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Recial

versión On-line ISSN 2718-658X

Recial vol.13 no.22 Córdoba dic. 2022  Epub 08-Dic-2022

http://dx.doi.org/10.53971/2718.658x.v13.n22.39353 

Dossier

Traduciendo Ñi Pu Tremen, Mis Antepasados (2008), De la Compañia Kimvn Teatro Documental: Un Estudio Sobre La Historia y La Resistencia Mapuche

Traduzindo Ñi pu tremen, mis antepasados (2008), da companhia Kimvn Teatro Documental: Um estudo sobre a história e a resistência mapuche

Translating Ñi Pu Tremen, Mis Antepasados (2008), by the Documental Theater Company KIMVN: An investigation on the Mapuche History and Resistance

1 Universidade Federal da Bahia, Brasil, carladameane@gmail.com

2 Universidade Federal da Bahia, Brasil, letras.bruno@gmail.com

3 Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia - FAPESB, através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) (outubro de 2020 a outubro de 2021).

Resumen

En este artículo se presentan los resultados del plan de trabajo de iniciación científica homónimo, además del desarrollo de la traducción de Ñi pu tremen, mis antepasados (2008), de la compañía KIMVN Teatro Documental, texto dramático producido en español de Chile con pasajes en Mapudungun. La investigación estuvo vinculada al Núcleo de Estudios de Escrituras Performáticas Andinas (NUEEPA), y la Red de Estudios Andinos, con apoyo de la FAPESB. En el período de vigencia, fue realizada gradualmente la traducción interlingüística de Ñi pu tremen al portugués de Brasil. Paralelamente, se realizaron estudios bibliográficos sobre las teorías de traducción cultural e intersemiótica, considerando la pareja español/portugués, la relación entre la literatura y las artes escénicas, así como estudios acerca de los pueblos originarios de Chile y el concepto de teatro documental. El trabajo, de investigación/traducción, se justifica por la posibilidad de alentar la reflexión acerca de la traducción en cuanto apoyo a la comprensión y recepción intercultural entre las lenguas/culturas brasileña y mapuche. En este artículo señalamos cómo proyectos de traducción similares representan una posibilidad de intercambio acerca de la pluralidad étnico-racial de latinoamérica, además de estimular la visibilidad de la dramaturgia y el teatro mapuche chileno.

Palabras-Clave: Traducción Cultural; Literatura Dramática; Mapuche; KIMVN; Teatro documental

Resumo

Nesse artigo pretende-se apresentar os resultados do plano de trabalho de iniciação científica de mesmo nome, além do desenvolvimento da tradução de Ñi pu tremen, mis antepasados (2008), da companhia KIMVN Teatro Documental, um texto dramático produzido em espanhol chileno com trechos em Mapudungun. A pesquisa, vinculada ao Núcleo de Estudo de Escrituras Performáticas Andinas (NUEEPA), e à Rede de Estudos Andinos, realizou-se com financiamento da FAPESB. Durante o seu período de vigência, a pesquisa teve como objetivo realizar gradualmente a tradução interlíngua de Ñi pu tremen, do espanhol chileno para o português brasileiro. Paralelamente, foram realizados estudos bibliográficos acerca das teorias de tradução cultural e intersemiótica, considerando o par espanhol/português, as relações entre a literatura e as artes cênicas, além de estudos sobre os povos originários do Chile e o conceito de teatro documental. O trabalho, de pesquisa/tradução, é justificado pela possibilidade de promoção de uma reflexão sobre a tradução como auxílio à compreensão e acolhimento intercultural entre as línguas/culturas brasileira e Mapuche. Neste artigo sinalizaremos como projetos de pesquisa em tradução similares representam uma possibilidade de troca de saberes acerca da pluralidade étnico-racial dos países latino-americanos, além de estimular uma maior visibilidade à dramaturgia e ao teatro mapuche chileno.

Palavras-Chave: Tradução Cultural; Literatura Dramática; Mapuche; KIMVN; Teatro Documental

Abstract

This article intends to present the results of the work plan for the scientific initiation that has the same name, as well as the translation of Ñi pu tremen, mis antepasados (2008), by the Documental Theater Company KIMVN, a dramatic text written in Chilean Spanish with excerpts in Mapudungun. The research, associated with the Center of Studies on Andean Performing Writing (NUEEPA), and with the Andean Studies Network, was funded by FAPESB. While it was being conducted, the purpose of the research was the progressive translation of Ñi pu tremens from Chilean Spanish into Brazilian Portuguese. At the same time, bibliographic studies concerning the cultural and intersemiotic translation theories were undertaken, considering the pair Spanish/Portuguese, the relations between literature and performing arts, as well as studies on native people from Chile and the concept of documental theater. The research/translation is justified by the possibility to foster the reflection on the translation as an aid to the comprehension and intercultural shelter between the Mapuche and Brazilian languages/culture. This article highlights how similar research projects on translation studies are potential ways to share knowledge about ethnic-racial plurality of Latin American countries, and provide more visibility to drama and the Chilean Mapuche theater.

Keywords: Cultural Translation; Dramatic Literature; Mapuche; KIMVN; Documental Theater

Introdução

Os Mapuche, unindo seu grupo central e suas quatro ramificações, representam a terceira maior nação originária da América, são menos numerosos apenas em relação aos Quéchua e aos Aymara. Situam-se principalmente na região da Araucanía, Chile, apesar de que também estão presentes no sudoeste da Argentina. WallMapu é denominado em Mapudungun, a língua tradicional mapuche, como sendo o território total, por direito, dos povos mapuche. PuelMapu a parte argentina e NguluMapu a parte chilena (Grebe Vicuña, 1998, p. 55).

De um modo geral, o povo mapuche se sustenta a partir de uma economia de subsistência, pautada numa produção agropastoril que se complementa com as determinadas especificidades dos seus subgrupos, em geral acontece a confecção de tecidos de lã, entalhados, trançados e outros produtos artesanais.

No fim do século XIX, sob influência de uma forte ideologia extrativista e exploratória por parte da economia e do Estado Chileno, ocorre a Guerra de Ocupação da Araucanía (1860 - 1883). Em decorrência desse conflito, os mapuche se veem obrigados a realizar um processo de êxodo rural ao longo do século XX, o que resultou na extinção dos Pikunches, ramificação (Família) mapuche do norte, mais próxima à capital Santiago (Grebe Vicuña, 1998, p. 56). Atualmente, um dos grandes problemas que os Mapuche enfrentam, além da repressão política, é uma constante tentativa de apagamento cultural daqueles que migram forçosamente para as grandes cidades, se distanciando do meio rural, onde a princípio poderia ocorrer a manutenção dos seus costumes (Grebe Vicuña, 1998, p. 65).

No contexto da imigração do campo para a cidade, contudo, novas gerações de descendentes de mapuche ocuparam o espaço urbano e como uma reação à essas tentativas de apagamento de sua cultura, eles reivindicam e trabalham pela recuperação de seus laços culturais e familiares. Algo que ocorre com os artistas/criadores que formam a Companhia de teatro KIMVN, cujo trabalho com as artes cênicas, a música e outras performances se dá através dos repertórios da memória coletiva e documental1.

Assim, a obra Ñi pu tremen se apresenta como um conjunto de relatos de senhoras mapuche, onde narram-se fragmentos das suas histórias de vida (Marisol Ancamil; Juana Huaquilaf; María Huaquipan; Maribel Hueche; Norma Hueche; Constanza Hueche; Marlen Hueche; Aurelia Huina; Elena Mercado; Isolina Mercado; Norma Nahuel; Elsa Quinchaleo; Carmen Saihueque; María Luisa Seguel Mercado) como testemunho da memória de um país (González Seguel, 2018, p. 41).

Em termos mais gerais, realizar um processo de tradução como esse foi importante, por conta da aproximação da visão de mundo entre uma comunidade e outra (Meneses, 2019, p. 267). O Brasil se aproxima do Chile em certa medida, quando essa tradução se efetiva. A autora da obra se aproxima dos novos possíveis leitores no Brasil e a comunidade mapuche como um todo se aproxima do conhecimento geral dos brasileiros, levando em consideração que há uma certa dificuldade do imaginário coletivo brasileiro em se reconhecer enquanto América Latina. Como estudante do curso de Licenciatura em Letras Vernáculas com o idioma Espanhol, em parceria com minha orientadora, propormos uma versão de tradução para Ñi pu tremen se mostrou como uma tarefa motivadora para acessar aspectos até então desconhecidos sobre a diversidade de culturas/línguas que fazem parte de nações hispanohablantes.

As atividades realizadas ao longo da pesquisa/tradução foram principalmente, a realização da tradução interlingual, do castelhano chileno para a língua portuguesa do Brasil, do texto dramático Ñi pu tremen, mis antepassados (2008), da Companhia KIMVN Teatro Documental; estudos de tradução cultural e intersemiótica, considerando o par Castelhano/Português e as relações entre a Literatura e as Artes Cênicas e estudos relacionados à performance e ao teatro, em especial ao teatro documental, a partir de um viés voltado para a representação e a enunciação de sujeitos andinos, no caso específico desta obra, os Mapuche, do Chile. Além disso, pudemos refletir criticamente sobre o conceito da tradução como processo que auxilia o entendimento e o acolhimento intercultural. A seguir apresentamos mais informações sobre o texto dramático espetacular traduzido, sobre as etapas da prática de tradução e as nossas considerações finais.

Ñi pu tremen: testemunho e documento da cultura mapuche

A partir de nossas leituras de Grebe Vicuña (1998), obtivemos informações de que os Mapuche não se estabelecem em aldeias, preferem os assentamentos rurais de cada família extensa em seu próprio conjunto de “vivendas”. Devido a isso, há uma distância relativamente ampla entre os lugares de residência de cada família, o que tem contribuído para manter sua respectiva independência e estilo de vida.

Os mapuche se sustentam a partir de uma produção agropastoril familiar, criação de porcos e galinhas, plantações de batatas e outros vegetais. Atualmente, com o interesse externo, comercializam também os seus tecidos de lã tradicionais, geralmente destinados ao vestuário, além de outros produtos artesanais.

Os Mapuche possuem um histórico de intensa resistência em relação às comunidades externas, resistiram ao avanço inca, ao colonialismo espanhol e seguem resistindo aos instrumentos de apagamento cultural contemporâneos, tal resistência/manutenção dos costumes gira em torno da figura da Machi, uma espécie de Curandeira e Xamã da comunidade mapuche. De acordo com Grebe Vicuña, “la principal portadora y transmisora de la religión mapuche es la machi... destacándose su participación en los ritos medicinales terapéuticos y diagnósticos, adivinatorios y comunicativos” (1998, p. 60).

As históricas formas de preservação cultural e religiosa dos mapuche são eficazes, porém perigosas, seus líderes velam por sua preservação a partir de dois mecanismos principais: (1) restringindo a transmissão oral dos conteúdos fundamentais somente aos membros oficiais ou outros mapuches que se sobressaem como portadores da tradição religiosa; e (2) bloqueando o acesso e a compreensão aos não-mapuche (Grebe Vicuña, 1998, p. 60)

Um período histórico bastante decisivo para os mapuche ocorreu no fim do século XIX, quando o então Estado Chileno contraria os acordos feitos com eles pela coroa espanhola, e sob influência de uma forte ideologia extrativista e exploratória, provoca a conhecida guerra de Ocupação da Araucanía (1860-1883), dando início à uma intensa onda de descriminação em torno do povo mapuche, que segue resistindo contra ações militares “anti-terroristas” que visam suprimir os movimentos mapuche e campesino que reivindicam os direitos da comunidade.

Em decorrência desse conflito, os mapuche, com parte de suas terras usurpadas e sem muitos direitos garantidos, acabam realizando um intenso processo de êxodo rural ao longo do século XX, que perdura até os dias atuais. As tentativas de aculturação, junto aos demais problemas sócio-políticos, representam as principais causas para o silenciamento e apagamento dos costumes mapuche, sua língua, religião, métodos de subsistência e costumes em geral estão todos ameaçados por esse intenso e histórico processo (Grebe Vicuña, 1998, p. 56).

Contudo, descendentes de mapuche nascidos em Santiago, têm colaborado com um movimento de revitalização e preservação da história e cultura do povo mapuche através mecanismos outros, além dos tradicionais, um exemplo desse caso é o grupo de Teatro KIMVN, estudado neste trabalho. Através da prática do Teatro Documental, o grupo realiza um resgate de relatos e memórias coletivas junto ao povo mapuche, onde a encenação é mesclada ao registro histórico desses acontecimentos, posicionamentos e opiniões a fim de preservá-los e em muitos casos ressignificar o que foi posto enquanto verdade pela historiografia ocidentalizada, atrelada ao Estado Chileno. Cabe ainda assinalar que, ao integrar as variadas formas de linguagem, como a música, as artes visuais e a fotografia, a companhia KIMVN, nesta perspectiva, dialoga com meios de produção artísticos ancestrais, através do uso de instrumentos e música mapuche e de uma performatividade cênica relacionada às práticas culturais e rituais mapuche.

A peça Ñi pu tremen: mis antepasados é dirigida pela fundadora do Grupo de Teatro KIMVN, que também assina a dramaturgia documental da obra. Trata-se de um texto dramático espetacular composto por um conjunto de relatos de senhoras mapuche, tendo um elenco total de 14 mulheres da comunidade Petu Moguelein Mawidache e do clube de idosas Flor do Inverno, ambos da comuna de El Bosque, em Santiago do Chile. Nessa apresentação narram-se fragmentos de história de vida enquanto um testemunho da memória de um país, acompanhados de uma musicalidade inspirada no resgate do patrimônio imaterial do povo Mapuche (González Seguel, 2018, p. 41).

Os relatos que podemos acessar, a partir de Ñi pu tremen Mis Antepassados são testemunhos de enorme importância para a preservação da história e da cultura mapuche. Segundo a própria Paula González Seguel:

El teatro documental me ha permitido mirar, resignificar y reconocer mi propia historia en otras y en otros de la mano de los dramaturgos Marisol Vega Medina y David Arancibia Urzúa, la música de Evelyn, más las voces de mujeres mapuche de distintas generaciones. (2018, p. 26).

Na esteira da diretora e dramaturga, o teatro documental pode-se descrever como um conjunto de obras nas quais a dramaturgia dá visibilidade às problemáticas circundantes, no que diz respeito a problemas sociais vigentes ou anteriores. No caso de Ñi pu tremen o “texto-documento” se desenvolve pelos relatos das “atrizes-testemunhas”, atuando assim como um registro histórico mas também como obra artística, algo que se movimenta entre o estético, o social e o político (González Seguel, 2018, p. 25) contrapondo a invisibilização sofrida pelos mapuche em todo o meio artístico chileno, “a invisibilidade dos Mapuche no teatro chileno será para González Seguel motivação para que, já imersa no espaço acadêmico e das Artes Cênicas, escolha voltar-se ao contexto familiar e a partir dali iniciar um trabalho de direção” (Souza, 2019, p. 181).

Segundo a própria autora, as obras de teatro documental se manifestam como uma recompilação de testemunhos reais, transmitidos através do resgate e a documentação da oralidade, pautada nesse caso, em uma recontextualização cênica. Atuando também enquanto um ato de denúncia.

Rescate de aquellas imágenes que se arraigan en nuestra memoria y cómo estas se han visto cruzadas por ciertos hitos históricos del tiempo y contexto que habitamos. Aparece... una voz particular que transita entre lo privado y lo público... Las obras son actos de denuncia, de resistencia, de legitimidad de la voz de aquellos que han sido obligados a guardar silencio. (González Seguel, 2018, p. 25).

Entendemos que as características do teatro documental se fazem presentes neste texto dramático espetacular quando: corpos reais de mulheres mapuche estão em cena e com sua performatividade relatam suas vivências, a língua mapudugún se faz presente como idioma do afeto e da transmissão de saberes e memórias ancestrais, quando os relatos retomam especificidades da cultura mapuche, citam aspectos relacionados à formas de vivenciar a infância no campo, às subjetividades femininas, às situações de racismos pelas quais passaram enquanto migrantes residindo na capital Santiago, e, no caso específico do relato de Marisol Ancamil, sua dolorosa experiência de ter experienciado a perseguição política, em anos posteriores ao Golpe Militar no Chile (1973), quando um de seus irmãos, Galvarino, vivia na Rússia como bolsista da Unidade Socialista; esse fato o levou a viver como exilado neste país até a sua morte, de forma violenta.

Os relatos do texto dramático espetacular documentam a forma como estas senhoras vivenciaram períodos conturbados da história oficial chilena com sua forte discriminação para com os povos originários, sobretudo os mapuche que possuem uma perspectiva reativa mais forte. As vidas das senhoras mapuche, relatadas em Ñi pu tremen, são constantemente perpassadas por questões de desenraizamento cultural e familiar, discriminação racial e cultural, além de abusos laborais quando se trata da relação com a vida adulta em Santiago, em contrapartida, muitas histórias bonitas, ternas e até mesmo misteriosas são relatadas quando a conversa é inicialmente direcionada para a infância e adolescência na Araucanía, sua terra natal, Wallmapu.

Sobre o processo, estratégias e escolhas tradutórias

Durante todo o período de realização do projeto - obtendo embasamento teórico a partir da leitura e fichamento dos textos acerca dos estudos de tradução cultural e intersemiótica, especificidade da cultura e do povo mapuche, além estudos relacionados à performance e ao teatro, em especial ao teatro documental - houve a realização gradativa da tradução interlingual do texto dramático Ñi pu tremen: mis antepasados (2008), do Castelhano Chileno para a Língua Portuguesa do Brasil.

Esta tradução foi realizada a partir de procedimentos intrínsecos à atividade tradutória de reconhecimento, correspondência e validação de equivalência de termos entre as línguas em questão. Procedimentos esses que, interpretados por Pym (2017, p. 38), emergem como um modelo para a atividade tradutória, onde o tradutor pode inicialmente fazer uso de uma correspondência “literal”, que por sua vez toma a maior parte do texto, de acordo com a proximidade terminológica entre os idiomas trabalhados, e em casos onde essa equivalência não é suficientemente efetiva aos julgamentos do tradutor, o mesmo pode optar por se aproximar do texto/cultura fonte, realizando em seu ponto extremo a estrangeirização total do termo (Não traduzir), como também pode se aproximar da cultura alvo, realizando assim, em seu ponto extremo, um processo de domesticação do termo, traduzindo-o livremente ao que reconhece como mais adequado. De acordo com Pym,

para resolver problemas de tradução, um modelo simples está, não obstante, implícito: O tradutor pode inicialmente fazer uso do procedimento “literal”, se isso não funcionar, ele pode tanto subir alguns níveis na tabela (Aproximando-se do texto de partida) quanto descer alguns (Aproximando-se da cultura alvo). De acordo com o que o tradutor julgar adequado para cada caso. (2017, p. 38).

Por fim, a revisão e correção da tradução realizada em sessões de orientação e, logo, coletivamente a partir da leitura dramatizada do texto, foram cruciais para a realização das negociações, segundo Umberto Eco (2007, p. 104), necessárias para com os termos ambíguos e/ou etnicamente carregados, onde podia-se perceber a identidade do povo mapuche se tornando explícita não somente no que se refere ao conteúdo dos textos, mas também em sua forma, que é igualmente importante (Berman, 2013, p. 67).

Levando em consideração o contexto em que a obra foi produzida e veiculada, suas aparentes intenções para o público e o respeito fomentado para com as próprias testemunhas/atrizes que relatam suas histórias pessoais na peça, a estratégia considerada mais adequada foi a de estrangeirização total dos termos e trechos em Mapudungun, com o objetivo de que o possível leitor brasileiro, falante apenas de português, sinta a mesma “estranheza” que os leitores chilenos falantes apenas do idioma espanhol. Para que nenhuma informação fosse perdida, foram colocadas logo ao lado e entre colchetes, as traduções dos termos em Mapudungun que possuíam uma equivalência natural, segundo Pym (2007, p. 27), com a língua portuguesa, interferindo assim muito minimamente o ritmo e a extensão total da obra.

Já aos termos mais etnicamente carregados, assim como os trechos inteiramente produzidos em Mapudungun, foram adicionadas notas de rodapé com uma explicação mais elaborada, extensa e referenciada sobre o que representam, de uma maneira resumida, para a cultura mapuche, com a finalidade de trazer ao leitor brasileiro um maior conforto do seu ritmo de leitura. Optou-se por evitar a deformação dos ritmos, segundo (Berman, 2013, p. 78) mas também trazer um contato com a língua, à princípio através da forma escrita, de um povo indígena localizado majoritariamente no Chile, algo duplamente estrangeiro para os leitores do português do Brasil situados em centros urbanos.

Apresentaremos um exemplo sobre o que comentamos acima, para o trecho:

La acción ocurre en una ruka . En un costado se encuentra la más adulta de las lamngen , Aurelia Huina. Al fondo se encuentran sentadas Constanza Hueche, Norma Hueche y Marlen Hueche, quienes deben tener entre 11 y 14 años de edad, se abrigan con un chamal y llevan puestas sus xapelacuchas . Se encuentran diez sillas antiguas vacías, en las paredes cuelgan ropajes, xarihues. Al centro de la ruka se encuentra encendido un fogón. Luz en el fogón (grifos nossos). (González Seguel, 2018, p. 41).

Optamos pela estrangeirização total de termos etimologicamente carregados com a adesão de notas de rodapé e as traduções de correspondência simples - Literais - colocadas ao lado, em colchetes. A nossa versão de tradução ficou da seguinte maneira:

A ação se passa em uma ruka. De um lado está a mais velha das lamngen [Irmãs], Aurelia Huina. No fundo estão sentadas Constanza Hueche, Norma Hueche e Marlen Hueche, que devem ter entre 11 e 14 anos, se cobrem com um xale e vestem suas xapelacuchas. Se encontram dez cadeiras velhas vazias, nas paredes estão penduradas roupas, xarihues. No centro da ruka se encontra um fogão aceso. Luz no fogão (grifos nossos). (González Seguel, 2018, p. 41).

Enquanto as notas explicativas estão descritas da seguinte maneira:

Nota 5 - Habitação típica da comunidade mapuche. Em sua forma tradicional, possui formato cônico e base circular, é construída com materiais de origem vegetal, com exceção do piso, que é de barro. A estrutura interna é armada com toras, enquanto palhas e canas são dispostas para o revestimento externo, que serve de isolamento térmico e proteção contra as chuvas.

Nota 6 - Xapelacucha, ou Trapelacucha, é um adorno peitoral tradicionalmente usado pelas mulheres Mapuche, feito de prata pelos ourives indígenas (González Seguel, 2018, p. 41). Notas acrescentadas pelos tradutores.

Nota 7 - Também chamado de Trarigue. Trata-se de uma faixa de lã, que é colocada em volta da cintura da roupa tradicional da mulher, é tecida com ÑIMIN, desenhos, símbolos que falam da territorialidade ou de algum aspecto da visão de mundo do povo Mapuche. É usado para proteger a barriga.

Outro exemplo de escolha tradutória que devemos destacar neste artigo é o que se relaciona com as seguintes passagens:

CARMEN SAIHUEQUE: Ah, ahí sipo … cuando llegué a Santiago ahí sí, ahí me di cuenta que realmente no era cabra… lo quería po’, porque después me acordaba de él aquí po y ahí dije yo, ¿Por qué tengo que obedecerle a mis padres?, los sentimientos míos... y después seguimos pololeando y nos reencontramos aquí en Santiago, y ahí pololeamos de nuevo, volvimos y hasta la hora estamos aquí (grifos nossos). (González Seguel, 2018, p. 50).

Para a tradução deste trecho do texto dramático, optamos pela domesticação de alguns elementos estilísticos regionais para aproximação do leitor, obtendo como resultado:

CARMEN SAIHUEQUE: Ah, aí sim né... quando cheguei em Santiago aí sim, ali me dei conta de que não era mesmo uma cabra... Eu gostava dele , porque depois eu me lembrava dele aqui , e aí eu disse, por que eu tenho que obedecer ao meus pais?, os sentimentos são meus... e depois continuamos paquerando e nos encontramos aqui em Santiago, e aí paqueramos de novo, voltamos e até agora estamos aqui (grifos nossos). (González Seguel, 2018, p. 50).

Durante o processo de tradução foi interessante perceber que, além do Mapudungun, o idioma espanhol também possui algumas peculiaridades no que diz respeito à tradução com o a língua portuguesa, ainda que em menor número de casos e menor e complexidade de resolução em relação ao Mapudungun, foi necessária atenção à determinadas questões, com exemplo do trecho relatado por Juana Huaquilaf:

Ya después yo me fui en Temuco a trabajar y trabaja en apartamento y me decían vaya a buscar chancho pa’ pasarlo en la pieza y yo donde buscar chancho y creía que era chancho de verdad que tenía que ir a buscar y la patrona me decía anda a buscarlo al potrero y yo no sabía si era chancho de verdad. Resulta que era chancho pa’ pasarlo en la pieza, se usaban antiguamente (grifos nossos). (González Seguel, 2018, p. 46).

Nesse caso, decidimos manter a palavra ‘Chancho’ em sua forma original na primeira e última vez em que ela surge no trecho, causando o mesmo pequeno efeito de estranheza que a personagem/testemunha sentiu ao ouvir essa ordem dos patrões. Em seguida traduzimos os demais casos através da literalidade, acompanhando o entendimento da personagem/testemunha com o que estava sendo dito.

Nós inserimos uma nota explicativa, junto à palavra ‘Chancho’, salientando que além do sentido literal no português, ‘Porco’, essa palavra também significa 'Enceradeira'.

Obtemos como resultado:

Depois fui para Temuco para trabalhar e trabalho em apartamento e diziam vá procurar chancho para passá-lo na sala e eu: onde encontrar porco? e eu pensei que era um porco de verdade o que eu tinha que ir encontrar e a patroa me dizia anda, vá procurar no pasto e não sabia se era porco de verdade. Acontece que era um chancho para passar na sala, usavam ​​antigamente (grifos nossos). (González Seguel, 2018, p. 46).

Percebe-se que as escolhas feitas convergem para a manutenção da coloquialidade presente no texto fonte.

Entendendo que se tratam de histórias de pessoas de uma maior idade, oriundas de uma comunidade indígena onde a linguagem oral é bastante presente e se colocam em um contexto de intimidade, com a linguagem coloquial sendo bastante utilizada, escolhemos por transmitir, em diversos momentos, esse “conforto” também para o leitor do português brasileiro com a finalidade de perpetuar essa atmosfera familiar das histórias das mais velhas, relatadas enquanto se prepara um café e se come biscoitos, algo que realmente é feito em cena, possivelmente como estratégia ambivalente para as atrizes/testemunhas se sentirem mais à vontade para relatar suas histórias de vida enquanto o público se sente ainda mais próximo da realidade das personagens.

Por se tratar de uma tradução estritamente para fins acadêmicos - até o momento da escrita deste artigo não há perspectiva de publicação - nós entendemos que poderia existir uma tendência à normalização do texto, e uma possível exclusão de traços coloquiais como os citados anteriormente. Contudo, faz parte da atividade tradutória a existência de escolhas segundo a própria vontade do sujeito tradutor, e dada tal liberdade juntamente com os estudos sócio-históricos, manter esses importantes traços estilísticos da obra se mostraram como uma boa escolha.

No momento em que se reflete sobre o processo tradutório é sempre importante lembrar que há um sujeito, o tradutor, que efetua a atividade de mediação, desde a leitura e interpretação do material original até a concretização do produto final, chegando à conclusão da tradução após uma intensa reflexão junto aos seus próprios referenciais, e portanto, pode-se inferir que a tradução se configura como uma atividade do sujeito (Hurtado, 2001, p. 41) e que sempre será constantemente permeada por sua subjetividade, além dos demais fatores.

Em consequência dessa característica subjetiva da atividade tradutória, pode-se inferir que

traduzir significa sempre “cortar” algumas das possíveis consequências que o termo implica para os leitores originalmente. A interpretação por parte do tradutor, que representa o primeiro passo de toda tradução, acaba por estabelecer quantas e quais das consequências que o termo sugere pode-se cortar em prol de outros aspectos, julgados mais importantes pelo tradutor. Concluindo assim que traduzir nunca diz exatamente a mesma coisa. (Eco, 2007, p. 107).

Foi de crucial importância para o sucesso do trabalho uma atenção especial às escolhas tradutórias, levando em consideração de que se trata de uma produção com diversos traços da nação originária mapuche que, durante sua produção, já foram traduzidos de maneira intersemiótica para o Espanhol Chileno (Rojas, 2009, p. 24) e que agora, além disso, estarão sujeitos a um novo processo de tradução, desta vez do espanhol para o português brasileiro.

O cuidado durante a realização da pesquisa e tradução centrou-se em evitar ao máximo todo tipo de deformação entre os aspectos de forma, conteúdo e efeitos do texto fonte e os seus correspondentes no texto final (Berman, 2013, p. 97) ao menos evitar as deformações que ofendem, reduzem ou generalizam excessivamente a imagem e os traços culturais do povo mapuche frente aos demais grupos sociais em contato.

Ao longo de nossa pesquisa/tradução foi dada uma maior prioridade à tarefa de negociação da tradução (Eco, 2007, p. 104) e assim, através dos estudos étnicos realizados sobre e pelos Mapuche, perceber quais elementos são mais determinantes e importantes para estarem em posição de prioridade durante as negociações de sentido, ritmo, forma e efeito de cada um dos termos que a literalidade não deu conta de traduzir.

Manter o que é importante para a cultura significa respeitar a intenção da autora ao escrever o texto, realizando assim uma boa tradução (Berman, 2013, p. 71). Empiricamente, o principal resultado do trabalho desenvolvido e relatado neste artigo, é a nossa versão de tradução para Ñi pu tremen, respeitando a linha teórica/metodológica citada neste tópico.

Considerações finais

De modo geral, enquanto pesquisadores brasileiros, acreditamos que é importante contribuir para a visibilização da dramaturgia mapuche frente aos movimentos de resistência brasileiros, dentro e fora da academia. Tendo em vista a circulação da versão de Ñi pu tremen em diferentes espaços, leitores brasileiros poderão perceber que outras comunidades vivenciam problemáticas tão distintas por naturezas óbvias, como a distância geográfica e cultural, mas também muito semelhantes, por naturezas talvez não tão óbvias, mas ainda assim muito presentes, como a posição em que a mulher, oriunda de uma nação originária de grandes países como Brasil e Chile, ocupa dentro das relações de poder intra e extrafamiliares e o constante apagamento e/ou silenciamento de importantes variedades culturais, linguísticas e comportamentais que poderiam conviver harmonicamente dentro de um espaço tão vasto como são esses países, mas não conseguem por conta de um processo hostil de globalização, demonstrando que a colonização está longe de um fim definitivo.

Quando essa tradução se efetiva, o Brasil se aproxima do Chile em certa medida, já que como pesquisadores/tradutores da área de Língua Espanhola, traduzir um texto como esse, onde são expostas ‘outras visões’ acerca da história geral do Chile para além das postuladas como convencionais, significa também fomentar uma aproximação - e consequentemente o fortalecimento - de movimentos de resistência de ambos os países, frente ao apagamento e silenciamento cultural.

A obra Ñi pu tremem, junto a sua tradução, representam um esforço decolonial por parte de quem produziu a obra, - por promover uma discussão sobre e com uma nação originária que até então é fortemente silenciada pelos grupos majoritários - por parte de quem traduziu a obra, por amplificar essa discussão sobre o que foi produzido em ambientes ainda mais diversos (Meneses, 2019, p. 267) e também por parte de quem lê a obra, já que assim, se permite atravessar por histórias ao mesmo tempo tão distintas e tão semelhantes, despertando uma relação empática entre os povos.

Uma importante questão que pode ser levantada, gira em torno de uma aparente falta de reconhecimento do povo brasileiro, dentro do seu imaginário coletivo, enquanto povo latinoamericano, sobretudo sul-americano. Considerando isso, a tradução pode ser reafirmada como um veículo para uma troca de saberes e estímulo para uma percepção geral de que somos bem mais parecidos com os nossos “vizinhos” sul-americanos do que diferentes.

No caso especial desse projeto, com relação aos mapuche e a sua dramaturgia, trata-se de um diálogo que nos proporciona, enquanto brasileiros, uma compreensão mais sensível sobre sua história e resistência, além de seu legado de luta por reivindicações de direitos e de reconhecimento constitucional junto ao Estado Nacional Chileno. Visibilizar a dramaturgia e o teatro mapuche chileno do KIMVN, através da pesquisa tradução de Ñi pu tremem, e agora por meio deste artigo, é nossa forma de sinalizar um diálogo acadêmico com esta grande nação originária de nosso continente.

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1Para conferir mais informações sobre a Compañía Kimvn Teatro, basta acessar a página web do grupo: https://kimvnteatro.cl/

Recibido: 25 de Agosto de 2022; Aprobado: 12 de Septiembre de 2022

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