos a China ultra-passará os Estados Unidos. E aí vem a pergunta: veremos a roda da História girar e parar no mesmo ponto? Será que a China vai desafiar a hegemonia dos Estados Unidos no nível global? Será que vai provocar conflitos com seus vizinhos no nível regional? Um conflito sino-americano é inevitável?
A estratégia do desenvolvimento pacífico não é para a China, em sua atual fase de desenvolvimento, apenas um expediente de ocasião, para dissimular sua força e mostrar as garras no momento apropriado, como alguns julgam no Ocidente. A estratégia do desenvolvimento pacífico corresponde aos seus próprios interesses, na medida em que a China tem sido uma das principais beneficiárias do processo de globalização da economia mundial, e é condizente com sua experiência histórica.

A China é um país em desenvolvimento ou, como definem os chineses, "um país na fase inicial do socialismo"5. Segundo Huang e Luan (2013, p. 289, tradução nossa), "a natureza do sistema requer que a China tome o caminho do desenvolvimento pacífico". De acordo com os autores, as sucessivas gerações de líderes do PPCh têm seguido a política nacional básica de "nunca procurar a hegemonia e se engajar em atividades expansionistas".
Ao fazermos um breve levantamento das declarações dos principais dirigentes chi-neses sobre o tema de 1978 para cá, podemos verificar que a oposição ao hegemonismo, a reafirmação do status de país como pertencente ao mundo em desenvolvimento e a questão da paz têm sido pontos centrais da política externa chinesa. O raciocínio é que a China, como país em desenvolvimento, só teria a perder com o hegemonismo e a política de poder das grandes potências, mesmo num futuro longínquo, quando já tivesse se tornado um país desenvolvido.

No dia 7 de maio de 1978, dirigindo-se a uma delegação do governo da República Democrática de Madagascar, Deng Xiaoping afirmou:
A China é ainda um país pobre, e é, portanto, um país do Terceiro Mun-do no real sentido da expressão. A questão é se vai ou não praticar a hegemonia quando se tornar mais desenvolvida no futuro. Meus ami-gos, vocês são mais jovens do que eu, assim poderão ver por si mesmos o que acontecerá naquela época. Se permanecer um país socialista, a China não praticará a hegemonia e ainda vai pertencer ao Terceiro Mundo. No entanto, se a China se tornasse arrogante, agindo como um chefe supremo e dando ordens para o mundo, não seria mais conside-rada um país do Terceiro Mundo. Na verdade, deixaria de ser um país socialista (DENG, v. II, 1995, p. 123, tradução nossa).

Em 21 de agosto de 1982, Deng Xiaoping, em conversa com o secretário-geral da

ONU, Javier Perez de Cuellar, voltou a bater na mesma tecla:

A política externa da China é consistente, e pode ser resumida em três frases. Primeiro, nós nos opomos ao hegemonismo. Segundo, defende-mos a paz mundial. Terceiro, estamos ávidos para fortalecer a unidade e a cooperação – ou, dizendo de outro modo, a "união e a cooperação" – com outros países do Terceiro Mundo. A razão por que dou especial ên-fase ao Terceiro Mundo é que a oposição ao hegemonismo e a salva-guarda da paz são de especial significância para o Terceiro Mundo. Quem são as vítimas do hegemonismo? [...] Se a paz mundial é quebra-da, quem vão ser as primeiras vítimas? Realmente não tem havido paz desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Embora grandes guerras não tenham mais ocorrido, as menores têm continuado. E onde essas guer-ras menores são travadas? No Terceiro Mundo! (DENG, v. II, 1995, p. 40. tradução nossa).

Novamente, em 29 de maio de 1984, Deng Xiaoping, em conversa com o presiden-te do Brasil João Batista de Oliveira Figueiredo, voltou a destacar o fato da China perten-cer ao Terceiro Mundo e se opor à hegemonia:
A política externa da China pode ser resumida em duas sentenças. Pri-meiro, para salvaguardar a paz no mundo, somos contra a hegemonia. Segundo, a China sempre será parte do Terceiro Mundo. Ela pertence ao Terceiro Mundo hoje, e continuará a pertencer mesmo quando for próspera e poderosa, porque partilha o destino comum com todos os países do Terceiro Mundo. A China jamais procurará a hegemonia ou ameaçará alguém, mas sempre estará ao lado do Terceiro Mundo (DENG, v. III, 1995, p. 66, tradução nossa).
Em 4 de abril de 1986, em conversa com Rodovan Vlajkovic, presidente da Iugoslá-via, Deng Xiaoping destacou que não era da natureza de um país socialista a busca da hegemonia, e que a China necessitava manter o caminho do socialismo.
Manter o socialismo é de vital importância para a China. Se o país, com um bilhão de habitantes, tomasse o caminho do capitalismo, seria um desastre para o mundo. Seria um retrocesso na história, um retrocesso de muitos anos. Se, com um bilhão de habitantes, abandonasse a políti-ca de paz e oposição ao hegemonismo, ou se, com economia desenvol-vida, procurasse a hegemonia, isso seria um desastre para o mundo, um retrocesso na história. (DENG, v. III, 1995, p. 160, tradução nossa).
Doze anos depois, em 28 de agosto de 1998, Jiang Zemin – sucessor de Deng Xiao-ping, que morreu em 1997 aos 92 anos – pontuou, em discurso no 9º Encontro dos Di-plomatas Chineses Ocupando Postos no Exterior, que diante da nova conjuntura interna-cional que se estabelecera com o fim da URSS e a emergência dos Estados Unidos como única superpotência, a China deveria manter-se fiel ao pensamento de Deng Xiaoping e inabalavelmente perseguir uma política externa independente e de paz. Sugeriu que naquele momento era necessário iniciar uma nova fase no trabalho diplomático com o objetivo de criar um ambiente internacional e na vizinhança da China propício para que o país pudesse alcançar seu objetivo estratégico de realizar a modernização socialista. Ao falar sobre como proceder nessa nova fase, ele destacou a necessidade de a China de agir com modéstia, calma, cautela, e de forma cooperativa.

Primeiro, nós precisamos, por um longo período, aderir à estratégia de observar calmamente, responder friamente, nunca reivindicar a lideran-ça, e dar nossas contribuições. Nós precisamos esconder nossas capaci-dades e esperar o nosso tempo, preservar-nos e desenvolver gradual-mente. As condições nacionais da China e o balanço internacional de poder determinam que devemos seguir esse curso. Em questões que a-fetam diretamente nossa soberania, seguridade e interesses, os legíti-mos direitos e interesses dos países em desenvolvimento, a paz mundi-al, a estabilidade regional, e a criação de nova, justa, e equitativa ordem política e econômica internacional, nós devemos sustentar inequivoca-mente nossos princípios, dar passos altamente efetivos e lutar quando for necessário. À medida que a nossa posição internacional melhora, nós vamos assumir maiores responsabilidades internacionais, e a comunida-de internacional (especialmente os países em desenvolvimento) espera que assim o façamos. Como o maior país em desenvolvimento do mun-do, nós deveríamos desempenhar integralmente nosso papel. Nunca reivindicar a liderança e dar algumas contribuições constituem uma uni-dade dialética, e a chave é ser bom para aproveitar a situação e agarrar as oportunidades (JIANG, 2010, v. II, p. 197-198, tradução nossa).

Na mesma linha, em discurso realizado em visita à Tailândia em 3 de setembro de 1999, Jiang Zemin voltou a enfatizar as mudanças na conjuntura internacional e a manifes-tar preocupação com a evolução da situação internacional sob a hegemonia americana.

No momento, a situação internacional está passando por mudanças pro-fundas. Desde o fim da Guerra Fria, a situação geral do mundo se acal-mou. O clamor dos povos por paz, estabilidade e desenvolvimento tem aumentado constantemente. Entretanto, o mundo está longe de ser pa-cífico. Hegemonismo e a política do poder ainda existem na política in-ternacional, nos domínios da economia e da segurança, e se manifestam de novas formas. A nova "diplomacia das canhoneiras" e o neocolonia-lismo econômico exercido pelas grandes potências tem minado severa-mente a soberania, a independência e o desenvolvimento de muitos pa-íses pequenos e médios, e ameaçado a paz e a segurança internacional. Para manter a paz mundial e promover o desenvolvimento comum, to-dos os países devem se orientar estritamente pelas normas básicas das relações internacionais estabelecidas desde a guerra contra o fascismo, incluindo os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica e os objetivos e princípios da Carta das Nações Unidas (JIANG, 2010, v. II, p. 396-397, tradução nossa).

Em 2011, o então o presidente Hu Jintao, em discurso por ocasião do 90º aniversá-rio de fundação do Partido Comunista Chinês, reforçou as linhas mestras da política ex-terna chinesa, tal como segue:

A política externa da China tem como objetivo manter a paz mundial e promover o desenvolvimento comum. Continuaremos a prosseguir uma política externa independente de paz e seguiremos de forma inquebran-tável o caminho do desenvolvimento pacífico e da estratégia de abertu-ra de ganhos compartilhados. Desenvolveremos a amizade e a coopera-ção com todos os outros países com base nos Cinco Princípios da Coexis-tência Pacífica, defenderemos as reivindicações legítimas e os interesses comuns dos países em desenvolvimento e tomaremos uma parte ativa nos assuntos multilaterais para tornar a ordem política e econômica in-ternacional mais justa e equitativa. (HU, 2011)

Por sua vez, o presidente Xi Jinping, em discurso na Fundação Körber da Alemanha, em 28 de março de 2014, afirmou:

A China não aceita a lógica retrógrada de que um país, ao se tornar po-deroso, irá inevitavelmente buscar a hegemonia. As velhas práticas de colonialismo e hegemonismo ainda seriam viáveis no mundo de hoje? Definitivamente não. Isso conduz apenas para um beco sem saída, e a-queles que insistam nesse caminho certamente vão bater a cabeça na parede! O único caminho viável é o do desenvolvimento pacífico. É essa a razão pela qual a China persiste de forma inabalável no seu desenvol-vimento pacífico (XI, 2014, p. 322, tradução nossa).

Ao refutar o hegemonismo e a inevitabilidade de um conflito entre a potência e-mergente e a potência estabelecida, o presidente Xi Jinping, em reunião com o presiden-te dos Estados Unidos, Barack Obama, em junho de 2013, propôs o estabelecimento de um novo modelo de relacionamento entre grandes potências, baseado na cooperação e não no confronto (PEOPLE'S DAILY, 2013). Tal modelo não se aplicaria apenas na relação com os Estados Unidos, mas também com a União Europeia, a Rússia, a França e a Ingla-terra, estes membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. A política externa da China refuta a inevitabilidade da chamada "Armadilha de Tucídides", particularmente diante da grande disponibilidade de armas nucleares existente no mundo atual.

E importante ressaltar que na perspectiva do governo chinês, o desenvolvimento é uma coisa; a hegemonia é outra. A OCDE, organização que reúne os países considerados desenvolvidos, tem trinta membros, mas há apenas uma única superpotência, os Estados Unidos. Segundo Huang e Luan(2013, p. 290), há precedentes para o desenvolvimento pacífico. A China considera a Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial um bom exemplo. No caso específico da China, Huang e Luan(2013, p. 290) consideram que o fato de ela possuir um grande mercado doméstico e abundância de recursos permite ao país realizar um desenvolvimento independente, sem recorrer à expansão externa.

O argumento é questionável, pois não há experiência histórica que demonstre que algum país hoje desenvolvido tenha chegado a esse estágio baseando-se exclusivamente em seu próprio mercado. Por outro lado, também é verdade que, sem apoiar-se em um forte mercado interno, nenhum grande país realmente se desenvolveu. Até mesmo a China, para chegar aonde chegou até aqui, precisou contar com o mercado externo como um dos principais vetores de desenvolvimento. Evidentemente há uma enorme distância entre ser um grande exportador e exercer algum tipo hegemonia, mesmo porque a força econômica internacional de um país não depende de quanto ele exporta mas, sobretudo, do que ele exporta. A China já é o maior exportador mundial, e nem por isso exerce ou mesmo busca a hegemonia. Entretanto, é preciso considerar que a divisão internacional do trabalho, com base na qual o comércio internacional se realiza, está longe de ser sempre um jogo ganha-ganha, ou que os ganhos do comércio se distribuam de maneira mais ou menos uniforme entre os países, como insistem as chamadas "teorias puras de comércio internacional"6. O problema não é participar ou não do comércio internacional, pois de um jeito ou de outro, todos participam. A questão é como cada país participa do comércio internacional. O ponto em que cada país se insere nas cadeias globais de valor vai influenciar decisivamente quais serão seus ganhos de comércio. A questão é quanto valor cada país agrega em suas exportações.

Nenhum país, inclusive a China, conseguiu subir uns poucos degraus nas cadeias globais de valor sem algum nível de proteção à indústria local, abraçando sem restrições as políticas de livre-comércio. A China, entretanto, que por seus próprios méritos está chegando ao topo, tende a adotar uma visão mais liberal sobre o comércio internacional. Não deixa de ser irônico que, enquanto o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, defende o protecionismo, o presidente Xi Jinping vá ao fórum de Davos para defender a globalização7. Ad commodum suum quisquis callidus est8. Huang e Luan, ao expor qual é a visão do Partido Comunista da China sobre a liberalização comercial, afirmam:

O comércio é o motor do crescimento econômico. A liberalização do co-mércio ajuda a otimizar o comércio e a estrutura econômica de um país. A liberalização comercial promove a competição. Ela pode diminuir o poder dos monopólios em setor industrial no qual a competição é sub-ótima. Ela pode aumentar as economias pelo efeito escala e promover o aumento da produtividade do trabalho. A liberalização comercial pode ajudar a criar uma divisão internacional do trabalho positiva. Diferentes países podem concentrar-se na produção dos mais lucrativos ou relativamente mais lu-crativos produtos com base nas suas condições nacionais e força compa-rativa. Isso ajuda a alcançar a configuração ótima dos fatores produtivos e aumenta a produtividade. A liberalização comercial pode aumentar o vo-lume de produtos em circulação. Ela pode expandir os mercados, promo-ver economias de escala e abaixar os custos de produção e o preço dos produtos (HUANG; LUAN, 2013, p. 318, tradução nossa).

Ao defender tais pontos de vista, não se pode negar, a China age de forma coeren-te com seus interesses, pois, como afirmam os mesmos autores:

Para a China, a liberalização comercial é um fator institucional importan-te para seu sucesso econômico. Pesquisa confiável mostra que, a partir da década de 1990, cada 10% de aumento no crescimento das exporta-ções na China trouxe 1% de crescimento adicional no PIB. A liberalização comercial não apenas impulsiona o progresso tecnológico da China co-mo também gera pressão competitiva significante entre seus negócios, que promove a eficiência e favorece a seleção dos mais fortes e a elimi-nação dos fracos. Além disso, sob a propulsão do comércio, a mão de obra rural excedente é gradualmente transferida para a indústria manu-fatureira. A indústria manufatureira também está passando por uma transformação estrutural interna e por uma elevação de qualidade. A e-ficiência total da indústria está aumentando. Na medida em que a aber-tura impacta sobre bens e serviços, fatores como a filosofia operacional, fluxo de pessoas e capital e novos conceitos, técnicas e tecnologia, to-dos fluem para a China e injetam dinamismo na economia chinesa (HU-ANG; LUAN, 2013, p. 318-319, tradução nossa).

Mas entre a taça e os lábios sempre existe uma certa distância. Por tudo que discu-timos acima, parece não haver dúvida de que o caminho do desenvolvimento pacífico não é apenas o que a China deseja, mas também o que melhor lhe convém. Por mais que o país insista no mercado interno como novo vetor de desenvolvimento, o desenvolvi-mento chinês dependeu no passado recente e dependerá no futuro imediato de um ambiente internacional politicamente pacífico e economicamente aberto. Se pudéssemos imaginar alguns cenários da economia mundial para os próximos dez anos partindo de duas disjuntivas (globalização x regionalização e integração x fragmentação dos merca-dos mundiais), certamente o cenário que mais conviria à China seria aquele que combi-nasse globalização e integração, levando, assim, à formação de um mercado global to-talmente integrado e livre de empecilhos para a circulação de bens, capitais, tecnologias e pessoas. Isso pressupõe, naturalmente, primeiro que haja paz no mundo e, segundo, que não haja disputas por hegemonia que possam levar à fragmentação global em blocos de poder ou áreas de influência. Esse, porém, é apenas um dos cenários possíveis.

A China é um ator cada vez mais importante e poderoso nesse jogo, mas, por mais poder que tenha, não deixará de ser apenas mais um ator entre tantos outros. A depen-der do desenrolar da conjuntura, tanto é possível haver o recrudescimento do protecio-nismo, como temos visto desde o início da crise de 2008 – e aparentemente reforçado com a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos –, como também o aprofundamento da regionalização, que também é hoje uma realidade mundial, haja vista as centenas de acordos bilaterais, plurilaterais e regionais de comércio que têm sido assinados nos últimos anos, relegando a OMC à condição de guichê de reclamações. O desenvolvimento pacífico é, enfim, o que a China precisa e pelo que a China luta, mas há uma série de pedras no caminho que ela terá de tentar remover ou contornar com muita paciência.

Tal como enfatizamos, o governo chinês tem sido crítico da atual ordem global ba-seada na disputa de poder entre grandes potências e na busca de hegemonia por um único país. De acordo com sua estratégia de desenvolvimento pacífico, a China tem pre-gado a necessidade de uma nova ordem global multipolar pacífica, sem disputa por he-gemonia. A expressão "mundo harmonioso", que remete à ordem confucionista, tem sido uma constante no discurso da diplomacia chinesa. O título do discurso pronunciado pelo presidente Hu Jintao, por ocasião da comemoração do 60º aniversário da ONU, em setembro de 2005, era Construir um mundo harmonioso de paz duradoura e prosperida-de comum (HU, J., 2005, tradução nossa). No relatório do 18º Congresso Nacional doPCCh, realizado em 2012, também se lê exatamente a mesma frase: a China deve "cons-truir um mundo harmonioso de paz duradoura e prosperidade comum" (HUANG; LUAN, 2013, p. 364).

A China também procura deixar claro que se considera um país em desenvolvimen-to e, como tal, alinha-se aos demais países em desenvolvimento no mundo. De todos os países do grupo diplomático dos BRICS, a China é, de longe, o que dá mais importância a esse grupo, e não tem poupado esforços para aumentar o seu nível de institucionalidade. A inclusão da África do Sul e a recente criação do Banco dos BRICS, cuja sede fica em Xangai, evidenciam a estratégia chinesa de colocar-se como um país em desenvolvimen-to e lutar por mudanças, mesmo que marginais, na atual estrutura global de governança, sobretudo financeira, hoje totalmente dominada pelos Estados Unidos e representada pela dupla FMI-Banco Mundial. Jin (2012), por exemplo, afirma:

A China apoia a ideia de que a ordem econômica global deveria ser ra-zoavelmente reformada. Depois da Guerra Fria, a economia mundial es-tava sendo controlada principalmente pelos países desenvolvidos, e paí-ses em desenvolvimento, como a China, têm que se sujeitar a regras fei-tas por eles em comércio, finanças e tecnologia. A eclosão da crise fi-nanceira expôs os defeitos fundamentais do velho sistema econômico, e o mundo clama por reformas racionais. (JIN, C., 2012, p. 173, tradução nossa).

A estratégia chinesa não tem sido tentar revolucionar o sistema atual ou de criar um sistema alternativo. Como já observamos, a China foi a grande ganhadora com o processo de globalização, e o cenário global que mais lhe convém é o de um mundo aberto e integrado. Mas as reformas encontram barreiras poderosas, já que implicariam a mudança de regras que dificilmente os beneficiários da ordem atual estão dispostos a aceitar, sobretudo se consideramos que existem regras legais e regras de fato, e que: estas últimas são, como afirma Matus (1996), regras de desigualdade, que beneficiam uns e prejudicam outros, e "naturalmente os que são beneficiados pelas regras vigentes defendem-nas até a morte" (MATUS, 1996, p. 43)

A Iniciativa "Cinturão e Rota": uma estratégia de desenvolvi-mento pacífico

Antes de discutirmos a importância do projeto "Cinturão e Rota", é importante res-gatar um evento de importância histórica para as relações internacionais da China com vistas a diferenciar a lógica da estratégia chinesa de longo prazo frente ao imediatismo que prevalece na cultura ocidental, qual seja, a forma como a República Popular da China lidou com a ex-colônia inglesa de Hong Kong durante o período da Guerra Fria. Para tanto, nos valemos das informações de Cheung (2012) sobre como o governo de Pequim lidou com dois temas essenciais para a sobrevivência de Hong Kong antes do retorno da cidade ao seio da China continental: água e comida.

O território de Hong Kong é muito pequeno e abrange diversas ilhas e a península de Kowloon. Nessa região, por conta do forte adensamento demográfico, se criou uma enorme dependência entre a ex-colônia e a China em quesitos essenciais, como o abas-tecimento de água e o suprimento de comida. Apesar de estar em lados opostos na Guerra Fria, a China nunca buscou tirar partido dessa debilidade de Hong Kong, como poderia parecer racional numa perspectiva de "soma-zero". Ao contrário, a política da China para a ex-colônia inglesa sempre teve a perspectiva do longo prazo, buscando simultaneamente buscar a confiança da população chinesa em Hong Kong e também ao utilizá-lo como uma "janela para o mundo", de onde poderia obter informações, capitais e tecnologias. Cheung ressalta este aspecto:

Com o início da Guerra da Coréia em 1950, Hong Kong tornou-se a linha de frente da Guerra Fria. Ao longo dos anos 1950 e 1960, os Estados U-nidos como aliado da Grã-Bretanha usaram Hong Kong como um farol do capitalismo contra a China comunista. Ao mesmo tempo, como uma cidade predominantemente chinesa sob o domínio britânico, Hong Kong ofereceu à China uma maneira de coletar informações sobre o mundo exterior, adquirir recursos e capital e prejudicar a aliança anglo-americana no Leste Asiático. Sempre que os principais líderes comunis-tas formularam qualquer política de Hong Kong em relação a essa maior rivalidade Leste-Oeste, eles sempre enfatizaram a necessidade de plane-jamento em longo prazo e utilização máxima da importância estratégica de Hong Kong. (CHEUNG, 2012: 207,tradução nossa).
A construção do Dongshen-Hong Kong Water Supply Scheme, sistema de abasteci-mento de água por parte do governo chinês, em 1964, foi uma das estratégias para esta-bilizar a relação com Hong Kong, viabilizar seu desenvolvimento econômico num período de forte crescimento industrial e populacional, mas principalmente, para obter a confian-ça da população majoritariamente chinesa da colônia britânica. Tal como informa Chueng (2012), em 1984, durante as negociações sino-britânicas sobre a restituição de Hong Kong à China, a posição inglesa estava bastante fragilizada frente à grande dependência do suprimento de água e alimentos vindos do Continente. Esta estratégia de evitar o confronto e adquirir o apoio por meio do exemplo é bem característica da visão chinesa de política exterior.

Da mesma forma, a Iniciativa "Cinturão e Rota" pode ser enquadrada como uma estratégia chinesa de longo prazo em que se busca criar um clima de confiança em meio a diversos problemas políticos, econômicos, culturais e militares que se espalham no amplo território abrangido pela Iniciativa.

Esta foi proposta foi anunciada pela China, em 2013, como um ambicioso projeto econômico e geopolítico com o propósito de ampliar e fortalecer a cooperação regional. Ela envolve 65 países, como China, Mongólia, Rússia, nações da Ásia Central, da Ásia Ocidental, a Península da Indochina e a costa oriental da África, que no seu conjunto respondem por 63% da população mundial, mas por apenas 29% do PIB, o que revela seu enorme potencial de crescimento. O projeto possui dois braços: um terrestre e um marí-timo, respectivamente o cinturão econômico da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima no século XXI. O primeiro visa a ligar a China com a Europa através da Ásia Central e Ocidental por rotas terrestres. O segundo visa a conectar a China com outros países da Ásia, África e Europa por meio da construção de infraestruturas ao longo das rotas marí-timas nos oceanos Pacífico e Índico.

Quandoem visita ao Cazaquistão, em setembro de 2013, o presidente Xi Jinping lançou pela primeira vez a proposta do cinturão econômico da Rota da Seda, referiu-se a essa iniciativa como mais um passo no sentido de ampliar a cooperação regional. Segun-do mencionou em discurso na Universidade Nazarbayev, na cidade de Astana, o empre-endimento tinha cinco objetivos (XI, 2014, p. 348-349):

  • Reforçar a comunicação a respeito de políticas e promover a discussão sobre estra-tégias e medidas de desenvolvimento econômico.
  • Reforçar a interconexão das estradas com o objetivo de construir um grande corre-dor de transporte ligando o Oceano Pacífico ao Mar Báltico e formar uma rede de transportes ligando leste da Ásia, Ásia Ocidental e Ásia Meridional, facilitando o de-senvolvimento econômico e o intercâmbio cultural e interpessoal entre todos os países.
  • Reforçar o livre comércio – segundo Wang (2016), os 65 países que formam o cin-turão e a rota, incluindo os países europeus participantes da estrutura "16 1"9, criarão uma corrente de comércio de US$ 2,5 trilhões.
  • Reforçar a circulação de moeda. O objetivo é estabelecer a conversibilidade das moedas nas transações nas contas-correntes e de capitais entre os países da regi-ão, de forma a reduzir os custos de transação e os riscos financeiros.
  • Aumentar o entendimento entre os povos.

Do mesmo modo, a proposta da Nova Rota Marítima da Seda foi apresentada um mês depois quando da visita do presidente Xi Jinping à Indonésia, como parte dos esfor-ços da China em fortalecer a parceria estratégica entre ela e os países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). Em discurso no Congresso Nacional da Indonésia, no dia 3 de outubro de 2013, o presidente Xi Jinping afirmou que:

A região do sudeste asiático é, desde a antiguidade, um ponto de cone-xão da Rota da Seda Marítima. A China está disposta a fortalecer a coo-peração no âmbito marítimo com os países da ASEAN, utilizando de forma correta o Fundo de Cooperação Marítima China-ASEAN, criado pelo governo chinês em busca da parceria marítima e da construção conjunta da Rota da Seda Marítima no século XXI. A China está disposta a ampliar a cooperação pragmática em todas as áreas com os países da ASEAN para trocar o que temos pelo que não temos, complementar um ao outro, compartilhar oportunidades, enfrentar os desafios e alcançar conjuntamente o desenvolvimento e a prosperidade comuns (XI, 2014, p. 353, tradução nossa).

A Iniciativa envolve seis grandes regiões ou corredores econômicos: (1) o corredor ligando China, Ásia Central, Rússia e Europa (Báltico); (2) o corredor ligando China, Ásia Central, Oriente Médio, Golfo Pérsico e Mar Mediterrâneo; (3) o corredor ligando China, Sudeste Asiático, Subcontinente Indiano e Oceano Índico; (4) o corredor ligando China e Paquistão e Bangladesh, China, Índia e Mianmar (BCIM); (5) o corredor continental da Eurásia e (6) o corredor ligando China, Mongólia e Rússia (WANG, Y., 2016, p. 61).

Trata-se de uma estratégia que tem por foco a interconectividade e a cooperação (primeiramente entre os países da Eurásia), e por objetivo a construção de uma rede de comércio e infraestrutura em uma espécie de rejuvenescimento da antiga Rota da Seta. As principais ações previstas nesse projeto referem-se à construção de infraestrutura de transporte e comunicação. Conforme destaca Ninio (2015):

Quase 8.000 quilômetros separam a cidade de Xi'an de Veneza, na Itália, extremos da rota. No lugar das caravanas de camelos que cruzavam a Ásia Central com mercadorias entre a China e a Europa, uma ampla rede de ferrovias, estradas, oleodutos e cabos de fibras ópticas ocupará o percurso, de acordo com os planos do governo chinês. Para financiar as obras, Pequim criou um fundo de US$ 40 bilhões, além do Banco Asiáti-co de Infraestrutura e Investimento, que tem a participação de outros 21 países e deve começar a funcionar neste ano, com um capital de US$ 50 bilhões (NINIO, 2015, s/p.).
Para apoiar o financiamento da Iniciativa, o governo chinês criou em 2014o Fundo da Rota da Seda (Silk Road Fund, em inglês), com a previsão de investimentos da ordem de U$40 bilhões e também estruturou o Banco de Investimentos em Infraestrutura da Ásia, que tem por finalidade complementar o papel do Banco Asiático de Desenvolvimen-to (ADB) em projetos de infraestrutura. Estima-se que a demanda anual de investimentos nos países da Ásia para que estes superem o subdesenvolvimento seja de aproximada-mente US$1,7 trilhão por ano. Com o aporte da China, países que não possuem recursos vis-à-vis às suas necessidades podem ter acesso a fontes de financiamento e de tecnolo-gias de construção pesada oriundas da China. Exemplo disso é o Laos, país onde está sendo construída pela China uma ferrovia estimada em US$6 bilhões, algo que parecia ser inviável do posto de vista econômico visto que seu PIB alcança apenas US$12 bilhões. Sem os recursos da Iniciativa "Cinturão e Rota" dificilmente este país poderia construir uma ferrovia que integre sua capital Vientiane aos fluxos comerciais do Sudeste Asiático e da China.

Vale destacar que do ponto de vista da economia chinesa, a Iniciativa possui um ca-ráter anticíclico para a indústria de bens de capital da China e também de suas grandes empresas de construção civil, visto que depois de 2013 o país vem sofrendo os efeitos do excesso de capacidade produtiva em muitas áreas, notadamente nos setores siderúrgico e imobiliário. Também é uma plataforma importante para a implementação do novo ciclo de reformas da economia chinesa, o chamado "novo normal", pois oferece às empresas chinesas a oportunidade de internacionalização e de se inserirem em etapas de maior agregação de valor. Por outro lado, para os demais países envolvidos nesse projeto, a criação de infraestruturas pode ser importante para poderem se integrar produtivamen-te nas cadeias de valor que se desenvolvem na Ásia, tanto pela potencialização da oferta de commodities como a criação de setores industriais antes inexplorados.
Não obstante à questão econômica, a Iniciativa "Cinturão e Rota" possui uma im-portância política essencial, qual seja, a de tentar contribuir para a estabilidade político da região eurasiática e buscar a criação de um ambiente pacífico para o desenvolvimento da China e de todos os países por ela envolvidos. É importante ressaltar o aspecto inova-dor da Iniciativa, pois ela não encontra paralelos na História, mesmo que possa, em tese, se assemelhar a projetos anteriormente patrocinados pelos Estados Unidos. O projeto chinês não pressupõe objetivos hegemônicos, não possui "condicionalidades políticas" e também não faz proselitismo ideológico, pois não busca vender o modelo político chinês e tampouco os valores culturais e filosóficos do país. Ele envolve diversos países, inclusi-ve aqueles com os quais a China mantém disputas territoriais, como a Índia e os países da ASEAN pela questão do Mar da China Meridional.

A comparação com as iniciativas norte-americanas são recorrentes. Em reportagem do jornal New York Times (NYT,2017) sobre "Fórum Cinturão e Rotapara a Cooperação Internacional", os articulistas Jane Perlez e Yufan Huang traçaram uma comparação entre a Iniciativa"Cinturão e Rota" com o plano Marshall:
Xi está lançando uma versão mais audaciosa do Plano Marshall, o esfor-ço de reconstrução pós-guerra dos Estados Unidos. Naquela época, os Estados Unidos gastaram uma grande quantidade de recursos para a-poiar seus aliados na Europa. A China está investindo centenas de bi-lhões de dólares de empréstimos respaldados pelo Estado com a espe-rança de ganhar novos amigos em todo o mundo, mas desta vez sem e-xigir obrigações militares.(NYT,2017)
Entretanto, essa referência é veemente rejeitada pela China, alegando que não há nesse projeto nenhum tipo de condicionalidade, cálculo político geoestratégico e tam-pouco direcionado para a contenção de terceiros. Segundo o ONUNAIJU (2016):
O "Cinturão e Rota" tem sido comparado como uma versão chinesa do Plano Marshall, o plano de ajuda dos Estados Unidos para a recuperação da Europa após a Segunda Guerra Mundial, mas que a prendeu em uma complexa rede de segurança dominada por Washington. Pequim tem si-do cuidadosa em deixar claro que o "Cinturão e Rota" não tem o cálculo estratégico geopolítico implícito no Plano Marshall (ONUNAIJU, 2016, p 207, tradução nossa).

De fato, projetos como o Plano Marshall10, o Plano Colombo11e a Aliança para o Progresso12 (APP) são exemplos de como os Estados Unidos buscaram viabilizar suas estratégias geopolíticas tendo como base a promessa de investimentos e a cooperação econômica e militar em contrapartida à contenção da União Soviética. Com exceção da Europa, não se viu nas demais regiões resultados concretos que efetivamente tenham alterado o panorama social e econômico, mas a estratégia de criar um "cordão sanitário" no entorno dos países socialistas se mostrou efetivo. A Iniciativa "Cinturão e Rota"traça um caminho diferente, buscando integrar países que possuem diferentes características étnicas, religiosas e políticas, que inclusive possuem rivalidades cristalizadas, como Índia e Paquistão, Irã e os países da Península Arábica e mesmo a própria China, que possui muitos passivos territoriais em seu entrono.
A Iniciativa é parte dos esforços que o governo da China vem desenvolvendo para fortalecer a cooperação regional na Eurásia, e não pode ser dissociada de outras iniciati-vas com o mesmo propósito já em funcionamento – como a recente criação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (em inglês, Asian Infrastructure Investment Bank – AIIB), o qual o Brasil é, inclusive um dos sócios fundadores, ao lado de China, Rússia, Índia e África do Sul (BRASIL, 2017), a criação da Comunidade Econômica Eurasiá-tica (EAEC) e da Organização para a Cooperação de Shangai (em inglês, Shanghai Coope-ration Organization – SCO). Destaque-se que esta última, criada em Xangai em 15 de junho de 2001 por seis países (China, Rússia, Cazaquistão, Tadjiquistão e Uzbequistão), e cuja organização predecessora foi o "Grupo dos Cinco Países em Xangai", tem, entre seus objetivos, "o fortalecimento da confiança mútua de relações de boa vizinhança entre os países membros, a promoção da cooperação nas áreas de política, economia, ciência e tecnologia, cultura, educação, energia, transporte e estabilidade na região, e a promoção de uma nova ordem internacional e econômica mais democrática, justa e racional" (XI, 2014, p. 350).E importante enfatizar a complexidade política no espaço onde se desenrolaram as ações da Iniciativa "Um Cinturão, Uma Rota". O primeiro problema que emerge para a

China diz respeito às sua própria estabilidade política frente à existência de grupos insur-gentes no Oeste do país nas Regiões Autônomas de Xinjiang e Tibete. O primeiro, cuja população original é majoritariamente de etnia turca e muçulmana, tem sido alvo de constantes ações desestabilizadoras. A propósito, a longa faixa de terra que vai de Xinji-ang até Turquia, a antiga Rota da Seda, passando pelo Quirquistão, Uzbequistão, Caza-quistão, Turcomenistão, Tadjiquistão, Sul da Rússia, Azerbaijão abriga populações majori-tariamente turcas e de religião islâmica. A criação da SCO ocorreu justamente quando o ativismo islâmico sunita se converteu em uma forte ameaça na Ásia Central, principal-mente durante as guerras na Chechênia e no Daguestão e com o estabelecimento do governo Talibã no Afeganistão. Já com relação ao Tibete, é a região da China onde as disputas territoriais com a Índia ainda estão pendentes, e também onde os movimentos de independência são estimulados pelo governo de Nova Délhi. Quando este artigo foi preparado, em agosto de 2017, tropas indianas ocupavam o território de Doklan, na seção da fronteira de Sikkim, em área disputada pela China e por Butão.
Por outro lado, os problemas envolvendo a Rota Marítima, não são menos comple-xos, visto os diversos atritos geopolíticos na região, do qual Taiwan é o mais proeminen-te, mas não o único. Asbacias dos oceanos Pacífico e Índico são palco de disputas territo-riais no Mar da China Meridional que envolvem, entre outros, Malásia, Filipinas, Vietnam, Indonésia e Brunei e também de fricções com os Estados Unidos frente aos direitos de exploração exclusiva e de navegação na região em que a China considera seu território. Especificamente no oceano Índico, a construção de infraestruturas em Bangladesh e no Sri Lanka é vista com desconfiança pelo governo da Índia, que já enfrenta problemas em sua fronteira setentrional com a China e o Paquistão.
Outra complexidade envolvendo a Iniciativa é a variedade de civilizações que se encontram nos caminhos das Rotas da Seda. O projeto chinês, diferentemente da pers-pectiva de um iminente choque de civilizações, busca integrar diferentes etnias, culturas e religiões. O budismo, o hinduísmo, o islamismo (sunita e xiita), o judaísmo, o cristianis-mo (romano, ortodoxo ou protestante) não são, em tese, destinados a um conflito per-manente, visto que a experiência da antiga Rota da Seda, por meio do comércio, integra-va todos os povos ao longo de seu trajeto. Tal aspecto foi enfatizado por Xi Jinping em seu discurso realizado no Fórum Cinturão e Rota:
As antigas rotas de seda atravessavam os vales do Nilo, do Tigre e do Eu-frates, do Indus e do Ganges e dos rios Amarelo e Yangtze. Elas ligaram os locais de nascimento das civilizações egípcias, babilônicas, indianas e chinesas, bem como as terras do budismo, do cristianismo e do islamis-mo e casas de pessoas de diferentes nacionalidades e raças. Essas rotas permitiram que pessoas de várias civilizações, religiões e raças interagis-sem e se abraçassem com mente aberta. Ao longo do intercâmbio, eles fomentaram um espírito de respeito mútuo e se envolveram em um es-forço comum para prosseguir a prosperidade. (XI, 2017)

É importante considerar que a perspectiva chinesa para o sucesso de sua Iniciativa.E de longo prazo. A criação de infraestruturas, rodovias, ferrovias, portos e aeroportos e ainda a liberalização dos fluxos de mercadorias e de capitais tende a criar uma maior interdependência entre os países envolvidos e viabilizar uma maior aproximação entre os povos, buscando diminuir as grandes desconfianças construídas historicamente, sejam por disputas territoriais, sejam por questões culturais e religiosas. A construção de um relacionamento na prática e por meio do exemplo pode contribuir mais para a paz e a estabilidade do que a imposição de valores supostamente universais por meio da pressão de uma nação hegemônica. Tal como mencionado no começo desta seção, qualquer suposta desconfiança com relação aos interesses da China no caso de Hong Kong foi superado pela ação e não por meio de discursos. O sucesso para a criação de um ambien-te de paz e estabilidade na região da Eurásia e do Índico passa mais pela efetividade da Iniciativa "Cinturão e Rota" do que por promessas e discursos repletos de ameaças e condicionalidades.

5 Considerações Finais

Tal como discutimos ao longo deste trabalho, não se pode avaliar a política inter-nacional da China por meio dos valores e dos referenciais teóricos de outras realidades culturais. Em que pese a influência de teorias ocidentais de Relações Internacionais na comunidade acadêmica chinesa, os formuladores da estratégia internacional, notada-mente os intelectuais vinculados ao Partido Comunista Chinês, consideram a própria tradição cultural para fazer frente aos desafios colocados pelo rápido desenvolvimento econômico do país e da maior projeção no cenário mundial.
Por outro lado, não se pode perder de vista a forma como a China se vê no mundo, qual seja, a de um país em desenvolvimento com muitos desafios internos para enfren-tar, que trata de estabelecer um relacionamento equitativo com todos os países e, prin-cipalmente, reitera o seu posicionamento em favor uma ordem multipolar e por um novo modelo de relacionamento entre as grandes potências pautado pela cooperação e pelo diálogo. Os discursos da liderança chinesa contra o hegemonismo são recorrentes ao longo da história da República Popular da China, notadamente quando reafirma a sua estratégia de "desenvolvimento pacífico". Daí a ênfase com que os dirigentes do país refutam a inevitabilidade da "Armadinha de Tucídides".
Por fim, a Iniciativa "Um Cinturão, Uma Rota" tem se apresentado como uma opor-tunidade para que a China possa materializar o seu projeto de política internacional, buscando a criação de um ambiente pacífico e estável em que os frutos do seu desenvol-vimento possam contribuir para o progresso de todos os países envolvidos nessa Iniciati-va. Mais importantes do que os discursos são os resultados palpáveis sobre o bem-estar, a estabilidade política e a paz, tanto com relação à população chinesa, como na vida dos povos dos demais países.

Referencias

4 Romanização em Wade-Giles no texto original.

5 Segundo Xi (2014, p.23), "A fase inicial do socialismo refere-se a uma fase histórica especial da socieda-de socialista da China, particularmente àquela em que o país se livra de forma gradual do estado subde-senvolvido e realiza basicamente a modernização socialista. Essa fase vai durar pelo menos cem anos desde a conclusão básica – nos anos 1950 – da transformação socialista da propriedade privada dos meios de produção até a concretização básica da modernização socialista".

6 As chamadas "teorias puras do comércio internacional" são três: a teoria das vantagens absolutas de Adam Smith; a teoria das vantagens comparativas de David Ricardo e a teoria de Heckscher-Ohlin. A diferença desta última para com a teoria das vantagens comparativas de David Ricardo é que, enquanto Ricardo sustenta que as diferenças nas vantagens comparativas advêm da produtividade do trabalho e, em última instância, da tecnologia, para Heckscher-Ohlin tais diferenças provêm da dotação relativa dos fatores de produção: capital e trabalho. Assim, cada país deveria se especializar na produção de bens que usam intensivamente seu fator de produção mais abundante. Essas teorias têm sido há décadas contesta-das, porque contam apenas uma parte da história, e não conseguem explicar o comércio intrassetorial e intrafirma. De fato, a especialização internacional eleva a eficiência global do sistema. – na medida em que, se cada país se especializa no que faz melhor, independentemente de possuir vantagem absoluta de custo ou não, o nível de produção global tende a aumentar. Mas essas teorias não conseguem demonstrar como esses ganhos de comércio beneficiariam os dois lados da troca. A escola estruturalista latino-americana, por exemplo, cujo maior expoente foi o economista argentino Raul Prebish, sustenta, baseada na experiência latino-americana, que existe uma tendência secular de deterioração dos termos de troca entre países exportadores de matérias-primas e países exportadores de produtos manufaturados. De acordo com essa teoria, há uma tendência secular de queda no preço das commodities, de forma que países que se especializam na produção de matérias-primas precisarão exportar quantidades cada vez maiores de bens primários para comprar quantidades decrescentes de bens manufaturados, cujos preços, graças às inovações tecnológicas não só não caem, como, ao contrário, tendem a subir. O economista romeno Mihail Manoilescu desenvolveu, na mesma época, uma teoria semelhante. Não está claro até que ponto as ideias de Manoilescu influenciaram o pensamento de Raul Prebish e a escola estruturalista latino-americana. Para maiores detalhes ver: Love, J. L. A construção do Terceiro Mundo. Teorias do Subdesenvolvimento na Romênia e no Brasil.São Paulo, Paz e Terra, 1996.

7 Em discurso pronunciado no dia 17 de janeiro de 2017, no Fórum Mundial de Davos, o presidente Xi Jinping fez uma enfática defesa da globalização e do livre-comércio, em claro contraponto às declarações que o recém-eleito presidente americano Donald Trump em favor do protecionismo. Na ocasião, o presi-dente chinês afirmou que "os problemas que estão perturbando o mundo não são causados pela globali-zação. Eles não são o resultado inevitável da globalização"(ANDERLINI; WANG; MITCHELL, 2017, tradução nossa).

8 Provérbio latino: "cada um sabe onde o sapato aperta."

9 A estrutura "16 1" refere-se a diferentes mecanismos e arranjos de cooperação entre a China e dezes-seis países da Europa central e oriental estabelecidos em 2012 por ocasião da visita do ex-primeiro-ministro chinês Wen Jiabao à Polônia.

10 O Plano Marshall, formulado em 1947, foi a primeira dessas iniciativas, era denominado oficialmente como Programa de Recuperação Europeia, um plano norte-americano para a reconstrução dos países europeus após a Segunda Guerra Mundial. O plano permaneceu em operação por quatro anos fiscais a partir de julho de 1947. Durante esse período, algo em torno de US$ 13 bilhões em valores da época foram dispendidos pelo governo dos EUA. Adicionalmente, a estratégia dos EUA levou à criação da aliança militar do Atlântico Norte, a OTAN, para confrontar a URSS.

11 Com um escopo menor e com o patrocínio da Comunidade Britânica de Nações, o Plano Colombo foi concebido em 1950 como uma iniciativa para promover o desenvolvimento econômico e social dos países membros do Sul asiático e para fazer frente ao avanço do socialismo na Região. Posteriormente, os Esta-dos Unidos aderiram ao projeto e se converteram no maior contribuinte para a organização. Em síntese, o plano estava baseado na transferência de capital físico, de tecnologia e na formação de quadros técnicos. Entretanto, diferentemente do Plano Marshall, o PC não contribuiu significativamente para o desenvolvi-mento dessa região, que ainda hoje apresenta baixos níveis de desenvolvimento. Em 1977, o Plano se converteu em uma organização internacional que abriga os principais aliados dos Estados Unidos na região da Ásia-Pacífico. (Colombo, 2017).

12 A Aliança Para o Progresso (APP) foi lançada pelo presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, em 1961, como um programa de cooperação destinado a acelerar o desenvolvimento econômico e social da América Latina (Kennedy, 2017), mas que na prática foi uma resposta do governo dos EUA à vitória da Revolução Cubana e o receio de que as ideias socialistas se espalhassem na região. Em princípio, a Aliança duraria 10 anos e projetava investimentos da ordem de US$ 20 bilhões, a maior parte sob a responsabili-dade dos Estados Unidos, mas também de diversas organizações internacionais, países europeus e em-presas privadas. Entretanto, a iniciativa foi abandonada em 1969, pelo presidente por Richard Nixon, sem que a estrutura econômica e social da América Latina se modificasse. Mas, do ponto de vista político, a APP cumpriu seus objetivos, pois a intervenção dos EUA conseguiu refrear o avanço de governos naciona-listas e socialistas na região.

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