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Anales del Instituto de Arte Americano e Investigaciones Estéticas. Mario J. Buschiazzo

On-line version ISSN 2362-2024

An. Inst. Arte Am. Investig. Estét. Mario J. Buschiazzo vol.43 no.1 Buenos Aires June 2013

 

ARTICULO

O design brasileiro através do espelho: Lina Bo Bardi, Aloisio Magalhães e a questão da contextualizacão cultural na historiografia do design no Brasil

El diseño brasileño a través del espejo: Lina Bo Bardi, Aloísio Magalhães y la cuestión de la contextualización cultural en la historiografía del diseño en Brasil

Brazilian design through the mirror: Lina Bo Bardi, Aloísio Magalhães and the cultural set in context matter on design historiography in Brazil

 

Zoy Anastassakis*

* Designer (ESDI / UERJ, 1999), mestre (2007) e doutora (2011) em antropologia (PPGAS-Museu Nacional, UFRJ). Professora Adjunta na Escola Superior de Desenho Industrial, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e no Departamento de Artes e Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Coordenadora do Laboratório de Design e Antropologia (LADA), parceria da ESDI/uerj com o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Observatório Etnográfico de Design e Inovacão Social no Rio de Janeiro, projeto de extensão. Com apoio da Fundacão de Apoio a Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), encontra-se em fase de edicão sua tese de doutoramento, que versa sobre os processos de institucionalizacão do design no Brasil, à  luz das trajetórias e discursos da arquiteta italiana Lina Bo Bardi e do designer pernambucano Aloisio Magalhães.

Escola Superior de Desenho Industrial, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. R. Evaristo da Veiga 95, Lapa, Rio de Janeiro. Brasil. Email: zoy@esdi.uerj.br

RECIBIDO: 5 de noviembre de 2013
ACEPTADO: 15 de mayo de 2014


RESUMO

O artigo retoma alguns pontos estratégicos do debate contemporà¢neo sobre a história do design no Brasil, articulando a reflexão em torno de uma questão que se coloca de forma central no campo, a saber, a busca por contextualizacão cultural, tema que, consequentemente, conduz a uma discussão sobre a possibilidade de uma identidade cultural brasileira no design. Buscando relacionar alguns fatos e corpos de reflexão que se constituíram em diferentes momentos e lugares através daquelas nocàµes-chave, o artigo pretende também apontar para algumas continuidades e descontinuidades de tal debate, que parece ser central para o design no Brasil. Essa análise é construída a partir da observacão de algumas das apreciacàµes contemporà¢neas dos pensamentos da arquiteta italiana Lina Bo Bardi e do designer pernambucano Aloisio Magalhães, feitas pelos críticos da história do design no Brasil, segundo suas producàµes mais recentes.

Palavras Chave: Design brasileiro; Contextualizacão cultural; Lina Bo Bardi; Aloisio Magalhães.

RESUMEN

El artículo recoge algunos puntos estratégicos del debate contemporáneo sobre la historia del diseño en Brasil, articulando la reflexión en torno a una cuestión central en el campo, como es la búsqueda de la contextualización cultural que conduce a una discusión sobre la posibilidad de una identidad cultural brasileña en el Diseño. A partir de relacionar algunos hechos y conjuntos de reflexiones formados en diferentes épocas y lugares a través de conceptos clave, el texto también pretende señalar algunas continuidades y discontinuidades que resultan centrales para el debate sobre el diseño en Brasil. Este análisis se construye a partir de la observación de algunos de los testimonios de las trayectorias de la arquitecta italiana Lina Bo Bardi y del diseñador pernambucano Aloísio Magalhães, realizados por los críticos de la historia del diseño en Brasil de acuerdo con sus últimas producciones.

Palabras Clave: Diseño brasileiro; Contextualización cultural; Lina Bo Bardi; Aloísio Magalhães.

ABSTRAC

This article picks some strategic points of the contemporary debate about history of design in Brazil, linking the reflection concerning a main matter in the field, like the searching of cultural set in context, which guides to a discussion about the possibility of a Brazilian cultural identity on design. From relating some facts and a group of reflections born in different periods and places through key concepts, this writing also pretends to show some continuities and discontinuities which result very important for the debate about design in Brazil. This analysis is constructed from the remark of some reviews about the architect Lina Bo Bardi and the Pernambucan designer Aloísio Magalhães´careers, made by design historian critics in Brazil, according to their last works.

Keywords: Brazilian design; Cultural set in contexto; Lina Bo Bardi; Aloísio Magalhães.


INTRODUà‡àƒO

Nos últimos anos, acontece, no Brasil, um aumento exponencial dos cursos de graduacão em design. Ao mesmo tempo, percebe-se uma tendência de revisão crítica dos parà¢metros que organizam a prática e o ensino dessa atividade profissional. Esse segundo movimento é perceptível se levarmos em conta o crescente número de artigos apresentados em congressos, periódicos especializados e livros dedicados à  reflexão sobre a prática e o ensino de design no contexto brasileiro.
Muitas dessas revisàµes partem de uma crítica aos modelos que inspiraram, entre 1950 e 1960, a criacão dos primeiros cursos de design moderno do país, tais como o curso de desenho industrial do Instituto de Arte Contemporà¢nea do Museu de Arte de São Paulo (iac-masp), em 1951, e aquele da Escola de Artes Plásticas da Universidade Mineira de Artes, em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1957, além do primeiro curso de nível superior, o da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), inaugurado em 1963 no Rio de Janeiro.
Apresentando os resultados da pesquisa que informou a tese de doutorado (Anastassakis, 2011) defendida no Programa de Pós-Graduacão em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, este artigo explora a ideia de que parte importante do debate sobre design no Brasil se articula em torno de uma crítica (multi-situada e re-articulada de diversas formas ao longo do tempo) ao modo como se estruturou, neste país, o ensino da atividade, entre 1950 e 1960, a partir do que foi identificado (por aqueles que constroem tais críticas) como uma interlocucão brasileira com um modelo germà¢nico, sintetizado pela Hochschule fur Gestaltung, ou Escola de Ulm.
Duas nocàµes-chave atravessam as críticas à  incorporacão brasileira daquele modelo de ensino, mais nitidamente observada (por essa mesma crítica) no currículo do primeiro curso superior em design do país, o da ESDI. Contexto e cultura são as palavras-chave e, assim, a busca por contextualizacão cultural é o que reúne uma série de argumentos, discursos, debates, experiências e práticas formuladas a partir de tal posicionamento crítico face à  incorporacão da perspectiva "ulmiana" nos cursos de design no Brasil. Por consequência, tal busca tem levado a discussàµes sobre o que seria, ou o que deveria ser, o design brasileiro. Assim, junto à  questão da atencão à  contextualizacão cultural, ou à  consideracão da realidade sócio-cultural, surge um debate sobre os significados sociais do design e sua adequacão à s especificidades da identidade cultural brasileira.
Tais debates se iniciam já entre 1950 e 1960. Portanto, surgem contemporaneamente à  criacão dos primeiros cursos e escritórios de design no país, sendo ativados tanto de dentro quanto de fora do campo profissional, ou seja, tanto por setores da sociedade civil, quanto por alunos, professores e profissionais identificados com a área. No fim dos anos 1960, face ao quadro de revisão generalizada dos parà¢metros sócio-culturais que organizavam o mundo ocidental, delineado de forma explosiva em 1968, a crítica aos modelos de ensino em design ganha novos contornos, que se desdobram em uma série de buscas por alternativas de ensino e da prática de projeto. Esse movimento gera algumas propostas concretas ainda no final da década e ao longo das décadas seguintes. Entre 1990 e 2000, quando emerge, enfim, uma historiografia do design no país, o debate ganha novos contornos e significados, na medida em que alguns pesquisadores buscam ampliar o que se entende hoje sobre a constituicão do campo do design no contexto brasileiro.

A partir de um interesse em problematizar as ideias que organizam a prática e o ensino do design no Brasil, bem como suas transformacàµes ao longo do tempo, se acredita que, perseguindo as disputas e os debates articulados por profissionais, estudantes e instituicàµes de ensino no período que compreende os últimos sessenta anos, é possível questionar o que está em jogo nas discussàµes sobre as possibilidades do design no contexto cultural brasileiro e, assim, observar como se configura, no país, um campo intelectual ligado à  essa atividade profissional.
Assim, neste artigo se propàµe uma aproximacão com o campo disciplinar do design brasileiro, a fim de perceber quais temas informam as discussàµes no momento em que se efetua um aumento substantivo de revisàµes críticas sobre a trajetória do campo no país. Nesse sentido, interessa também compreender como um campo ampliado de reflexão sobre design, arte, arquitetura, história, políticas de patrimà´nio cultural, ou seja, sobre a producão da cultura material, elabora as questàµes referentes à s suas áreas específicas, e de que forma essas áreas dialogam (à s vezes explicitamente, à s vezes de forma tácita) com o campo mais específico do design.
Para tanto, se observa alguns discursos, bem como os acontecimentos à  sua volta (Foucault, 1996), procurando perceber como são fixados os limites entre as disciplinas e que recursos são utilizados (pelos atores e autores em campo) para delimitar os contornos disciplinares de um campo mais vasto de áreas de conhecimento relacionadas à  objetivacão ou materializacão das culturas através de formas, espacos, coisas.
Algumas perguntas que aqui, então, se apresentam: que histórias tal discurso (polifà´nico) recria, como se articulam as versàµes dessas histórias, quem são os agentes produtores das reflexàµes sobre design no Brasil hoje, que problemas tem sido formulados, e, além disso, como, através de alguns dos atores-autores contemporà¢neos, vêm sendo re-elaboradas as figuras daqueles considerados como articuladores de discursos fundadores do campo, ou de novas visadas sobre ele, tais como a arquiteta italiana Lina Bo Bardi1 (1914-1992) e o designer pernambucano Aloisio Magalhães2 (1927-1982).
Assim, se propàµe aqui tanto observar a crítica contemporà¢nea, quanto o modo com que, a fim de se constituir e se legitimar, ela invoca personagens "históricos" que teriam, desde os primórdios, se posicionado criticamente frente à  incorporacão de modelos importados, tal como ela própria, nos dias de hoje. Contudo, deve-se ressaltar que a análise aqui proposta se restringe tão somente ao debate formulado pela crítica contemporà¢nea que, discutindo o design brasileiro, explora e atualiza os pensamentos de Bo Bardi e Magalhães, não avancando para uma consideracão das questàµes postas em jogo por esses dois personagens, esforco analítico central da tese de doutorado a partir da qual se desdobra o presente artigo (Anastassakis, 2011).
Como ponto de partida do presente artigo, se elege as apropriacàµes e atualizacàµes dos pensamentos de Bo Bardi e Magalhães, feitas hoje. Com isso, se pretende observar as formas pelas quais os discursos desses dois agentes são processados na atualidade em meio à s narrativas que se propàµem a refletir sobre o design brasileiro, ou seja, de que forma eles condicionam, se refletem em, ou são atualizados por uma série de perspectivas discursivas na contemporaneidade. Interessa discutir, então, não exatamente quem foram esses dois agentes fundadores de uma perspectiva crítica no campo do design brasileiro, mas, sim, como as inflexàµes sofridas por suas vidas-obras-producàµes intelectuais vem servindo, hoje, de referência para a fundamentacão de uma mirada sobre o design brasileiro que o articula, de forma indubitável, a um projeto de conformacão de uma identidade cultural nacional via cultura material.
Este exercício é realizado a partir da análise comparativa de um conjunto de textos mais ou menos recentes que tratam da história do design no Brasil. Dessa forma, a análise se restringe a um material já publicado, que está registrado e em circulacão. A opcão por focar a atencão na reavaliacão dos pensamentos da italiana e do pernambucano se vincula à  ideia de que a producão discursiva contemporà¢nea, tornada pública por meio de pessoas autorizadas nesse campo intelectual, atua, ela também, como matriz de uma nova discursividade sobre o design brasileiro que se articula a partir de meados da década de 1990.
Deve-se ressaltar, contudo, que não se pretende, por ora, esgotar toda a repercussão dos pensamentos de Bo Bardi e Magalhães, que se desdobra, de forma bastante diversificada, pelos campos do design, da arquitetura, das políticas de patrimà´nio cultural e de fomento ao artesanato. Tampouco se realiza uma análise exaustiva dos estudos acadêmicos sobre os dois personagens, que são numerosos e díspares.

EM BUSCA DE UM DESIGN MODERNO E BRASILEIRO

Feitas essas ressalvas, voltemos à  história do design no Brasil: o curso da Escola Superior de Desenho Industrial, que comeca a funcionar em 1963 na cidade do Rio de Janeiro (Pereira de Souza, 1996), foi elaborado ao longo do ano anterior, ao mesmo tempo em que se articulava, na cidade de São Paulo, no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, uma reforma curricular que instituiu, entre outras coisas, uma sequência de desenho industrial (Pereira, 2009).
Nesse mesmo período, na cidade de Salvador, no Estado da Bahia, Lina Bo Bardi planejava criar uma Escola de Desenho Industrial e Artesanato (Rossetti, 2002; Pereira, 2008). A partir desses eventos, vale mencionar que, se entre 1962 e 1963 se institui definitivamente o ensino de desenho industrial a nível superior no Brasil (visto que os cursos da ESDI e da fau-usp seguem funcionando até os dias de hoje), em São Paulo o ensino de desenho industrial é constituído como parte da formacão em arquitetura e urbanismo, e, por isso é que se pode afirmar que, em um sentido estrito, o primeiro curso superior a formar desenhistas industrias é o da ESDI.
Se observarmos os debates, na academia, no campo profissional ou em meio à s políticas públicas de design, as questàµes em torno das condicàµes de possibilidade para o desenvolvimento de uma profissão ligada à  atividade industrial no contexto nacional brasileiro têm provocado discussàµes intensas tanto hoje quanto ontem. Mais do que isso, essas questàµes tem pautado os debates, servindo de balizador para um questionamento sobre as possibilidades, inclusive as futuras, do design no Brasil.
A relacão entre modernidade e brasilidade seria, então, questão central nas discussàµes que envolvem o design, no país. Como coloca o historiador Rafael Cardoso, "o design, moderno de berco e por vocacão, lida há pelo menos 40 anos com a provocacão irritante de ter que provar que também é brasileiro" (Cardoso, 2004, p. 81). Ou seja, a reacão crítica à  importacão de um modelo de design, ativa ainda hoje, surge contemporaneamente à  instituicão desses "modelos importados". O designer, professor, ex-aluno e ex-diretor da ESDI, Pedro Luiz Pereira de Souza, que no livro ESDI: biografia de uma idéia (1996) discute as ideias e concepcàµes que circularam em torno da escola desde sua criacão, também relata que, já na sua fundacão, "alguns se preocupavam com um modelo próprio enquanto outros iam além, reclamando atencão à s 'raízes' e 'origens' nacionais" (Pereira de Souza, 1996, p. 258).
Na ESDI, o "design de identidade nacional" (Pereira de Souza, 1996, p. 303) ou "tendência nacionalista no design" (Pereira de Souza, 1996, p. 232) surge como uma reacão ao formalismo técnico, tendência oriunda da Escola de "Ulm e mais remotamente da Bauhaus, que manteve a metodologia e a ideia de conceito do produto como principal referência" (Pereira de Souza, 1996, p. 254). Assim, o formalismo técnico e a ideia de conceito teriam fornecido, na escola do Rio de Janeiro, as bases para as diferentes linhas de atuacão desenvolvidas posteriormente (Pereira de Souza, 1996, p. 256). Segundo Pereira de Souza, em contraposicão ao formalismo técnico, surge uma outra tendência, muitas vezes reprimida: "a ideia de um design sintonizado com uma realidade nacional" ou uma "tendência nacionalista no design" (Pereira de Souza, 1996, p. 232).
Em artigo intitulado "A ESDI e a contextualizacão do design", o designer, ex-aluno e professor da escola, Washington Dias Lessa, analisa, no contexto dessa instituicão de ensino, durante os anos 1970, o surgimento de trabalhos de conclusão de curso voltados à  discussão de uma insercão do design na sociedade brasileira (Dias Lessa, 1994, p. 102). Segundo ele, "paralelamente à  tendência dominante, surge ao longo de 1970 uma espécie de ciclo voltado para uma tentativa de contextualizacão da profissão" (Dias Lessa, 1994, p. 102), ciclo esse que configura, para o autor, um marco de mudanca que envolve a consciência do distanciamento entre discurso e realidade (Dias Lessa, 1994, p. 103) no modelo acadêmico ali adotado.
Tal mudanca estaria associada a uma frustracão, ou mal estar, "que nasce do não acontecimento da regeneracão da sociedade que este design propàµe" (Dias Lessa, 1994, p. 103) e leva à  tentativa de redefinicão de suas direcàµes e insercão na sociedade. Buscando uma contextualizacão para o design, essa tendência faria parte, mesmo que inconscientemente, de uma linhagem de apropriacão racionalista das especificidades culturais brasileiras (Dias Lessa, 1994, pp. 104-105), fundada pelos arquitetos Lucio Costa e Lina Bo Bardi: ele, ao identificar um proto-funcionalismo na economia estrutural e simplicidade de solucàµes da arquitetura colonial mineira; ela, ao incorporar em sua prática projetiva o conceito de primitivismo técnico cunhado pelo escritor paulista Oswald de Andrade para identificar uma inteligência projetual articulada a partir da escassez.
Segundo Lessa, a busca de identidade cultural pelo design (Dias Lessa, 1994, p. 105) ou "vertente afirmativa" (Dias Lessa, 1994, p. 105) é formalizada institucionalmente em 1975, por Aloisio Magalhães, quando cria o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) (Anastassakis, 2007). Essa perspectiva, que se configura em nome de uma aproximacão com o real, não escapa, no entanto, da "formulacão implícita de uma outra utopia" (Dias Lessa, 1994, p. 105) que, mais que apenas introduzir no pensamento projetual o reconhecimento da diferenca, termina por projetar no brasileiro uma racionalidade latente que, segundo essa perspectiva mesma, só precisaria ser revelada para se desenvolver.
Comentando a polêmica básica dos primórdios do design no Brasil, que contrapunha um design regional a um modelo internacional, Lais Moura Wollner (2003, p. 23) termina por associar a perspectiva do designer paulista formado em Ulm, Alexandre Wollner, à quelas adotadas por Lina Bo Bardi e Aloisio Magalhães, afirmando que, apesar de terem assumido posturas ideológicas radicalmente diversas, haveria muito em comum entre as concepcàµes de design nutridas por ambos (Moura Wollner, 2003, p. 25).
Para essa autora, as perspectivas de Magalhães e Bo Bardi teriam afinidade na medida em que ambos terminaram por entender que somente a partir de uma integracão dinà¢mica entre opostos (regionalismo/universalismo) seria possível forjar um processo progressivo de construcão de uma identidade disciplinar para o design no Brasil (Moura Wollner, 2003, p. 25). Assim, segundo ela, é em um contexto de integracão de polaridades que se poderia associar a essas duas perspectivas aquela do "ulmiano" Alexandre Wollner.
Nesse ínterim, é preciso assinalar, como lembra Pereira de Souza, que a discussão entre prática de projeto e identidade nacional não era exclusiva do design: ela já fora bastante debatida no campo da arquitetura, desde 1950. É a partir de um dos eventos-chave desse debate -a polêmica entre Lucio Costa e o designer suíco Max Bill- que a arquiteta e historiadora Ana Luiza Nobre analisa as (difusas) relacàµes entre design e arquitetura no Rio de Janeiro, em torno da metade do século xx.
A partir da descricão daquela polêmica, Nobre (2008) discute como arquitetos e designers se apropriaram, de forma diferenciada, da nocão de projeto, tal como reformulada na Escola de Ulm. Observando algumas refracàµes dessa nocão no contexto da producão arquitetà´nica moderna brasileira, Nobre se indaga sobre os modos como design e arquitetura modernos no Brasil buscaram se auto-identificar a partir de um diálogo surdo, construindo suas respectivas identidades em torno da negacão de certos atributos, que eram associados, de forma quase acusatória, ao outro.
Assim, se busca entender as questàµes em jogo nos debates em torno da conformacão de uma identidade do design brasileiro, é fundamental observar também como os campos vizinhos, tais como arte, arquitetura e patrimà´nio cultural, disputaram entre si espacos identitários e políticos, seja face à  nocão de uma identidade nacional, seja face à  construcão de uma modernidade brasileira.
Se há algo a ser observado nos espacos de interacão entres esses campos (Bourdieu, 2010, p. 55), que principalmente a partir da metade do século xx passaram a ter no design um campo a mais com que negociar seus espacos de conformacão identitária, é curioso notar que o design também se estrutura a partir de um jogo de oposicàµes e distincàµes (Bourdieu, 2010, p. 177), de um "consenso no dissenso" (Faria, 2002, p. 8), a partir de disputas, divergências e dissidências (Stolarski, 2006, p. 246).
Nesse sentido, em um artigo sobre a consolidacão do campo de projetos de identidade visual no Brasil em 1960, o designer paulista André Stolarski afirma que apesar de os projetos compartilharem um repertório visual bastante homogêneo, havia, entre os designers e suas producàµes, uma significativa dose de dissidência, divergência e disputa (Stolarski, 2006, p. 246). Se muitos deles partiram de referências comuns, tais como a Bauhaus, o construtivismo, a tipografia suíca e a hfg/Ulm, o que teria marcado a profissionalizacão da atividade foi uma crítica aberta a seus métodos e a busca constante por outras referências conceituais (Stolarski, 2006, p. 246).
Como se o "pensamento brasileiro de design" (Pereira de Souza, 1996, p. 306) se organizasse relacionalmente (Bourdieu, 2010, p. 178) a partir de uma reacão a outros pensamentos, entre eles, o da arquitetura modernista, e, também, de uma concepcão universalizante associada ao design moderno (tal como proposto em Ulm). Não apenas com a ideia de escapar a esses modelos, mas, outrossim, de utilizá-los como lugares a partir de onde fosse possível (se) refletir.

Contudo, se o design brasileiro discutiu abertamente com o modelo proposto pela vertente germà¢nica e também com a arte concreta praticada em São Paulo e no Rio de Janeiro (Pereira de Souza, 1996), seu diálogo com a tradicão modernista brasileira em arquitetura não é tão facilmente rastreável, principalmente se observa essa relacão a partir da cidade do Rio de Janeiro. Note-se que, em São Paulo, a situacão é diferente, uma vez que, em seus primeiros momentos, o ensino de design se institui como parte do ensino de arquitetura, como no caso da FAU-USP (Pereira, 2009).
Apesar de ser possível localizar, já em 1980, algumas análises críticas sobre a história do design no Brasil, é somente na segunda metade da década seguinte que surgem, de forma mais sistemática, pesquisas e publicacàµes sobre o tema. Esses trabalhos, produzidos nos mais diferentes contextos e com objetivos e perspectivas as mais diversas, conformam conjuntos ou séries a partir dos quais é possível observar as discussàµes levadas a cabo, hoje, no campo do design brasileiro. Analisando-as contrastivamente, é possível pensar tanto sobre a história do design no Brasil quanto sobre as formas com que são pensadas hoje, pela comunidade de design, as possibilidades para desenvolvimentos futuros da disciplina.3
Ou seja, a partir de uma apreciacão das narrativas discursivas utilizadas por esses autores é possível perceber de que modo se constroem as categorias a partir das quais se configura a historiografia do design no Brasil. Na dinà¢mica de tais construcàµes discursivas, é importante ressaltar o caráter militante com que se constituiu, inicialmente, a historiografia brasileira do design. Baseada, sobretudo, em propósitos morais e políticos, essa historiografia se ressente, ainda, de um distanciamento crítico em relacão ao que pretende documentar. Sobre isso, Gustavo Bomfim comenta que:

[...] a história do design no Brasil é muito recente e, portanto, não dispàµe de versàµes serenas, que só se alcancam com o distanciamento que o tempo permite: as controvérsias são ainda por demais vivazes, seus protagonistas por vezes enciumados, há inúmeros interesses em jogo que, não raro, se sobrepàµem a fatos (Bomfim, 2008, p. 83).

Alguns dos autores dos trabalhos que se dedicam a uma reflexão sobre a história do design no Brasil são da geracão que participou dos momentos fundacionais do campo -tal como conta a história-, a instauracão da consciência crítica do design enquanto campo disciplinar se inicia, no país, em torno de 1950.
Entre os autores, encontram-se, portanto, alguns protagonistas da história refletindo, a posteriori, sobre um quadro que eles próprios ajudaram a delinear. Alguns outros são designers de uma geracão posterior, já inseridos no campo profissional e acadêmico, que buscam marcar seus pontos de vista, lancando um olhar crítico sobre o quadro fundacional do campo, onde eles comecaram a atuar. Há também jovens designers e arquitetos, cientistas sociais e historiadores da arquitetura, da arte e do design, que se dedicam a reconstruir as trajetórias e as questàµes em torno do design nacional segundo diversas perspectivas.
Assim, grosso modo, salvo algumas excecàµes, trata-se de um esforco do próprio campo em se re-pensar e se re-interpretar a partir da análise de sua própria trajetória, ou seja, trata-se de um processo de auto-análise. E, consequentemente, de um esforco em buscar outras referências para o design brasileiro, que possam fazer com que o adjetivo "brasileiro", colocado ao lado do sujeito "design", soe de forma menos incà´moda aos ouvidos de todos. Mas, então, coloca-se a questão: por que essa tem que ser uma associacão tão incà´moda? De que forma ela se constituiu ao longo do tempo para que o esforco em desarticulá-la tenha de ser retomado, tantas e tantas vezes? Por que será que o campo ainda não conseguiu superar esse "trauma" e avancar no sentido de outras discussàµes?

BO BARDI E MAGALHàƒES EM MEIO à€ CRÍTICA CONTEMPORà‚NEA

É em meio a esse movimento que Lina Bo Bardi e Aloisio Magalhães ganham centralidade em meio à  discussão contemporà¢nea. Se vários dos críticos trazem para a discussão apenas um ou outro (por vezes os aproximando ou contrastando com outros atores) (Cardoso, 2004; Cornejo, 2008; Pereira de Souza, 1996), alguns abordam de forma explícita as relacàµes (implícitas) entre os posicionamentos de ambos (Borges, 2009; Cara, 2010; Chagas, 2002; Souza Leite, 2006b; Lessa, 1994, Moraes, 2006; Nobre, 2008).
Acompanhando seus trabalhos é possível perceber, então, em que quadro maior de discussão esses autores têm comentado as atuacàµes de Bo Bardi e Magalhães, trazendo à  tona, assim, as suas leituras sobre as contribuicàµes dos dois para a conformacão de um design vinculado de forma mais estreita a uma identidade cultural brasileira. Ao atribuírem à  italiana e ao pernambucano um certo pioneirismo na crítica à  influência germà¢nica entre o design brasileiro, esses críticos delegam aos dois poderes de criacão de uma vertente, ou seja, de formacão de uma discursividade (Faria, 2002), que só é assim nomeada por eles, a posteriori, mas que tem sua gênese localizada, por eles, nas proposicàµes e atuacàµes dos dois, em suas trajetórias profissionais.
Maurício Chagas, em pesquisa sobre a atuacão de Lina Bo Bardi na Bahia em 1980, associa as propostas da italiana para a Bahia em 1960 à s ideias de Aloisio Magalhães no cnrc. Entretanto, considera que nenhuma dessas propostas apresentava atitudes inovadoras (Chagas, 2002, p. 81), na medida em que o envolvimento apaixonado de certos intelectuais com um caráter popular brasileiro já acontecia desde o primeiro modernismo, próximo à  Semana de Arte Moderna de 1922 e à  criacão do Servico do Patrimà´nio Histórico e Artístico Nacional (sphan). Para Chagas, a novidade das propostas de Bo Bardi no Solar do Unhão e Magalhães no cnrc reside não apenas no reconhecimento da originalidade de uma producão popular nacional, mas, sim, na identificacão de que, inserida em um modelo de desenvolvimento apropriado, emergiria dessa producão um potencial latente de criacão de valor econà´mico (Chagas, 2002, p. 81).
Se a italiana (na Salvador de 1960) e o pernambucano (em Brasília nos anos 1970) tinham preocupacàµes semelhantes à s dos artistas da Semana de Arte Moderna de 1922, diferentemente deles, os dois apresentavam visàµes da producão popular em que se conjugava valores culturais e econà´micos. Nesse sentido, Bo Bardi e Magalhães se afastariam da "dominante visão romà¢ntica vigente entre os estudantes do folclore e da cultura popular" (Chagas, 2002, p. 81). Entretanto, se face aos primeiros modernistas, ambos guardavam algumas semelhancas, haveria, entre as suas propostas, certas especificidades que impediriam uma identificacão maior, a saber, a distà¢ncia temporal entre as duas iniciativas, e, também, a especificidade de cada um dos contextos diversos em que elas são formuladas.
Assim, observando as proposicàµes de Lina Bo Bardi e Aloisio Magalhães de forma contrastiva, e localizando-as face à  discussão maior do primeiro modernismo brasileiro, Chagas lembra que os debates acontecidos no campo mais específico do design não podem ser avaliados sem que se considere os processos mais longos em que se discute um projeto de modernidade para o país, seja através da arte, seja através da producão da cultura material.
Rafael Cardoso é um daqueles que têm se dedicado, de forma mais substantiva, à  busca de expansão dos limites histórico-conceituais do design no Brasil. No artigo "Tudo é moderno, nada é Brasil: design e a busca de uma identidade nacional", ele afirma que a cultura visual erudita no país está baseada em uma história de rupturas importadas (Cardoso, 2004, p. 81). Ao construir seu argumento, menciona alguns episódios que considera como fundamentais nesse processo. Entre eles, a chegada da Missão Francesa (1816), a visita de Le Corbusier (1929), a presenca de Max Bill (1951, 1953) e a movimentacão em torno do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1959) (Cardoso, 2004, p. 81).
Para Cardoso, tais intervencàµes teriam em comum três fatores significativos: foram agenciadas por participantes estrangeiros, enterraram uma tradicão preexistente, e foram implantadas em nome da modernizacão, do progresso e da razão. E por essa configuracão, teriam suscitado reacàµes de cunho nacionalista, acirrando assim os debates sobre a "oposicão tácita entre ser brasileiro e ser moderno" (Cardoso, 2004, p. 81). Para ele, configura-se, então, uma história de rupturas importadas (Cardoso, 2004, p. 81), que por tentarem impor um modelo exógeno, que se pretende hegemà´nico, resultam em reacàµes que, buscando desvencilhar-se da influência sufocante daquelas propostas, derivam para perspectivas mais nacionalistas. Nesse sentido, estaria em jogo, nesses diferentes episódios, uma dinà¢mica de afirmacão de uma identidade brasileira por negacão a algum modelo trazido de fora.
Prefaciando o livro Análise do design brasileiro: entre mimese e mesticagem, de Dijon de Moraes, o italiano Andrea Branzi comenta uma "modernidade utópica" (Branzi en Dijon de Moraes, 2006, p. 5) adotada no Brasil, e proposta, segundo ele, por alguns europeus que perceberam no Brasil uma oportunidade de formular uma nova concepcão de modernidade, diferente daquela experimentada na Europa. Entretanto, essa concepcão de modernidade, permanecia, segundo o autor, desvinculada da sua real potencialidade de inovacão. Assim, a seu ver, o modelo irreal de modernidade aqui formulado e fomentado a partir de uma série de diálogos centrados em figuras como Tomás Maldonado, que transitavam com intensidade entre América do Sul e Europa, terminou, paradoxalmente, por influenciar a própria Europa, uma vez que as oportunidades antevistas no continente americano despertaram, nos intelectuais ligados à  Escola de Ulm, o desejo de re-fundacão de uma modernidade racionalista (Branzi en Dijon de Moraes, 2006, p. 5).
Assim, esse modelo idealizado, baseado na convergência das ideias de ciência e projeto, resultaria de uma combinacão entre a Escola de Frankfurt, a América do Sul e uma certa esperanca política européia, derivada do pós-guerra.
Uma utopia que se consolidou também no Brasil, como modelo único, de referência para a didática do seu design. Isso a partir da fundacão, em 1963, da ESDI, no Rio de Janeiro, defensora da ortodoxia ulmiana e do seu modelo didático, quase uma espécie de protetorado cultural, desvinculado da realidade brasileira, mas por isso mesmo de difícil remocão (Branzi en Dijon de Moraes, 2006, p. 5).
Quando afirma que a história do design no Brasil é a história de uma cultura importada na qual, apenas com o passar do tempo e a duras penas, se foi inserindo tracos da sua cultura autóctone; e que todo o processo de se forjar, em um país sem tradicão, uma cultura moderna de projeto é fruto de um esforco realizado em grande parte por agentes oriundos da Europa (Branzi en Dijon de Moraes, 2006, p. 10), Branzi se aproxima de Cardoso (2004).
Comentando as mesmas questàµes, João de Souza Leite percebe uma disputa entre a arte concretista brasileira, de influência européia, e o modernismo brasileiro dos anos 1920-1930. Assim, segundo ele, se instituiu no Brasil, como oportunidade de formar profissionais aptos a enfrentar os desafios apresentados pela industrializacão, um design vinculado a uma linguagem visual que, derivada em parte da abstracão geométrica latino-americana e em parte do neoplasticismo holandês, se propunha como supranacional (Souza Leite, 2006a, p. 252).
Na disputa entre modelos possíveis para a instituicão de um saber relacionado à  criacão para a indústria, venceu a matriz alemã, que "implicava a adocão de uma linguagem formal pouco afeita à s contingências do tempo e à s características da cultura" (Souza Leite, 2006a, p. 253). Em decorrência dessa configuracão inicial, surgiram "persistentes questàµes no reconhecimento social dessa identidade profissional" (Souza Leite, 2006a, p. 253): o designer teria ocupado "um lugar diferenciado do restante da sociedade" (Souza Leite, 2006a, p. 253). "Cultivou-se, assim, uma imagem para o designer, de costas para o real, dissociada efetiva e afetivamente das circunstà¢ncias da vida social, cultural e econà´mica brasileira" (Souza Leite, 2006a, p. 254).
Para Souza Leite, o design moderno, tal como desenvolvido pela matriz alemã que serviu de modelo à s primeiras escolas de design no Brasil, se constituiu, para além do território alemão, "independente do contexto no qual estivesse operando" (Souza Leite, 2006a, p. 254). Sem considerar as peculiaridades da producão e do consumo, nem a desigualdade social existentes no país, o design instalou-se sem se permitir uma reflexão quanto a uma melhor adequacão ao contexto nacional. "Não pensou sequer na tradicão do modernismo brasileiro, à  qual se opà´s, oferecendo-se como outra face do moderno" (Souza Leite, 2006a, p. 260).
Ainda comentando sobre a instauracão do ensino de design no Brasil, Souza Leite coloca que a ESDI, ao pretender se fixar como a escola de design moderno no Brasil seguindo a linguagem universalista e cientificista baseada em Ulm, terminou por deixar escapar a oportunidade de consideracão das circunstà¢ncias em que se encontrava o país. Operando no campo da idealizacão, voltou as costas para a realidade, e, assim, forjou uma postura alienante de que ainda muito se queixa, dentro do campo (Souza Leite, 2006a, p. 260).

CONSIDERAà‡à•ES FINAIS

A partir desses debates, é possível perceber que a crítica ao modelo "esdiano" reclama uma inadequacão da transposicão de um modelo de ensino e prática de design formulado no contexto alemão (via HfG/Ulm e Bauhaus) ao contexto brasileiro. Os estudiosos e críticos da história do design brasileiro aqui reunidos, a maioria deles designers, queixam-se de uma prática de design pouco vinculada à  realidade sócio-cultural nacional, de um conflito entre a realidade local e as referências externas, de uma modernidade utópica, decorrente de uma associacão do modelo funcionalista e internacionalista "ulmiano" à  possibilidade de modernizacão do país.
Assim, o modelo de design adotado na ESDI (replicado por todo o país uma vez que serviu de parà¢metro para a criacão dos cursos de design já em 1970) teria afastado o design do mundo real, deixando a atividade e seus praticantes desconectados da cultura e da sociedade onde atuam, e, pior ainda, privados da uma perspectiva crítica sobre seu próprio campo de atuacão. Esses críticos afirmam que na medida em que o modelo "esdiano" se instala ignorando, propositalmente, tanto o que acontecia ao seu redor quanto o que havia sido realizado antes, ele priva os designers (formados segundo aquele modelo) de uma perspectiva crítica sobre a sua prática profissional, bem como de sua história no contexto brasileiro. Segundo eles, essa postura teria levado os designers a uma auto-alienacão, que ainda hoje seria um dos principais entraves para o desenvolvimento da atividade.
É importante ressaltar que, mesmo que com abordagens e pontos de vista diversos, alguns autores como Cardoso, Pereira de Souza, e Souza Leite, vem realizando esforcos sistemáticos para desfazer alguns mitos (Pereira de Souza, 1996, p. 51) relacionados à  criacão da ESDI e sua vinculacão com a Escola de Ulm, e com a Bauhaus. O livro ESDI: biografia de uma ideia (1996) é parte central do esforco em dissecar a mitologia em torno da escola, complexificando a compreensão que se tem dessa história. Sem querer discutir aqui se se trata de inverdade, mito, ou não, o interesse reside em observar como a vinculacão ESDI/Ulm vem sendo percebida de forma tão ameacadora por grande parte da comunidade de profissionais ligados à  prática do design no Brasil.
Acompanhando esse debate, pode-se vislumbrar alguns encaminhamentos conceituais que partem de uma crítica ao modelo de ensino de design adotado na ESDI, se orientando para a busca de contextualizacão cultural do design praticado no país. Depois de nos aproximarmos de tais discussàµes, talvez se evidenciem os sentidos de uma tal afirmacão, proferida pelo designer Fernando Campana, em depoimento ao jornal O Globo, em 2011: "não sou alemão, não sou japonês minimalista... sou brasileiro!".
Quando opta por definir sua identidade brasileira a partir de uma declaracão que explicita, antes de mais nada, sua recusa a se identificar com uma identidade germà¢nica, o designer traz à  tona alguns reflexos da discussão em torno da contextualizacão cultural do design brasileiro, revisitada neste artigo. Se a questão é ainda latente entre designers e críticos, parece-nos então que seja merecedora de análises mais atentas também na academia, esforco realizado na pesquisa de doutoramento em antropologia social (Anastassakis, 2011) a partir da qual se desdobra este artigo.

NOTAS

1. Acchilina di Enrico Bo nasceu em 1914, em Roma. Seu pai era engenheiro civil e tinha como hobby a pintura. Cursou o Liceu Artístico por quatro anos e em seguida entrou para a Unversità  degli studi di Roma. Seu projeto final de graduacão foi um projeto de hospital-maternidade, concebido segundo parà¢metros modernistas. Recém-formada, se mudou para Milão, onde trabalhou como ilustradora de revistas, e depois como colunista. Nesse momento, trabalhou com GiಠPonti, arquiteto, designer, editor e promotor do artesanato italiano. Em colaboracão com Carlo Pagani, fundou, em 1945, a revista Quaderni di Domus. No mesmo ano, os dois fundaram também a revista A - Cultura della vita, que circulou por menos de um ano. Em 1946, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, viajou pela Itália pesquisando artesanato, no à¢mbito de uma exposicão têxtil encomendada pela empresa rima. Já casada com o jornalista, crítico e comerciante de arte Pietro Maria Bardi, migra para o Brasil, em 1947. Instalando-se em São Paulo, os dois participam da criacão do Museu de Arte de São Paulo, patrocinado por Assis Chateaubriand. Ainda em 1948, cria com Giancarlo Palanti, o Studio Arte Palma. Em 1951, já naturalizada brasileira, constrói a Casa de Vidro, residência do casal, e, junto a Jacob Ruchti, os dois criam, no masp, o Instituto de Arte Contemporà¢nea, que funciona até o ano de 1953. Entre as diversas iniciativas desenvolvidas pelo museu, editam a revista Habitat. Em 1958, projeta a Casa Valeria Cirell e a futura sede do masp, inaugurada dez anos depois. Entre 1957 e 1958, dá aulas na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo. Nesse mesmo ano, tem início um período na Bahia, que dura até o momento de instituicão do golpe militar de 1964. Na capital baiana, dirige o Museu de Arte Moderna da Bahia e funda o Museu de Arte Popular. Reforma o complexo arquitetà´nico do Unhão, onde se instalariam os dois museus. Dentro do projeto do map, planeja a criacão de uma Escola de Desenho Industrial e Artesanato, que não chega a ser implementada. Com o golpe militar, é forcada a deixar Salvador, iniciando um longo período de silêncio forcado, que dura até 1976, quando, depois de ver sua atuacão restrita a projetos de cenografia para teatro e cinema, ela volta a receber propostas para o desenvolvimento de projetos de arquitetura, destacando-se, nesse período, seu projeto para o centro comunitário e de lazer do sesc, na Pompéia, bairro operário da capital paulista, onde além do projeto de reforma e requalificacão arquitetà´nica, ela atua como programadora cultural, até o início dos anos 1980. Na segunda metade da década de 1980, inicia uma série de colaboracàµes com municipalidades gestadas por políticos ligados aos partidos de oposicão. Nesse momento, elabora um projeto-piloto para a revitalizacão do centro-histórico da cidade de Salvador e um projeto para a nova sede da prefeitura de São Paulo. Faleceu em marco de 1992, em sua residência, em São Paulo.

2. Aloisio Magalhães nasceu em 05 de novembro de 1927, em Recife, Pernambuco. Filho cacula do médico e professor Aggeu Magalhães, diretor da Faculdade de Medicina e Secretário de Educacão e Saúde do Estado, e sobrinho de Agamenon Magalhães, político que fora interventor em Pernambuco durante o Estado Novo e Ministro da Justica de Getúlio Vargas. Desde cedo, conviveu com figuras da elite política e intelectual de Recife, tais como Gilberto Freyre. Em 1945, entrou para a faculdade de Direito, profissão que não chegou a exercer. Em 1946, participou do Teatro do Estudante de Pernambuco (tep), com Hermilo Borba, Ariano Suassuna e Gastão de Holanda. Em 1949, montou um atelier com o pintor Reynaldo Fonseca. Em 1951, recebeu uma bolsa do governo francês para estudar museologia no Louvre. Em Paris, frequentou o atelier de gravura de Stanley William Hayter, e estreitou lacos de amizade com Paulo Emilio Salles Gomes e Francisco Brennand. Dois anos depois, retornou ao Recife, onde fez sua primeira exposicão de pinturas. Em 1954, participou do atelier "O Gráfico Amador", de experimentacão gráfica. Em 1956, recebeu nova bolsa de estudos, concedida pelo governo norte-americano. Nessa ocasião, viajou pelos eua (Estados Unidos da América), itinerando com a exposicão, junto a outros artistas cujas obras formavam a mostra, inicialmente montada no mam-sp. Conheceu também Eugene Feldman, artista gráfico e tipógrafo experimental, dono da gráfica "The Falcon Press" e professor da Philadelphia Museu School of Art. É aí que inicia sua aproximacão com o design. Em 1960, integrou a delegacão brasileira na 30a Bienal de Veneza. Em 1961, realizou sua última exposicão de pinturas, na Petite Galerie, no Rio de Janeiro e ministrou curso de tipografia com Alexandre Wollner no mam-rj. No ano anterior, mudara-se para o Rio de Janeiro, deixando de pintar para abrir um escritório de design, em sociedade com Artur Lício Pontual, arquiteto e amigo do Recife, e Luís Fernando Noronha, técnico em edificacàµes. Em 1962, se casa com a francesa Solange Valborg (com quem teve duas filhas), participa da criacão da ESDI e desfaz a sociedade inicial do escritório, que, renomeado de "Aloisio Magalhães Programacão Visual Desenho Industrial", é a base a partir de onde se realizam projetos de grande porte e complexidade, muitos deles tendo como clientes empresas públicas. Entre os projetos, consta o símbolo do iv Centenário da cidade do Rio de Janeiro, sinais de bancos e de identificacão dos logradouros cariocas, a identidade visual da Petrobras, o desenho de cédulas do cruzeiro novo (entre elas, a nota do "Barão"). Quando completava cinquenta anos, em 1975, uniu-se ao Ministro da Indústria e Comércio, Severo Gomes, e ao Secretário de Educacão do Distrito Federal, Vladimir Murtinho, na criacão do Centro Nacional de Referência Cultural, em Brasília. A partir de então, afastou-se gradativamente do escritório, até realizar seu último projeto gráfico, o sinal do Banco Boavista, de 1976. Em 1979, foi nomeado presidente do Instituto do Patrimà´nio Histórico e Artístico Nacional (iphan). Em 1981, assumia também a Secretaria de Cultura do então Ministério da Educacão e Cultura. Em 13 de junho de 1982, enquanto representava Rubem Ludwig em um encontro de ministros da cultura de língua latina na Itália, sofreu um avc, falecendo subitamente.

3. Esse tópico constitui parte da agenda mais recente de pesquisa de Anastassakis.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICA

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